terça-feira, 29 de maio de 2012

BOLETIM SENTIMENTAL DA GUERRA NO RECIFE, de Mauro Mota






Meninas, tristes meninas,
de mão em mão hoje andais.
Sois autênticas heroínas
da guerra, sem ter rivais.
Lutastes na frente interna
com bravura e destemor.
À vitória aliada destes
o sangue do vosso amor.
Por recônditas feridas,
não ganhastes as medalhas,
terminadas as batalhas
de glórias incompreendidas.
Éreis tão boas pequenas.
Éreis pequenas tão boas!
De várias nuanças morenas,
ó filhas de Pernambuco,
da Paraíba e Alagoas.

Tínheis de quinze a vinte anos,
tipos de colegiais,
diante dos americanos,
dos garbosos oficiais,
do segundo time vasto
dos fuzileiros navais
prontos a entregar a vida
para conseguir a paz,
varrer da face do mundo
regimes ditatoriais
e democratizar todas
as terras continentais
a começar pelo sexo
das meninas nacionais.

Iniciou-se então a fase
de convocação e treino
todos os dias na Base.
Ah! com que pressa aprendíeis,
só pela conversa quase!
Dentro de menos de um mês
sabíeis falar inglês.

E os presentes? Os presentes
eram vossa tentação.
Coisas que causavam aqui
inveja e admiração:
bolsas plásticas, a blusa
de alvas rendas do Havaí,
bicicletas "made in USA",
verdes óculos "Ray Ban".
Era um presente de noite
e outro dado de manhã,
verdadeiras maravilhas
da indústria de Tio Sam.

E as promessas? As promessas
eram vossa sedução.
acreditáveis que elas
não eram mentira, não.
Um "Frazer" no aniversário,
passeios de "Constellation",
num pulo alcançar Miami,
almoçar na Casa Branca,
descer a Quinta Avenida,
fazer "piquet" pela Broadway
ver a "première" no Cine
junto dos artistas, com
eles todos na platéia.
Ouvir na "Opera House",
numa noite Toscanini,
na outra noite Lili Pons.

Com tanto "it" e juventude
podíeis testes ganhar,
ser estrelas de Hollywood,
ciúmes de Hedy Lamarr.

Ah! bom tempo em que corríeis,
"pés descalços, braços nus,
atrás das asas ligeiras
das borboletas azuis".
Ó prematuras mulheres,
fostes, na velocidade
dos "jeeps", às "garconières"
da Praia da Piedade.

Quase que se rebentavam
vossos úteros infantis
quando veio o telegrama
da tomada de Paris.

Ingênuas meninas grávidas,
o que é que fostes fazer?
Apertai bem os vestidos
pra família não saber.
Que os indiscretos vizinhos
vos percam também de vista.
Saístes do pediatra
para o ginecologista.

"Babies" saxonizados,
que só mamam vitaminas,
são vossos "babies", meninas,
em vários cantos gerados,
nas "mapples" dos automóveis,
no interior das cantinas,
da praia na branca areia,
em noites sem lua cheia.

Meninas, tristes meninas,
vossos dramas recordai,
quando eles no armistício,
vos disseram "Good bye".
Ouvireis a vida toda
a ressonância do choro
dos vossos filhos sem pai.


(Ilustração: Riccardo Tommasi Ferroni)


quarta-feira, 23 de maio de 2012

UM ESPÍRITO FORTE, de Valentim Magalhães





O bonde vinha quase vazio, como todos os que descem dos arrabaldes à tarde. Os raros passageiros distraíam-se da monotonia da viagem, fumando silenciosamente, olhando para as janelas, conversando, a espaços, devagar.

A tarde era tristonha; ameaçava chuva.

Ao atravessar uma rua, o bonde parou para deixar passar um enterro. O defunto era rico; diziam-no  as bambinelas e os dourados do coche, os cavalos, que iam cobertos por grandes redes pretas, e os quatro gatos pingados, que trotavam à retaguarda.

Era enorme o acompanhamento. Os carros desfilavam a passo, com um grande vagar tedioso e melancólico; viam-se dentro pernas estiradas, de calças pretas, e caras barbadas, de sujeitos com grave compostura de quem faz um tempo a seu dever e a digestão do jantar.


— Agora aqui ficamos nós empatados! resmungou o cocheiro, sentando-se de lado sobre a folha da plataforma.


— Aquele é mais feliz do que nós; não acha? —  perguntou ao seu vizinho de banco um dos passageiros.


— Homem, não sei… respondeu o outro.


— Não, tem que saber. Aquele já não sente mais nada. É mais feliz, portanto, do que nós.


— Uhm!… Sei lá! e o beiço lhe descaiu ao peso da dúvida.


— Então, que ideia faz o senhor da morte? inquiriu o provocador da conversa.

Era um sujeito de magnífica aparência. Gordo, rosado, forte, fisionomia fresca, exuberando a boa alegria da saúde. Vestia com apuro; a sua gravata espaventosa, presa em um pequeno lagarto de esmeraldas e rubis, fazia um contraste extremamente gracioso com o seu cavanhaque negro, mesclado de fios de prata. E os seus olhos pardos, de uma bela transparência cristalina, espetavam a terrível pergunta, com a impavidez percuciente de um bisturi, na cara do vizinho.

Era este um velhinho miúdo, pálido e encolhido, olhar poltrão, nos cantos da boca um jeito de desconsolo choramingas, barba maltratada, muito branca. Por cima desta cabeça miserável, um grande chapéu alto, pelado e seboso; abaixo dela, um guarda-chuva fenomenalmente hidrópico, de alpaca esverdinhada; o qual, encobrindo-lhe todo o corpo, parecia encabar-se na cabeça do referido sujeito, fazendo-o apresentar por este modo a fantástica aparência de um guarda-chuva extraordinário — com cabeça de homem.

— Não sei, meu senhor, não sei; respondeu a « cabeça do guarda-chuva », piscando os olhos timidamente.


— Pois eu vou-lhe explicar o que é a morte; tornou o outro, achegando-se ao vizinho. E continuou:


— O senhor já viu uma lamparina? Pois bem. Enquanto tem azeite, a chama alimenta-se e ilumina; depois que ele acaba, a luz desaparece, apaga-se a lamparina. Para onde foi a luz? Sumiu-se, evaporou-se. Não é assim? Pois, meu amigo, a vida é como a lamparina: um belo dia falta-nos azeite e esta luz, este gás, a quem os filósofos chamam — alma… pfff! Foi-se! Fica apenas o pavio esturricado e mal cheiroso, — um pouco de carne inanimada e fria. Ora aí tem o que é a morte — concluiu o filósofo, com um pequeno gesto de soberano desdém.


— Pois sim, meu senhor; mas o que me mete medo é a passagem! —  replicou o guarda-chuva com voz tremida, e nos seus olhos humílimos passou uma faísca de terror.


— A passagem?… Que passagem, seu…?


— Sabugosa, para o servir.


— Que passagem, seu Sabugosa?


— Ora! a passagem desta para a outra vida… Deve doer.


— Qual! fez o outro, encolhendo os ombros, e riscou um fósforo para acender o charuto. Está vendo este fósforo? — E mostrava-lhe o pequeno palito de madeira que uma flamazinha azulada ia consumindo. — Vai ardendo, ardendo… Agora é que dói, porque tem luz e a luz vai queimando a madeira. Para apagar é um instante, e tão rápido que não dá tempo para doer. Olhe: pfff! — e apagou o fósforo. Viu? Agora o que resta? Um pedacito de pau carbonizado! E atirou-o fora com filosófico desprezo.


— Uhm! Sei lá, meu senhor. Nada! Tenho medo. —  E o Sabugosa tremeu todo, da copa da cartola à biqueira do guarda-chuva.


— É um engano; é o que parece aos espíritos fracos, como o senhor. Olhe, eu lhe explico, seu…


— Sabugosa, um seu criado.


— Pois eu lhe explico, seu Sabugosa. E achegou-se cruelmente ao outro, que ainda mais se resumiu por trás do guarda-chuva.

E pôs-se a lhe falar a meia voz, com vivacidade, gesticulando, acendendo e apagando fósforos.

Os carros do préstito fúnebre continuavam a desfilar. O cocheiro do bonde aborrecia-se, debruçado sobre a manivela travada.

Perguntei a um dos meus vizinhos de banco se conhecia por acaso os dois interessantes personagens daquele estranho dialogo. Conhecia o filósofo, "o espírito forte".

Era um rapaz abastado, marido de uma bela mulher e pai de duas crianças loiras, adoráveis.

Um folião desabusado e feliz, ao qual a vida sorria constantemente com os seus sorrisos mais frescos e mais vermelhos.

Quanto ao Sabugosa, deu-me outro passageiro algumas informações.

Era um pobre diabo, menos diabo que pobre. Para este jamais a vida sorrira. Ao contrário: perseguia-o sempre com arreganhos assustadores e dentadas tigrinas. Um famoso caipora. Fora rico: —  a quebra dos bancos reduzira-o à míngua. Era viúvo, e dos seis filhos que tivera apenas um lhe restava, e este mesmo estava no hospício dos alienados.

Ultima informação: o desgraçado vivia de um emprego na Empresa Funerária!
O "espírito forte" continuava a filosofar sinistramente. O Sabugosa estava lívido; suava-lhe o nariz; tremiam-lhe os beiços; os olhos tinham a expressão terrivelmente desorientada de uma náufrago da Medusa.

— Já sei, meu senhor. Tem toda a razão; mas enquanto ela não vem, é melhor conversar sobre outra cousa…


— Poltrão! A morte é um sono, seu Sabugosa.


— Sim senhor; já sei…


— Ora imagine o senhor que se deita uma noite, como costuma; mas que, em vez de acordar no dia seguinte, como também costuma, amanhã por exemplo, não acorda, nem amanhã nem nunca mais. Imagine…

Um pavor súbito sacudiu violentamente o "guarda chuva"…

O derradeiro carro do cortejo acabava de passar.



(Vinte contos e fantasia)


(Ilustração: Canato - o leão de Nemeia)


domingo, 20 de maio de 2012

A NOIVA, de Gonçalves Crespo








A noiva passa rindo

De rosas coroada,

Como um botão surgindo

Á luz da madrugada.




Na fronte imaculada

O véu lhe desce lindo,

E a brisa enamorada

Lhe furta um beijo infindo.




Ante o altar se inclina

A noiva, e purpurina

Murmura a medo: «Sim.»




Agora é noite ; a lua

No céu azul flutua,

E o noivo diz: «Enfim!»



(Ilustração: Lorenzo Lotto - venus and cupid)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

JOSÉ DAS DORNAS, de Júlio Dinis





José das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma tão feliz disposição de gênio, que tudo o levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos - rir céptico, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.

Em negócio de lavoura, dava, como se costuma dizer, “sota e ás” ao mais pintado. Até o Senhor Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.

Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem esforço de malquerenças e murmurações. Diz-se que quem mais faz menos merece e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, e não sei o que mais; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o fato das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro!  São Miguel mais farto poucos se gabavam de ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!

Como homem de família, não havia também que pôr a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices - que lhe não estavam no gênio - mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos.

Eram dois estes filhos - Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda dar-lhe curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se ainda correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural.

Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adoção o que quer que seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras.

A organização talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção dos trabalhos agrícolas.
Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu primogênito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice, a vara, a rabiça, e confiar-lhe a chave do cabanal, tão repleto em ocasiões de colheita.

Daniel já tinha condições físicas e morais muito diferentes. Era o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo rumo de vida. Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e louro, de voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante. O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o sangue cheio de força e vida, ao qual José das Dornas e Pedro deviam aquela invejável construção.

Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo. Apertava-se o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de julho ou os tufões regelados de dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga aldeã.

E desde então, desde que pensou nisto, um idéia fixa principiou a elaborar no cérebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as poucas horas que o trabalho não absorvia.

De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado, o que, sendo nele para estranhar, excitava curiosidades e receio e desafiava interrogações.
O reitor foi um dos que mais se importaram com a preocupação do nosso homem.

Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira na paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho no coração - o que vale muito mais ainda do que tê-lo na cabeça.

A qualidade de egresso não tolhia o ser liberal de convicção. Era-o como poucos.

- Ó homem de Deus - disse pois o reitor um dia, resolvido deveras a sondar as profundezas daquele mistério - que tens tu há tempos a esta parte? Que empresa é essa em que me andas a cismar há tantos dias?

- Que quer, Senhor Padre Antônio? Um homem de família tem sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos - foi a resposta que obteve.

- Ora essa! - insistiu o padre - Bem alegre te via eu, em tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razões para o contrário. Mas tu! Que mais queres? Tens bons haveres para deixares a teus filhos; mas, quando não os tivesses, sempre eram dois rapazes; e deixa lá, José; um homem é outra coisa que não é uma mulher; onde quer se arranja; toda a terra é sua; em toda a parte encontra o que fazer, e qualquer trabalho lhe está bem. Agora os pobres que vejo por aí com um rancho de raparigas, coitadinhas, que ficam mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar o pai... esses, sim, é que não sei como podem ter um momento de alegria; e contudo encontrá-los nas festas, que é um louvar a Deus.

- É assim, Senhor Reitor, eu sei que os há por aí mais infelizes do que eu, mas...

- Mas então, quem tem saúde e a quem Deus não falta com o pão nosso cotidiano, só deve erguer as mãos ao céu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos não são nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas.

- Graças a Deus que não são, Senhor Reitor. O Pedro, sobretudo, não me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto e fero; é um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar não precisa de outra herança. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, que não é das piores, vamos; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel já não é assim. Aquilo é outra mãe - o Senhor a chame lá. Um dia de ceifa é bastante para o matar. É a sorte dele que me dá cuidado.

- Então é só isso? Ora valha-te Deus! É verdade. O pequeno é fraquito e decerto não pode com o trabalho do campo, mas... para que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás alguns centos de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz nos estudos? Não podes fazer dele um lavrador? Fá-lo padre, letrado ou médico, que não ficarás pobre com a despesa.

José das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de alguém, antes de lho revelarmos.

- Nisso mesmo penava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar, mas tinha cá certos escrúpulos.

- Escrúpulos! Valha-te não sei que diga! Pois ainda és desses tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorância.

- Não é isso, Senhor Padre Antônio, não é isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educação desigual. Vê Vossa Senhoria. São irmãos e, mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, há de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase não se conhecerão: é o que mais vezes se vê. Não é uma injustiça que faço a Pedro a educação que der a Daniel?

- Homem de Deus, não há desigualdade verdadeira, senão a que separa o homem honrado do criminosos e mau. Essa sim, que é estabelecida por Deus, que, na hora solene, extremará os eleitos dos réprobos. Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os segundo os princípios da virtude e da honra, e não os distanciará, acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, serão ambos dignos um do outro e prontos apertarão as mãos onde quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua! Aí, homem, como viver enganado! - o quinhão de dores e provações foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnio e misérias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande tormenta: hás de ter ouvido dizer. Sabes que mais José? - concluiu o reitor - manda-me o rapaz lá por casa, que eu lhe irei ensinado o pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar!

Com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os livros debaixo do braço, a caminho da casa do reitor.



(As Pupilas do Senhor Reitor – capítulo I)



(Ilustração: Loïc Allemand - l'amoureux)




terça-feira, 15 de maio de 2012

CÂNTICO DO CALVÁRIO, de Fagundes Varela






À Memória de Meu Filho, morto a l l de dezembro de 1863.





Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. — Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,
O porvir de teu pai! — Ah! no entanto,
Pomba, — varou-te a flecha do destino!
Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
Teto, caíste! — Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!
Correi! Um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! — Sede benditas!
Oh! filho de minh'alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr do sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!

Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo!
Pouco tenho de anciar! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustento!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! O lago escuro
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias! ...

Oh! quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa n'água o lenho do barqueiro!
Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte!
Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel? ... E tudo embalde!
A vida parecia ardente e douda
Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda n'alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,

Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave;
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta!
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícía mimosa rebentada à sombra!
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra!
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! Luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais, — nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
E eu dizia comigo: — teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, — mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume! ... Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se,
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio! ...

Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!
Escuto em meio de confusas vozes,
Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, — sinto o aroma
Do incenso das igrejas, — ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!... E choro embalde.

Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
No vulto solitário de uma estrela,
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh'alma.




(Ilustração: Bruegel - jogos infantis - detalhe)

sexta-feira, 11 de maio de 2012

NINGUÉM MAIS SE PERDERÁ POR LUBA, de Luís Coelho






A história de Luba Soares é difícil de contar, mormente depois do crime, desde que se queira contá-la de uma maneira interessante. Eu conheci bem o caso e, por isso, vou tentar.

Luba, antes de ser Soares, fora Luchesi e, antes de Luchesi, Veletch. Filha de imigrante lituano, desde cedo trabalhou duro para ajudar o pai. Mas, Luba era bonita demais para continuar trabalhando daquele jeito. Foi eleita rainha dos comerciários e, no ano seguinte, a mais bela do Estado. Assediada pelos “gaviões”, a pobrezinha andou às tontas com as ofertas, preferindo Sandro Luchesi, um fabricante de torneiras que ganhava dinheiro como água. Luchesi financiou a "política" do concurso, porém um senador do Nordeste fechou a questão em torno de sua pupila.

Foi-se o título de "Miss Brasil", mas Luba ganhou um marido e tanto. Sim, porque Luchesi se casou com Luba. Ela saiu do mercado por uns tempos, até que certo dia um avião enfiou o nariz numa montanha do Rio Grande, tornando Luba a viúva mais bela e mais rica deste meu torrão natal. Eu, quando falo de Luba, me entusiasmo, porém preciso tomar cuidado, porque aos outros interessa apenas sua história.

Começou de novo a luta dos “gaviões”, mas dessa vez Luba tinha outro interesse: entrar para a sociedade. Casou-se com o pobretão Dorival Soares, herdeiro de um bom nome e de apreciáveis relações.

Um dia apareceu o marido, cheio de dedos, no meu escritório. (Esqueci-me de informar que sou detetive particular, mas não desses que anunciam: "O olhar de Lince", "O farol", e outras coisas. Fui bem educado, visto-me com esmero, frequento lugares respeitáveis. Pouca gente conhece minha verdadeira profissão). - Desconfiava Dorival que a mulher o traía; então, me contratou para esclarecer o caso. É desnecessário relatar os métodos que emprego, mas alguns dias depois eu conhecia a história da pomba-rola como a palma de minha mão. A gente pensa que uma mulher extraordinariamente bela, amada de todos os homens, tem prazer em alimentar paixões, mas não se apaixona por ninguém. Com Luba, pelo menos, não aconteceu assim. Perdeu-se de amores por um jovem bonitão, que trabalhava no interior. Vejam o que Luba chegou a fazer: alugou uma pequena chácara no começo da estrada de Lavínia, para se encontrar com o amante, que, dessa maneira, nem entrava na cidade.

Agora, o mais triste da história: Luba foi assassinada. Encontraram-na estrangulada no quarto da chácara, estendida na cama em desalinho. Os dedos do assassino ficaram marcados no pescoço níveo, assinalados em roxo, confundindo-se os polegares na garganta. De um lado havia uma escoriação acima da marca do mínimo e do anular e as duas outras manchas eram menos nítidas.

Quando o investigador abriu a porta de meu escritório, percebi que Dorival tinha dado com a língua nos dentes. Também não era para menos: haviam encontrado uma cigarreira de prata com as iniciais dele embaixo de um dos móveis do quarto. Além disso, as pontas de cigarro, de uso recente, depositadas nos cinzeiros, eram de duas marcas: "Lucky Strike", preferida por Luba, e "Continental", pelo marido. O negócio ficou preto para ele. E o extraordinário é que narrou à policia uma história comprometedora! Já vi criminosos fazerem coisas admiráveis: escondem a verdade, por exemplo, confessando uma versão perigosa, mas não suficientemente perigosa para levá-los à grade. Não sabia se esse era o caso de Dorival, mas o certo é que contou tudo à polícia: suas dúvidas quanto ao comportamento da mulher, o contrato que fez comigo, as informações por mim prestadas. Na noite do crime, segundo ele, Luba saiu às 8 horas, dizendo, apenas e como sempre, que ia jogar "pif-paf". Quando eu, pelo telefone, lhe comuniquei o endereço do ninho da pomba, Dorival pôs-se a matutar no que ia fazer. Nesse momento, chega ao apartamento Gregório Veletch, irmão e único parente de Luba, pois já lhe havia morrido o pai. Esqueci-me de apresentar esse malandro. Fingia que trabalhava na fábrica de torneiras, mas, na verdade, vivia à custa da irmã.

Continuando, informou Dorival que pôs o cunhado a par da situação; envenenou-se a tal ponto com a própria narrativa que, de repente, abandonou o apartamento para acertar contas com a mulher, segundo declarou. Tomou o automóvel, rumou em direção à chácara, mas durante o trajeto esfriaram os propósitos do marido desonrado. Afirmou Dorival então que parou o carro nas imediações da chácara, no largo Ferreira de Sá, entrou num bar e lá ficou a beber para criar coragem. A coragem não passou dos primeiros vagidos, morrendo afogada no uísque. De lá voltou para casa, num meio pifão que o levou para a cama imediatamente.

Confirmei, no meu depoimento, as informações que prestara a Dorival, completando-as com os dados sobre o amante de Luba. Eu havia descoberto que se tratava de um engenheiro, Ernesto Azambuja, a quem o governo confiara parte das construções de uma usina em Iguatemi. Era o felizardo de quem Luba gostou de verdade. Morava em Caiapó com a família, ou melhor, com a esposa, que é completamente cega.

Certa noite, logo depois do casamento, Azambuja bebera demais numa festa. Apesar da insistência da esposa para que não guiasse o automóvel, ele teimou e acabou metendo o carro em cima de uma árvore; além de ter o rosto deformado, a mulher perdeu a vista no desastre.

Prenderam o pássaro no mesmo dia. Azambuja a princípio quis negar suas relações com Luba, mas em face de minhas informações sobre o automóvel, o lugar onde o colocava na chácara, os dias em que lá esteve ultimamente, o "Romeu" acabou entregando os pontos. É ocioso dizer: negou terminantemente a autoria do crime e declarou ter passado aquela noite no acampamento, na sua barraca.

Caso intrincado esse da morte de Luba. Sim, intrincado porque Gregório Veletch meteu-se nele também. O zelador do prédio informou que na noite do crime Gregório desceu do apartamento logo depois do cunhado, perguntou por ele, mas Dorival já havia ido. Explicou o irmão de Luba, ao depor, que não se impressionara com o planejado acerto de contas por parte do cunhado, pois já assistira a diversas brigas do casal. Informou, afinal, que saíra do prédio e perambulara pela cidade até entrar num cinema para assistir à última fita de Betty Grable (aliás, muito parecida com Luba).

Mas há cada uma neste mundo! Imaginem que naquela noite um operário andava pelos arredores da chácara, quando viu, escondido entre árvores, um automóvel abandonado, com as luzes traseiras acesas. Essa gente simples, em geral, é muito boa. Aproximou-se o rapaz do automóvel e desligou o contato, para que a bateria não se estragasse. Era o carro de Gregório Veletch. O operário reconheceu-o com segurança. Gregório negou de pé junto que o automóvel fosse o dele.

Procuro não falar em Luba, mas que vou fazer, se ela é o centro de toda esta história? Ela usava na noite em que morreu um vestido de linho azul que combinava com a cor de seus olhos. Sob o vestido, uma combinação branca, que chamou a atenção da polícia quando examinou o cadáver: estava vestida de trás para diante.

Sinto que me meti numa empresa difícil, esta de contar a história de Luba Veletch Luchesi Soares, mas agora vou até o fim.

Quando o mistério se instalou no caso, a polícia recorreu ao velho Leite, especialista em deslindar enigmas criminais. Trata-se, sem dúvida, de uma autoridade excepcional, não só pelos dotes de argúcia e inteligência, como também porque sabe reconhecer o mérito alheio. É muito comum o pessoal da polícia desprezar e humilhar os detetives amadores ou particulares. A mim, por exemplo, chamam "Oito Dedos", estabelecendo, com perversidade, uma relação entre este honesto detetive e o célebre ladrão "Sete Dedos"!

Não é desses o velho Leite. Prestigia o trabalho da gente e, às vezes, solicita com franqueza a nossa colaboração. Quando me telefonou, pedindo para passar na Delegacia, concluí que desejava trocar ideias sobre o caso de Luba. Dito e feito: a primeira coisa que perguntou foi a minha opinião, considerando os conhecimentos por mim adquiridos na investigação que fizera por conta de Dorival. Fiquei vaidoso, por que não confessar? Eu estava preparado para falar, pois meditara muito sobre o crime. Comecei logo a responder:

- Conhecidas as circunstâncias e as pessoas envolvidas num crime, se elas, por si sós, não proporcionam a solução ou não a proporcionam satisfatoriamente, deve o detetive consagrar a sua atenção ao exame dos motivos que poderiam ter levado cada suspeito a delinquir. No nosso caso, por exemplo, Dorival tinha duplo interesse em sacrificar a esposa: vingava-se da traição e empolgava a fortuna. A Gregório interessava a morte da irmã, porém a herança só lhe chegaria às mãos se Dorival morresse também ou se ficasse impedido de herdar. O senhor sabe muito bem que ao marido, assassino da esposa, a lei nega o direito de receber a herança.

- E o motivo do amante, qual seria?

- Azambuja é o responsável pela cegueira da mulher. Por isso, desfaz-se em carinhos e cuidados com a esposa, procurando assim compensar a sua existência empobrecida e amenizar o próprio sentimento de culpa. Luba amava de verdade. Pela primeira vez, quem sabe. Era voluntariosa, até então tinha feito o que queria. Estava disposta a deixar Dorival para casar-se com Azambuja. Insistiu a princípio - exigiu depois - em que o amante procedesse da mesma forma e, por fim, ameaçou falar pessoalmente com a rival, a quem faltava o direito de prender um homem moço que gostava de outra mulher.

O velho Leite sorriu e disse com simpatia:

- Vai indo bem... continue.

- Pesam contra Dorival as provas colhidas no local do crime. O senhor há de concordar comigo que uma cigarreira de prata faz barulho quando cai ao chão e escorrega para debaixo de um móvel. Dorival teria notado. Mas que não notasse. É admissível que um homem dotado de mediana inteligência deixasse no cinzeiro, depois de cometer o crime, as pontas dos cigarros fumados por ele?

Assentindo com a cabeça, o delegado reconhecia a força do argumento. Prossegui:

- Vejamos, agora, o ponto central de nossos raciocínios. O fato de se ter encontrado a combinação de seda de trás para frente demonstra que alguém, pouco dado a esse mister, vestiu Luba. Uma mulher não se engana na prática desse gesto cotidiano. Se assim é, Luba estava nua quando foi assassinada. Vestiram-na depois. Não havia sinal de luta no quarto, podendo-se consequentemente supor que o criminoso lá se achava, num momento de intimidade com Luba. Isto exclui Gregório Veletch, mas não o afasta da cena: quando, à procura de Dorival, chegou ao quarto da chácara, Luba estava morta. Sentindo no bolso a cigarreira que o cunhado esquecera e que ele tentou entregar assim que desceu do apartamento, Gregório imaginou inculpar Dorival ou aumentar os indícios, caso fosse ele o assassino, largando no local a cigarreira, não sem antes fumar dois cigarros, abandonando as pontas no cinzeiro. Criminoso o cunhado, Gregório seria o herdeiro da fortuna.

- Admirável. Gregório, no novo depoimento, confessou exatamente isso.

- Restam Dorival e Azambuja. Jamais Dorival podia encontrar-se na situação do criminoso. Luba já não tinha mais interesse algum por ele, nem admitiria a sua presença na chácara. Não existe o menor indicio de violência ou de reação, como seria natural da parte de Luba, se o marido surgisse inopinadamente pelo quarto adentro. O assassino gozava, naquele momento, da intimidade da vítima; passou, de repente, do carinho para o estrangulamento. Somente Azambuja - Dr. Leite - poderia ter essa oportunidade e só ele tinha interesse em ocultar a nudez de Luba, presente que ela lhe dava com exclusividade, nos últimos tempos. O horror de que a amante fosse enfrentar a esposa cega levou Azambuja ao crime.

Eu me lembro até hoje. O velho Leite sorriu, movimentou-se na cadeira e falou com voz pausada:

- Meus parabéns, Luís Antonio, pela precisão dos raciocínios. Estou de pleno acordo com eles, exceto com a conclusão. E você tinha, como tem, todos os elementos para dar a solução absolutamente exata. Algumas vezes, um pormenor ilumina o mistério, desfazendo-o por inteiro.

Fez uma pausa e continuou:

- O criminoso deixou sua assinatura no pescoço de Luba. Com exceção dos polegares, confusamente marcados, as equimoses dos demais dedos são perfeitas, menos duas: a do indicador e a do médio da mão direita, mais raras e irregulares que as outras. Isso me faz crer, Luís Antonio, que o criminoso não tinha aqueles dois dedos. Notando, depois do crime, que deixara no corpo de Luba sua marca pessoal, o assassino imprimiu com os dedos da mão esquerda as equimoses complementares, mas sem a força e o jeito necessários para igualá-las, às outras manchas.

Olhei para as minhas mãos, como se não soubesse que, há dez anos, me faltam dois dedos da mão direita!

Luba, lindíssima Luba, vítima de minha paixão desvairada, vítima de minha chantagem, vitima de minhas mãos alucinadas contra a frieza com que resgatava o meu silêncio!




(Obras-Primas do Conto Policial)




(Ilustração: Jack Vettriano - motel love II)


terça-feira, 8 de maio de 2012

SONETO, de Junqueira Freire






Arda de raiva contra mim a intriga,
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.


        Una-se todo, em traiçoeira liga,
        Contra mim só, o mundo miserável.
        Alimente por mim ódio entranhável
        O coração da terra que me abriga.


Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.


        Durmo feliz sobre o suave riso
        De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
        E o mais que os homens são, desprezo e piso.



 (Ilustração Kees van Dongen)


sábado, 5 de maio de 2012

A EQUIPE, de Rubem Braga







Uma velha, amarelada fotografia de nosso time.



No primeiro plano vê-se a linha intrépida, ajoelhada sobre o joelho esquerdo, prestes a erguer-se, uma vez batida a chapa, e atacar com fúria.



A defesa está atrás, de pé pelo Brasil.



Esse de gorro era nosso melhor elemento. Lembro que nesse jogo Nico foi expulso de campo, injustamente, pelo juiz; mas não sem antes marcar dois goals.



Esse mais gordo era Roberto Vaca-Brava, nosso center-half, homem capaz de jogar em qualquer posição. Até hoje me lembro do time, como da letra de uma velha canção: Joca, Liberato e Zico; Tião, Roberto e Sossego; Baiano, eu, Coriolano, Antonico e Fuad.



Era um onze imortal, como aliás se nota nessa fotografia, nessa chuvosa tarde, antigamente heróica eternamente, em que empatamos, porém todos reconheceram que foi nossa a vitória moral.



E olhando o retrato, olho especialmente o meu: um rapazinho feio, de ar doce e violento, sobre quem disse o jornal: “o valoroso meia-direita” — e com toda razão, modéstia à parte.



Esse alto, nosso quipa Joca Desidério, quando a linha fechava ele gritava para os beques — sai tudo, sai da frente — e avançava na linha. E chorava de raiva quando uma bola entrava. Mais tarde, por causa de um italiano, ele se fez assassino, mas com toda razão, segundo me contaram. Alviverde camisa do Esperança do Sul Futebol Clube, conhecido como os capetas verdes — somos nós!



Nós todos envergando essas cores sagradas; e no coração, dentro do peito, cada um tinha uma namorada na bancada. Cada um, menos um: era Fuad, que não interessava a ninguém, e morreu tuberculoso, sacrificado de tanto correr na extrema, pelas cores do clube — glória eterna! Era esse aqui, de nariz grande, esse turquinho feio.





(Ai de ti, Copacabana)





(Ilustração: Tim Lane - the soccer player)



quarta-feira, 2 de maio de 2012

QUARTO DO SUICIDA, de Wislawa Szymborska







Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta — um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.

E não era sem saída este quarto,
ao menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo — ou seja, ainda viva.

Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma —
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.





(Tradução de Ana Cristina Cesar)



(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol)