segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

ASSOMBRAÇÃO, de Dinah Silveira de Queiroz







Uma noite, ao receber a visita de uma amiga, lembrei-me de lhe emprestar um romance. Fora a minha leitura da véspera, e eu o deixara na mesinha de cabeceira. Subi a escada, e entrei no quarto. Curioso. Alguém acendera a luz... E no entanto, eu estava certa de que ninguém subira. Caminhei intrigada, pressentindo qualquer acontecimento... Olhei minha cama e vi nela uma mulher deitada. Uma mulher... morta – ela... estava morta! tinha um horrível vestido de lantejoulas de todas as cores, a aparecia coberta de joias baratas.

Suando frio, procurando dominar o coração desordenado, cheguei mais perto. Meu Deus! Aquela face nojentamente pintada era a minha própria face! Como se alguém fizesse de mim um retrato de degradação... Meu próprio rosto... mais velho – muito mais velho! – com maqulagem de atriz decadente! Queria gritar... chamar todos... Não me foi possível. Fiquei fascinada, encarando aquele meu próprio eu degradado e envelhecido, coberto de joias. De súbito, à altura do coração, de sob as lantejoulas, principiou a correr um esguicho de sangue, que ia engrossando, que se tornava maior. Nele, iam submergindo o colo, os braços, o corpo, a longa saia rutilante de meu terrível “double”. A mulher estava coberta de sangue, e seu rosto dele se destacava estranhamente branco, como a face de um pierrô trágico.

Então... ah, só então eu consegui gritar. Voltei correndo... mas, junto da escada, perdi os sentidos.



(As Noites do Morro do Encanto)


(Ilustração: Mia Makila)



sábado, 29 de janeiro de 2011

OS POEMAS, de Mário Quintana










Os poemas são pássaros que chegam

não se sabe de onde e pousam

no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam vôo

como de um alçapão.

Eles não têm pouso

nem porto

alimentam-se um instante em cada par de mãos

e partem.

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

no maravilhado espanto de saberes

que o alimento deles já estava em ti...



(Esconderijos do Tempo)

(Ilustração: Jean Metzinger – l’oiseau bleu)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

FUGA, de Graciliano Ramos







A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se tornciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.


Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se no mundo, como negro fugido.





(Vidas Secas)



(Ilustração: Portinari - retirantes)


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

PLENILÚNIO, de Augusto dos Anjos







Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida
Que lhe serve de alvíssimo sudário
Respira essências raras, toda a cálida
Mística essência desse alampadário.


E a lua é como um pálido sacrário,

Onde as almas das virgens em crisálida
De seios alvos e de fronte pálida,
Derramam a urna dum perfume vário.


Voga a lua na etérea imensidade!

Ela, eterna noctâmbula do Amor,
Eu, noctâmbulo da Dor e da Saudade.


Ah! como a branca e merencórea lua,

Também envolta num sudário — a Dor,
Minh'alma triste pelos céus flutua!



(Eu e Outras Poesias)


(Ilustração: A. Andrews Gonzalez)





domingo, 23 de janeiro de 2011

PAISAGEM COM FIGURAS, de Ruy Castro









Em meados dos anos 60, o poeta João Cabral de Mello Neto jantava na cantina Fiorentina, no Leme, com seus colegas Fernando Pessoa Ferreira e Felix de Athayde, pernambucanos como ele. Em certo momento, ouviu-se um rumor na varanda e João Cabral perguntou o que estava acontecendo. "É o Chacrinha, que acabou de chegar", informou Fernando.

"Chacrinha? Quem é Chacrinha?", quis saber João Cabral. "É um apresentador de tevê, muito famoso", disseram. Cônsul do Brasil em Barcelona, com raras vindas ao Rio e famoso por não se interessar por música e por tomar dez aspirinas por dia para a dor de cabeça, o poeta estava por fora do que acontecia por aqui.

E, mesmo que estivesse a par, não podia haver ninguém menos Chacrinha do que João Cabral. Na sua poesia, grave e desidratada, as palavras eram de pedra, os cães, sem plumas, e as facas, só lâminas. Já Chacrinha era o barroco em Technicolor, embora a tevê ainda fosse em preto-e-branco. Apresentava os piores cantores do Brasil, atirava bacalhau para a plateia e promovia concursos de comer barata. Os comunicólogos ainda não o tinham descoberto como símbolo do "mau gosto genial".

Chacrinha entrou ventando pela Fiorentina, cercado de dez ou quinze assistentes. Ao se aproximar da mesa de João Cabral, estacou e olhou-o por um segundo. Então, abriu os braços e exclamou: "Cabral!!!". O poeta levou um susto, mas não deixou a bola cair: "Abelardo!!!". Levantou-se no ato e os dois se abraçaram, aos soluços.

O poeta João Cabral de Mello Neto e o apresentador Abelardo "Chacrinha" Barbosa, colegas de primário nos Maristas, de Recife, e que não se viam havia mais de 30 anos, tinham acabado de se reconhecer e reencontrar. É o Brasil.





(Folha de São Paulo, 4.5.2009) 



(Ilustração: Fernando França) 




sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

GERMINAL, de Menotti del Picchia





I.

Nuvens voam pelo ar como bando de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.

Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.

Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.

No piquete relincha um poldro; um galo alacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma
na treva.

Anoiteceu.

Juca Mulato cisma.

II.

Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejos até de rebrotar raízes,
deitar ramas pelo ar.
sorver, junto da planta, sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!

III.

“Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma e viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço...”

E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...

Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre, de feno, lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.

Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em coro
dos batráquios, no açude, os gritos soluçantes
do eterno amor dos charcos.

É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e a elegância dos barcos.

O crescente, recurvo, a treva em trilhos frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de um alfanje.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.

IV.

Aflora-lhe no imo um sonho que braceja:
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
“Que tens, Juca Mulato?...” e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.

Cansado ele? E por quê? Não fora essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa?

Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...

Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente,
da filha da patroa...

“Vamos, Juca Mulato, estás doido?” Entretanto,
tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto,
o ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual, violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...

“Que diabo!” Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! o horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!

V.

Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses solhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...

Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas.

Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Adivinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
Entra no coração sempre que o encontra aberto...

Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida...
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que ora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...

VI.

E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
“Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar, é sofrer; amar, é sofrer mais!”

VII.

E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara ao lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!


(Juca Mulato)


(Ilustração: Portinari - flautista)


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

LUGAR DE MENINO E CACHORRO É DEBAIXO DA MESA, de Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva







Quando surgi, minha mãe escondeu sua gravidez indesejada sob um capote de frio. Minha irmã foi repreendida quando pediu a uma vizinha para ensiná-la a tecer um sapatinho de tricô assim que soube da novidade. Aquele era um assunto proibido. Meu pai se preocupou com as doenças de minha mãe que lhe minavam todos os centavos e com as despesas de mais uma criança em casa. Se não fosse pouco o desconforto para a família pega de surpresa, ainda nasci mulher.


Quando nasci, meu pai saiu do quarto e foi dormir na cozinha. Não tolerava meu choro e me queria bem distante. Minha mãe não teve alternativa a não ser me dar o peito e passar noites acordada. Apelidaram-me de Mamãe Dolores, personagem de O Direito de Nascer, novela da época na rádio Nacional. A mãe preta passou a novela toda chorando e eu a substituía nessa arte, quando a novela acabava, ao longo da madrugada.



Durante toda a minha vida, me lembraram que nasci por descuido. Não sei se sou filha de camisinha furada ou de erro de tabela. Não sei se sou filha de obrigação ou de prazer. Se minha mãe escondia a barriga debaixo do capote, talvez fosse de vergonha por exibir o fruto do prazer ou da obrigação de servir ao marido. Nunca lhe perguntei.



Na infância fui proibida de brincar com meninos-homens. Segundo meu pai, homem nenhum presta. Carnaval nem pensar, pois havia o risco de alguém passar a mão em minha bunda. Calça comprida era traje indecoroso, shorts e maiô só por cima do cadáver de meu pai. Aos domingos, meu pai me levava ao cinema e minha mãe ficava em casa, pois não gostava de lugares fechados. Acho que era uma desculpa para me ver à distância.



Meus companheiros foram o cachorro, os livros, e o pé de goiaba. Com o cachorro, eu jogava bola e reclamava de minha mãe. Subia no pé de goiaba acompanhada de livros de histórias da carochinha, do Almanaque Tico-Tico com Bolão, Reco-Reco e Azeitona. Sentada lá em cima, ficava horas lendo e comendo goiabas Comendo goiabas e lendo.



Como eu tinha o cabelo escorrido, me falavam que eu era filha de índio e que havia sido deixada por eles no portão de casa. Quando entrei para a escola, comecei a estudar as tribos e fiquei pensando “puxa, aqueles índios devem ter andado muito até achar aquele bairro da zona norte para me largar”. Nunca tirei essa história a limpo. Coloquei na minha cabeça que eu era uma princesa e que alguma bruxa me colocara naquela casa em que tudo era proibido para se vingar da família real, mas que um dia a verdade seria revelada e eu usaria roupas bonitas e iria para o Rio de Janeiro conhecer o mar. Toda princesa precisa passar por maus momentos até ser feliz para sempre.



Cala a boca menina. Lugar de menino e cachorro é debaixo da mesa. Você não sabe o que está falando. Fecha sua boca. Não fala nada. Pare de falar bobagem. Não fale o que você não sabe. Você está errada. Não é nada disso. Cala a boca.



Falar era meu esporte predileto, mas em minha casa só havia adultos. Quando meus pais recebiam visitas, eu era mandada para o quarto, pois criança não entra em conversa de adulto. Sempre que eu tentava participar das conversas, alguém dizia, “lugar de menino e cachorro é debaixo da mesa” e era para lá que eu ia sempre que cantavam parabéns para mim no meu aniversário.



Como eu odiava aquele ritual. Espezinhavam-me o ano inteiro, mas naquele único dia eu era o centro das atenções. Era só começar o “parabéns para você” que eu, para desespero de minha mãe, corria para debaixo da mesa. Todo ano era a mesma coisa. Pediam para eu soprar as velas e não dar vexame, mas eu sentia tanta vergonha que acabava me refugiando debaixo da mesa. Não entendia por que minha mãe ficava tão brava, afinal lugar de menino e cachorro era debaixo da mesa.



Os passeios de minha família eram sempre na casa de parentes no mesmo bairro. Íamos a pé. Os adultos conversavam, conversavam e eu ficava sentada em um canto com a boca fechada, pois criança não participava de assunto de adulto. Voltava morrendo de sono. Pedia colo, o que era sempre negado. Um dia eu estava com tanto sono que, distraída, bati com a cabeça em um poste. Não sei o que doeu mais, a pancada ou a braveza de minha mãe. “Cabeça tonta, não olha por onde anda...”



Minha irmã ficou noiva quando eu tinha sete anos. Um amigo do noivo me pegou no colo e me disse que iria se casar comigo. Achei que era um herói de minha história de princesa. Esperei aquele moço por tanto tempo, mas ele nunca voltou para me salvar daquela casa. Aquele moço foi um dos poucos adultos que conversou comigo e não me mandou para debaixo da mesa.



Minha irmã casou-se dois anos depois do noivado. Após a cerimônia no cartório, os padrinhos foram para minha casa brindar com uma bebida que borbulhava. Devia ser algo baratinho, tipo Cidra, pois meu pai era homem pobre. Eu fiquei toda alegre ao ver a sala cheia de gente bonita e, assim que apareci, fui expulsa, pois estava suja de terra do quintal. No planejamento da festa, esqueceram de mim e não havia lugar para criança. Fui me juntar ao cachorro no fundo do quintal. Naquele dia não havia lugar debaixo da mesa para nós dois.



Na escola, minha atividade preferida era conversar, mas a professora se vingava subtraindo pontos na nota de comportamento e eu apanhava em casa. Eu era aluna nota 10, mas adorava conversar. Era uma tortura levar o boletim para meus pais a cada final de mês. Às vezes minha mãe ralhava, mas, na maioria das vezes, me batia e eu fazia xixi na roupa de tanto medo e dor. O calor da urina descendo pelas minhas pernas aquecia meu coração apunhalado pela frieza do desamor de minha mãe. Eu tinha tanta pena de mim! Adorava fingir que era manca. Andava mancando e sentia a maior alegria quando alguém na rua me olhava com pena. Era o jeito de conseguir alguma compaixão para recompensar a afetividade aleijada.



Eu prometia para mim mesma que não conversaria na sala de aula, mas o prazer do bate-papo era maior do que o medo das surras. Eu continuava a conversar. Para me castigar, a professora me colocou sentada ao lado de um menino-homem. Adorei conversar com aquele menino. A outra professora me colocou na fila dos atrasados e lá continuei no bate-papo, pois encontrei outros amantes da fala. Passei o resto do ano na fila dos atrasados, apesar de tirar notas boas. Entre curar o ego ferido e ficar com os colegas de conversa, optei pelos últimos. Nunca pedi para sair dali. Minhas notas me diziam todo mês que eu não pertencia àquela fila por direito, mas apenas por prazer.



Resolvi escrever um diário para poder desabafar e reclamar do desamor de minha mãe, mas ela leu e, como castigo, me pôs a lavar o chão. Foi uma cena de gata borralheira. Aquela cozinha pequena parecia o salão de um clube. Eu fiquei horas esfregando o ladrilho e puxando a água. Minha mãe passou a vida reclamando de minhas inconfidências. Ela nunca me perdoou por não amá-la. Nunca mais escrevi no diário, pois não havia como escondê-lo. Minha mãe era onipresente, era um Big Brother sempre atenta aos meus movimentos e à minha escrita.



Um dia ganhei uma caneta esferográfica e para testar aquela nova maravilha escrevi a palavra AMOR no alto de minha coxa direita. Mal sabia eu o que me esperava. Naquele dia, tive que experimentar uma roupa que minha mãe resolvera fazer para mim, reformando um vestido velho de minha irmã. Quando ela leu AMOR em minha perna, ficou fora de si. Falou, reclamou, me deu uns tapas e me fez lavar o AMOR. Fiquei muito arrependida. Eu juro que não sabia que amor era palavrão. Na minha casa havia idade para amar. Só depois dos 16 anos. E amor era coisa apenas para um homem e uma mulher. Minha mãe não sabia o que era amar um filho, ou o próximo. Passou a vida vigiando a vida dos vizinhos. Sabia quem dava para quem, quem entrava ou saia da casa de quem, quem bebia e batia na mulher, quem traía o marido, quem fez aborto, quem jogava à noite toda, e até os horários das visitas do vigário ao Rendez-Vous na casa da vizinha.



Minha infância era um tédio. Não podia brincar na rua, pegar sereno, ir à casa de outras crianças e, raramente, alguém brincava comigo. Era proibido pegar as jabuticabas dos galhos que invadiam nossa casa sobre o muro do vizinho. Tudo que eu fazia estava errado e minha mãe ora passava sermão, ora me batia. Eu levantava pedindo a Deus que me ajudasse a agradar minha mãe e pensava “por qual motivo vou apanhar hoje”. Um dia, li no jornal que a folha de uma planta chamada “comigo-ninguém-pode” matava. No quintal de nossa casa, perto do pé de goiaba, havia uma daquelas plantas. Fiz a experiência, mas não deu certo. Minha boca se feriu, mas não consegui me livrar da infância.



No porão de minha casa havia uma coleção de livrinhos de bolso e de fotonovelas, todos adquiridos em banca de revistas e leituras proibidas para uma menina de 10 anos. Lia tudo escondido. Fumanchu e a Deusa do Fogo. Eu lia fotonovela – Capricho, Ilusão – romance de bolso, contos de fada, anúncio de jornal, revista O Cruzeiro, a Manchete, a revista do Rádio, ouvia a Rádio Mayrink Veiga e a Rádio Nacional. Lias as colunas da Dona Ivone Botelho no Estado de Minas. As revistas Capricho e Ilusão mostravam sempre a mocinha pobre que engravidava do mocinho rico. Sofria, era rejeitada e acabava feliz. Já mocinha, associei-me a bibliotecas públicas e lia tudo que encontrava pela frente. A leitura me impedia de enlouquecer com a repressão.



Um dia o filho da vizinha entrou para o exército e ficou tão bonito vestido de soldado que me encantou. Eu devia ter uns 13 anos. Saíamos de casa pela manhã no mesmo horário. Ele ia para o quartel e eu para o ginásio. Passamos a olhar um para o outro, mas nunca sequer conversamos. Um dia minha mãe percebeu o olhar e foi até a esquina nos observar. Ele subia a rua em direção ao quartel e eu descia para pegar o ônibus. Havia certa sincronia. Depois de andar mais ou menos uns 20 metros, cada um em uma direção, olhávamos para trás e nossos olhos se encontravam atraídos por alguma cumplicidade hormonal. Naquele dia, minha mãe interceptou nossa comunicação visual com seu olhar de censura. Eu me senti igual à mocinha grávida da fotonovela. Preparei-me para ouvir o sermão, mas resolvi fingir que virara a cabeça por outro motivo. Subi a rua novamente e pedi a minha mãe dinheiro para comprar uma borracha. Tenho certeza de que ela nunca acreditou naquela história, mas não disse nada. Eu nunca mais olhei para o soldado encantado, pois tinha medo de minha mãe. Se ela estivesse me vigiando novamente, eu não teria como fingir que precisava de comprar outra borracha. O soldadinho virou um homem e casou-se com a vizinha feiosa. Eu continuava esperando o príncipe encantado que viria revelar que eu era uma princesa e me levaria para o Rio de Janeiro. Terminei o curso normal e fui ser professora em um grupo escolar para orgulho de meu pai. Sua filha era professora e trabalhava só com mulheres. Estava protegida dos homens.



Cresci acreditando em minha insignificância. O príncipe desencantado chegou, me engravidou e me levou para o interior, para bem longe do mar. Meus pais nunca me perdoaram. Eu nem percebi que aquele homem também não gostava de me ouvir. Calei a boca a vida toda. Quando criança enfiava-me debaixo da mesa e, depois de casada, debaixo do marido sempre que ele desejava. Caladinha.



Ficava enfurnada em casa enquanto o marido curtia os amigos nos botecos da cidade. Nas poucas vezes que saíamos juntos, eu não bebia e pouco falava, mesmo na companhia de outras mulheres. Aprendi qual era o meu lugar. Ganhei certo status. Ninguém mais me mandava para debaixo da mesa. Sentava-me à mesa com outras mulheres enquanto meu marido conversava com os homens que ficam reunidos do lado oposto. As mulheres reclamavam das crianças e dos maridos e falavam mal das empregadas. Eu não tinha empregadas, mas pensava mal do marido e reclamava das crianças, para mim mesma, em silêncio.



Outro dia meu marido começou a conversar com o vizinho em frente de nossa casa e eu me aproximei dos dois. Nosso cachorro fugiu para a rua e meu marido me disse: “Sua inútil, em vez de ficar ouvindo nossa conversa, faça alguma coisa.” Fiquei com tanta vergonha do vizinho que tive vontade de sair mancando ou de comer comigo-ninguém-pode, mas afastei-me em silêncio na companhia do cachorro. Entramos em casa, o cachorro e eu. Ele ficou debaixo da mesa, mas eu estou muito velha para me enfiar debaixo de qualquer coisa, até de marido. A coluna dói e não consigo me abaixar com facilidade. Ainda bem que, há muito, ele me substitui por uma amante.



Sonho com o dia em que serei o centro das atenções. Eu adoraria ser carregada pelos moços bonitos de minha juventude, com o soldadinho em seu uniforme engomado bem à frente, mas não se carrega mais menina grande sonolenta. Agora usam um carrinho. Preferia ir a pé, mancando, até o taba indígena de onde fui raptada quando criança. Será que meu marido vai ficar ao meu lado ou do lado de fora junto com os outros homens? Lugar de princesa é em caixão de cristal. Será que o príncipe vai conseguir me achar? O vigário vai aparecer ou será que ele ainda vai ao Rendez-vous?



(Ilustração: Georges Mazilu)






segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

BANZO, de Raimundo Correia









Visões que na alma o céu do exílio incuba,

Mortais visões! Fuzila o azul infando...

Coleia, basilisco de ouro, ondeando

O Níger... Bramem leões de fulva juba...


Uivam chacais... Ressoa a fera tuba

Dos cafres, pelas grotas retumbando,

E a estrelada das árvores, que um bando

De paquidermes colossais derruba...


Como o guaraz nas rubras penhas dorme,

Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...

Fuma o saibro africano incandescente...


Vai com a sombra crescendo o vulto enorme

Do baobá... E cresce na alma o vulto

De uma tristeza, imensa, imensamente...



(Ilustração: Portinari – menino com estilingue)


sábado, 15 de janeiro de 2011

UMA MENSAGEM IMPERIAL , de Franz Kafka







O imperador – assim dizem – enviou a ti, súdito solitário e lastimável, sombra ínfima ante o sol imperial, refugiada na mais remota distância, justamente a ti o imperador enviou, do leito de morte, uma mensagem. Fez ajoelhar-se o mensageiro ao pé da cama e sussurrou-lhe a mensagem no ouvido; tão importante lhe parecia, que mandou repeti-la em seu próprio ouvido.

Assentindo com a cabeça, confirmou a exatidão das palavras. E, diante da turba reunida para assistir à sua morte – haviam derrubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em curva ampla e elevada, dispostos em círculo, estavam os grandes do império –, diante de todos, despachou o mensageiro.

De pronto, este se pôs em marcha, homem vigoroso, incansável. Estendendo ora um braço, ora outro, abre passagem em meio à multidão; quando encontra obstáculo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmente, como ninguém. Mas a multidão é enorme; suas moradas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouvirias na porta o golpe magnífico de seu punho. Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atravessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria empenhar-se em descer as escadas; e se as vencesse, de nada valeria; teria que percorrer os pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novamente escadas e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios; e quando finalmente escapasse pelo último portão – mas isto nunca, nunca poderia acontecer – chegaria apenas à capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai.





(Um Médico Rural, tradução de Lúcia Nagib)



(Ilustração: Edward Hopper)




quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

MOMENTO NUM CAFÉ, de Manuel Bandeira








Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.



Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.



(Ilustração: David Bailly - vanitas)



terça-feira, 11 de janeiro de 2011

CRIANÇA, de Dalton Trevisan






— Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz.

— ...

— Menino beija menina.

— Você é gozada, cara.

— ...

— Pensa que elas deixam?

oo0oo

Ele sai do banheiro, a toalha na cintura.

— Pai, deixa eu ver o teu rabo.

É a tipinha deslumbrada no baile da debutante de três anos.

— Rabo, filha? Ah, sei. O bumbum do pai?

— Seu bobo.

— ...

— Esse pendurado aí na frente.

oo0oo

O pai telefona para casa:

— Alô?

— ...

Reconhece o silêncio da tipinha. Você liga? Quem fala é você.

— Alô, fofinha.

Nem um som. Criança não é para ser chamada fofinha. Cinco anos, já viu.

— Oi, filha. Sabe que eu te amo?

— Eu também.

"Puxa, ela nunca disse que me amava".

— Também o quê?

— Eu também amo eu.







Textos extraídos do livreto "Crianças (seleção)", editado pelo próprio autor em Curitiba (PR), 2001, págs. 5, 15 e 31.



(Ilustração: João Ruas – children of Venus)


domingo, 9 de janeiro de 2011

NEL MEZZO DEL CAMIN..., de Olavo Bilac










Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.



(Ilustração: Riccardo Tommasi Ferroni)




sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A CARTA, de Mia Couto





A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?

- Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula. 

- Outra vez, mamã Cacilda? 

- Sim, maistravez. 

Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha. Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existência. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias àquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alívio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço. 

- Entenda, mamã Cacilda. 

Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava. 

- Continua. Por que paraste? 

Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvesse em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existência. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei, desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuído de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei, adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercício de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho. 

- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas. 

Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor, fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta. 

- E agora, diz porque vieste nesta minha casa? 

Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio. 

- Me vens ler o meu filho? 

Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera. 




(Ilustração: Santiago Caruso) 









quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

389 / POEMA 389, de Emily Dickinson





There's been a Death, in the Opposite House,

As lately as Today —

I know it, by the numb look

Such Houses have — alway —



The Neighbors rustle in and out —

The Doctor — drives away —

A Window opens like a Pod —

Abrupt — mechanically —



Somebody flings a Mattress out —

The Children hurry by —

They wonder if it died — on that —

I used to — when a Boy —



The Minister — goes stiffly in —

As if the House were His —

And He owned all the Mourners — now —

And little Boys — besides —



And then the Milliner — and the Man

Of the Appalling Trade —

To take the measure of the House —

There'll be that Dark Parade —



Of Tassels — and of Coaches — soon —

It's easy as a Sign —

The Intuition of the News —

In just a Country Town —





Tradução de Aíla de Oliveira Gomes:




Houve morte na casa ali defronte —

Foi hoje, coisa recente;

Eu sei por esse ar de anestesia

Que dessas casas recende.



Vizinhos em sussurros entram e saem,

De carro afasta-se o médico,

Uma janela se abre como vagem,

De modo abrupto, automático,



E por ela atiram fora um colchão.

Crianças passam correndo —

Intrigadas — "foi ali que morreu?"

Eu ficava assim, me lembro.



Formal e teso vai entrando o clérigo,

Qual se sua a casa fosse —

Hoje são dele todos os que choram

E das crianças toma posse.



Vem o homem do armarinho — e aquele homem

Da horrorosa profissão —

O que toma as medidas para a casa.

Vai haver a soturna procissão —



Vão vir os coches, as franjas douradas

Sem nem cartaz ou rumor,

Corre fácil a intuição das notícias

Nas vilas do interior.





(Ilustração: Cosmo Clark)








segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

QUARTO DE GUARDADOS, de Luiz Cláudio Cerqueira





Limpeza hoje do nosso quartinho de guardados. Às vezes penso que, apesar de tantas coisas entulhadas lá, de tantas coisas que guardamos, comprovantes, extratos bancários, ah, deixa pra lá, tanta coisa... penso que às vezes nada guardamos de fato, que nada temos, que nada somos.

Nada. Nada, após tantos anos. Uma sensação de vazio mais que uma sensação, uma verdade certa convicta de que, se nunca fui, menos agora sou. Cada vez menos.

Vem uma agonia, uma vontade de gritar, DE CORRER, DE FUGIR PORQUE FICAR É O NADA, mas ao mesmo tempo nada é bom porque nada é, pode não haver nada com que se preocupar, nada a temer. Como você sempre diz, não é mesmo?

Entrego-me à limpeza para ficar cansada, cansar é bom, languidez que faz esquecer e até mesmo atordoa, mas agora é limpar, limpar, limpar, limpar, limpar, limpar, limpar, limpar.
Par que já formamos lembro durante a limpeza, e faço força, força mesmo, até sangrar as velhas coisas peças velharias que se amontoam.

Encontro a velha foto daquele tempo bom, tempo em que me encantavam os tapetes amarelos debaixo das tipuanas, e eu não gostava que varressem as calçadas debaixo das tipuanas, tempo de sonhar e esperar pelo amanhã. Hoje meu sono é chumbo, um ensaio de morte e quando acordo lamento.

Esfrego a foto com raiva, esperança raivosa de que a mágica se faça o gênio da foto apareça e diga meu bem, meu amor, que bom viver, que linda você é como se fosse aquilo que eu sempre quis, que bom, que bom, que bom.

Esqueço um pouco, esquecer é bom minha mente vazia me faz bem, depois penso no almoço só por pensar e aquela pequena aranha papa moscas me incomoda, coitada dela, tão frágil e pequenina, mas tenho que matá-la porque é preciso.

Lindo par a limpar de novo vem e quase desfaleço, peço socorro a mim mesma e de mim mesma escarneço, um ovo frito com arroz, só isso, num prato branco, um copo de água duas colheres de arroz ovo frito copo d’água.

Depois... já ansiei esperei aguardei alarmei desesperei agora não sei, nem sou... fico.

Por ora fico, e hoje no jantar tem fígado.




(Ilustração: Anthony Christian – Zurbaran revisted)