domingo, 14 de novembro de 2021

A MULHER É TAMBÉM PARCEIRA DA SERPENTE, de Pauline Chiziane




A enfermeira termina o trabalho, aproxima-se da Emelina e diz: vem. E ela obedece como um cordeiro. E caminham juntas em silêncio e sem pressa. Chegam ao pé de uma sombra, podemos sentar-nos aqui. Ajoelham-se em simultâneo e poisam o traseiro sobre a erva. Danila dá um pulo e leva a mão esquerda para o traseiro esquerdo, esfrega-o com violência, ai, meu Deus, que ataque feroz, espero que não seja picada de cobra mamba. As duas mulheres agitam as cabeças em todas as direcções, a maldita deve andar por perto. A criança nas costas da mãe diverte-se e lança gargalhadas sonoras. Logo a seguir as duas mulheres fazem coro ao riso da criança, qual mamba, qual carapuça. No reino vegetal há seres insignificantes, rasteirinhos, que, como os homens, lutam pelo direito de viver. Defendem o seu território com dignidade e valentia, o mundo é para aqueles que lutam. A plantinha espinhosa sorri vitoriosa. Não é uma, são várias e estão espalhadas por rodo o lado. Danila baixa a mão e colhe uma delas por vingança. Olha-a com ternura e diz: és o herói anónimo do mundo dos verdes. Atira-a ao chão, despreocupada, o traseiro ainda arde. Convida a Emelina a procurar outro poiso na mesma sombra, e acomodam-se no tapete suave de erva dócil e submissa.

Agora as duas mulheres estão sentadas frente a frente e o silêncio abate-se sobre elas. Os olhos são a arma com que se debatem no duelo de fêmeas, uma tentando cerrar as cortinas do seu mundo, outra procurando rasgar o véu da mesma muralha. Identificam-se. São ambas negras e mães e a diferença entre elas reside nas fronteiras do destino. Nasceram na mesma terra que aquela árvore, aquela sombra, aquelas perdizes que cantam ao longe.

De repente, Emelina perde a rigidez de há momentos. As pernas e os braços agitam-se em movimento desordenado, frenético. Tremem os lábios gretados de cieiro e fome. Tremem os maxilares até os dentes se abaterem, se triturarem. O rosto desfaz-se das pregas e as chamas dos olhos afundam-se na fluidez das lágrimas. Emelina não é louca nem tonta, ó gente, sente necessidade de ouvidos que a escutem e de palavras que a consolem. A mente de Danila é uma máquina em movimento acelerado. Procura descobrir palavras especiais para um diálogo especial. Descerra os lábios e da garganta não brota uma só palavra. Volta a cerrá-los simulando um suave bocejo.

Perdizes e pombos cantam nos horizontes do mundo. Canto vulgar, tão igual a todos os outros, mas tão amigo, porque preenche o vazio das almas. A criança de Emelina mergulha a vista na copa da árvore. Alguma coisa lhe agrada e ri, fazendo coro com os sons da natureza. Levanta mais a cabecinha. Volta a baixá-la e descobre os seios da mãe. Enche a boca com o mamilo. Não tem fome, é mero prazer. É uma chupeta, um brinquedo na boca, da mesma forma que os adultos enfiam um cigarro entre os lábios para satisfazer necessidade nenhuma. A criança chupa e larga, chupa e larga, sorri, grita, e volta a chupar outra vez indiferente aos conflitos da mãe, a paz é a dádiva da inocência.

Danila ganha coragem e fala.

— Mãe da menina, não deixa o cancro da dor roer o teu peito. Vomita toda a angústia sobre a terra para que o vento a sepulte. Vamos, chora, desabafa, que eu te escuto.

A história que vou ouvir é igual a de todos os tempos, karingana wa karingana. Mas a tradição está quebrada, os tempos mudaram, os contos já não se fazem ao calor da fogueira. As histórias de hoje não começam com sorrisos nem aplausos mas com suspiros e lágrimas. São tímidas e não ousadas. São tristes e não alegres. Era uma vez...

A infeliz baixa os olhos e trava uma guerra com o seu íntimo. A vida ao sol, os movimentos do mundo fazem remoinhos na sua mente e procura o repouso nas trevas. No simples gesto de cerrar as pálpebras abraça a noite. Sem estrelas. Sem a lua incómoda. Segue em retrospectiva outros sóis já sepultados. Revive o vendaval que a arrancou da terra que a viu nascer, aquelas ribombadas de fogo que transformaram num só pó o sangue dos homens, os gritos do povo, os ramos das árvores, o ladrar dos cães, poeira e terra. A mulher rememora de olhos cerrados bocados doces, salgados, a fonte de lágrimas tem um fluxo constante. A respiração torna-se fraca e o coração desfalece. Tem sede de afecto, de consolo, de uma voz amiga, uma voz irmã. Precisa de um Deus confessor para desabafar. A pessoa na sua presença é uma simples mulher, mas que importância tem? Luta, resiste, o silêncio quebra-se e a voz cansada vem das profundezas da alma num suave delírio.

— Ah, meu Dale, minha Nanau, minha Vovoti!

Danila também percorre o silêncio da angústia, quer à viva força dizer uma só palavra, mas a garganta expele uma tossezinha seca, despropositada. Há momentos em que toda a sabedoria do mundo se resume apenas numa partícula de cinza e pó perante problemas humanos.

Emelina abre os olhos, sacode o corpo arrepiado emergindo das profundezas das trevas. Olha para todos os lados na reidentificação do mundo porque acaba de despertar de um pesadelo. E o relato vem. Ambíguo. Confuso. Intrigante.

— Sabe, enfermeira, todos nós nascemos com uma estrela emigrante. Quando está na testa nós brilhamos e tornamo-nos vistosos, famosos. Quando emigra para o peito ficamos altruístas e todo o mundo nos rodeia. Outras vezes a estrela emigrante percorre a linha divisória das nádegas, entala-se no cu e sentamo-nos sobre ela. Essa é a situação em que me encontro agora. Estou sentada sobre a estrela da minha salvação.

Danila surpreende-se. O discurso que escuta, embora confuso, é filosófico, profundo. Alarga os olhos espantados e reidentifica a sua interlocutora. Não é velha nem estúpida. É jovem, é bonita, é inteligente. É uma semente bem culta caída nas pedras do destino. Emelina continua o seu relato.

— Eu fui feliz enquanto o meu homem existiu. Foi o homem mais belo e mais corajoso que encontrei na superfície da terra.

Emelina suspende o discurso de repente, parece que não quer chegar aos detalhes. Fica uns tempos com os olhos perdidos no ar, talvez para encontrar a melhor forma de desabafar a mágoa que lhe rói o peito. Talvez reconheça que os segredos mais íntimos não foram feitos para serem revelados. Cada ser humano tem o seu cu perfeito mas não o ostenta. Ela sabe que todos defecam mas nunca ninguém o faz na praça à vista de toda a gente. Mas aquela enfermeira tem um magnetismo extraordinário, quase lhe arranca do peito a verdade que nem ela própria quer recordar. Há uma razão para isso. A enfermeira não é da aldeia, é quase estrangeira. Ao estrangeiro, ao caminhante, podem contar-se todos os segredos porque não ficam remorsos, partirá, e são muito poucas as possibilidades de novos encontros.

Danila está desiludida. Afinal não se trata de um trauma de guerra mas de recordação dos amores perdidos. Um caso de amor efémero causando a desgraça eterna. Emelina não é louca mas está transtornada.

— E o que aconteceu com o teu homem, mãe da menina?

— Não sei dele, enfermeira, não sei dele. Só sei que ele partiu e não voltou. Pouco depois houve um ataque à minha aldeia, fui capturada e tive que fazer aquela marcha de tortura com este bebé dentro da minha barriga. Ver com os nossos olhos a cor da morte é qualquer coisa especial, difícil de escrever, senhora enfermeira. É como voar sem sentir o peso do corpo. É como sentir a alma a desprender-se da gente como nos sonhos. Eu sentia-me como uma morta viva baloiçando no vácuo. Todos nós parecíamos folhas do Outono na ceifa do vento.

Os poetas cantam a mulher como símbolo de paz e pureza. Os povos veneram a mulher como símbolo do amor universal. Porque ela é uma flor que dá prazer e dá calor. Mas há excepções, têm que existir, para confirmar a regra. Senão não haveria crianças abandonadas nas ruas chorando as amarguras do destino. Não haveria também recém-nascidos atirados nas lixeiras, nas valas, nos esgotos das grandes cidades. O que os poetas esqueceram é que, para além do símbolo do amor, a mulher é também parceira da serpente.

Emelina é dotada de grande beleza, isso está à vista apesar dos andrajos. Era altiva, fogosa e de ambição desmedida. Obrigou que ficassem de joelhos todos os homens que a quiseram desposar, mas só se entregou ao que tinha mais dinheiro e poder. Teve três filhos. Quando ainda amamentava a pequena Vovoti o diabo começou a rondar a sua alma tranquila preparando-se para lhe quebrar definitivamente a paz. Um dia chegou à aldeia um príncipe galopando um cavalo dourado. Tinha o rosto de uma beleza divinal. Tinha um coração nobre. Um carácter nobre. Ia à aldeia cumprir uma missão nobre, tal como os seus sonhos que eram também nobres. Dizem que o homem enlouqueceu a aldeia inteira com a sua nobreza e seduzia qualquer mulher com um simples olhar, um simples gesto. Ele gostava das mulheres... e as mulheres dele.

Foi assim que Emelina conheceu o homem. Afinal não era um homem qualquer, era um líder poderoso e tinha muitos homens reles obedecendo às suas ordens. E tinha dinheiro. E tinha comida aos sacos em quantidades que podiam encher todos os celeiros da aldeia. Encontraram-se. Amaram-se. Voaram no universo do sonho suspensos nas frágeis asas da paixão, mas não alcançavam a felicidade plena. Porque o homem era casado e polígamo. Porque Emelina também era casada e tinha três filhos. Viverem juntos até à separação da morte era o sonho de ambos, mas esta felicidade estava longe do seu alcance.

Emelina comparava o marido e o amante. Separar-se do marido é sempre fácil, mas como separar-se dos filhos? Havia de encontrar uma forma para se libertar destes. Um dia houve um ataque na aldeia, um daqueles ataquezinhos sem nenhuma importância, mas suficientemente importante para pôr em prática o plano macabro. Na hora do ataque trancou os três filhos na palhota e incendiou-os. E depois começou a gritar para que a vizinha a acudisse mas só depois de ter a certeza de que os filhos estavam bem mortos. Já na intimidade com o amante suspirou aliviada: agora sou mais livre para o amor. E o homem respondeu: dar-te-ei outros filhos que terão a tua beleza e a minha valentia. E fizeram amor com o maior prazer do mundo.

Emelina viveu momentos de grandeza como uma grande senhora. O homem mais louco ainda, satisfazia-lhe todos os caprichos, e a ambiciosa exigia provas de amor cada vez mais impossíveis. Quero-te só para mim, dizia Emelina. Contra a minha vontade manténs ainda as tuas duas esposas. Mata-as da mesma forma que eu matei os meus filhos. Elas odeiam-me, qualquer dia acabarão por enfeitiçar-me.

O homem estava quase a cumprir a promessa quando a consciência o chamou à razão. De repente, compreendeu que o amor por Emelina o inspirava ao crime. Decidiu fugir do tormento. Desapareceu, talvez tenha morrido, mas não se lhe encontrou nem cadáver nem osso. Quando viu o seu castelo afundado, Emelina começou a percorrer os caminhos, desorientada. O homem desaparecido levou-lhe a alma com ele, não se recupera mais Emelina. Num dos múltiplos ataques à aldeia, acabou sendo capturada e viveu com os seus captores mais de um ano. Depois regressou à aldeia na esperança de que o povo tivesse já esquecido o escândalo que gerou. Mas a comunidade não a perdoa. Só que ela não compreende como é que simples seres humanos são capazes de guardar tanto rancor. Ela já dialogou com Deus e pediu perdão. Este fez-lhe a remissão dos pecados porque ele é o criador das fraquezas humanas. Não se sente de modo nenhum responsável pela morte dos filhos, pelo contrário, sente muito ódio pelas pessoas que não a querem perdoar.

É esta história que Emelina conta à enfermeira na esperança de ser compreendida. Mas apenas partes dela, é claro. Gente da cidade tem outra visão do mundo. Talvez encontre naquela enfermeira a palavra de consolo que ainda não recebeu desde o desaparecimento do seu amado. Danila não diz nada.

Apenas lança uma pergunta fria, cortante:

— E essa filha é do tal homem?

— Sim. Tirou-me os outros e deu-me esta. É muito parecida com ele.

— Mas como foi possível, Emelina?

— Não sei, eu...

— Bem, não precisas de dizer mais nada, chega.

Danila está atordoada pela narração fantástica, macabra. Envolve-se no mundo da história e a história no mundo dela num envolvimento de comunhão, recíproco. Como o abraço e o beijo. Os seus cinco sentidos agitam-se como num pesadelo. Inadmissível, incrível, Emelina é mesmo louca, o povo tem razão de a desprezar. Já se sente protagonista da mesma história e pergunta ao coração como iria reagir perante um caso semelhante. Olha para a narradora com um misto de ódio e piedade. Os olhos de Emelina procuram o auxílio de qualquer Deus porque compreende que quem a escuta não partilha do seu universo de loucura. O seu semblante demonstra sofrimento. De saudades do amor que perdeu. Dos filhos que pereceram. Do marido que a abandonou fugindo da humilhação. Danila procura na mente um rótulo para aquele romance louco, incrível. Talvez se intitulasse « O ódio que gerou o amor» . Ou « Deliciosa tortura» . Mas ficava melhor « Dois loucos que se apaixonam num duelo de mortes» . Mas talvez Emelina tenha razão, só Deus é que tem motivos para a condenar, os seres humanos não conhecem a origem do amor e da loucura.

Emelina agora chora. A recordação viaja passo à frente, passo atrás, que o presente é pedra morta. O que resta de prazer é uma sucessão de recordações sepultadas. Ela odeia todo o povo da aldeia e jura que se vai vingar mas todos se riem dela, não conseguem imaginar que espécie de vingança pode ser feita por uma louca.

O jornal falou da mulher raptada, violada, assassinada. A televisão mostrou imagens de uma criança chorando ao lado do cadáver da mãe que tinha a cabeça decepada. A rádio falou da mulher a quem obrigaram a incendiar os filhos com as próprias mãos. Ninguém ainda falou da mulher que se apaixonou pelos olhos do assassino e fez do inferno seu ninho de amor. O jornalista esqueceu-se de relatar o caso fantástico de uma mulher que abraça apaixonadamente o homem que destruiu os seus descendentes e geme de amor rebolando sobre as cinzas dos filhos que gerou. Há queixas na aldeia. Os seus habitantes dizem que ultimamente já não há boa segurança, mas ainda não sabem quem os trama. A Emelina está fora de questão, durante a guerra ela vive o amor, recordando a paixão fugaz ou verdadeira, um pedaço de felicidade conquistada no momento em que o Demo baixou a força das suas chamas.



(Ventos do Apocalipse)



(Ilustração: Malangatana Ngwenya)

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