segunda-feira, 29 de novembro de 2021

OS DOIS NAVIOS NEGREIROS, de Gilberto Cunha

 



Dois escritores, Heinrich Heine (1797-1856) e Castro Alves (1847-1871), e dois poemas com o mesmo título, Das Sklavenschiff e O Navio Negreiro, e a mesma temática, o tráfico de escravos para o Brasil; mas não um caso de plágio. Eis um fato literário instigante, para os chamados estudos de literatura comparada, que nos permite, mais do que tirar conclusões apressadas, conhecer esses autores, suas motivações e suas obras, e perceber que, apesar do tempo transcorrido, desde que foram escritas, por mais incrível que isso possa parecer, não soam desatualizadas e nem destituídas de significado.

Há divergências e convergências nos poemas de Heinrich Heine e de Castro Alves, Divergem no estilo de linguagem e convergem no tema. Fora isso, nada mais os une, mesmo sendo enquadrados como poetas românticos e terem retratado em versos, com maestria inigualável, a exploração do homem pelo homem.

Heinrich Heine é considerado um poeta marginal entre os românticos. Viveu dividido entre a Alemanha e a França e os ideais da revolução de 1789. Era visto como alemão entre os franceses, como judeu entre os cristãos e como convertido entre os judeus. Radicou-se, definitivamente, em Paris, em 1831, e virou referência para os poetas ocidentais na segunda metade do século XIX. Teve seus poemas musicados por Schumann e Schubert, entre outros notáveis. Foi amigo de Karl Marx e, dizem, teria saído da sua lavra a expressão que qualifica a religião como ”ópio do povo” e a clássica frase “aqueles que queimam livros, acabam, cedo ou tarde, por queimar homens”. E, por ironia do destino, entre os livros queimados pelos nazistas, em 1933, na Praça da Ópera, em Berlim, estavam as obras de Heine. Morreu em Paris, em 1856.

Castro Alves que, apesar de ter morrido jovem, aos 24 anos de idade, pode ser considerado um poeta que arrebatava plateias com a sua paixão pela causa do abolicionismo da escravatura no Brasil e pelo lirismo. Era filho de família abastada e fazia parte de uma juventude que havia recebido formação jurídica mais nos padrões franceses do que portugueses, tendo Paris em vez de Coimbra como modelo, além de ter sido educada para usar a poesia como elemento de retórica da persuasão. O seu lado lírico, manifesto na paixão por Eugênia Câmara, foi expresso nos versos do poema Boa Noite: “Boa noite!... e tu dizes – Boa noite. / Mas não diga assim por entre beijos.../ Mas não me digas descobrindo o peito, /- Mar de amor onde vagam meus desejos. (...)”. E o lado social em Vozes d’África e O Navio Negreiro, por exemplo.

É fato histórico que o tráfico de escravos para o Brasil serviu de inspiração de cunho político para Heine e Castro Alves. Também é inquestionável que Castro Alves, quando publicou o seu poema, em1968, apesar de distanciado no tempo, uma vez que o último desembarque clandestino de escravos para o País data de 1855, conhecia a obra de Heine, original em alemão de 1854, especialmente a versão francesa.

Heine enfatiza a perspectiva comercial do capitão do navio e do médico que se preocupam com a rentabilidade da mercadoria transportada. Usa expressões que chocam pela crueza e cinismo, ao concluírem que os negros devem se divertir sob a batuta do chicote, para reduzir a mortalidade por tristeza e melancolia. Abjeta e repugnante é a figura do capitão, de mãos postas, pedindo a Deus: “Poupa suas vidas pelo sangue de Cristo, / que por todos nós morreu! / Pois se não me sobram trezentas peças,/ todo meu negócio se perdeu”.

Castro Alves, ao seu estilo, com expressividade e eloquência, produziu um discurso libertário, após retratar a cena da dança dos negros no convés do navio: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura...se é verdade/ Tanto horror perante os céus.../; Ó mar! Por que não apagas/ Co’a esponja de tuas vagas/De teu manto esse borrão?.../ Astros! Noite! Tempestades! / Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão! (...)

Castro Alves é genial, mas Heine, pela crítica social mais densa e pela linguagem irônica, soa mais contemporâneo do que o nosso poeta condoreiro.



(Ilustração: Cândido Portinari - Navio Negreiro – 1950)





sexta-feira, 26 de novembro de 2021

DAS SKLAVENSCHIFF / O NAVIO NEGREIRO, de Heinrich Heine





I



Der Superkargo Mynheer van Koek

Sitzt rechnend in seiner Kajüte;

Er kalkuliert der Ladung Betrag

Und die probabeln Profite.



»Der Gummi ist gut, der Pfeffer ist gut,

Dreihundert Säcke und Fässer;

Ich habe Goldstaub und Elfenbein -

Die schwarze Ware ist besser.



Sechshundert Neger tauschte ich ein

Spottwohlfeil am Senegalflusse.

Das Fleisch ist hart, die Sehnen sind stramm,

Wie Eisen vom besten Gusse.



Ich hab zum Tausche Branntewein,

Glasperlen und Stahlzeug gegeben;

Gewinne daran achthundert Prozent,

Bleibt mir die Hälfte am Leben.



Bleiben mir Neger dreihundert nur

Im Hafen von Rio-Janeiro,

Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück

Das Haus Gonzales Perreiro.«



Da plötzlich wird Mynheer van Koek

Aus seinen Gedanken gerissen;

Der Schiffschirurgius tritt herein,

Der Doktor van der Smissen.



Das ist eine klapperdürre Figur,

Die Nase voll roter Warzen -

»Nun, Wasserfeldscherer«, ruft van Koek,

»Wie geht's meinen lieben Schwarzen?«



Der Doktor dankt der Nachfrage und spricht:

»Ich bin zu melden gekommen,

Daß heute nacht die Sterblichkeit

Bedeutend zugenommen.



Im Durchschnitt starben täglich zwei,

Doch heute starben sieben,

Vier Männer, drei Frauen - Ich hab den Verlust

Sogleich in die Kladde geschrieben.



Ich inspizierte die Leichen genau;

Denn diese Schelme stellen

Sich manchmal tot, damit man sie

Hinabwirft in die Wellen.



Ich nahm den Toten die Eisen ab;

Und wie ich gewöhnlich tue,

Ich ließ die Leichen werfen ins Meer

Des Morgens in der Fruhe.



Es schossen alsbald hervor aus der Flut

Haifische, ganze Heere,

Sie lieben so sehr das Negerfleisch;

Das sind meine Pensionäre.



Sie folgten unseres Schiffes Spur,

Seit wir verlassen die Küste;

Die Bestien wittern den Leichengeruch

Mit schnupperndem Fraßgelüste.



Es ist possierlich anzusehn,

Wie sie nach den Toten schnappen!

Die faßt den Kopf, die faßt das Bein,

Die andern schlucken die Lappen.



Ist alles verschlungen, dann tummeln sie sich

Vergnügt um des Schiffes Planken

Und glotzen mich an, als wollten sie

Sich für das Frühstück bedanken.«



Doch seufzend fällt ihm in die Red'

Van Koek: »Wie kann ich lindern

Das Übel? wie kann ich die Progression

Der Sterblichkeit verhindern?«



Der Doktor erwidert: »Durch eigne Schuld

Sind viele Schwarze gestorben;

Ihr schlechter Odem hat die Luft

Im Schiffsraum so sehr verdorben.



Auch starben viele durch Melancholie,

Dieweil sie sich tödlich langweilen;

Durch etwas Luft, Musik und Tanz

Läßt sich die Krankheit heilen.«



Da ruft van Koek: »Ein guter Rat!

Mein teurer Wasserfeldscherer

Ist klug wie Aristoteles,

Des Alexanders Lehrer.



Der Präsident der Sozietät

Der Tulpenveredlung im Delfte

Ist sehr gescheit, doch hat er nicht

Von Eurem Verstande die Hälfte.



Musik! Musik! Die Schwarzen soll'n

Hier auf dem Verdecke tanzen.

Und wer sich beim Hopsen nicht amüsiert,

Den soll die Peitsche kuranzen.«



II



Hoch aus dem blauen Himmelszelt

Viel tausend Sterne schauen,

Sehnsüchtig glänzend, groß und klug,

Wie Augen von schönen Frauen.



Sie blicken hinunter in das Meer,

Das weithin überzogen

Mit phosphorstrahlendem Purpurduft;

Wollüstig girren die Wogen.



Kein Segel flattert am Sklavenschiff,

Es liegt wie abgetakelt;

Doch schimmern Laternen auf dem Verdeck,

Wo Tanzmusik spektakelt.



Die Fiedel streicht der Steuermann,

Der Koch, der spielt die Flöte,

Ein Schiffsjung' schlägt die Trommel dazu,

Der Doktor bläst die Trompete.



Wohl hundert Neger, Männer und Fraun,

Sie jauchzen und hopsen und kreisen

Wie toll herum; bei jedem Sprung

Taktmäßig klirren die Eisen.



Sie stampfen den Boden mit tobender Lust,

Und manche schwarze Schöne

Umschlinge wollüstig den nackten Genoß -

Dazwischen ächzende Töne.



Der Büttel ist Maître des plaisirs,

Und hat mit Peitschenhieben

Die lässigen Tänzer stimuliert,

Zum Frohsinn angetrieben.



Und Dideldumdei und Schnedderedeng!

Der Lärm lockt aus den Tiefen

Die Ungetüme der Wasserwelt,

Die dort blödsinnig schliefen.



Schlaftrunken kommen geschwommen heran

Haifische, viele hundert;

Sie glotzen nach dem Schiff hinauf,

Sie sind verdutzt, verwundert.



Sie merken, daß die Frühstückstund'

Noch nicht gekommen, und gähnen,

Aufsperrend den Rachen; die Kiefer sind

Bepflanzt mit Sägezähnen.



Und Dideldumdei und Schnedderedeng -

Es nehmen kein Ende die Tänze.

Die Haifische beißen vor Ungeduld

Sich selber in die Schwänze.



Ich glaube, sie lieben nicht die Musik,

Wie viele von ihrem Gelichter.

»Trau keiner Bestie, die nicht liebt

Musik!« sagt Albions großer Dichter.



Und Schnedderedeng und Dideldumdei -

Die Tänze nehmen kein Ende.

Am Fockmast steht Mynheer van Koek

Und faltet betend die Hände:



»Um Christi willen verschone, o Herr,

Das Leben der schwarzen Sünder!

Erzürnten sie dich, so weißt du ja,

Sie sind so dumm wie die Rinder.



Verschone ihr Leben um Christi will'n,

Der für uns alle gestorben!

Denn bleiben mir nicht dreihundert Stück,

So ist mein Geschäft verdorben.«



Tradução de Augusto Meyer:



O sobrecargo Mynheer van Koek

Calcula no seu camarote

As rendas prováveis da carga,

Lucro e perda em cada lote.



"Borracha, pimenta, marfim

E ouro em pó... Resumindo, eu digo:

Mercadoria não me falta,

Mas negro é o melhor artigo.



Seiscentas peças barganhei

-- Que pechincha! -- no Senegal;

A carne é rija, os músculos de aço,

Boa liga do melhor metal.



Em troca dei só aguardente,

Contas, latão -- um peso morto!

Eu ganho oitocentos por cento

Se a metade chegar ao porto.



Se chegarem trezentos negros

Ao porto do Rio Janeiro,

Pagará cem ducados por peça

A casa Gonzales Perreiro."



De súbito, Mynheer van Koek

Voltou-se, ao ouvir um rumor;

É o cirurgião de bordo que entra,

É van der Smissen, o doutor.



Que focinheira verrugenta!

Que magreza desengonçada!

"E então, seo doutor, diz van Koek,

Como vai a minha negrada?'



Depois dos rapapés, o médico,

Sem mais prolilóquios, relatando"

"A contar desta noite, observa,

Os óbitos vêm aumentando.



Em média eram só dois por dia,

Mas hoje faleceram sete:

Quatro machos, três fêmeas, perda

Que arrolei no meu balancete.



Examinei logo os cadáveres,

Pois o negro desatinado

Se finge de morto, esperando,

Lançado ao mar, fugir a nado!



Seguindo à risca as instruções,

Ao primeiro clarear da aurora,

Mandei retirar os grilhões

E -- carga ao mar! -- sem mais demora.



Os tubarões, meus pensionistas,

Acudiram todos, em bando.

Carne de negro é manjar fino

Que aparece de vez em quando.



Mal nos afastamos da costa,

Rastreiam o barco, na esteira,

Farejando de muito longe

Os eflúvios da pestiqueira.



Edificante é o espetáculo,

Pois o tubarão narigudo

Não escolhe cabeça ou perna

E abocanha, devora tudo!



Como se opíparo banquete

Fosse um simples aperitivo,

Põe-se a rondar, pedindo mais,

Sempre à espreita e de olho vivo!"



Mas o inquieto van Koek lhe corta

O relato em meio... Como há de

Remediar-se a perda, pergunta,

Combatendo a letalidade?



Responde o doutor: "Natural

É a causa; os negros encerrados,

A catinga, a inhaca, o bodum

Deixam os ares empestados.



Muitos, além disso, definham

De banzo ou de melancolia;

São males que talvez se curem

Com dança, música e folia."



"O conselho é de mestre!", exclama

Van Koek. O preclaro doutor

É perspicaz como Aristóteles,

Que de Alexandre era mentor!



Eu, presidente dos Amigos

Da Tulipa em Delft, declaro

Que, embora sabido, ao seu lado,

Não passo de aprendiz, meu caro.



Música! Música! A negrada

Suba logo para o convés!

Por gosto ou ao som da chibata

Batucará no bate-pés!"



O céu estrelado é mais nítido

Lá na translucidez da altura.

Há um espreitar de olhos curiosos

Em cada estrela que fulgura.



Eles vieram ver de mais perto

No mar alto, de quando em quando,

O fosforear das ardentias,

Quebra a onda, em marulho brando.



Atrita a rabeca o piloto,

Sopra na flauta o cozinheiro,

Zabumba o grumete no bombo

E o cirurgião é o corneteiro.



A negrada, machos e fêmeas,

Aos pulos, aos gritos, aos trancos,

Gira e regira: a cada passo,

Os grilhões ritmam os arrancos



E saltam, volteiam com fúria incontida,

Mais de uma linda cativa

Lúbrica, enlaça o par desnudo --

Há gemidos, na roda vida.



O beleguim é o maitres des plaisirs,

É ele quem manda e desmanda;

Instiga o remisso a vergalho

E rege a grito a sarabanda.



E taratatá e denrendendém!

O saracoteio insano

Desperta os monstros que dormem nas ondas

Ao profundo embalo do oceano.



Tubarões, ainda tontos de sono,

Vêm vindo, de todos os lados;

Querem ver, querem ver para crer,

Estão de olhos arregalados.



Mas percebem que o desjejum

Longe está e logo, impacientes,

Num bocejo de tédio e fome

Arreganham a serra dos dentes.



E taratatá e denrendendém!

Não tem fim a coreia estranha.

Mais de um tubarão esfaimado

Sua própria cauda abocanha.



Eles não querem saber de música

Como outros do mesmo jaez.

"Desconfia de quem não gosta

De música", disse o poeta inglês.



E denrendenrém e taratá --

A estranha festança não tem fim.

No mastro do traquete, van Koek,

De mãos postas, rezava assim:



"Meu Deus, conserva os meus negros,

Poupa-lhes a vida, sem mais!

Pecaram, Senhor, mas considera

Que afinal não passam de animais.



Poupa-lhes a vida, pensa no teu Filho,

Que ele por todos nós sacrificou-se!

Pois, se não me sobrarem trezentas peças,

Meu rico negocinho acabou-se!"



(Ilustração: Theodor Hosemann: Das Sklavenschiff, 1857)


terça-feira, 23 de novembro de 2021

MACUNAÍMA, de Mário de Andrade

 



No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

– Ai! que preguiça!... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns dizque habitando a água-doce por lá. No mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacororô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto era sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam, muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma choramingou dia inteiro. De-noite continuou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê, que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na entrada do furo. A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato. A moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito.

Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela... Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já chegava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizilou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará aguentou a sova sem falar um isto.

Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra todos.

No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer armadilha e enxergando o menino tristinho falou:

– Bom-dia, coraçãozinho dos outros.

Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.

– Não quer falar comigo, é?

– Estou de mal.

– Por causa?

Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino. A moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda pra ele e assoprasse bem nela fumaça de petum.

Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixasse o cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia por causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra que “estava às ordens”. E foi no mato com o piá nas costas.

Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. Nem bem voltaram do passeio, tardinha, Jiguê já chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira não trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará aguentou a coça com paciência.

No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores, Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!... Porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.

Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e voltou falando pra todos que de-fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. Quando Jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça. Ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás da piranheira. Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca procurou a moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem ver. Então se escutou um risinho e Macunaíma tomou com uma gusparada no peito, era a moça. Macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação tatuando o corpo dele embaixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo, uivando de prazer.

E brincaram mais outra vez.

Já a estrela Papaceia brilhava no céu quando a moça voltou parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê desconfiando seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.

Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.



(Macunaíma, o herói sem nenhum caráter)



(Ilustração: Sebastião Miguel - primeiro passeio de Macunaíma com Sofará)



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

MONSIEUR MONOD NO SABE CANTAR / MONSIEUR MONOD NÃO SABE CANTAR, de Blanca Varela

 




querido mío

te recuerdo como la mejor canción

esa apoteosis de gallos y estrellas que ya no eres

que ya no soy que ya no seremos

y sin embargo muy bien sabemos ambos

que hablo por la boca pintada del silencio

con agonía de mosca

al final del verano

y por todas las puertas mal cerradas

conjurando o llamando ese viento alevoso de la memoria

ese disco rayado antes de usarse

teñido según el humor del tiempo

y sus viejas enfermedades

o de rojo

o de negro

como un rey en desgracia frente al espejo

el día de la víspera

y mañana y pasado y siempre



noche que te precipitas

(así debe decir la canción)

cargada de presagios

perra insaciable ( un peu fort)

madre espléndida (plus doux)

paridora y descalza siempre

para no ser oída por el necio que en ti cree

para mejor aplastar el corazón

del desvelado

que se atreve a oír el arrastrado paso

de la vida

a la muerte

un cuesco de zancudo un torrente de plumas

una tempestad en un vaso de vino

un tango



el orden altera el producto

error del maquinista

podrida técnica seguir viviendo tu historia

al revés como en el cine

un sueño grueso

y misterioso que se adelgaza

the end is the beginning

una lucecita vacilante como la esperanza

color clara de huevo

con olor a pescado y mala leche

oscura boca de lobo que te lleva

de Cluny al Parque Salazar

tapiz rodante tan veloz y tan negro

que ya no sabes

si eres o te haces el vivo

o el muerto

y sí una flor de hierro

como un último bocado torcido y sucio y lento

para mejor devorarte



querido mío

adoro todo lo que no es mío

tú por ejemplo

con tu piel de asno sobre el alma

y esas alas de cera que te regalé

y que jamás te atreviste a usar

no sabes cómo me arrepiento de mis virtudes

ya no sé qué hacer con mi colección de ganzúas

y mentiras

con mi indecencia de niño que debe terminar este cuento

ahora ya es tarde

porque el recuerdo como las canciones

la peor la que quieras la única

no resiste otra página en blanco

y no tiene sentido que yo esté aquí

destruyendo

lo que no existe



querido mío

a pesar de eso

todo sigue igual

el cosquilleo filosófico después de la ducha

el café frío el cigarrillo amargo el Cieno Verde

en el Montecarlo

sigue apta para todos la vida perdurable

intacta la estupidez de las nubes

intacta la obscenidad de los geranios

intacta la vergüenza del ajo

los gorrioncitos cagándose divinamente en pleno cielo

de abril

Mandrake criando conejos en algún círculo

del infierno

y siempre la patita de cangrejo atrapada

en la trampa del ser

o del no ser

o de no quiero esto sino lo otro

tú sabes

esas cosas que nos suceden

y que deben olvidarse para que existan

verbigracia la mano con alas

y sin mano

la historia del canguro -aquella de la bolsa o la vida-

o la del capitán encerrado en la botella

para siempre vacía

y el vientre vacío pero con alas

y sin vientre

tú sabes

la pasión la obsesión

la poesía la prosa

el sexo el éxito

o viceversa

el vacío congénito

el huevecillo moteado

entre millones y millones de huevecillos moteados

tú y yo

you and me

toi et moi

tea for two en la inmensidad del silencio

en el mar intemporal

en el horizonte de la historia

porque ácido ribonucleico somos

pero ácido ribonucleico enamorado siempre



Tradução de Angélica Freitas:



meu querido

me lembro de ti como a melhor canção

essa apoteose de galos e estrelas que já não és

que já não sou que já não seremos

e contudo sabemos muito bem ambos

que falo pela boca pintada do silêncio

com agonia de mosca

no final do verão

e por todas as portas mal fechadas

conjurando ou chamando esse vento aleivoso da memória

esse disco arranhado antes de usar

tingido segundo o humor do tempo

e suas velhas doenças

ou de vermelho

ou de preto

como um rei em desgraça na frente do espelho

na véspera

e amanhã e depois de amanhã e sempre



noite que te precipitas

(assim deveria dizer a canção)

carregada de presságios

cadela insaciável (un peu fort)

mãe esplêndida (plus doux)

parideira e descalça sempre

para não ser escutada pelo néscio que em ti crê

para melhor esmagar o coração

do desvelado

que se atreve a ouvir o passo arrastado

da vida

da morte

uma casca de mosquito uma torrente de plumas

uma tempestade num copo de vinho

um tango



a ordem altera o produto

erro do maquinista

podre técnica continuar vivendo tua história

ao contrário como no cinema

um sonho grosso

e misterioso que se adelgaça

the end is the beginning

uma luzinha vacilante como a esperança

cor de clara de ovo

com cheiro de peixe e más intenções

obscura boca-de-lobo que te leva

de Cluny ao Parque Salazar

esteira rolante tão veloz e tão negra

que já não sabes

se és ou te fazes de vivo

ou de morto

e sim uma flor de ferro

como um último bocado torto e sujo e lento

para melhor devorar-te



meu querido

adoro tudo o que não é meu

tu por exemplo

com tua pele de asno sobre a alma

e essas asas de cera que te dei

e que jamais te atreveste a usar

não sabes como me arrependo de minhas virtudes

já não sei o que fazer com a minha coleção de chaves falsas

e mentiras

com minha indecência de menino que deve terminar este conto

agora já é tarde

porque a recordação como as canções

a pior a que quiseres a única

não resiste a outra página em branco

e não tem sentido que eu esteja aqui

destruindo

o que não existe



meu querido

apesar disso

tudo continua igual

o arrepio filosófico depois do chuveiro

o café frio o cigarro amargo O Lodo Verde

no Montecarlo

continua livre para todos os públicos a vida perdurável

intacta a estupidez das nuvens

intacta a obscenidade dos gerânios

intacta a vergonha do alho

os pardaizinhos cagando divinamente em pleno céu

de abril

Mandrake criando coelhos em algum círculo

do inferno

e sempre a patinha de caranguejo presa

na trapaça do ser

ou do não ser

ou de não quero isto mas aquilo

tu sabes

essas coisas que nos acontecem

e que devem ser esquecidas para que existam

por exemplo a mão com asas

e sem mão

a história do canguru – aquela da bolsa ou a vida –

ou a do capitão preso na garrafa

para sempre vazia

e o ventre vazio mas com asas

e sem ventre

tu sabes

a paixão a obsessão

a poesia a prosa

o sexo o êxito

ou vice-versa

o vazio congênito

o ovinho pintado

entre milhões e milhões de ovinhos pintados

tu e eu

you and me

toi and moi

tea for two na imensidão do silêncio

no mar intemporal

no horizonte da história

porque ácido ribonucleico somos

mas ácido ribonucleico apaixonado sempre





(Ilustração: Javier Marín)



domingo, 14 de novembro de 2021

A MULHER É TAMBÉM PARCEIRA DA SERPENTE, de Pauline Chiziane




A enfermeira termina o trabalho, aproxima-se da Emelina e diz: vem. E ela obedece como um cordeiro. E caminham juntas em silêncio e sem pressa. Chegam ao pé de uma sombra, podemos sentar-nos aqui. Ajoelham-se em simultâneo e poisam o traseiro sobre a erva. Danila dá um pulo e leva a mão esquerda para o traseiro esquerdo, esfrega-o com violência, ai, meu Deus, que ataque feroz, espero que não seja picada de cobra mamba. As duas mulheres agitam as cabeças em todas as direcções, a maldita deve andar por perto. A criança nas costas da mãe diverte-se e lança gargalhadas sonoras. Logo a seguir as duas mulheres fazem coro ao riso da criança, qual mamba, qual carapuça. No reino vegetal há seres insignificantes, rasteirinhos, que, como os homens, lutam pelo direito de viver. Defendem o seu território com dignidade e valentia, o mundo é para aqueles que lutam. A plantinha espinhosa sorri vitoriosa. Não é uma, são várias e estão espalhadas por rodo o lado. Danila baixa a mão e colhe uma delas por vingança. Olha-a com ternura e diz: és o herói anónimo do mundo dos verdes. Atira-a ao chão, despreocupada, o traseiro ainda arde. Convida a Emelina a procurar outro poiso na mesma sombra, e acomodam-se no tapete suave de erva dócil e submissa.

Agora as duas mulheres estão sentadas frente a frente e o silêncio abate-se sobre elas. Os olhos são a arma com que se debatem no duelo de fêmeas, uma tentando cerrar as cortinas do seu mundo, outra procurando rasgar o véu da mesma muralha. Identificam-se. São ambas negras e mães e a diferença entre elas reside nas fronteiras do destino. Nasceram na mesma terra que aquela árvore, aquela sombra, aquelas perdizes que cantam ao longe.

De repente, Emelina perde a rigidez de há momentos. As pernas e os braços agitam-se em movimento desordenado, frenético. Tremem os lábios gretados de cieiro e fome. Tremem os maxilares até os dentes se abaterem, se triturarem. O rosto desfaz-se das pregas e as chamas dos olhos afundam-se na fluidez das lágrimas. Emelina não é louca nem tonta, ó gente, sente necessidade de ouvidos que a escutem e de palavras que a consolem. A mente de Danila é uma máquina em movimento acelerado. Procura descobrir palavras especiais para um diálogo especial. Descerra os lábios e da garganta não brota uma só palavra. Volta a cerrá-los simulando um suave bocejo.

Perdizes e pombos cantam nos horizontes do mundo. Canto vulgar, tão igual a todos os outros, mas tão amigo, porque preenche o vazio das almas. A criança de Emelina mergulha a vista na copa da árvore. Alguma coisa lhe agrada e ri, fazendo coro com os sons da natureza. Levanta mais a cabecinha. Volta a baixá-la e descobre os seios da mãe. Enche a boca com o mamilo. Não tem fome, é mero prazer. É uma chupeta, um brinquedo na boca, da mesma forma que os adultos enfiam um cigarro entre os lábios para satisfazer necessidade nenhuma. A criança chupa e larga, chupa e larga, sorri, grita, e volta a chupar outra vez indiferente aos conflitos da mãe, a paz é a dádiva da inocência.

Danila ganha coragem e fala.

— Mãe da menina, não deixa o cancro da dor roer o teu peito. Vomita toda a angústia sobre a terra para que o vento a sepulte. Vamos, chora, desabafa, que eu te escuto.

A história que vou ouvir é igual a de todos os tempos, karingana wa karingana. Mas a tradição está quebrada, os tempos mudaram, os contos já não se fazem ao calor da fogueira. As histórias de hoje não começam com sorrisos nem aplausos mas com suspiros e lágrimas. São tímidas e não ousadas. São tristes e não alegres. Era uma vez...

A infeliz baixa os olhos e trava uma guerra com o seu íntimo. A vida ao sol, os movimentos do mundo fazem remoinhos na sua mente e procura o repouso nas trevas. No simples gesto de cerrar as pálpebras abraça a noite. Sem estrelas. Sem a lua incómoda. Segue em retrospectiva outros sóis já sepultados. Revive o vendaval que a arrancou da terra que a viu nascer, aquelas ribombadas de fogo que transformaram num só pó o sangue dos homens, os gritos do povo, os ramos das árvores, o ladrar dos cães, poeira e terra. A mulher rememora de olhos cerrados bocados doces, salgados, a fonte de lágrimas tem um fluxo constante. A respiração torna-se fraca e o coração desfalece. Tem sede de afecto, de consolo, de uma voz amiga, uma voz irmã. Precisa de um Deus confessor para desabafar. A pessoa na sua presença é uma simples mulher, mas que importância tem? Luta, resiste, o silêncio quebra-se e a voz cansada vem das profundezas da alma num suave delírio.

— Ah, meu Dale, minha Nanau, minha Vovoti!

Danila também percorre o silêncio da angústia, quer à viva força dizer uma só palavra, mas a garganta expele uma tossezinha seca, despropositada. Há momentos em que toda a sabedoria do mundo se resume apenas numa partícula de cinza e pó perante problemas humanos.

Emelina abre os olhos, sacode o corpo arrepiado emergindo das profundezas das trevas. Olha para todos os lados na reidentificação do mundo porque acaba de despertar de um pesadelo. E o relato vem. Ambíguo. Confuso. Intrigante.

— Sabe, enfermeira, todos nós nascemos com uma estrela emigrante. Quando está na testa nós brilhamos e tornamo-nos vistosos, famosos. Quando emigra para o peito ficamos altruístas e todo o mundo nos rodeia. Outras vezes a estrela emigrante percorre a linha divisória das nádegas, entala-se no cu e sentamo-nos sobre ela. Essa é a situação em que me encontro agora. Estou sentada sobre a estrela da minha salvação.

Danila surpreende-se. O discurso que escuta, embora confuso, é filosófico, profundo. Alarga os olhos espantados e reidentifica a sua interlocutora. Não é velha nem estúpida. É jovem, é bonita, é inteligente. É uma semente bem culta caída nas pedras do destino. Emelina continua o seu relato.

— Eu fui feliz enquanto o meu homem existiu. Foi o homem mais belo e mais corajoso que encontrei na superfície da terra.

Emelina suspende o discurso de repente, parece que não quer chegar aos detalhes. Fica uns tempos com os olhos perdidos no ar, talvez para encontrar a melhor forma de desabafar a mágoa que lhe rói o peito. Talvez reconheça que os segredos mais íntimos não foram feitos para serem revelados. Cada ser humano tem o seu cu perfeito mas não o ostenta. Ela sabe que todos defecam mas nunca ninguém o faz na praça à vista de toda a gente. Mas aquela enfermeira tem um magnetismo extraordinário, quase lhe arranca do peito a verdade que nem ela própria quer recordar. Há uma razão para isso. A enfermeira não é da aldeia, é quase estrangeira. Ao estrangeiro, ao caminhante, podem contar-se todos os segredos porque não ficam remorsos, partirá, e são muito poucas as possibilidades de novos encontros.

Danila está desiludida. Afinal não se trata de um trauma de guerra mas de recordação dos amores perdidos. Um caso de amor efémero causando a desgraça eterna. Emelina não é louca mas está transtornada.

— E o que aconteceu com o teu homem, mãe da menina?

— Não sei dele, enfermeira, não sei dele. Só sei que ele partiu e não voltou. Pouco depois houve um ataque à minha aldeia, fui capturada e tive que fazer aquela marcha de tortura com este bebé dentro da minha barriga. Ver com os nossos olhos a cor da morte é qualquer coisa especial, difícil de escrever, senhora enfermeira. É como voar sem sentir o peso do corpo. É como sentir a alma a desprender-se da gente como nos sonhos. Eu sentia-me como uma morta viva baloiçando no vácuo. Todos nós parecíamos folhas do Outono na ceifa do vento.

Os poetas cantam a mulher como símbolo de paz e pureza. Os povos veneram a mulher como símbolo do amor universal. Porque ela é uma flor que dá prazer e dá calor. Mas há excepções, têm que existir, para confirmar a regra. Senão não haveria crianças abandonadas nas ruas chorando as amarguras do destino. Não haveria também recém-nascidos atirados nas lixeiras, nas valas, nos esgotos das grandes cidades. O que os poetas esqueceram é que, para além do símbolo do amor, a mulher é também parceira da serpente.

Emelina é dotada de grande beleza, isso está à vista apesar dos andrajos. Era altiva, fogosa e de ambição desmedida. Obrigou que ficassem de joelhos todos os homens que a quiseram desposar, mas só se entregou ao que tinha mais dinheiro e poder. Teve três filhos. Quando ainda amamentava a pequena Vovoti o diabo começou a rondar a sua alma tranquila preparando-se para lhe quebrar definitivamente a paz. Um dia chegou à aldeia um príncipe galopando um cavalo dourado. Tinha o rosto de uma beleza divinal. Tinha um coração nobre. Um carácter nobre. Ia à aldeia cumprir uma missão nobre, tal como os seus sonhos que eram também nobres. Dizem que o homem enlouqueceu a aldeia inteira com a sua nobreza e seduzia qualquer mulher com um simples olhar, um simples gesto. Ele gostava das mulheres... e as mulheres dele.

Foi assim que Emelina conheceu o homem. Afinal não era um homem qualquer, era um líder poderoso e tinha muitos homens reles obedecendo às suas ordens. E tinha dinheiro. E tinha comida aos sacos em quantidades que podiam encher todos os celeiros da aldeia. Encontraram-se. Amaram-se. Voaram no universo do sonho suspensos nas frágeis asas da paixão, mas não alcançavam a felicidade plena. Porque o homem era casado e polígamo. Porque Emelina também era casada e tinha três filhos. Viverem juntos até à separação da morte era o sonho de ambos, mas esta felicidade estava longe do seu alcance.

Emelina comparava o marido e o amante. Separar-se do marido é sempre fácil, mas como separar-se dos filhos? Havia de encontrar uma forma para se libertar destes. Um dia houve um ataque na aldeia, um daqueles ataquezinhos sem nenhuma importância, mas suficientemente importante para pôr em prática o plano macabro. Na hora do ataque trancou os três filhos na palhota e incendiou-os. E depois começou a gritar para que a vizinha a acudisse mas só depois de ter a certeza de que os filhos estavam bem mortos. Já na intimidade com o amante suspirou aliviada: agora sou mais livre para o amor. E o homem respondeu: dar-te-ei outros filhos que terão a tua beleza e a minha valentia. E fizeram amor com o maior prazer do mundo.

Emelina viveu momentos de grandeza como uma grande senhora. O homem mais louco ainda, satisfazia-lhe todos os caprichos, e a ambiciosa exigia provas de amor cada vez mais impossíveis. Quero-te só para mim, dizia Emelina. Contra a minha vontade manténs ainda as tuas duas esposas. Mata-as da mesma forma que eu matei os meus filhos. Elas odeiam-me, qualquer dia acabarão por enfeitiçar-me.

O homem estava quase a cumprir a promessa quando a consciência o chamou à razão. De repente, compreendeu que o amor por Emelina o inspirava ao crime. Decidiu fugir do tormento. Desapareceu, talvez tenha morrido, mas não se lhe encontrou nem cadáver nem osso. Quando viu o seu castelo afundado, Emelina começou a percorrer os caminhos, desorientada. O homem desaparecido levou-lhe a alma com ele, não se recupera mais Emelina. Num dos múltiplos ataques à aldeia, acabou sendo capturada e viveu com os seus captores mais de um ano. Depois regressou à aldeia na esperança de que o povo tivesse já esquecido o escândalo que gerou. Mas a comunidade não a perdoa. Só que ela não compreende como é que simples seres humanos são capazes de guardar tanto rancor. Ela já dialogou com Deus e pediu perdão. Este fez-lhe a remissão dos pecados porque ele é o criador das fraquezas humanas. Não se sente de modo nenhum responsável pela morte dos filhos, pelo contrário, sente muito ódio pelas pessoas que não a querem perdoar.

É esta história que Emelina conta à enfermeira na esperança de ser compreendida. Mas apenas partes dela, é claro. Gente da cidade tem outra visão do mundo. Talvez encontre naquela enfermeira a palavra de consolo que ainda não recebeu desde o desaparecimento do seu amado. Danila não diz nada.

Apenas lança uma pergunta fria, cortante:

— E essa filha é do tal homem?

— Sim. Tirou-me os outros e deu-me esta. É muito parecida com ele.

— Mas como foi possível, Emelina?

— Não sei, eu...

— Bem, não precisas de dizer mais nada, chega.

Danila está atordoada pela narração fantástica, macabra. Envolve-se no mundo da história e a história no mundo dela num envolvimento de comunhão, recíproco. Como o abraço e o beijo. Os seus cinco sentidos agitam-se como num pesadelo. Inadmissível, incrível, Emelina é mesmo louca, o povo tem razão de a desprezar. Já se sente protagonista da mesma história e pergunta ao coração como iria reagir perante um caso semelhante. Olha para a narradora com um misto de ódio e piedade. Os olhos de Emelina procuram o auxílio de qualquer Deus porque compreende que quem a escuta não partilha do seu universo de loucura. O seu semblante demonstra sofrimento. De saudades do amor que perdeu. Dos filhos que pereceram. Do marido que a abandonou fugindo da humilhação. Danila procura na mente um rótulo para aquele romance louco, incrível. Talvez se intitulasse « O ódio que gerou o amor» . Ou « Deliciosa tortura» . Mas ficava melhor « Dois loucos que se apaixonam num duelo de mortes» . Mas talvez Emelina tenha razão, só Deus é que tem motivos para a condenar, os seres humanos não conhecem a origem do amor e da loucura.

Emelina agora chora. A recordação viaja passo à frente, passo atrás, que o presente é pedra morta. O que resta de prazer é uma sucessão de recordações sepultadas. Ela odeia todo o povo da aldeia e jura que se vai vingar mas todos se riem dela, não conseguem imaginar que espécie de vingança pode ser feita por uma louca.

O jornal falou da mulher raptada, violada, assassinada. A televisão mostrou imagens de uma criança chorando ao lado do cadáver da mãe que tinha a cabeça decepada. A rádio falou da mulher a quem obrigaram a incendiar os filhos com as próprias mãos. Ninguém ainda falou da mulher que se apaixonou pelos olhos do assassino e fez do inferno seu ninho de amor. O jornalista esqueceu-se de relatar o caso fantástico de uma mulher que abraça apaixonadamente o homem que destruiu os seus descendentes e geme de amor rebolando sobre as cinzas dos filhos que gerou. Há queixas na aldeia. Os seus habitantes dizem que ultimamente já não há boa segurança, mas ainda não sabem quem os trama. A Emelina está fora de questão, durante a guerra ela vive o amor, recordando a paixão fugaz ou verdadeira, um pedaço de felicidade conquistada no momento em que o Demo baixou a força das suas chamas.



(Ventos do Apocalipse)



(Ilustração: Malangatana Ngwenya)

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

A UNS NOIVOS QUE SENDO A NOIVA MULATA JÁ TINHA PARIDO ALGUMAS VEZES, de D. Tomás de Noronha(*)

 




Ia o noivo co’ a noiva muito airoso,

Ia a noiva co’ o noivo muito airosa;

Ela à vista do noivo melindrosa,

Ele à vista da noiva melindroso.





O noivo com o cravo ia cheiroso,

A noiva como escrava ia cheirosa;

Ela por certo que ia mui formosa,

Ele por certo que ia mui formoso.





A gente de pasmada ficou muda,

Quando viu ir o noivo tão sisudo,

Quando viu ir a noiva tão sisuda.





Vendo que, por desastre ou por descudo,

De galas ia a noiva mui pontuda,

De galos ia o noivo mui pontudo.



(*) Este soneto encontra-se na Biblioteca da Ajuda, no manuscrito 49-III--52, p. 70v. Transcrevemo-lo atualizando a grafia e a pontuação. Mantivemos apenas a palavra “descudo” na sua forma original, por exigências de rima, considerando a supressão da vogal i do ditongo uma liberdade poética a que se dá o nome de síncope.


(Ilustração: Artista desconhecido - um casal nupcial, c.1470)


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

CONSCIÊNCIA NEGRA PARA FEMINISTAS BRANCAS, de Marília Moschkovich

 



“Uma senhora de algumas posses em sua casa”: Debret (1823). Eu achava que esta pintura não era sobre mim.

Desde cedo entendi o que era o racismo. Filho de uma mãe um tanto racista, numa família racista de negros, mulatos e descendentes de espanhóis, meu pai — de pele bem branca, olhos azuis e cabelo bem cacheadinho — fazia questão de pontuar que todos eram iguais e se horrorizava com o racismo. Minha mãe, nascida de uma mistura de europeus diversos e indígenas, sempre reforçava atitudes anti-racistas e criticava abertamente indivíduos e comportamentos discriminatórios. Quando comecei a me envolver em movimentos sociais, na adolescência, descobri o movimento negro e suas mais do que legítimas reivindicações. Demorei quase 26 anos, porém, muitos deles na militância, para entender que talvez meu papel nessa luta seja mais óbvio (e muito mais difícil) do que eu imaginava: me reconhecer branca e entender o significado concreto da branquitude; entender-me, sim, como uma pessoa racializada como somos todas as pessoas no Brasil e muito provavelmente no mundo.

Quando nascemos, nós, pessoas de pele e fenótipo socialmente lido como “brancos” (que vou chamar apenas de “brancos”, pra facilitar a leitura) somos ensinados que existem pessoas negras. Somos ensinados que essas pessoas têm a pele diferente da nossa. Em todas as formas de transmissão de cultura — escola, televisão, conversas em família, entre outros — a cor da nossa pele nunca é tratada como uma questão. É como se não tivéssemos cor. Nesse pensamento está baseada a expressão “pessoa de cor”, que pressupõe que nós brancos e brancas não temos cor. Ao que o movimento negro no Brasil costuma genialmente responder: “pessoa de cor? de que cor?”.

Sem perceber, passamos a vida acreditando verdadeiramente nessa mentira. Quando conseguimos alguma coisa, não associamos a conquista à nossa identidade ou classificação racial, mas a um mérito individual (que não existe). Isso não quer dizer que nenhum de nós brancos sejamos bons no que fazemos, calma aí. Significa apenas que uma pessoa negra tão boa quanto, ou melhor, ficou de fora na seleção em que nós passamos (e falo aqui de seleções diversas: sociais, econômicas, simbólicas, institucionais, etc). Por diversos motivos. Foi quando tomei contato com o feminismo negro de Patricia Hill Collins e bell hooks, intrigada após ver sistematicamente militantes feministas negras apontando meus racismos, que consegui formular melhor para mim mesma alguns desses motivos:

• Eu nunca fui tratada por meus professores e professoras como um projeto de bandida, rainha de bateria ou faxineira; aprendi daí que a escola era mesmo o meu lugar.

• Nunca precisei passar por processos dolorosos e tóxicos para adequar meu cabelo às exigências de qualquer empregador sob a ameaça de passar fome; aprendi daí que meu cabelo não precisa ser corrigido.

• Fui tratada como mãe das crianças brancas de que cuidei como baby-sitter; aprendi daí que eu não precisava realizar nenhuma outra tarefa doméstica que não fosse cuidar das crianças.

• Nas novelas, filmes, revistas e outras mídias que constroem o imaginário popular e as nossas identidades e anseios, sempre havia personagens como eu, brancas, que tinham sucesso profissional em diversas áreas; aprendi daí que eu podia ser o que quisesse.

• Na escola e em todos os espaços públicos, especialmente naqueles em que frequentavam majoritariamente ou exclusivamente mulheres, sempre me senti confortável e incluída e sempre me deram a palavra; aprendi daí que eu podia e devia falar sempre que desejasse.

• Em espaços domésticos, as pessoas que desempenhavam funções de serviço pesadas como empregada doméstica mensalista, muitas vezes mal pagas e em condições de vida deploráveis, não eram do meu bairro, não eram minhas vizinhas, não eram minhas parentes; aprendi que aquilo não era pra mim.

• As revistas de moda e cabelo sempre tinham diversas sugestões e opções de maquiagem, penteados e cortes que se adaptavam facilmente aos meus tons de cabelo e pele, segundo as regras iluminadas dos editoriais; aprendi daí que eu sou normal, que eu sou a regra, o fiel da balança, o neutro pelo qual de deve medir os demais.

Construída nessa e em outras situações, minha identidade racial ficou escondida. Toda a sociedade me dizia que “raça” simplesmente não era uma questão que me tangia. O gênero sim, já que como mulher eu estava do lado oprimido. Sendo branca, então, eu realmente acreditava que não tinha nada a ver com a discussão racial, exceto para “defender” “elas”, as mulheres negras.

Daí que um dia elas gritaram. Apontaram minha raça e eu, em minha ignorância racista, que como sociedade acabamos por desenvolver de maneira doentia em todas as pessoas brancas deste país (e que a Ana Maria Gonçalves mostrou lindamente que pode ser chamada também de fragilidade branca), me senti ofendida. Eu não gostava de ser lembrada de que era branca. Dizia inclusive que isso seria racismo. Era muito mais fácil acreditar que tudo que eu tinha conseguido tinha sido por mérito próprio. Que eu, mulher, não podia jamais ocupar o lugar de opressora nesta sociedade. Era o esquema perfeito: me colocava enquanto vítima e recusava deliberadamente a função de algoz.

Depois de espernear, me lembrei de um debate sobre cotas na época do ensino médio. Eu era, na época, contra as cotas raciais. Meu melhor amigo — também ligado à militância de movimentos sociais — me disse uma das coisas mais interessantes que eu já ouvi sobre políticas públicas: “Estou do lado dos fodidos, Marília. A gente tem que estar do lado dos fodidos”. Nós, que nem fodídos éramos. Ele, que tinha olhos azuis e sobrenome italiano.

Decidi ouvir o que “as fodidas” tinham a me dizer, pelo afeto que nutro por essa figura branca (e, sim, olha que racista isso!). Tentei botar o ego de lado. Pisei fora do meu esquema explicativo perfeito de mulher-mártir (existe feminino de mártir?). Escutei a Hill Collins. Reli Alice Walker. Fui atrás da Rosa Parks. Pesquisei Nina Simone. Me enfiei na história dos Panteras Negras. Assisti de novo Mississipi em Chamas, Uma Outra História Americana, tudo que eu tinha do Spike Lee. Reli os e-mails em que me acusavam de racista. Reli as críticas que haviam sido feitas a mim em debates sobre a questão (em especial, aquelas colocadas pela Luana Tolentino). Me inscrevi em feeds de sites e blogs brasileiros sobre racismo e identidade racial — esses que antes eu sequer acessava, já que “não eram dirigidos a mim”, pela mesma visão limitada de quem acha que, sendo branco, não tem nada a ver com o dia da consciência negra. Peguei o Darcy Ribeiro da estante. Quase vomitei com a memória de tudo aquilo que meu cérebro havia, de forma traiçoeira, relegado “aos outros” quando aprendi na escola.

Nas páginas de Casa Grande e Senzala, eu era a moça na liteira. Eu era o personagem de Di Caprio em Django Livre, ou era também o branco salvador da pátria (ou pior, dos negros) interpretado por Chirstopher Waltz — ambos essencialmente racistas. Eu era a sinhá que eu tanto desprezava nas novelas de época. Eu era a imigrante italiana da novela, cujos descentes puderam acreditar no mito do mérito, já que sua cor de pele lhe dava contrato, trabalho assalariado, possibilidade concreta de compra de terras e direito de frequentar escolas, o que não era assegurado às populações negras na mesma época. Eu era, enfim, de volta ao século XXI, a moça que podia andar na rua sem ser abordada pela polícia. Que sabia que, a qualquer sinal de problema, chamar a polícia representava provavelmente (ao menos antes de 2017) mais risco ao outro do que a mim mesma.

Era eu, a moça feminista que não entendia por que “tanto escarcéu” das feministas negras, já que eu não era racista. Que tinha o privilégio racial mais imenso e cruel de poder ignorar a própria racialidade, e fingir que o racismo não existe enquanto ele feria minhas convicções e meu conforto como militante.

Tenho me demorado anos nesse eterno processo de peitar meus racismos, e entender minha vida, sim, como uma vida marcada pela racialidade. Vocês podem começar hoje: não dê parabéns a ninguém em 20 de Novembro, como pedimos que não nos deem rosas no dia 8 de Março. São tempos extremamente duros para a população negra, que resiste em todos os níveis e esferas possíveis. Use seu tempo para contribuir com a luta antirracista de maneira mais eficaz: reconheça-se branca, cale-se pela primeira vez na vida e escute o que as mulheres negras têm a dizer.

Assim, nos colocamos a pensar em racialidade — porque se trata de um sistema de relações. Podemos nos questionar também por que é que nos identificamos, no Brasil, se somos brancos, muito mais com os brancos europeus (ao ponto de achar que é de nós que textos indianos sobre pós-colonialidade estão falando quando apontam problemas dos “brancos”) do que com uma latinidade branca ou latinidade de pele clara. Quais as relações que provocam esse fenômeno? Mais importante ainda: quais as implicações concretas dele para quem não é branco — sobretudo negras, negros, indígenas — que convivem conosco todos os dias, ora mais ora menos explicitamente visíveis?

PS.: Esse texto, como escrito a partir da experiência de gente branca inserida em uma sociedade estruturada pelo racismo, provavelmente apresentará alguns racismos; peço desculpas de antemão por eles e espero que possa, no diálogo com minhas companheiras de luta negras, e meus companheiros de luta negros, corrigi-los em breve.

PS2.: Escrever esse texto e provocar a discussão pública sobre privilégio racial branco não é um ato de heroísmo, nem de coragem. Muito pelo contrário, talvez seja um ato de vergonha. É o mínimo que precisa ser feito por pessoas brancas na luta antirracista, estabelecendo assim solidariedade com as negras e negros que estão nas mesmas trincheiras que nós e, frequentemente, em suas linhas de frente.



(Outras Palavras / Carta Capital)



(Ilustração: Jean-Baptiste Debret)