sábado, 26 de fevereiro de 2011

VERTIGEM, de Maria Teresa Horta







Quando sob o meu

está o teu corpo

e eu nado dentro

do desejo e enlaço


os teus ombros as ancas

e o dorso

enquanto o espasmo se faz

num outro abraço


Desprendo a boca

depois

no grito solto


Mordo-te os pulsos

ambos

no orgasmo


Volto ao de cima

da água

do meu gosto


Bebo-te a vertigem

e em seguida o hálito



(Ilustração: Anthony Christian - a hard dazed knight)


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A DERRADEIRA CARTA DO ESCRIVÃO DO REI, de Luis Fernando Veríssimo









Pero Vaz de Caminha, o primeiro repórter no Brasil, não teve tempo de escrever tudo o que gostaria. Então, alguém tomou seu lugar.

Imaginem uma segunda carta de Pero Vaz de Caminha ao rei dom Manuel. Ela teria sido escrita em Calicute, na costa ocidental da Índia, onde a frota de Cabral ancorou em 13 de setembro de 1500, depois do "achamento" do que ainda pensavam ser uma ilha, que chamaram de Vera Cruz. Às vésperas de morrer nas mãos dos indianos, junto com outros portugueses, Caminha fica sabendo que sua primeira carta, com o pedido para que o genro fosse trazido de volta do desterro, nem chegou às mãos do rei. Segue-se um trecho da missiva desconhecida até hoje:

Dos infortúnios da nossa viagem da terra nova, de onde saíram 11 naus, a Calicute, onde chegaram cinco, sabe ou ainda não sabe Vossa Alteza, mas não serei eu a atormentá-Lo como os ventos do Cabo Tenebroso nos atormentaram, pois muitas vezes mais cruel é o contar do que o acontecido. Saiba apenas que se muitos mareantes afundaram, afundaram com Vossa Alteza no pensamento, e que os peixes se banquetearam de boa fibra portuguesa. Bartolomeu Dias, sabe ou ainda não sabe Vossa Alteza, deu segundo turno à Natureza que um dia humilhou, e desta vez perdeu. Naufragou ao Cabo que deu nome, o da Boa Esperança. Seu nobre coração repousa entre os corais do fundo, e não brilha menos.

Viajávamos ainda ao longo da terra nova, antes das tormentas, quando uma noite encontrei o Capitão-mor, sozinho, barba ao vento, na amurada. Olhava para a silhueta negra da costa e sua própria silhueta era outro silêncio negro, até falar. "É grande a ilha, Caminha", disse-me ele, embora não tivesse dado sinal de me distinguir do breu. E eu disse: "É gigantesca a ilha, Capitão", e ele grunhiu um assentimento. Viajávamos já léguas para o sul sob as estrelas cruzadas e ainda não tínhamos encontrado o fim do gigante. "Ou não é ilha", disse o Capitão, e eu grunhi nem sim nem não.

O Capitão bateu com os dois punhos no peito e disse que sentia um continente por trás da silhueta negra que olhávamos. Sentia outro mundo, e sentia-o no peito. Disse: "Talvez mundo demais", e meu grunhido foi ainda mais precavido. E disse o Capitão: "Penso comigo que despertamos alguma coisa. Penso comigo, Caminha, que mexemos em alguma coisa demais". Grunhi de novo. E perguntei: "Quanto mais mundo haverá neste Ocidente?" E disse o Capitão que, quanto mais mundo houvesse, não faltariam portugueses para lhe dar nome. E passamos o resto do encontro em louvação a Portugal e a Vossa Alteza.

Em outro encontro na amurada, em outra noite, contei ao Capitão meu pensamento, que não tive tempo de incluir na carta para Vossa Alteza que seguiu na nau dos mantimentos, para o ingrato esquecimento. Pensei que o gentio pardo da ilha talvez não fossem cabaças vãs que receberiam a fé cristã como água, mas que continham outra devoção que a água do Senhor lavaria. Que nelas não haveria um vazio a se encher com alma, mas antes se trocaria uma alma por outra, como água ruim se troca por boa, ou borra por vinho novo. Pois não era só a inocência dos bichos que ali existia, antes dos portugueses e da Santa Cruz, e sim um povo e suas crenças. Que teriam pensado os pardos, ouvindo o latim das nossas missas? Que há séculos falavam com Deus na língua errada, e por isso tinham nada, enquanto os portugueses tinham camisas de linho, grandes barcos e grandes barbas, porque Deus os entendia.

Disse o Capitão, a silhueta sábia, que o que se olha e o que se vê são coisas diferentes, pois um olha as estrelas e vê um caranguejo e outro olha e vê os lampiões dos pescadores num mar noturno, e o que parecia inveja seria ira guerreira. Pois tínhamos desarrumado alguma coisa entre eles, pois tínhamos mexido em alguma coisa em suas vidas e suas mentes selvagens. E que o que diziam e não entendíamos era que nos queriam longe da sua terra, com nossa Cruz, nossas barbas e nossa maldita outra língua. E disse mais o Capitão que o gentio pardo nos queria longe como a uma doença, e quem poderia dizer se estavam certos? "A Europa é uma doença, Caminha?", perguntou o Capitão, e mal o entendi também. "Bendita doença, Capitão, que leva Cristo e traz gengibre." Foi a vez dele grunhir.

No nosso terceiro encontro na amurada, já em mar alto, o Capitão disse que olhar e ver eram tão diferentes que quem olhasse nossa chegada à ilha dos papagaios não saberia se naquilo via intenção ou acaso. Perguntei se Vossa Alteza e o Capitão já sabiam da existência da ilha, se não das suas gentes sem panos, ou se o acaso e o mau cálculo para lá nos tinham levado, mas quando ele ia responder ouviu-se um grito do vigia, "Cometa, cometa", e olhamos o céu indicado, e saíram os homens do seu recolhimento e olharam o céu indicado. E todos vimos a mesma coisa, uma estrela com uma longa cauda azul, e ninguém viu o mau agouro.

Não mais encontrei o Capitão na amurada, nas dez noites em que o cometa nos acompanhou. Depois começou a tormenta que nos levou tantas almas, e de que sabe ou não sabe Vossa Alteza. E da nossa última noite na amurada guardei do Capitão resposta à minha pergunta sobre a terra à qual nos levara desígnio ou acaso. O que tínhamos lá começado, depois de lhe dar o nome? E disse o Capitão: "Em 500 anos saberemos".





(Ilustração: descobrimento do Brasil – Oscar Pereira da Silva)



terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A CANÇÃO DOS TAMANQUINHOS, de Cecília Meireles






Troc...troc...troc...troc...
ligeirinhos, ligeirinhos,
Troc...troc...troc...troc...
Vão cantando os tamanquinhos.

Madrugada. Troc...troc...
pelas portas dos vizinhos
vão batendo, troc...troc...
vão cantando os tamanquinhos.

Chove. Troc...troc...troc...
no silêncio dos teus sonhos
alagados, troc...troc...
vão cantando os tamanquinhos...

E até mesmo, troc...troc...
os que têm sedas e arminhos,
sonham, troc...troc...troc...
com seu par de tamanquinhos.



(Ilustração: Balthus – la phalène)


domingo, 20 de fevereiro de 2011

SE NA NOITE, UM ESTRANHO, de Nilza Amaral







forçando a porta de entrada penetrasse em meu apartamento, e diabólico e cruel, explorasse com seus passos macios e premeditados a minha intimidade, devassasse a corrente dos meus pensamentos, extraindo dos cantos do meu cérebro as palavras não ditas, apenas pensadas, se invadisse os meus aposentos, revirasse as minhas gavetas, à cata do quê? jóias, se não as tenho, dinheiro escondido, muito menos, fetiches? tão ocultos jamais expostos, como aquela roupa íntima vermelha usada nos momentos do sexo mais pervertido, ou aquele pé de coelho que um dia me ofertaram com a promessa de que ele amaciaria os caminhos, se esse estranho embaralhasse a minha vida, violentasse o meu pudor sem a minha concordância, penetrasse a minha cozinha em busca de alimento, encontrasse aquela sobremesa especial que fiz com carinho, e com um bah de desprezo, atirasse tudo ao cachorro, não sem antes lhe dar um pontapé no traseiro, em seguida sem aviso, alcançasse a faca afiada e com ela me ameaçasse, se entregue ou eu te furo, e me atirasse ao chão e me possuísse sob gritos de meu protesto irado, se esse estranho me humilhasse de todas as maneiras, penetrando violentamente todos os orifícios de meu corpo em busca do prazer insaciável, achando que o meu dever era aceitar resignada a sua condição de macho de cetro impiedoso, e a minha de fêmea sempre pronta, pernas abertas, e se depois da posse, estirado ainda no ladrilho frio da cozinha, acendesse um cigarro e me olhasse com os olhos semicerrados, feliz com a sua conquista e vangloriando-se de ser bom amante, o querido de todas as mulheres do bairro, se esse estranho depois do ato do sexo, percorrendo com uma faca todos os contornos de meu corpo, parando em meus mamilos duros de prazer, penetrando a minha vagina ainda quente, riscando a minha pele eriçada, então se levantasse e ordenasse, faça um café, mulher, abra uma cerveja, se mexa, me agrade, que eu mereço pois afinal entrei na tua vida para te fazer feliz, ah, se ainda esse estranho resolvesse aportar na minha casa, e dela tomar posse, com promessas de mudança e de carinhos, se chegasse todos as noites depois de passar em meia dúzia de bares, embora para que ele não voltasse, eu rezasse todo os terços, que ele me arrancava das mãos pisava sobre as contas, gritando eu sou teu único Deus, e, se como senhor e dono me exigisse, me possuísse pele enésima vez, gritando, nenhum deus te dará mais aleluias do que eu, e depois de todas as vontades satisfeitas, deitasse na minha cama e dormisse a sono solto, até a manhã seguinte, e se assim fossem todos os dias, a relação de dois estranhos sob o mesmo teto, e se eu mais uma vez rogasse aos santos, sobre meus joelhos sangrando, para acontecer algum fato, mesmo que fosse uma desgraça, que interrompesse essa corrente, ou que a minha vontade predominasse por alguns instantes, o tempo suficiente para expulsá-lo de minha vida, eu agradeceria pelo resto da vida, mas se a fraqueza, o medo, o amor, o ódio ou o prazer, impedissem o cumprimento dessa vontade, e eu insensata o matasse com mil facadas perfurantes que lhe alcançassem a alma de coisa ruim, talvez seu espírito retornasse mais feroz do que o anterior desencarnado, e mais me torturasse, me penetrando, me violentando, me satisfazendo. Se esse estranho a cada dia se fizesse mais odioso e mais desejado, se minasse em meu íntimo dia a dia, minuto a minuto, a volição da vida, se arraigasse o desejo insensato de liquidá-lo na hora do orgasmo, a hora da distração e do alheamento, se despertasse em mim o lobo interior que leva à crueldade em vez da gazela que bale, se esse estranho me asfixiasse com seu suor, e num momento de fúria eu o estrangulasse ou o aleijasse cortando seus testículos recheados, e o banisse da minha vida escravizada, então talvez eu descansasse e abrisse as portas para a solidão se alojar. Se esse estranho não tivesse o riso cínico de superioridade estampado na face, a lubricidade sempre pronta, se não soubesse o poder de sua dominação, da força da perdição que impele à morte, a certeza do seu absolutismo, se esse estranho que invadiu a minha noite não tivesse consciência do quanto se tornou imprescindível, se desaparecesse assim como apareceu, com seus passos mansos e sua fala macia, com suas pretensas promessas de felicidade, se esse estranho que comigo hoje habita se fosse, desistisse de mim, então talvez eu me desesperasse.

Se numa noite, um estranho tentasse entrar em minha vida para se instalar, eu o teria impedido, teria trancado com todas as chaves a porta de entrada da minha casa, e mais as entradas de meus sentimentos, fechado o caminho do labirinto do meu corpo, ou gritado por auxílio, e se ele superando a minha força física e as minhas intenções, conseguisse o seu intuito, e me submetesse ao seu sexo, então eu o assassinaria, e seria em legítima defesa. E se ele implorasse, em nome do passado, do amor, da luxúria, eu recusaria para que ele fosse nada mais, apenas um estranho na noite tentando forçar a minha porta de entrada. Se na noite, um estranho tocasse a porta da minha alma e do meu destino,




(Ilustração: Javier Gil)




quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O MELODRAMA DO INCONSCIENTE, de Ricardo Piglia




A relação entre psicanálise e literatura é, sem dúvida, tensa e conflituosa. Em primeiro lugar, os escritores sempre sentiram que a psicanálise falava de algo que eles já conheciam e sobre o que era melhor guardar silêncio. Faulkner, Nabokov, Borges (entre outros) observaram que o psicanalista quer intervir naquilo que os escritores, desde Homero, têm convocado com essa rotina cerimoniosa com que se convocam as musas, em relações muito frágeis e sempre tocadas pela graça. Nessa relação impossível de se estabelecer deliberadamente, nessa situação de espera tão sutil, os escritores sentiram que a psicanálise avançava como um louco furioso.

Mas há outro ponto sobre o qual os escritores disseram algo que, na minha opinião, pode ser útil para os psicanalistas. Nabokov e também Manuel Puig --nosso grande romancista argentino-- insistiram em algo que os psicanalistas raramente percebem ou explicitam: a psicanálise gera muita resistência, mas também muita atração. A psicanálise é um dos aspectos mais atraentes da cultura contemporânea, e isto porque todos nós queremos ter uma vida intensa. 

Gostamos de admitir que, em algum lugar de nossas vidas banais, experimentamos grandes dramas, que quisemos matar nossos pais e que, portanto, vivemos num universo de grande intensidade, em que conseguimos superar o tédio, a monotonia em que habitualmente estamos mergulhados. O psicanalista nos convoca como sujeitos trágicos; diz que há um lugar em que todos somos sujeitos extraordinários, lutando contra tensões e dramas profundíssimos, e isso é muito atraente. 

Assim, Nabokov (1899-1977) via a psicanálise como um fenômeno da cultura de massas. Considerava que esse elemento de atração, capaz de pôr cada um de nós em conexão com as grandes tragédias, as grandes traições, pode estar relacionado com um procedimento clássico na cultura de massas: convocar o sujeito a um lugar extraordinário, tirando-o de sua experiência cotidiana. 

Manuel Puig (1932-1990) costumava dizer algo que sempre me pareceu muito produtivo, e que sem dúvida o foi na construção de sua própria obra. Puig dizia que o inconsciente tem estrutura de folhetim. Ele, que escrevia sua ficção com muito interesse pela estrutura das telenovelas e dos grandes folhetins da cultura de massas, tinha conseguido captar essa dramaticidade implícita na vida de todos, que a psicanálise põe no centro da experiência de construção da subjetividade. 

No que eu disse até aqui se vai esboçando um tipo de relação ambígua: por um lado, a psicanálise avança sobre um terreno íntimo, acerca do qual o artista considera que é melhor esperar e não pensar; mas, por outro lado, a psicanálise surge como uma espécie de concorrência: gera uma espécie de bovarismo, no sentido da experiência de Madame Bovary, que lia aqueles romancezinhos água-com-açúcar e queria vivê-los. 

Vou acrescentar agora duas questões: de que modo a literatura tem usado a psicanálise e de que modo a psicanálise tem usado a literatura. Para pensar sobre a primeira, convém esquecermos experimentos um tanto superficiais como o do surrealismo, que confundia essa espera da graça da musa com o procedimento mecânico da escrita automática: a musa é uma dama frágil o bastante para demandar um tratamento mais delicado que esse escrever sem pensar, deixando-se levar. É um pouco ingênuo supor que essa seria a melhor maneira de conectar-se com o inconsciente no trabalho. 

Quem de fato fez da relação com a psicanálise uma chave de sua obra talvez tenha sido o maior escritor do século 20: James Joyce. Foi ele quem melhor utilizou a psicanálise, porque viu nela um modo de narrar, porque soube enxergar na psicanálise uma possibilidade de construção formal. É certo que Joyce conhecia bem a "Psicopatologia da Vida Cotidiana" e "A Interpretação dos Sonhos" (ambos de Freud): sua presença salta aos olhos na escritura do "Ulisses" e do "Finnegan's Wake". Não nos temas: não se tratava, para Joyce, de refinar a caracterização psicológica dos personagens, segundo a crença corrente de que a melhor ajuda que a psicanálise pode prestar ao romancista é a oferta de melhores instrumentos para essa caracterização. Não: Joyce percebeu que ali havia modos de narrar; que, na construção de uma narração, o sistema de relações não precisa obedecer a uma lógica linear, e aí temos o monólogo interior. Joyce utilizou a psicanálise de uma maneira notável e produziu na literatura, no modo de narrar, uma revolução sem volta. 

Eu diria que o "Finnegan's Wake", sem dúvida uma das experiências (literárias)-limite deste século, foi em grande medida construído sobre a estrutura formal que se pode inferir de uma leitura criativa de Freud: uma leitura não preocupada com a temática, e sim com a maneira como se desenvolvem certos modos, certas formas, certas construções. 

Quando perguntado sobre sua relação com Freud, Joyce costumava responder: "Joyce, em alemão, é Freud". "Joyce" e "Freud" querem dizer "alegria"; nesse sentido os dois querem dizer a mesma coisa, e a resposta de Joyce parece-me uma prova da consciência que ele tinha da relação ambígua, mas de respeito e interesse, que o unia a Freud. Acho que o que Joyce dizia era: eu estou fazendo o mesmo que Freud. Em um sentido mais livre, mais autônomo, mais produtivo. 

Mas Joyce manteve outra relação com a psicanálise, ou melhor, com um psicanalista, sobre a qual há uma história que sintetiza muito dessa tensão entre psicanálise e literatura. Joyce tinha os ouvidos muito atentos às vozes das mulheres. Ele saía pouco, passava muito tempo escrevendo e escutava as mulheres que tinha por perto: escutava a Nora, que era sua mulher, uma mulher extraordinária. Escutando a voz dela, Joyce escreveu muitas das melhores páginas do "Ulisses", e os monólogos de Molly Bloom têm muito a ver com as cartas que ele escreveu a Nora em certos momentos de sua vida. Em suma: Joyce está muito atento à voz feminina. 

Enquanto Joyce estava escrevendo o "Finnegan's Wake", era sua filha, Lucia, quem ele escutava com grande interesse. Lucia Joyce acabou psicótica e morreu internada numa clínica suíça em 1962. Joyce nunca quis admitir que a filha estava doente e procurava incentivá-la a realizar diversas atividades. Uma das coisas que ela fazia era escrever. Joyce a incentivava a escrever textos, e Lucia escrevia, mas sua situação era cada vez mais difícil. Por fim, alguém lhe recomendou que fosse falar com Jung. 

Eles estavam morando na Suíça, e Jung havia escrito um texto sobre o "Ulisses". Joyce o procurou para lhe explicar o caso da filha, e disse a Jung: "Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é a mesma coisa que eu escrevo". Isso porque na época ele estava escrevendo o "Finnegan's Wake", que é um texto totalmente psicótico, se visto da seguinte perspectiva: é totalmente fragmentado, onirizado, atravessado pela impossibilidade de construir com a linguagem algo além de dispersão. Pois bem, Joyce disse a Jung que sua filha escrevia a mesma coisa que ele, e Jung respondeu: "Só que onde o senhor nada, ela se afoga". É a melhor definição que conheço da distinção entre um artista e... outra coisa, que não chamarei de outro modo. 

De fato, psicanálise e literatura têm muito a ver com a natação. Em certo sentido, a psicanálise é uma arte da natação, uma arte de manter à tona no mar da linguagem as pessoas que estão sempre tentando afundar. E um artista é aquele que nunca sabe se vai conseguir nadar: conseguiu nadar antes, mas não sabe se conseguirá nadar da próxima vez que entrar no mar. 

Em todo o caso, a literatura deve a obra de Joyce à psicanálise. Ele foi capaz de ler a psicanálise, assim como foi capaz de ler outras coisas. Joyce foi um grande escritor porque soube entender que havia outras maneiras de fazer literatura fora da tradição literária; que podiam ser encontradas maneiras de narrar no catecismo, por exemplo; que a narração, as técnicas narrativas não estão ligadas apenas às grandes tradições narrativas; que é possível encontrar modos de narrar em outras experiências contemporâneas. A psicanálise foi uma delas. 

A outra questão é o que a psicanálise deve à literatura: ela lhe deve muito. Podemos falar da relação que Freud estabeleceu com a tragédia. Não me refiro ao conteúdo de certas tragédias de Sófocles ou de Shakespeare, que deram lugar a metáforas temáticas sobre as quais Freud construiu um universo de análise. Refiro-me à tragédia como forma que estabelece uma tensão entre o herói e a palavra dos mortos. 

Em literatura, tende-se a ver a tragédia como um gênero que estabeleceu uma tensão entre o herói e a palavra dos deuses, do oráculo, dos mortos, uma palavra vinda do outro lado, dirigida ao sujeito, mas que este não entende. O herói escuta um discurso personalizado, mas enigmático: é claro para os demais, mas ele não o entende. Isto é Édipo, Hamlet, Macbeth, este é o ponto em torno do qual gira a discussão literária sobre o gênero da tragédia, uma discussão que começa com Nietzsche e chega até Brecht. A tragédia, como forma, é essa tensão entre a palavra superior e um herói que tem uma relação pessoal com essa palavra. 

Tal estruturação tem muito a ver com a psicanálise, mas ainda não vi essa questão ser tratada sem que se insista exclusivamente no aspecto do tema. Sem dúvida, em "Édipo" há um problema com pais e mães, em "Hamlet" há um problema com a mãe. Mas em "Hamlet" há também um pai que fala depois de morto. 

Outra forma de pensar a relação entre psicanálise e literatura é dada pelo gênero policial. Trata-se do grande gênero moderno: inventado por Poe em 1843, invadiu o mundo contemporâneo. Hoje olhamos o mundo pautados por esse gênero, hoje vemos a realidade sob a forma do crime. Como dizia Bertolt Brecht, o que é roubar um banco comparado com fundá-lo? A relação entre lei e verdade é um elemento constitutivo do gênero, que é muito popular, como o foi a tragédia. Como os grandes gêneros literários, o policial tem sido capaz de discutir o mesmo que a sociedade discute, mas de outra maneira. 

É isso que a literatura faz: discute de outra maneira. Se não entendermos isso, estaremos pedindo à literatura que faça algo que o jornalismo faria melhor. A literatura discute os mesmos problemas que a sociedade, mas de outra maneira, e essa maneira é a chave de tudo. Uma dessas maneiras é o gênero policial, que vem discutindo as questões entre lei e verdade, a não-coincidência entre a verdade e a lei. 

Poe inventa um sujeito extraordinário, o detetive, cujo destino é estabelecer a relação entre a lei e a verdade. O detetive está ali para interpretar algo que ocorreu, que deixou certos sinais, e ele pode desempenhar essa função porque está fora de qualquer instituição. O detetive não pertence ao mundo do crime nem ao mundo da lei; não é um policial. Dupin, Sherlock Holmes, o detetive particular estão ali para mostrar que a lei funciona mal em seu lugar institucional, a polícia. O detetive vem abrir o lugar da verdade que não pertence a nenhuma instituição onde a verdade é legitimada. 

Pensemos no seguinte paradoxo, (que também diz respeito a nós, argentinos) (1): como falar de uma sociedade que nos determina? A partir de que lugar externo podemos julgá-la, se nós também estamos dentro dela? O gênero policial oferece uma resposta que é extrema: o detetive, embora forme parte do universo que analisa, pode interpretá-lo porque não tem relação com nenhuma instituição, nem sequer com o casamento. O detetive não pode se integrar a nenhuma instituição social, nem à mais microscópica, pois, onde quer que se integre, não poderá mais dizer aquilo que ele tem que dizer: essa tensão entre a lei e a verdade. 

Na tragédia, o sujeito recebe uma mensagem dirigida a ele e a interpreta de maneira equivocada. A tragédia é o percurso dessa interpretação, é o modo pelo qual o sujeito entende errado. No policial, aquele que interpreta está livre de travas e fala de uma história que não é a dele, dedica-se a uma questão que não é a dele: acho que os psicanalistas têm alguma familiaridade com isso... 





Nota

1. Este texto é uma transcrição da conferência realizada em Buenos Aires, com o patrocínio da Associação Psicanalítica Argentina em 7 de julho de 1997.


(FSP, 21/06/1998)


(Tradução de Sérgio Molina)


(Ilustração: Marcelo Grassman)



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

QUANDO AS MANHÃS ACABARAM, de Natércia Freire







Corram depressa as cortinas

E não se importem que eu fique

entontecida no escuro,

Deixem que eu me abrace a mim,

Já que fujo ao que procuro...

Fechem todas as janelas

e calem todas as falas,

(Estou sozinha com as estrelas,

vou prendê-las e guardá-las.)


Não me roubem a tristeza

de não viver a alegria

das manhãs e dos regatos.

(- Meus abraços de algum dia! –

Estou sozinha com os retratos.)


Corram depressa as cortinas

e não segredem, de longe,

as palavras pequeninas.


Fechem todas as janelas

e tapem todas as frinchas

para que eu não perca as estrelas.


Porque eu só tenho os meus braços

para me enrolar na agonia...

Quero mais à noite funda

que a mentira deste dia.


E não se importem que eu fique

endoidecida no escuro

Deixem que eu me abrace a mim,

já que fujo ao que procuro!



(Horizonte Fechado)


(Ilustração: Adam Miller)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A MÁQUINA DA CANABRAVA, de Mário Prata






No primeiro dia de aula, a professora de História da Economia, na velha USP da Rua Doutor Vilanova, Alice Canabrava, escreveu no quadro negro o nome de um livro sobre o mercantilismo e disse, seriíssima:

- Na próxima aula (dali a uma semana), prova sobre o livro.

Era o estilo dela, que eu já havia enfrentado no exame oral (é, tinha oral) do vestibular para economia em 1967. Me lembro que ela me perguntou qual era a diferença entre uma nau e uma caravela. Na época, eu sabia.

Mas o mundo é pequeno e trinta anos depois vim a descobrir que a Canabrava era tia da minha amiga escritora-arquiteta Lúcia Carvalho, aquela mesma que já andou por aqui falando de privadas e congêneres. Era tia. Morreu há um mês, já velhinha, aposentada e lúcida. Deixou sua casa - com tudo que tinha lá dentro, incluindo uma genial biblioteca - para a Lúcia.

E a Lúcia acaba de me mandar um e-mail que eu transcrevo na íntegra, sobre uma velha máquina da catedrática tia. Vamos lá.

"Ouve só. A gente esvaziando a casa da tia neste carnaval. Móvel, roupa de cama, louça, quadro, livro. Aquela confusão, quando ouço dois dos meus filhos me chamarem.

- Mãe!

- Faaala.

- A gente achou uma coisa incrível. Se ninguém quiser, pode ficar para a gente? Hein?

- Depende. Que é?

Os dois falavam juntos, animadíssimos.

- Ééé... uma máquina, mãe.

- É só uma máquina meio velha.

- É, mas funciona, está ótima!

Minha filha interrompeu o irmão mais novo, dando uma explicação melhor.

- Deixa que eu falo: é assim, é uma máquina, tipo um... teclado de computador, sabe só o teclado? Só o lugar que escreve?

- Sei.

- Então. Essa máquina tem assim, tipo... uma impressora, ligada nesse teclado, mas assim, ligada direto. Sem fio. Bem, a gente vai, digita, digita...

Ela ia se animando, os olhos brilhando.

- ... e a máquina imprime direto na folha de papel que a gente coloca ali mesmo! É muuuito legal! Direto, na mesma hora, eu juro!

Eu não sabia o que falar. Eu ju-ro que não sabia o que falar diante de uma explicação dessas, de menina de 12 anos, sobre uma máquina de escrever. Era isso mesmo?

- ... entendeu mãe?... zupt, a gente escreve e imprime, a gente até vê a impressão tipo na hora, e não precisa essa coisa chata de entrar no computador, ligar, esperar hóóóras, entrar no word, de escrever olhando na tela, mandar para a impressora, esse monte de máquina, de ter que ter até estabilizador, comprar cartucho caro, de nada, mãe! É muuuito legal, e nem precisa de colocar na tomada! Funciona sem energia e escreve direto na folha da impressora!

- Nossa, filha...

- ... só tem duas coisas: não dá para trocar a fonte nem aumentar a letra, mas não tem problema. Vem, que a gente vai te mostrar. Vem...

Eu parei e olhei, pasma, a máquina velha. Eles davam pulinhos de alegria.

- Mãe. Será que alguém da família vai querer? Hein? Ah, a gente vai ficar torcendo, torcendo para ninguém querer para a gente poder levar lá para casa, isso é o máximo! O máximo!

Bem, enquanto estou aqui, neste 'teclado', estou ouvindo o plec-plec da tal máquina, que, claro, ninguém da família quis, mas que aqui em casa já deu até briga, de tanto que já foi usada. Está no meio da sala de estar, em lugar nobre, rodeada de folhas e folhas de textos 'impressos na hora' por eles. Incrível, eles dizem, plec-plec-plec, muito legal, plec-plec-plec.

Eu e o Zé estamos até pensando em comprar outras, uma para cada filho. Mas, pensa bem se não é incrível mesmo para os dias de hoje: sai direto, do teclado para o papel, e sem tomada!

Céus. Que coisa. Um beijo grande, Lúcia."

É, Lúcia, a nossa querida Alice Canabrava, deve estar descansando em paz e rindo muito. E dê uns beijos nos filhos e agradeça a crônica pronta-pronta, plec-plec-plec, que eu ofereço aos meus leitores. E leitoras.




(Ilustração: foto da internet, sem indicação de autoria)



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

SEGURANÇA, de Jorge de Sena







Contigo me deitarei vezes sem conta.
(E farei filhos.
E dia a dia saberei como teu ventre
os faz.)

Trair-te-ei a cada hora, até comigo mesmo,

principalmente comigo mesmo,
mas só contigo me deitarei vezes sem conta.
(E farei filhos.
E dia a dia saberei como teu ventre
os faz).


(Fidelidade)



(Ilustração: John Currin – couple in bed)




terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

CHEGADA A MONTE SANTO, de Euclydes da Cunha(*)







Monte Santo, 6 de setembro.



Finalmente chegámos, ás 9 horas da manhan, á nossa base de operações, depois de duas horas de marcha. Ninguem póde imaginar o que é Monte-Santo a tres kilometros de distancia. Erecta num ligeiro socalco, ao pé de magestosa montanha, a povoação, poucos metros a cavalleiro sobre os taboleiros extensos que se estendem ao norte, está numa situação admiravel. Não conheço nenhuma de aspecto mais pittoresco que o deste arraial - humilde perdido no seio dos sertões. O viajante exhausto, esmagado pelo cansaço e pelas saudades, sente um desafogo immenso ao avistal-o, dopois de galgar a ultima ondulação do solo, com as suas casas brancas e pequenas, caindo por um plano de inclinação insensivel até á planice vastissima.



Na montanha, a um lado, resalta logo á vista um quadro interessante e novo.

Galgando-a, primeiro numa direcção, depois noutra, em zig-zag, até vingar a encosta e subindo depois pelo espigão afora até a ronta culminante da serra, apruman-se vinte e quatro capellas, alvissimas, destacando-se nitidamente num fundo pardo e requeimado de terreno aspero e esteril.

Não me demorarei, porém, neste assumpto, do qual tractarei com mais vagar.

Quando entrámos, formavam na praça 1.900 homens sob o commando do coronel Cesar Sampaio. A' frente dos batalhões paraenses avultava o coronel Sotero de Menezes - um chefe e um soldado como ha poucos. Divisei logo, á frente do batalhão do Amazonas, um digno companheiro dos velhos tempos enthusiastas da propaganda, Candido Marianno, contemporaneo de escola.



Houve um enthusiasmo sincero e ruidoso quando num movimento uniso as mil e novecentas bayonetas, num scintillar vivissimo, desceram rapidas dos hombros dos soldados, aprumando-se na continencia aos generaes - numa ondulação luminosa immensa.




Atravessámos, a galope, pela frente das tropas e parámos afinal diante do unico sobrado nobilitado com o titulo pomposo de Quartel-General.




Apeei-me immediatamente e achei-me entre antigos companheiros, de há muito ausentes.




Que diferença extraordinária em todos!




Domingos Leite, um bello typo de flaneur, folgasão nos bons tempos da Escola, um devoto elegante da rua do Ouvidor - abraçou-me e não o conheci. Vi um homem extranho, de barba inculta, e crescida, rosto pállido e tostado, voz aspera, vestindo bombachas enormes, coberto de largo chapeu desabado. Está aqui desde a expedição Moreira Cesar, na faina perigosa e tremenda da engenharia militar, a traçar estradas ao deserto, correndo linhas telegraphicas, dirigindo comboios por veredas difficeis nas quaes o bacharel em mathemática teve muitas vezes de empunhar o ferrão e transformar-se em carreiro.




Abracei commovido o antigo collega em quem as fadigas não destruiram a jovialidade antiga.




Como se muda nestas paragens!




Gustavo Guabirú outro engenheiro militar, foi uma vez encontrado por um contingente da força policial da Bahia em tal estado que foi preso como jagunço. E não teve meios de convencer aos soldados do engano em que haviam caído.




Encontrei, perto de Quirimquinquá, na estrada, quando vinhamos, Cororiolano de Carvalho, ex-governador do Pisuby, e correspondi-lhe ao cumprimento sem o conhecer absolutamente na ocasião. 
O capitão Souza Franco, um dos nossos melhores officiaes de cavallaria, transmudou-se num velho inutil e combalido.




Parece que esta natureza selvagem vae em todos imprimindo uma feição diversa.




O major Martiniano, commandante da praça, um typo desempenado de soldado que sempre vi, desde os tempos acadêmicos, no Rio, de bonet atrevidamente inclinado a tres pancadas, substituiu o antigo cavaignac negro por uma barba branca. Está velho; está aqui há poucos mezes.




A côr muda revestindo-se de tons ásperos de bronze velho; como que mirram as carnes e os ossos incham; rapazes elegantes transformam-se rapidamente em athetas desengonçados e rígidos...




Quasi que se vae tornando indispensável a creação de um verbo para caracterisar o phenomeno. O verbo ajagunçar-se, por exemplo. Há transformações completas e rápidas.




O representante da Notícia, Alfredo Silva, assombrou-me: está num desengonçado irresistível para o typo geral predominante - barba crescida, chapelão de palha, paletot de brim de côr inclassificavel, bombachas monstruosas.




E cada um anda por aqui perfeitamente, á vontade. Monte-Santo é como uma unica casa, immensa e mal divididá, com innumeros cubiculos, de uma só familia de soldados.




Nada ainda poderei adiantar sobre a situação.




As informações que hoje obtive são pouco animadoras. Fallo baseado no criterio seguro de collegas que lá estão ha mezes, que de lá voltaram hontem, e que pela educação que possúem podem ajuizar com firmeza sobre os acontecimentos que presenciaram.




Imaginem que, emquanto o exercito lhes occupa grande parte de casas e os fulmina quotidianamente, num bombardeio incessante, os fanaticos distribuem de um modo notavel a actividade, revesando-se, da linha de fogo para o campo onde cultivam mandiocas, feijão e milho!




Fazem roças que devem ser colhidas no anno vindouro!




Ora esse assedio platonico que fazemos, parece que não perderá tal feição ainda quando cheguem a Canudos todas as forças com um effectivo de pouco mais de oito mil homens. Os meus collegas que alli andam, ha mezes, de bussola e aneroide em punho, garantem-me que o cerco regular exige um minimum de vinte e cinco mil homens. Porque o jagunço não tem apenas tres ou quatro estradas para o accesso ao povoado, tem um numero incalculavel dellas - qualquer ponto por mais escabroso é-lhe francamente praticavel.




Resta o recurso de um assalto impetuoso, rapido e firmemente sustentado; não ha outro.




O ataque será fatalmente mortifero. Basta examinar-se uma planta do immenso arraial. Canudos está militarmente construido e uma estampa que por ahi anda traduz, absolutamente, da sua feição caracteristica.




As casas, apparentemente em desordem, dispõem-se umas relativamente ás outras, de modo tal que de qualquer das quatro esquinas de qualquer dellas, o inimigo, sem mudar de logar, rodando apenas sobre os calcanhares, atira para os quatro pontos do horizonte. É o que me affirmou um homem intelligente e engenheiro distincto - o coronel Campello França.




E se alliarmos a essa disposição, adrede preparada, a conformação bizarra do solo, definida por ondulações ligeiras e numerosas, cruzando- se em todos os sentidos, comprehenderemos bem todas as difficuldades do combate.




É absolutamente necessário, entretanto, que elle se realise, quanto antes. Eu estou firmemente convencido que as nossas tropas não podem permanecer por dois mezes no máximo, nestas paragens ingratas, apezar do stoicismo e abnegação revelados pelos seus chefes.




As difficuldades de transportes de munições de guerra e de boccapodem, em parte, ser debelladas. Há tropeços, porém, irremediáveis, absolutamente insanáveis - e entre estes, espantalho que aterra a todos que vêm ou seguem para Canudos, - a sêde; sêde devoradora e inextinguível que tem torturado a todos os combatentes.




Os pequenos pantanos que ainda existem nas estradas, além de quasi exhauridos têm no seio toda a sorte de germens de infecção. Num delles, um dos melhores, perto de Juetê, contam companheiros recemvindos, que viram, estendido horizontalmente na borda, a bocca mergulhada na água esverdeada, o cadáver de um varioloso que até alli se arrastára, impellido pela sêde ardente da febre e morrera.




Outros guardam no fundo, traiçoeiramente occultos pela perfidia assombrosa do jagunço, cadeveres de homens e cavallos, numa decomposição lenta e nefasta.




Se as chuvas sobrevierem, desappareccerão estes inconvenientes mas surgirão outros.




Imaginemos um só.




O Vasa-Barris, avolumando-se desmedidamente cortará de todo as communicações entre o exército sitiante e a base de operações. Só por um milagre da engenharia, num logar em que escasseiam materiaes e pessoal adextrado - pódem ser ellas restabelecidas por uma ponte que deve ser feita no praso mínimo de oito dias com todas as condições de resistência definida pela carga perigosa da tropa em marcha - sob as balas certeiras e constantes dos fanáticos!




Não exaggero perigos; mas o optimismo seria um crime nesta quadra. Além disto a maioria republicana da nossa terra precisa conhecer toda a verdade desta situação dolorosa, pela voz ao menos sincera dos que aqui estão promptos para compartirem do sacrifício nobilitador pela República.




Não sabemos ainda se o marechal Bittencourt irá até Canudos; se esta resolução for tomada revestirei a minha incapacidade physica com a minha capacidade moral e não abandonarei os dedicados companheiros.




Amanhan continuarei estas notas que, com certaza, ahi vão chegar com grandes intervallos por que o seviço de correios aqui é péssimo e moroso.






(O Estado de S. Paulo – 1997) 



(*) Grafia original, de 1896/1897.



(Ilustração: Batalhão de Infantaria – Canudos, 1897)




domingo, 6 de fevereiro de 2011

SONNET XVIII / SONETO XVIII, de William Shakespeare








Shall I compare thee to a summer's day?

Thou art more lovely and more temperate:

Rough winds do shake the darling buds of May,

And summer's lease hath all too short a date:


Sometime too hot the eye of heaven shines,

And often is his gold complexion dimm'd:

And every fair from fair sometime declines,

By chance, or nature's changing course untrimm'd;


But thy ethernal summer shall not fade,

Nor lose possession of that fair thou ow'st,

Nor shall death brag thou wander'st in his shade,


When in ethernal lines to time thou grow'st;

So long as men can breathe, or eyes can see,

So long lives this, and this gives life to thee.




Tradução de Ivo Barroso:


Devo igualar-te a um dia de verão?

Mais afável e belo é o teu semblante:

O vento esfolha Maio inda em botão,

Dura o termo estival um breve instante.


Muitas vezes a luz do céu calcina,

Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina,

Ao léu ou pelas leis da Natureza,


Só teu verão eterno não se acaba

Nem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gaba


Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida,

Há-de viver meu verso e te dar vida.






Tradução de Bárbara Heliodora:




Se te comparo a um dia de verão


És por certo mais belo e mais ameno


O vento espalha as folhas pelo chão


E o tempo do verão é bem pequeno.






Às vezes brilha o Sol em demasia


Outras vezes desmaia com frieza;


O que é belo declina num só dia,


Na terna mutação da natureza.






Mas em ti o verão será eterno,


E a beleza que tens não perderás;


Nem chegarás da morte ao triste inverno:






Nestas linhas com o tempo crescerás.


E enquanto nesta terra houver um ser,


Meus versos vivos te farão viver.





(Ilustração: John William Waterhouse – Lady of Shalott)







sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

AS FORMIGAS, de Lygia Fagundes Telles









Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada.Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
— É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio.
Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
— Pelo menos não vi sinal de barata — disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crostade esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas.
Acendeu um charutinho.
— É você que estuda medicina? — perguntou soprando a fumaça na minha direção.
— Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
— Vou mostrar o quarto, fica no sótão — disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos.
— O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
— Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e
pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda.
Levantou o plástico. Parecia fascinada.
— Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
— Ele disse que eram de adulto. De um anão.
— De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí — admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. — Tão perfeito, todos os dentinhos!
— Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa — recomendou
coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: — Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima
subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola.
O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho.
Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
— Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia.
Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
— De onde vem esse cheiro? — perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. — Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
— É de bolor. A casa inteira cheira assim — ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, Tem um anão
no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
— Que é que você está fazendo aí? — perguntei.
— Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como
um exército em marcha exemplar.
— São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida — estranhei.
— Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
— Está debaixo dela — disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. — Preto de formiga!
Me dá o vidro de álcool.
— Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
— Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro.
Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
— Esquisito. Muito esquisito.
— O quê?
— Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
— Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá.
No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada.
Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou
veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido.
Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei.
— E as formigas?
— Até agora, nenhuma.
— Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
— Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
— Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então, quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
— Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei
melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu
marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de
silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
— Elas voltaram.
— Quem?
— As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
— E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
— Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco
eles estão... Estão se organizando.
— Como, se organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
— Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto,
mais um pouco e... Venha ver!
— Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça
entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando
no fogareiro.
— Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia — ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
— Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
— Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto. Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
— Voltaram — ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
— Estão aí?
Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz.
— Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava...
— O que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
— Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
— Você está falando sério?
— Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
— Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
— Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!
— E para onde a gente vai?
— Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto,
deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.



(Seminário dos Ratos)



(Ilustração: Marcello Grassmann – as sombras)