quarta-feira, 29 de abril de 2015

HAPPINESS / FELICIDADE, de Raymond Carver










So early it's still almost dark out.

I'm near the window with coffee,

and the usual early morning stuff

that passes for thought.

When I see the boy and his friend

walking up the road

to deliver the newspaper.

They wear caps and sweaters,

and one boy has a bag over his shoulder.

They are so happy

they aren't saying anything, these boys.

I think if they could, they would take

each other's arm.

It's early in the morning,

and they are doing this thing together.

They come on, slowly.

The sky is taking on light,

though the moon still hangs pale over the water.

Such beauty that for a minute

death and ambition, even love,

doesn't enter into this.

Happiness. It comes on

unexpectedly. And goes beyond, really,

any early morning talk about it.





Tradução de Cide Piquet:





Tão cedo que ainda é quase noite lá fora.

Estou perto da janela com o café

e tudo aquilo que sempre a essa hora

nos passa pela mente.

Quando vejo o garoto e seu amigo

subindo a rua

para entregar o jornal.

Eles usam bonés e agasalhos,

e um deles traz uma mochila nas costas.

Estão tão felizes

que nem sequer conversam, os garotos.

Acho que, se pudessem, estariam até

de braços dados.

É de manhã bem cedo

e os dois caminham lado a lado.

Lentamente, eles vêm vindo.

O céu começa a clarear,

embora a lua ainda paire sobre a água.

Tanta beleza que por um instante

a morte e a ambição, mesmo o amor,

não se intrometem nisso.

Felicidade. Ela vem

inesperadamente. E vai além, na verdade,

de qualquer discurso sonolento.





(All of Us. The Collected Poems)






(Ilustração: Juan Cancelleri - La Boca)



domingo, 26 de abril de 2015

O EMPRÉSTIMO, de Machado de Assis





Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.

E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele, que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinquenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à Rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.

Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspeto. Tinha cinquenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.

— Quem é? perguntou ele de repente, olhando para a porta da rua.

Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.

— Não se lembra de mim?

— Não me lembro...

— Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja se se lembra do Custódio.

— Ah!

Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço, sem vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certo ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité, redarguiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.

Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.

Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a Rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo, que este era o salvador da situação.

— Venho pedir-lhe uma escritura...

Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu; espiou por cima dos óculos e esperou.

— Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...

— Se estiver nas minhas mãos...

— O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, — ou a três, com juro módico...

— Cinco contos?

— Sim, senhor.

— Mas, Sr. Custódio, não posso, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?

— Ora, se o senhor quisesse...

— Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.

A alma de Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regímen do eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.

— Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...

— Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, muito menos, não teria dúvida; mas...

Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda, que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores etc., e uma soma razoável, quinhentos mil réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil réis, que ele ia ver surgir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.

— Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?

— Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.

— Quinhentos mil réis?

— Não; não posso.

— Nem quinhentos mil réis?

— Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?

— Não, senhor.

— Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil réis; falarei ao Ministro da Justiça, tenho relações com ele, e...

Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, — “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...

— Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...

— Não imagina os apuros em que estou!

— Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas d'água, as décimas, o seguro, os calotes etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...

— Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.

— Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.

— Nem cem mil réis!

— Nem cem mil réis, pesa-me dizê-lo, mas é a verdade. Nem cem mil réis. Que horas são?

Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil réis. Quem é que não tem cem mil réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinquenta mil réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; — não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinquenta mil réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.

Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio de parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco; deram, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos, invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil réis! Era impossível que não levasse ali vinte mil réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem...

— Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.

Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos, para jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas. Custódio sentiu toda a força deste lugar comum, e, súbito, como um tiro, perguntou ao tabelião se não lhe podia dar ao menos dez mil réis.

— Quer ver?

E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil réis.

— Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?

Custódio aceitou os cinco mil réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, — um até breve cheio de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.



(Papéis Avulsos)



(Pawel Kuczinski)


sexta-feira, 24 de abril de 2015

LE CIMETIÈRE MARIN / O CEMITÉRIO MARINHO, de Paul Valéry





   


Μή, φίλα ψυχά, βίον ἀθάνατον


σπεῦδε, τὰν δ' ἔμπρακτον ἄντλει μαχανάν.


- Pindare, Pythiques, III 



"O mon âme, n'aspire pas à la vie immortelle, 

mais épuise le champ du possible!" 

- Pindare




Ce toit tranquille, où marchent des colombes,


Entre les pins palpite, entre les tombes;


Midi le juste y compose de feux


La mer, la mer, toujours recommencée


O récompense après une pensée


Qu'un long regard sur le calme des dieux!






Quel pur travail de fins éclairs consume


Maint diamant d'imperceptible écume,


Et quelle paix semble se concevoir!


Quand sur l'abîme un soleil se repose,


Ouvrages purs d'une éternelle cause,


Le temps scintille et le songe est savoir.






Stable trésor, temple simple à Minerve,


Masse de calme, et visible réserve,


Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi


Tant de sommeil sous une voile de flamme,


O mon silence! . . . Édifice dans l'âme,


Mais comble d'or aux mille tuiles, Toit!






Temple du Temps, qu'un seul soupir résume,


À ce point pur je monte et m'accoutume,


Tout entouré de mon regard marin;


Et comme aux dieux mon offrande suprême,


La scintillation sereine sème


Sur l'altitude un dédain souverain.






Comme le fruit se fond en jouissance,


Comme en délice il change son absence


Dans une bouche où sa forme se meurt,


Je hume ici ma future fumée,


Et le ciel chante à l'âme consumée


Le changement des rives en rumeur.






Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change!


Après tant d'orgueil, après tant d'étrange


Oisiveté, mais pleine de pouvoir,


Je m'abandonne à ce brillant espace,


Sur les maisons des morts mon ombre passe


Qui m'apprivoise à son frêle mouvoir.






L'âme exposée aux torches du solstice,


Je te soutiens, admirable justice


De la lumière aux armes sans pitié!


Je te tends pure à ta place première,


Regarde-toi! . . . Mais rendre la lumière


Suppose d'ombre une morne moitié.






O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,


Auprès d'un coeur, aux sources du poème,


Entre le vide et l'événement pur,


J'attends l'écho de ma grandeur interne,


Amère, sombre, et sonore citerne,


Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!






Sais-tu, fausse captive des feuillages,


Golfe mangeur de ces maigres grillages,


Sur mes yeux clos, secrets éblouissants,


Quel corps me traîne à sa fin paresseuse,


Quel front l'attire à cette terre osseuse?


Une étincelle y pense à mes absents.






Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière,


Fragment terrestre offert à la lumière,


Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,


Composé d'or, de pierre et d'arbres sombres,


Où tant de marbre est tremblant sur tant d'ombres;


La mer fidèle y dort sur mes tombeaux!






Chienne splendide, écarte l'idolâtre!


Quand solitaire au sourire de pâtre,


Je pais longtemps, moutons mystérieux,


Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,


Éloignes-en les prudentes colombes,


Les songes vains, les anges curieux!






Ici venu, l'avenir est paresse.


L'insecte net gratte la sécheresse;


Tout est brûlé, défait, reçu dans l'air


A je ne sais quelle sévère essence . . .


La vie est vaste, étant ivre d'absence,


Et l'amertume est douce, et l'esprit clair.






Les morts cachés sont bien dans cette terre


Qui les réchauffe et sèche leur mystère.


Midi là-haut, Midi sans mouvement


En soi se pense et convient à soi-même


Tête complète et parfait diadème,


Je suis en toi le secret changement.






Tu n'as que moi pour contenir tes craintes!


Mes repentirs, mes doutes, mes contraintes


Sont le défaut de ton grand diamant! . . .


Mais dans leur nuit toute lourde de marbres,


Un peuple vague aux racines des arbres


A pris déjà ton parti lentement.






Ils ont fondu dans une absence épaisse,


L'argile rouge a bu la blanche espèce,


Le don de vivre a passé dans les fleurs!


Où sont des morts les phrases familières,


L'art personnel, les âmes singulières?


La larve file où se formaient les pleurs.






Les cris aigus des filles chatouillées,


Les yeux, les dents, les paupières mouillées,


Le sein charmant qui joue avec le feu,


Le sang qui brille aux lèvres qui se rendent,


Les derniers dons, les doigts qui les défendent,


Tout va sous terre et rentre dans le jeu!






Et vous, grande âme, espérez-vous un songe


Qui n'aura plus ces couleurs de mensonge


Qu'aux yeux de chair l'onde et l'or font ici?


Chanterez-vous quand serez vaporeuse?


Allez! Tout fuit! Ma présence est poreuse,


La sainte impatience meurt aussi!










Maigre immortalité noire et dorée,


Consolatrice affreusement laurée,


Qui de la mort fais un sein maternel,


Le beau mensonge et la pieuse ruse!


Qui ne connaît, et qui ne les refuse,


Ce crâne vide et ce rire éternel!






Pères profonds, têtes inhabitées,


Qui sous le poids de tant de pelletées,


Êtes la terre et confondez nos pas,


Le vrai rongeur, le ver irréfutable


N'est point pour vous qui dormez sous la table,


Il vit de vie, il ne me quitte pas!






Amour, peut-être, ou de moi-même haine?


Sa dent secrète est de moi si prochaine


Que tous les noms lui peuvent convenir!


Qu'importe! Il voit, il veut, il songe, il touche!


Ma chair lui plaît, et jusque sur ma couche,


À ce vivant je vis d'appartenir!






Zénon! Cruel Zénon! Zénon d'Êlée!


M'as-tu percé de cette flèche ailée


Qui vibre, vole, et qui ne vole pas!


Le son m'enfante et la flèche me tue!


Ah! le soleil . . . Quelle ombre de tortue


Pour l'âme, Achille immobile à grands pas!






Non, non! . . . Debout! Dans l'ère successive!


Brisez, mon corps, cette forme pensive!


Buvez, mon sein, la naissance du vent!


Une fraîcheur, de la mer exhalée,


Me rend mon âme . . . O puissance salée!


Courons à l'onde en rejaillir vivant.






Oui! grande mer de délires douée,


Peau de panthère et chlamyde trouée,


De mille et mille idoles du soleil,


Hydre absolue, ivre de ta chair bleue,


Qui te remords l'étincelante queue


Dans un tumulte au silence pareil






Le vent se lève! . . . il faut tenter de vivre!


L'air immense ouvre et referme mon livre,


La vague en poudre ose jaillir des rocs!


Envolez-vous, pages tout éblouies!


Rompez, vagues! Rompez d'eaux réjouies


Ce toit tranquille où picoraient des focs!





Tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia:




Ó minha alma, não aspira à vida


imortal, mas esgota o campo do possível.


- Pindare, Pythiques, III.




Esse teto tranquilo, onde andam pombas,


Palpita entre pinheiros, entre túmulos.


O meio-dia justo nele incende


O mar, o mar recomeçando sempre.


Oh, recompensa, após um pensamento,


Um longo olhar sobre a calma dos deuses!






Que lavor puro de brilhos consome


Tanto diamante de indistinta espuma


E quanta paz parece conceber-se!


Quando repousa sobre o abismo um sol,


Límpidas obras de uma eterna causa


Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.






Tesouro estável, templo de Minerva,


Massa de calma e nítida reserva,


Água franzida, Olho que em ti escondes


Tanto de sono sob um véu de chama,


— Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,


Cume dourado de mil telhas, Teto!






Templo do Tempo, que um suspiro exprime,


Subo a este ponto puro e me acostumo,


Todo envolto por meu olhar marinho.


E como aos deuses dádiva suprema,


O resplendor solar sereno esparze


Na altitude um desprezo soberano.






Como em prazer o fruto se desfaz,


Como em delícia muda sua ausência


Na boca onde perece sua forma,


Aqui aspiro meu futuro fumo,


Quando o céu canta à alma consumida


A mudança das margens em rumor.






Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!


Depois de tanto orgulho e tanta estranha


Ociosidade — cheia de poder —


Eu me abandono a esse brilhante espaço,


Por sobre as tumbas minha sombra passa


E a seu frágil mover-se me habitua.






A alma expondo-se às tochas do solstício,


Eu te afronto, magnífica justiça


Da luz, da luz armada sem piedade!


E te devolvo pura à tua origem:


Contempla-te!... Mas devolver a luz


Supõe de sombra outra metade morna.






Oh, para mim, somente a mim, em mim,


Junto ao peito, nas fontes do poema,


Entre o vazio e o puro acontecer,


De minha interna grandeza o eco espero,


Sombria, amarga e sonora cisterna


— Côncavo som, futuro, sempre, na alma.






Sabes tu, prisioneiro das folhagens,


Golfo roedor de tão finos gradis,


Claros segredos para os olhos cegos


Que corpo a um fim ocioso me compele,


Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas?


Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.






Sacro, encerrando um fogo sem matéria,


Pouca de terra oferecida à luz,


Prezo este sítio, que dominam tochas,


Composto de ouro, pedras e ciprestes,


Onde mármores tremem sobre sombras.


O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.










Cadela esplêndida, afugenta o idólatra!


Quando, sorriso de pastor, sozinho


Apascento carneiros misteriosos


— Branco rebanho de tranquilos túmulos —


Afasta dele as pombas temerosas


Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.






Aqui vindo, o futuro é indolência.


Nítido inseto escarva a sequidão;


Tudo queimado está desfeito e no ar


Se perde em não sei que severa essência,


Faz-se a amargura doce e claro o espírito.










Os mortos estão bem, sob esta terra


Que os aquece e resseca seu mistério.


O meio-dia no alto, o meio-dia


Quedo se pensa em si e a si convém.


Fronte completa e límpido diadema,


Eu sou em ti recôndita mudança!






Eu, somente eu, contenho os teus temores!


Meus pesares, limitações e dúvidas


São a falha de teu grande diamante...


Em sua noite grávida de mármores,


Entanto, um povo errante entre as raízes


Tomou já teu partido, lentamente.






Dissolveu-se na mais espessa ausência;


Bebeu vermelho barro a branca espécie;


Passou às flores o dom de viver.


Dos mortos, onde as frases familiares,


A arte pessoal, as almas singulares?


Tece a larva onde lágrimas nasciam.






O riso agudo de afagadas jovens,


Olhos e dentes, pálpebras molhadas,


O seio ousado desafiando o fogo,


Sangue a brilhar nos lábios que se rendem,


Últimos dons e dedos que os defendem


— Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.






E tu, grande alma, acaso um sonho esperas,


Despido, então, das cores de mentira


Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?


Cantarás, quando fores vaporosa?


Tudo flui! Porosa é minha presença;


A sagrada impaciência também morre.






Magra imortalidade negra e de ouro,


Consoladora com horror laureada,


Que seio maternal fazes da morte


— O belo engano, a astúcia mais piedosa!


Quem não conhece e quem não repudia


Esse crânio vazio, o riso eterno?






Pais profundos, cabeças desertadas,


Que sob o peso de tantas pazadas


Terra sois, confundindo os nossos passos!


O verdadeiro verme, irrefutável,


Não para vós existe, sob a lousa


Ele de vida vive e não me deixa.






Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo?


Seu dente oculto está de mim tão próximo


Que qualquer nome, acaso, lhe convém.


Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca:


Minha carne lhe agrada, e até no leito


Vivo de pertencer a este vivente.






Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eleia!


Feriste-me com tua flecha alada,


Que vibra, voa e que não voa nunca.


O som engendra-me e a flecha me mata!


O sol... Ah, que sombra de tartaruga


Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!






Não, não!... De pé! No instante sucessivo!


Rompe, meu corpo, a forma pensativa!


Bebe, meu seio, o vento que renasce!


Esta frescura a exalar-se do mar


A alma devolve-me... Ó, poder salgado!


Corramos à onda para reviver!






Sim, grande mar dotado de delírios,


Pele mosqueada, clâmide furada


Por incontáveis ídolos do sol,


Hidra absoluta, ébria de carne azul,


Que te mordes a fulgurante cauda


Num tumulto ao silêncio parecido,






Ergue-se o vento! Há que tentar viver!


O sopro imenso abre e fecha meu livro,


A vaga em pó saltar ousa das rochas!


Voai, páginas claras, deslumbradas!


Rompei, vagas, rompei contentes o


Teto tranquilo onde bicavam velas!




(Ilustração: entrée du cimitière marin de Bonifacio - foto de Daniel Culsan)


segunda-feira, 20 de abril de 2015

O BURGUÊS E O CRIME, de Carlos Heitor Cony





      



O burguês


Foi durante a noite que, de repente, ele se fez a pergunta:

— Por que não?

A pergunta finalizava a série de pensamentos que haviam começado horas antes, quando estava no teatro. Fora com a mulher assistir a uma peça de sucesso, com artistas de sucesso, estreia recente e também de sucesso. As duas primeiras noites haviam sido dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo Diplomático, às autoridades constituídas e a penetras de diferentes origens e feitios. Na altura da terceira apresentação, ele chegara em casa e a mulher o intimara:

— É o fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a peça, menos nós. Tem de ser hoje.

Uma semana depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir com os bilheteiros e terminar sendo explorado por um cambista que lhe vendeu duas péssimas poltronas com ágio pesado e imerecido.

Suportou, lá dentro — e estoicamente — os primeiros momentos da peça, mas ainda em meio ao primeiro ato desanimou de procurar entender o que se passava no palco. Era um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e amantes, um analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo a tudo, um pai severo e asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.

Quando ia ao cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia um rumo surpreendente assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher nem suspeitava. À saída, ele concordava com a opinião da mulher e conseguiam chegar em casa sãos e salvos. Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a luz, havia sempre a iminência de algo espantoso, o cenário despencar, a roupa da atriz cair, um ator ter enfarte ou esquecer o texto, um fósforo botar fogo no pano de boca. Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta dormência, o pensamento solicitado ora pelo calor, ora pela peça, ora ainda pelo pigarro de um velho na plateia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema — a mulher — o obrigara a usar.

Tivera um dia calmo, calmos eram todos os seus dias. A firma, apesar do sócio que era uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente, a peça já era um motivo.

A frase, dita por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele já contara as pregas do lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se, resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando ouviu alguém falar em morte.

Não, não ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não continha mortes nem ameaças de. Fora uma frase convencional, assim como “não devemos matar a velha de susto”, ou “se a velha souber disso pode morrer”.

Matar ou morrer? Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem em sua vida, mas uma série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria morte, mas sabia que havia gente que morria e gente que matava. Os que morriam eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de avião ou da Central do Brasil. Os que matavam eram os criminosos, os ladrões noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus.

Não era agradável pensar em morrer. Logo retirou este elemento de sua opção e ficou apenas com o matar.

Matar o quê? Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha de susto. Ele não tinha velha nenhuma à vista. A mãe já morrera, as parentas de velhice mais agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa.

Se não adiantava matar uma velha, matar o quê?

Matar por matar, amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar os nervos, ou para provar a si mesmo do que era capaz. Sim, isso justificava um crime. Mas para provar do que era capaz, não bastaria matar — isso qualquer idiota poderia fazer. Tinha de matar e permanecer impune — para poder se olhar no espelho e se sentir redimido, confiante: sou um caráter!

Foi então que surgiu o problema — que seria, nos próximos dias, o seu problema, o único problema realmente sério de sua vida — como obter o crime perfeito? Matar o porteiro de seu edifício, por exemplo, nunca seria um crime perfeito. Mais cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do prédio e ele acabaria confessando. Para matar impunemente teria de escolher um comerciário de Brás de Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da noite, para o Leblon.

Mas seria estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente. O crime perfeito, sem lucro pessoal, não lhe interessava, aliás, pensando bem, agora que o primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava.

Teve coragem para o comentário.

— Uma peça muito profunda!

A mulher não concordou nem discordou. Apenas disse:

— Vamos esperar pelo resto. Acho que vai sair um escândalo!

Foi a vez de ele concordar, embora não suspeitasse que tipo de escândalo estava prestes a estourar. Saiu para o hall, circulou entre estranhos, bebeu um gole d’água gelada, sem sede mesmo, só para passar o tempo.

Durante o segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu no palco um pastor protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo — e ele começou a pensar em como seria sua vida — e como seria ele mesmo — se não tivesse voz.

Chegou à conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão de vida se, por acaso, ficasse sem voz. Era-lhe coisa inútil, espécie de adorno. Para ganhar dinheiro e dormir com a mulher — a voz era dispensável, uma responsabilidade incômoda.

Ao saírem, cumprimentou com a cabeça alguns conhecidos e fez a viagem de volta imaginando-se mudo. Conseguiu chegar em casa sem ter pronunciado uma só palavra — o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam de algum lugar, a mulher é quem falava, ele apenas ouvia.

A grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta:

— Suspenda o seu vidro, Ema.

Àquela noite, engoliu em seco e esperou que a mulher saísse para, então inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já bombardeada por sedimentações calcáreas que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até fechar o vidro.

Na cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto Marinha como o Exército e a Aeronáutica — felizmente para ele e para Pátria — gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora.

Geralmente, caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias ou de vinte em vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte dela.

Quando percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo. Virou para o lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo:

— “Se não fosse a polícia, eu matava!”


O crime


A firma era próspera e prosperava, apesar do sócio: um belo homem excelente caráter, pai amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável foi o mínimo que um orador, à beira do túmulo, disse dele, no dia do enterro: “Colhidos pela brutalidade de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o excelente caráter, o pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável que acabamos de perder!”.

No mesmo cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos mesma hora, Ema foi sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram, com suas correntes e más vontades, e o marido chorou, apesar de tudo, segundo afirmaram alguns poucos presentes que ouviram os soluços de um enterro e o discurso do outro.

À noite, apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados. Conforme afirmaram mais tarde, foram à casa dele unicamente para que Figueiredo “não fizesse uma besteira”.

Apesar da presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma. Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno. O que ia de encontro aos pensamentos gerais, embora os amigos protestassem, deixa disso, Figueiredo, deixa disso!

No dia seguinte ao do enterro, apareceu mal vestido e barbado para iniciar as providências legais das sucessões, pois sucedia ao sócio no controle da firma e sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos, o sogro lhe havia deixado apólices e casas em Vila Isabel.

Estava rico e livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher. E para ficar livre dos amigos, começou a cultivar mau hálito, o que impedia que os mais importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o escândalo da dupla morte, revelou-se o outro escândalo, o da fortuna que lhe chegava às mãos através de tão rudes eventos.

Rosnavam que, se não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência — apesar do ódio que Figueiredo passou a provocar pela fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade que lhe chegara à vida. Ele mesmo, com o tempo, começou a esquecer, a duvidar do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça íntima de Ema, suspirou e sentiu saudades. Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que lhe surgiu, e embora não houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como convinha a um homem que sofrera tanto:

— “Aquela cachorra!”

Porém já cinco anos eram passados da morte da cachorra e do cachorro. Cinco anos daquela tragédia que enlutou a família cristã, rudemente golpeada pelo escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem assunto escreveram sobre o pacto de morte tão romanticamente previsto e executado, foram ouvidas opiniões de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes sobre o caso. Cinco dias depois já ninguém falava no assunto e cinco anos depois, só mesmo ele, e às vezes, pensava em tudo, detalhadamente, como num passo heroico de sua vida.

Chegara aquela noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em seu quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de Criminalística e cuja malignidade foi devidamente provada.

A perícia, com a ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São Paulo, voltaria na noite seguinte. Tão logo se mandou pela estrada, Ema chamara o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do coito recente. O imperscrutável aconteceu — e aqui o relatório policial foi respeitoso, ao afirmar que, “após manterem relações de fundo sexual, os dois amantes decidiram pôr fim à vida através de um pacto de morte que foi imediatamente cumprido”.

Anselmo preparou o veneno, Ema bebeu estoicamente, sem repugnância pela morte ou pelo gosto de amêndoas que saía do copo. E Anselmo, logo em seguida, ingeriu o restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram — e foi assim que, à noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram.

No 18° Distrito Policial o pacto de morte foi classificado como “Ocorrência nº. 53.697″ e arquivado após despacho do delegado-auxiliar, cumpridas as formalidades legais e pagas as taxas do costume.


O crime e o burguês


— “Se não fosse a polícia eu matava!”.

Com essa frase ele adormecera, uma semana antes da tragédia que abalou a sociedade cristã e a sua vida. Viera do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na vida, tudo lhe ia bem, e essa inexistência de um problema dava-lhe a sensação de burrice, de imprestabilidade.

Desde que pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia à rotina, à qual sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua vontade. No trabalho, em casa, andando pelas ruas, tinha agora uma ordem fixa de pensamentos e de energias.

Certa tarde, regressando da cidade, parou no Flamengo. Entrou num prédio, tomou o elevador, fechou os olhos e apertou um botão: qualquer andar em que o elevador parasse, serviria. Parou no sétimo andar. Havia duas portas à frente, apertou a campainha do 701. A velhinha veio abrir e ele quase chegou ao crime: levou as duas mãos para a frente em direção ao gasganete da velha. Mas deu-lhe uma tremedeira nas pernas e ele recuou. O elevador ficara parado no andar e ele pôde fugir. Poderia ter deixado a velha morta, ninguém teria visto nada. Mas deixou a velha apenas surpreendida e irritada.

Passou uma noite de cão, reprovando-se a covardia. Tivera tudo à mão, a velha, o elevador, não esbarrara com ninguém, nunca entrara naquele prédio. A polícia procuraria pelos parentes da velha, os desafetos, os fornecedores, as ex-empregadas, os vizinhos. Não tivera ao alcance das mãos apenas o gasganete da velha: tivera nas mãos o crime perfeito — e o desperdiçara, sem lucro algum.

E então tremeu, emocionado e surpreso: acabara de descobrir o crime verdadeiramente perfeito: O LUCRO. Matar sem lucro, como no caso da velha, seria uma brincadeira idiota. Tinha de matar com muito lucro, com tanto lucro que ficasse óbvia a lucrabilidade do crime. E para tornar patente essa lucrabilidade, tinha de escolher uma vítima que fosse patentemente próxima de seus interesses. Viu a mulher dormindo a seu lado.

— “Se mato esta mulher — a minha mulher — o primeiro e necessário suspeito serei eu mesmo”.

Riu, com a facilidade do problema. Tão fácil era o problema que resolveu exagerar. Não mataria apenas uma pessoa, mas duas. E, na escala de importância e de lucro, a segunda pessoa que lhe apareceu foi o sócio, o qual hipotecara, há tempos, a parte dele, para levar a mulher aos Estados Unidos, curar um tumor no colo do útero. Ele emprestara o dinheiro e ficara com as hipotecas do sócio. Se matasse o sócio, a firma ficaria inteiramente em suas mãos, era um lucro evidente, agressivo.

Dois dias depois, avisou à mulher que ia a São Paulo, viagem rápida. Saiu à noite, subiu em direção a Teresópolis. Deixou o carro numa rua que lhe pareceu deserta, tomou um ônibus e antes da meia-noite estava novamente em casa. Entrou pela garagem, como o fazia todas as noites, mas sem o carro, e por causa disso, não teve necessidade de acordar o garagista.

Surpreendeu a esposa:

— Uê? Você já voltou?

— Você está vendo.

Explicou que o carro enguiçara no quilômetro 97 da Rio — São Paulo, tomara um ônibus, amanhã voltaria ao local, com um mecânico. Foram dormir e ele procurou a mulher. Dessa vez, pela primeira vez em muitos anos, concentrou-se no esforço de fazê-la gozar — era parte do plano. Depois que ela estremeceu e gritou coisas indecentes — sinal que finalmente gozara — ele conseguiu, também, um escasso prazer. Mas logo levou a mão ao peito:

— Ema, o enfarte!

Caiu para o lado, olhos arregalados, bufando grosso. Ema deu um pulo da cama, nua.

— Vou buscar a coramina!

— Não! Chame o Anselmo, preciso falar com ele, é urgente, mas diga a ele para não contar a ninguém, para vir já! As hipotecas dele! Ele pode perder tudo!

Ema foi ao telefone, acordou Anselmo:

— O Figueiredo teve um enfarte. Venha correndo, mas não diga nada a ninguém. As hipotecas!

A mulher de Anselmo perguntou quem chamava o marido dela àquela hora da noite, mas Anselmo, apesar de esposo exemplar e pai amantíssimo, deu um grito:

— Vá à merda, mulher. Depois eu explico!

Ema foi à cozinha, apanhou um copo d’água. Quando voltou ao quarto, pingando gotas de coramina no copo, encontrou o marido em pé, com um copo na mão.

— Uê? Já ficou bom?

Figueiredo avançou para ela.

— Beba isso!

— Mas…

— Beba, sua idiota!

Era a primeira vez, em dezenove anos de casados, que se dava o nome ao boi naquela casa. Ema apanhou o copo, sentiu um cheiro estranho. Bebeu um gole e ainda teve tempo de perguntar:

— Para que é isso?

— É um afrodisíaco. Faz a gente gozar mais ainda.

Mas Ema não ouviu que ia gozar mais ainda. Caiu próximo à cama e Figueiredo arrumou-a o melhor que pôde. Mais alguns minutos, foi à porta da frente, esperar pelo sócio. Viu o elevador subir, a luzinha crescendo, crescendo. Anselmo saiu do elevador e deu com ele na porta.

— E o enfarte?

— Entre depressa!

Anselmo não gostou. A mulher dele ia falar o resto da vida contra aquela saída abrupta, misteriosa, ia ser o diabo explicar.

— Brincadeira tem hora! Cadê o enfarte?

Figueiredo estendeu-lhe o copo.

— Prove essa droga! Veja que gosto tem e se concorda comigo.

Anselmo provou, sentiu um gosto adocicado de amêndoas, mas não teve tempo de concordar. Figueiredo arrastou-o ao quarto, tirou-lhe a roupa, deitou-o ao lado de Ema, a mão estendida para fora do leito. Pegou no copo, colocou-o na mão de Anselmo, deixou que o copo se partisse no chão.

Apagou as luzes, deixando apenas um pequeno abajur aceso. Ganhou a rua, atravessando a garagem do prédio, o garagista tinha sono de pedra, quando chegava tarde, com o carro, tinha de esmurrar a campainha para que o homem lhe abrisse a porta dos carros.

Andou pela cidade, esperando o primeiro ônibus para Teresópolis. Deixara impressões no copo, nas roupas, em todos os lugares. Mas o lucro era tão dele que invalidava a suspeita. Deixara atrás de si um crime que se explicava por si mesmo.

Tomou o ônibus para Teresópolis. Com o sereno da noite, o carro ficara melado como um bicho. Antes de ligar o motor, abriu o painel de instrumentos e desligou o cabo do velocímetro. Desceu a serra, almoçou um frango assado à beira da estrada, atingiu a Avenida Brasil e cortou em direção oposta à cidade. Andou mais alguns quilômetros e pegou a Rio — São Paulo. Enfrentou as retas iniciais, atingiu a serra mas logo fez um contorno e embicou de volta ao Rio. Parou no posto de gasolina para abastecer o carro.

— Tem mecânico aí?

O mulato de maus dentes surgiu das entranhas de uma camioneta.

— É o cabo do velocímetro. Acho que houve alguma coisa com ele.

Deu boa gorjeta ao mecânico e ao homem do posto que lhe enchera o tanque, tinha agora duas pessoas que atestariam que ele regressava de São Paulo.

Quando arrancou, os dois homens o chamaram de doutor:

— Boa viagem, doutor!

Chegou em casa, após uma boa viagem, e viu o quadro que logo os policiais examinaram, os jornais noticiaram e com o qual ele lucrou.


Moral


O crime, para o burguês, só não compensa quando a polícia está contra.




(Babilônia, Babilônia) 




(Ilustração: Reuben Negron - dirty dirty love)