quinta-feira, 6 de junho de 2019

O VINHO, de Charles Baudelaire




Um homem muito célebre, que era ao mesmo tempo um grande imbecil, coisas que vão muito bem juntas, ao que parece, como terei mais de uma vez, sem dúvida, o doloroso prazer de demonstrar, ousou, em seu livro sobre a Mesa, levado pelo duplo ponto de vista da higiene e do prazer, escrever o que segue sobre o artigo Vinho: “O patriarca Noé passa pelo inventor do vinho; é um licor feito com a fruta da vinha”. 

E depois? Depois, nada: isto é tudo. Vocês poderão folhear o volume, virá-lo em todos os sentidos, lê-lo ao contrário, de cabeça para baixo, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda e não encontrarão outra coisa sobre o vinho na Physiologie du Goût do muito ilustre e muito respeitado Brillat-Savarin: “O patriarca Noé...” e “é um licor...”. 

Imagino que um habitante da lua ou de algum planeta distante, viajando em nosso mundo e cansado de suas longas etapas, pense em refrescar o paladar e aquecer o estômago. Procura inteirar-se dos prazeres e costumes da nossa terra. Já ouviu falar vagamente de licores deliciosos com os quais os cidadãos desta esfera adquirem coragem e alegria à vontade. Para estar certo de sua escolha, o habitante da lua abre o oráculo do paladar, o célebre e infalível Brillat-Savarin, e encontra, no artigo Vinho, esta informação preciosa: “O patriarca Noé...” e “este licor é feito...” Muito digestivo. Muito explicativo. É impossível, após lermos esta frase, não termos uma ideia justa e clara de todos os vinhos, de suas diferentes qualidades, de seus inconvenientes, de seu poder sobre o estômago e sobre o cérebro. 

Ah, caros amigos, não leiam Brillat-Savarin! Deus preserva aqueles a quem ama das leituras inúteis; é a primeira máxima de um pequeno livro de Lavater, um filósofo que amou os homens mais que todos os magistrados do mundo antigo e moderno. Não batizamos nenhum bolo com o nome de Lavater, mas a memória deste homem angelical sempre viverá entre os cristãos, quando os próprios bravos burgueses já tiverem esquecido o Brillat-Savarin, uma espécie de brioche insípido cujo menor defeito é servir de pretexto a uma torrente de máximas ingenuamente pedantes tiradas da famosa obra-prima. 

Se uma nova edição desta falsa obra-prima ousar afrontar-se com o bom-senso da humanidade moderna, bebedores melancólicos, bebedores felizes, todos vocês que buscam no vinho o esquecimento ou a lembrança, e que, sem jamais achá-lo suficiente, contemplam o céu apenas pelo fundo da garrafa[*], bebedores esquecidos e desconhecidos, vocês comprarão um exemplar e trocarão o bem pelo mal, a generosidade pela indiferença? 

Abro o Kreisleriana, do divino Hoffmann, e leio uma curiosa recomendação. O músico consciencioso deve servir-se do vinho de Champagne para compor uma ópera-bufa. 

Encontrará, neste vinho, a alegria espumante e leve que reclama o gênero. A música religiosa pede vinho do Reno ou de Jurançon. Da mesma forma que na essência das ideias profundas, há neste vinho uma amargura embriagadora, mas a música heroica não pode passar sem o vinho da Borgonha, que tem a impetuosidade séria e o arrebatamento do patriotismo. Eis com certeza quem é melhor e, além do sentimento apaixonado de um bebedor, encontro em Hoffmann uma imparcialidade que faz a maior honra a um alemão. 

Hoffmann havia construído um singular barômetro psicológico destinado a representar-lhe as diferentes temperaturas e os fenômenos atmosféricos de sua alma. Encontramos divisões como esta: “Espírito levemente irônico temperado de indulgência; espírito de solidão com profunda satisfação comigo mesmo; alegria musical, entusiasmo musical, tempestade musical, alegria sarcástica insuportável para mim mesmo, aspiração a sair do meu eu, objetividade excessiva, fusão de meu ser com a natureza”. É claro que as divisões do barômetro moral de Hoffmann foram fixadas segundo sua ordem de geração, como nos barômetros comuns. Parece-me que há, entre este barômetro psíquico e a explicação das qualidades musicais do vinho, uma evidente fraternidade. 

Hoffmann, no momento em que a morte veio buscá-lo, começava a ganhar dinheiro. A fortuna lhe sorria. Como nosso caro e grande Balzac, foi somente em seus últimos anos que viu brilhar a aurora boreal de suas mais velhas esperanças. Nesta época, os editores, que disputavam seus contos para os almanaques, tinham o costume, para cair em suas graças, de enviar-lhe, junto com o dinheiro, uma caixa de vinhos da França. 

Profundos prazeres do vinho, quem não os conhece? Quem quer que tenha tido um remorso a aplacar, uma lembrança a evocar, uma dor a esquecer, um castelo na Espanha a construir, todos enfim já o invocaram, deus misterioso escondido nas fibras da videira. Como são grandes os espetáculos do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e abrasadora esta segunda juventude que o homem dele retira! Mas como são, também, perigosas suas volúpias fulminantes e seus encantamentos enervantes. E, no entanto, digam, do fundo da alma e da consciência, juízes, legisladores, aristocratas, todos vocês a quem a felicidade torna doces, a quem a fortuna torna a virtude e a saúde fáceis, digam quem de vocês terá a coragem impiedosa de condenar o homem que bebe o gênio? 

Além disto, o vinho não é sempre este terrível lutador certo de sua vitória e que jurou não ter nem piedade nem misericórdia. O vinho é como o homem: não se saberá nunca até que ponto podemos estimá-lo ou desprezá-lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantos atos sublimes ou perversidades monstruosas ele é capaz. Portanto, não sejamos mais cruéis com ele do que com nós mesmos e tratemo-lo como um igual. 

Parece-me às vezes ouvir o vinho falar – ele fala com sua alma, com esta voz dos espíritos que apenas os espíritos alcançam: – “Homem, meu bem-amado, quero levar até você, apesar de minha prisão de vidro e de minhas aldravas de cortiça, um canto cheio de fraternidade, um canto cheio de alegria, de luz e de esperança. Não sou ingrato; sei que lhe devo a vida. Sei o que lhe custei de trabalho e de sol sobre os ombros. Você me deu a vida, e eu o recompensarei por isso. Pagarei minha dívida com generosidade; porque sinto uma alegria extraordinária quando caio no fundo de uma garganta alterada pelo trabalho. O peito de um homem honesto é uma morada que me agrada muito mais que as adegas melancólicas e insensíveis. É uma tumba alegre onde eu cumpro meu destino com entusiasmo. Faço no estômago do trabalhador um grande rebuliço e daí, em escadas invisíveis, subo ao seu cérebro onde executo minha dança suprema. 

“Ouve agitar-se em mim e ressoar os poderosos refrãos dos tempos passados, os cantos de amor e de glória? Sou a alma da pátria, sou metade galante, metade militar. Sou a esperança dos domingos. O trabalho torna prósperos os dias, o vinho torna felizes os domingos. Os cotovelos sobre a mesa da casa e as mangas arregaçadas, assim você me glorificará orgulhosamente e ficará verdadeiramente contente. 

“lluminarei os olhos de sua velha mulher, a velha companheira de suas tristezas cotidianas e de suas mais velhas esperanças. Abrandarei o seu olhar e porei no fundo de suas pupilas o brilho da juventude. E seu caro menino, branquelo, este pobre burrinho atado à mesma fadiga que o cavalo, a ele devolverei as belas cores de seu berço e serei para este novo atleta da vida o óleo que fortifica os músculos dos velhos combatentes. 

“Cairei no fundo de seu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o grão que fertiliza o solo dolorosamente escavado. Nossa íntima reunião criará a poesia. Para nós dois faremos um Deus e flutuaremos ao infinito, como os pássaros, as borboletas, os filhos da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas.” 

Eis o que canta o vinho em sua linguagem misteriosa. Maldito seja aquele cujo coração egoísta e insensível às dores de seus irmãos nunca escutou esta canção! 

Sempre pensei que se Jesus Cristo surgisse hoje no banco dos réus, encontraríamos algum procurador que demonstraria que seu caso estava agravado pela reincidência. Quanto ao vinho, ele reincide todos os dias. Todos os dias, repete seus benefícios, o que explica a animosidade dos moralistas contra ele. Quando digo moralistas, penso nos pseudomoralistas fariseus. 

Mas há outra coisa. Desçamos um pouco mais. Contemplemos um desses seres misteriosos, vivos, por assim dizer, os dejetos das grandes cidades; pois há ofícios singulares, seu número é imenso. Pensei, às vezes, com terror, que havia ofícios que não comportavam nenhuma alegria, ofícios sem prazer, cansaços sem alívio, dores sem compensação e me enganei. Eis um homem encarregado de recolher os lixos de um dia da cidade. Tudo que a grande cidade rejeitou, tudo o que perdeu, tudo o que desdenhou, tudo o que quebrou, ele cataloga e coleciona. Examina os arquivos da devassidão, os entulhos da repulsa. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; apanha, como um avaro, seu tesouro, os restos que, amassados pela divindade da Indústria, tornarão a ser objetos de utilidade ou de prazer. Ei-lo que, à claridade sombria dos candeeiros atormentados pelo vento da noite, sobe uma das longas ruas tortuosas e povoadas por pequenas famílias da montanha de Sainte-Geneviève. Está coberto por seu xale de vime com seu número sete. Chega sacudindo a cabeça e tropeçando no calçamento como os jovens poetas que passam todos os seus dias a caminhar e a procurar rimas. Fala sozinho; lança sua alma no ar frio e tenebroso da noite. É um monólogo esplêndido de fazer se tomar de piedade as tragédias mais líricas. “Em frente! Marche! Divisão, vanguarda, exército!” Exatamente como Bonaparte agonizante em Santa Helena! Parece que o número sete tornou-se cetro de ferro e o xale de vime, manta imperial. Agora, ele cumprimenta seu exército. A batalha está ganha, mas o dia foi quente. Passa a cavalo sob os arcos do triunfo. Seu coração está feliz. Ouve com delícia as aclamações de um mundo entusiasta. Em breve, ditará um código superior a todos os códigos conhecidos. Jura solenemente que fará seu povo feliz. A miséria e o vício desaparecerão da humanidade. 

E, no entanto, tem as costas e o lombo esfolados pelo seu balaio. É castigado pelas tristezas do cotidiano. Está moído por quarenta anos de trabalho e caminhadas. A idade o atormenta. Mas o vinho, como um novo Pactolo, atravessa a humanidade enfraquecida como um ouro intelectual. Como os bons reis, reina por seus serviços e canta suas proezas pela garganta de seus súditos. 

Há sobre o globo terrestre uma vasta multidão sem nome, cujo sono não basta para adormecer os sofrimentos. O vinho torna-se para ela cantos e poemas. 

Muitas pessoas dirão, sem dúvida, que sou indulgente. “Você inocenta a embriaguez, idealiza a escória.” Confesso que diante dos benefícios falta-me coragem para contar os danos. Além disso, disse que o vinho era como o homem e concordei que seus crimes eram iguais às suas virtudes. Posso fazer melhor? Tenho, por sinal, uma outra ideia. Se o vinho desaparecesse da produção humana, creio que faria na saúde e no intelecto da humanidade um vazio, uma ausência, uma imperfeição muito mais terrível que todos os excessos e erros pelos quais responsabilizamos o vinho. Não é razoável pensar que as pessoas que nunca bebem vinho, ingênuas ou sistemáticas, são imbecis ou hipócritas; imbecis, isto é, homens que não conhecem nem a humanidade nem a natureza, artistas que recusam os meios tradicionais da arte, operários que blasfemam contra a mecânica –, hipócritas, isto é, comilões reprimidos, impostores da sobriedade, que bebem escondidos e têm algum vício oculto? Um homem que só bebe água tem um segredo a esconder de seus semelhantes. 

Que seja julgado: há alguns anos, em uma exposição de pintura, uma multidão de imbecis provocou tumulto diante de um grande quadro polido, encerado, envernizado como um objeto industrial. Era a antítese absoluta da arte; era para a cozinha de Droling o que a loucura é para a idiotice, os fanáticos para o imitador. Nesta pintura microscópica via-se voarem as moscas. Fui atraído por este objeto monstruoso como todo mundo, mas envergonhei-me desta estranha fraqueza, pois era a irresistível atração pelo horrível. Enfim, percebi que fora levado inconscientemente por uma curiosidade filosófica, o imenso desejo de saber qual poderia ser o caráter moral do homem que havia gerado uma extravagância tão criminosa. Apostei comigo mesmo que ele devia ser profundamente mau. Procurei me informar e meu instinto teve o prazer de ganhar esta aposta psicológica, soube que o monstro se levantava regularmente antes da luz do dia, que ele havia causado a ruína de sua empregada e que ele bebia somente leite! 



[*] Béroalde de Verville; Moyen de Parvenir. (Nota de C. B.) 



(Paraísos artificiais; tradução de Alexandre Ribondi, Vera Nóbrega e Lúcia Nagib) 



(Ilustração: Philippe Mercier, 1725-1730 - Le jeune degustateur)




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