terça-feira, 30 de outubro de 2018

GREENWICH VILLAGE SUICIDE / SUICÍDIO NO GREENWICH VILLAGE, de Gregory Corso







Arms outstretched

Hands flat against the windowsides

She looks down

Thinks of Bartok, Van Gogh

And New Yorker Cartoons

She falls



They take her away with a Daily News on her face

And a storekeeper throws hot water on the sidewalk



Tradução de André Caramuru Aubert: 




Braços muito abertos

Mãos estendidas contra os batentes das janelas

Ela olha para baixo

Pensa em Bartók, em Van Gogh

E em cartuns da New Yorker

Ela cai



Levam-na com o Daily News aberto sobre seu rosto

E um dono de loja joga água quente na calçada



Tradução de Matheus Carrera Massabki: 




Braços abertos

mãos pressionando pra fora da janela

Ela olha pra baixo

Pensa em Bartok, Van Gogh

e nos desenhos do New Yorker

Ela cai



Tiram ela dali com um Daily News na cara

E o lojista joga água quente na calçada





(Ilustração: Frida Kahlo-1939- Suicide of Dorothy Hale)





sábado, 27 de outubro de 2018

BOBAGENS QUE ESCONDEM UMA TRISTE REALIDADE, de Wagner Mourão Brasil










Se correlacionados, alguns fatos explicam as transformações ocorridas no interior das corporações, a elevação dos ganhos de seus presidentes e altos executivos e a queda drástica dos salários e benefícios dos trabalhadores a partir da década de 1990: a eleição de Margareth Thatcher na Inglaterra, em 1979, de Ronald Reagan nos Estados Unidos, em 1981; a queda do Muro de Berlim em 1989; a derrocada da União Soviética em 1990; a publicação do livro Reengenharia, Revolucionando a empresa em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência[1] em 1992, nos Estados Unidos. Como escreve Carlos Nelson Coutinho nas orelhas dos três volumes da biografia de Leon Trotski, de Isaac Deutscher (Civilização Brasileira, 2005): “A Revolução de Outubro foi um dos eventos mais importantes do século XX. Esteja-se ou não de acordo com seus resultados, não se pode negar que a história do século XX seria muito diversa sem a vitória da revolução bolchevique e a consequente construção da União Soviética. Trata-se de uma experiência marcada por luzes e sombras. A degenerescência burocrática da União Soviética não deve ocultar que a experiência que se inicia em 1917 também trouxe consigo não poucos elementos positivos: ela contribuiu decisivamente para que a humanidade saísse vitoriosa na luta contra a barbárie nazifascista, para que as formas mais diretas de colonialismo fossem superadas, para que a classe operária ocidental conquistasse os direitos sociais inscritos no Welfare State e que são agora o alvo prioritário da contrarreforma neoliberal.” 

Reengenharia..., em sua primeira edição, era um livro de título longo, aparência modesta e de apenas 190 páginas. Teve por embrião um artigo publicado por Michael Hammer, um de seus autores, na Harvard Business Review, em 1990. O título do artigo é sugestivo: Reegeneering Work: Don’t Automate, Obliterate (Aplicando a reengenharia no trabalho: Não automatize, elimine)[2]. John Sculley, então presidente da Apple Computer, Inc., profetizou que Reengenharia... seria “a bússola e o mapa-múndi empresarial do século XXI” – nunca esteve tão certo; Robert Allen, então presidente da AT&T, profetizou que a reengenharia seria “tão importante para os líderes do mercado como essencial para as empresas em apuros. Em ambas as situações”, disse ainda, “o resultado será uma drástica melhoria no custo, na qualidade e na satisfação dos clientes”. Só acertou quanto à drástica melhoria nos custos, pois a qualidade dos produtos da atualidade é pior que a dos tempos pré-reengenharia, que duravam quase que para sempre; quanto aos clientes, as empresas continuam pouco se lixando para eles. 

Sem traços de modéstia, já na Introdução de Reengenharia... seus autores declaram que “suas ideias são tão importantes para as empresas atuais como foram as ideias de Adam Smith para os empresários e gerentes dos últimos dois séculos”. Ora, não satisfeitos em ombrear-se com um dos fundadores da economia política - os outros seriam François Quesnay e os fisiocratas -, os autores declaram ainda que “na reengenharia, o modelo industrial é virado de cabeça para baixo”, metáfora, ao que parece, alusiva ao que escreveu um outro revolucionário, Karl Marx, a respeito do que fizera com a filosofia de Hegel. 

É certo que a reengenharia foi, e talvez ainda seja, a mais revolucionária e devastadora técnica de reordenação da pirâmide administrativa das organizações em novas e flexíveis hierarquias: Ela ensina a suprimirem-se degraus da escada que vai do topo da pirâmide administrativa ao chão de fábrica; a maximizar lucros, agilizar tomadas de decisão, e, mais que tudo, fazer mais com menos - por menos. Para os autores, reengenharia “é o repensar fundamental e a reestruturação radical dos processos empresariais que visam alcançar drásticas melhorias em indicadores críticos e contemporâneos de desempenho, tais como custos, qualidade, atendimento e velocidade”. Empresas que se contentam em elevar seus lucros, seu padrão de qualidade e de atendimento aos clientes em 10%, e se satisfizessem com cortes de 10% em seus custos, certamente devem fugir da reengenharia, por não possuírem ambição suficiente para enfrentar o desafio. Candidatas aos seus drásticos remédios seriam as empresas atoladas em dívidas, as que preveem nuvens negras pela frente ou mesmo as que já atingiram seu mais alto patamar de desempenho, mas gerenciadas por gente ambiciosa e agressiva. Disso depreende-se que a reengenharia é mesmo drástica e radical, como enfatizam seus criadores, e deve ser utilizada quando se pensa em destruir tudo o que existe dentro de uma empresa, inclusive pessoas, pois, como comprovado desde a década de 1990, no ambiente que ela varre, divisões, departamentos, grupos e outras estruturas organizacionais tradicionais têm o lixo por destino; aos trabalhadores, é reservado o desemprego. Desse modo, “empresas perfeitamente viáveis são estripadas ou abandonadas, empregados capazes ficam à deriva, em vez de ser recompensados, simplesmente porque a organização deve provar ao mercado que pode mudar”[3]. E mais: seus adeptos devem ser individualistas (leia-se egocêntricos), autoconfiantes, propensos ao risco, inclinados à mudança. Além disso, ao redefinirem processos administrativos eles devem também ser dotados de “imaginação, pensamento indutivo e um toque de loucura”, o que foi fartamente comprovado em empresas que adotaram e adotam tais práticas. 

Uma vez superadas as agruras da reestruturação, desempenho e promoção passam a ser desvinculados um do outro na pós-reengenharia: a promoção é associada à habilidade; o desempenho não, mas ao valor que as tarefas adicionam aos produtos manufaturados pela empresa ou aos serviços por ela prestados. Mas o que é adicionar, ou agregar, como querem alguns, valor a um produto ou serviço? A reengenharia explica: “Coloque-se no lugar do cliente e pergunte: ‘Eu me importo com isso?’; se a resposta for não, o trabalho não adiciona valor”. E para que não reste qualquer traço de dúvida nas mentes de seus seguidores, a reengenharia ainda fornece este exemplo elucidativo, em ríspida dialética: “Os clientes se importam com os controles internos, as auditorias, a administração e os relatórios de uma empresa? Absolutamente não”. 

Admite-se até que um trabalhador possa vir a ser promovido, desde que adquira mais habilidades (um vago e subjetivo conceito a flutuar na cabeça de quem o gerencia), independentemente de ele apresentar ou não um desempenho fantástico ou tornar-se mais experiente no que faz. Como consequência, “o prêmio”, e não um aumento de salário, “é a recompensa apropriada para o serviço bem feito. A promoção para um novo cargo não é”. Em outras palavras, por seu desempenho, o trabalhador poderá receber prêmios periódicos que, usando-se o jargão da reengenharia, não agregam valor ao seu salário, agora e para sempre congelado, isso quando, e só quando, os danos nele provocados pela inflação são plenamente corrigidos, o que nem sempre acontece. Além disso, no ambiente reformulado a remuneração passa a ser proporcional ao desempenho, que por sua vez correlaciona-se (saiba-se lá como) com o valor do trabalho agregado aos produtos - eis a mais-valia[4] de Karl Marx sendo maximizada a níveis extremados e agregada aos lucros do balanço anual, e não aos salários dos trabalhadores, tudo perfeitamente legitimado pelos critérios de desempenho e avaliação postos em prática dentro das empresas. 

Se, insinuam os autores, determinada tarefa não adiciona valor aos produtos ou serviços, executantes e tarefas supostamente ociosos são candidatos à extirpação ou à terceirização, filha dileta da reengenharia que, por decisão do Congresso brasileiro, pode ser posta em prática em todos os degraus do organograma das empresas. Quanto ao nível de exigência das tarefas reformuladas, depois de reduzidas às cinzas e renascidas sob novas feições, elas se afiguram complexas e demandam gente especializada para executá-las, quando antes eram simples e não especializadas. E mais: como o tempo gasto em trabalhos adicionadores de valor é maior que o despendido nos que anteriormente nada adicionavam, a teoria afirma que isso aumentaria a contribuição do trabalhador para a empresa, razão pela qual “os serviços tendem, globalmente, a ser melhor remunerados”. Entretanto, como o desempenho de um trabalhador oscila e pode decair no futuro, “os salários básicos tendem a permanecer relativamente constantes, descontada a inflação”. Pelo que se percebe, pouco sobra de essencial no interior das empresas analisadas sob tais lentes: quase tudo é supérfluo e descartável, principalmente, como se testemunha atualmente, as pessoas. 

A reengenharia também ensina que uma das forças (as outras são a concorrência e a mudança) a empurrar “as empresas cada vez mais para dentro de um território assustadoramente desconhecido para seus executivos e gerentes” é o cliente - ele mesmo, de quem as empresas pré-reengenharia só se lembram em campanhas de marketing em que o induzem ao consumo compulsório e irrefletido. Ao que parece, além de tanger as empresas rumo ao desconhecido, esse cliente também reformulado e revalorizado passa a habitar a mente dos trabalhadores, assombrando-os, pois a reengenharia “exige que os empregados acreditem profundamente que trabalham para seus clientes, e não para seus chefes”. 

Ora, visto que na empresa reestruturada um gerente pode supervisionar até trinta subordinados, quando na estrutura arcaica ele supervisionava apenas sete, inicialmente começou-se por fatiar a pirâmide administrativa dos cargos à meia altura do topo. Era a compressão vertical da reengenharia, uma de suas pérolas mais caras, sendo posta em ação: além de levar ao nivelamento das empresas, a compressão vertical supostamente delegaria aos trabalhadores o ônus da tomada de decisões autônoma, ao dispensá-los de consultar um superior hierárquico já não mais presente. Assim procedendo, e levando-se em conta o novo papel do cliente nessa história toda, ao eliminar os escalões gerenciais intermediários a alta administração das empresas parece querer demonstrar sua vontade de acercar-se “mais do mundo real”, aproximar-se “dos clientes e dos executantes do trabalho adicionador de valor da empresa”. 

De início, enquanto os ocupantes dos cargos intermediários eram degolados, os da base da pirâmide - com frequência mais sujeitos ao aniquilamento periódico, olhavam para tudo aquilo com estranheza, eles que sempre foram os alvos prediletos das ceifeiras que passavam ao largo, poupando-lhes os pescoços. Mas durou pouco sua inusitada valorização, pois a ânsia por chegar-se à compressão máxima dos custos e salários, e a um número mínimo de trabalhadores, acabou por prevalecer sobre as demais sugestões da reengenharia, quase que totalmente abandonadas depois de servirem de mote e razão de ser do enxugamento compulsório e alucinado. Desde então, empregados de todos os níveis hierárquicos passaram a ser dizimados aos milhares, em incontidas e sucessivas levas. Exercitar o corte drástico, de empregados ou despesas, tem sido tão facilmente levado a cabo dentro das empresas, além de estimulante para o seu balanço anual e a valorização dos bônus anuais de executivos do alto escalão, que o procedimento foi alçado à família dos chamados projetos contínuos, aqueles que nunca perecem dentro das empresas, onde evolui e ganha adendos - lá lucubra-se sempre sobre a melhor maneira de exercitá-lo com maior eficácia (eficácia é uma palavra de fortes conotações nesse ambiente). Resulta disso tudo que, “enquanto as empresas consistirem em pessoas”[5], alguém lá dentro vai tentar eliminá-las, pois a cada nova extirpação sempre parece sobrar gente a entulhar o caminho até a rua, onde o cliente, a cada dia mais necessitado de um emprego que possibilite a ele consumir e movimentar a economia, anseia pela deferência dos capitães da indústria, por seus produtos ISO-isto ou ISO-aquilo. 

Ora, aceso o rastilho que espalhou o pavor de se perder o emprego, a harmonia que sustentava os alicerces do convívio civilizado entre chefes e subordinados e entre colegas no ambiente das empresas foi reduzido a pó. Como consequência, a antiga disputa mais ou menos civilizada para ascender-se aos cargos superiores cedeu de vez à luta por garantir-se a todo custo um lugar nessas balsas de Medusa que singram as águas do novo capitalismo. Dando-se conta da ameaça iminente, seus ocupantes procuram defender, os limites da decência frequentemente ultrapassados, seus lugares sob ameaça. Desse modo, deixando de lado o emparelhamento harmonioso entre chefes e subordinados, os níveis hierárquicos passaram a combinar-se em rimas interpoladas de um soneto à discórdia: o chefe, longe dos tempos em que preparava seu melhor subordinado para que este o sucedesse, tenta agora jogar para fora do barco aquele que julga estar a cobiçar-lhe o lugar; este, procurando a qualquer custo manter-se sobre o casco, e ambicionando o timão a que o chefe se agarra para salvar-se, vai choramingar mágoas aos ouvidos do chefe do chefe, insinuar competências menosprezadas, colocar sob suspeita qualidades e aptidões de quem o gerencia, sibilar sua língua bipartida em sub-reptícias sugestões aos ouvidos de quem - ele sabe! - também não aprecia ver-se ameaçado pelo subordinado posto em questão, o chefe do insurrecto. Assim, sobre tecido roto, disseminam-se emaranhadas redes de intrigas e mal dissimuladas violações de caráter. Em ambiente tão conturbado, as promoções, antes vistas como absolutamente normais e recebidas com tranquilidade por agraciados e não agraciados, transformam-se em um outro ponto de discórdia e disputa. Em alguns casos, e por uns tempos, passaram a ser secretas, pois, em sua maioria, deixavam de obedecer a critérios de competência, mas aos da subserviência e do puxa-saquismo, o que levava a que fossem comentadas à sorrelfa pelos corredores, em sussurros de profunda mágoa, feroz desaprovação e furibunda revolta. Ora, descoberta a inútil artimanha da escamoteação, as promoções voltaram a ser comunicadas, quando então deram origem a manifestações incontidas de afronta a que boa parte dos preteridos entregava-se, por não as terem também recebido. Não raro, um encabulado agraciado recebe, quase a desculpar-se meio envergonhado, felicitações de alguns dos que lá vão cumprimentá-lo, levando na bagagem derrisórias e mal dissimuladas insinuações de favorecimento ilícito. 

Outra característica das empresas da atualidade é que começam desde muito cedo a amoldar seus executivos à feição predatória dos interesses dos grandes capitais; a amestrá-los na arte do egocentrismo e da submissão à cupidez de executivos e acionistas majoritários gananciosos. São arregimentados ainda imberbes nas melhores universidades, antes que sejam inadvertidamente corrompidos por princípios éticos e morais ou pelo ideário do Iluminismo, malvistos dentro das corporações; nestas, egolatria e sujeição são atributos díspares a conviver em perfeita harmonia na alma dos que almejam subir a todo custo ao topo da pirâmide de cargos. Aqueles de ambição mediana vão, ao longo da carreira, perdendo força na dura escalada, sinal de que os tolhe alguma afeição, mal detectada no aliciamento, à família e aos princípios éticos e morais, o que é mal visto no ambiente em que trabalham; outros tantos, de ambição desmedida e notabilizados pela ânsia de suprir superiores de boas ideias, às vezes alheias, às vezes torpes, são os chamados highfliers, pássaros de alto voo, esses esbaforidos faustos do novo capitalismo que desde cedo se revelam dispostos a vender a própria alma pela efêmera posse de algum poder, graal sequiosamente procurado pelos que fazem de sua busca jamais saciada o objetivo maior de suas existências. Alguns sacrificam o apreço dos colegas, a família e a própria autoestima pela ilusão de escalar o organograma de uma organização que não lhes pertence e não hesitará em lançá-los fora de suas engrenagens quando apropriado for (assim funcionam as empresas, e nelas não são servidos almoços de graça, costumam dizer os norte-americanos, esses mestres do descarte pragmático, que agora cortam empregos em sua própria pátria ao transferir fábricas inteiras para lugares do mundo, quaisquer lugares, onde possam economizar um punhado de centavos de dólar com salários a cada dia mais miseráveis). À medida que escalam a pirâmide, os mais ambiciosos revelam-se grosseiros e mal-educados com os subordinados, que tratam como seus vassalos; outros tantos, dissimulados e de fala mansa, escondem-se sob falsa aparência amistosa: sorrateiros, são os mais maléficos e traiçoeiros. Com muita frequência, eles chegam aos mais altos postos, pois as corporações, com sua política de resultado a todo custo e do desprezo à lealdade, estimula e premia sua ambição. Quando lá chegados, e com raríssimas quebras deste preceito, muitos deles escondem na arrogância o seu vazio interior e o despreparo intelectual e emocional para habitar as alturas. Ofuscados pela busca insaciável do poder e da glória efêmeros, morrerão sem saber o que é emocionar-se com um trecho de música de qualidade, com os versos de um poema ou com o entardecer, que quase nunca veem, que jamais apreciam. Sob sua guarda empilha-se dinheiro em suas pirâmides e angustia-se a existência de milhões de trabalhadores ao redor do mundo. 

Sobra disso tudo um incompreensível paradoxo: empregados incompetentes, talvez por não ameaçarem o posto do chefe ou por estarem sempre a bajulá-lo, contra todos os prognósticos sugeridos pelo enxugamento compulsivo da reengenharia, levam vida boa no ambiente conturbado das empresas de agora: ninguém parece enxergar-lhes os defeitos, o que desfaz a velha crença de que bonis nocet, qui malis parcit[6] um lema muito encontrável em ensaios edificantes que circulam dentro das corporações que praticam, desavergonhadamente, esse e outros tipos de farisaísmo. Quase sempre esses poucos privilegiados trabalham oito horas por dia, o que é justo; recebem cargas leves e poucas atribuições, pois são morosos ou descuidados, o que faz com que seja compreensível não lhes cansar os ombros em demasia; também conseguem ler os seus jornais diários, o que é mais que legítimo, pois afinal ninguém suporta uma jornada sem pausas ocasionais para descanso; finalmente, gozam suas férias em épocas favoráveis a eles e suas famílias, o que é mais que justificável, pois mantêm seus cronogramas sempre zerados. Por outro lado, os mais experientes e despachados, os que sobram das degolas que expelem os que atingem um patamar de salários acima do oferecido pelo mercado, estes, carregam o piano, como se diz no linguajar dos cronistas do futebol: estão sempre a correr esbaforidos contra o tempo, às voltas com suas múltiplas atribuições; suas jornadas de trabalho são longas e extenuantes, razão por que mal veem os filhos quando ainda crianças (também não os veem depois que se tornam adultos e saem para seus próprios programas noturnos antes que os pais, se felizes por ainda possuírem um emprego, cheguem em casa já tarde da noite). Além de tudo, veem-se sempre soterrados por tarefas que nunca cabem em seus curtos longos dias; também nunca tiram férias (às vezes acumuladas) em épocas em que as possam gozar com toda a família, pois seus cronogramas estão sempre estourados - não passam mesmo de uns incompetentes que mal sabem gerenciar seu tempo, dizem deles lá dentro da empresa. 

Quanto às médias e pequenas empresas prestadoras de serviços, o seu futuro é incerto: dependem dos leilões de preços baixos e prazos curtos impostos pelas empresas que compram seus serviços. Quanto aos gerentes encarregados de negociar os contratos, há tempos alguns deles trancaram a ética e a moral na última gaveta de suas mesas, pressionados que são por quem os emprega, menospreza, sobrecarrega de serviço e apavora com o fantasma do desemprego - ou por sua própria incompetência. Em alguns casos, podem mesmo exigir uma comissão por fora, um hábito corriqueiro nas empresas públicas, que aos poucos se dissemina no ambiente das privadas, pois a reengenharia ensinou aos seus dirigentes que os serviços de auditoria interna não agregam valor ao produto. Uma vez fechado o negócio, e independentemente da pujança financeira da empresa contratante, o valor a ser pago pelos serviços em andamento ou já concluídos poderão ser rediscutidos, não obstante o que reze o contrato já assinado. Nesses casos, o preço será renegociado, sempre para baixo, e o dinheiro liberado a prestações (uma boa prática tomada emprestada do comércio varejista) ou postergado à exaustão, uma melhor prática[8] trazida da administração pública. A essa chantagem financeira submetem-se os prestadores de serviços terceirizados, especialmente os autônomos ou donos de empresas de pequeno porte, pois dependem dos favores de quem dispõe de maior poder de fogo, barganha e influência no mercado, no qual referências desabonadoras, mesmo se falsas, circulam com facilidade e são levadas a sério. Tais mazelas são consequência do que hoje acontece no mercado: por consenso, quem já passou dos 26 anos é considerado velho para iniciar uma carreira; quem dobrou a curva dos 40, caro, velho demais e por demais experiente para continuar a exercê-la, uma melhor prática talvez tomada emprestada dos jogos olímpicos, onde é essencial o vigor físico e o sacrifício extremado por um lugar no pódio. 

Portal através do qual presidentes, diretores e executivos vislumbram a possibilidade de aproximar-se assintoticamente do custo zero de produção, uma obsessão a atormentar-lhes os dias, o advento da reengenharia, os malefícios da globalização, o abandono pelos governos das teses acordadas em Bretton Woods, das políticas de bem-estar social e sua total rendição à desregulamentação dos mercados marcaram decisivamente o desvio brusco rumo à estratosfera das curvas dos salários e bonificações de presidentes e altos executivos das empresas. Concomitantemente, as curvas que assinalam as tendências dos níveis de emprego, dos salários dos trabalhadores e investimentos governamentais em políticas de bem-estar social se aceleraam rapidamente rumo ao chão. A esse respeito, matéria publicada em blog dos Estados Unidos[7] revela que em 2012 a média dos salários dos presidentes das 500 empresas que compõem o índice Standard & Poor 500 (S&P 500) é 354 vezes maior que a média dos salários dos trabalhadores. Na Alemanha, país que ocupa o segundo lugar na avaliação, a relação é de 150 para 1. E mais: como os bônus por desempenho e opções de compra de ações são dedutíveis de impostos, cada contribuinte subsidia a diferença entre seu salário e os salários dos presidentes das empresas em que trabalham; entre 1960 e 1980, a relação entre os salários dos presidentes de empresa e os do proletariado subiu de 20/1 para 30/1, atingindo a marca de 400/1 na virada do milênio; enquanto na última década as remunerações dos presidentes de empresa correram soltas, os salários reais da classe trabalhadora foram achatados, embora sua produtividade tenha aumentado drasticamente. Mais espantoso ainda: rotineiramente, mesmo quando não cumprem suas metas, presidentes de empresa recebem bônus por desempenho . 

Em razão do acima exposto, perdeu-se de uma vez e para sempre a certeza de que se manteria no emprego quem fosse competente, assíduo e responsável, pois as empresas atuais alardeiam desprezar o profissional de longa experiência - leia-se, de salário incompatível com os novos e a cada dia mais carcomidos patamares de remuneração -, e dispensam a lealdade que ele lhes devotava no passado. Permanência fugaz, submissão a longas jornadas não remuneradas, doação da própria alma, renúncia ao lazer, conformidade a salários em queda livre, intranquilidade, insegurança, estresse, desespero e surda revolta, são as novas palavras de ordem, uma estranha mealha de competências a ecoar outra era de iniquidades: 1848, ano em que trabalhadores miseráveis e camponeses esfomeados [9] puseram abaixo o reinado de Luis Felipe na França e sublevaram-se contra o império multinacional dos Habsburgo. Fracassaram em seu intento [10], pois quase tudo o que conquistaram, exceto pelo pouco que ganharam na França, voltou aos seus antigos lugares. Hoje, 1848 é só um marco do “triunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico repousava na competição da livre iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo no mercado mais barato (inclusive o trabalho) e vender no mais caro” [11] . 

Dizimados seus quadros mais experientes, as corporações passaram a delegar a auditores e consultores a análise de seus procedimentos administrativos e a viabilização de mudanças bruscas em seu modus operandi. Ao encarregar terceiros de reformular seus procedimentos operacionais e administrativos, o que com alguma frequência era levado a cabo em voos rasantes e sob denso nevoeiro, tais dirigentes livravam-se do risco e do ônus a eles inerentes, como também da responsabilidade pelo fracasso de um passo em falso dado no escuro. Por sua vez, donos confiantes e despreocupados do poder paralelo que exerciam dentro das organizações por onde circulavam com desenvoltura, consultores descomprometidos com os meios que os levariam à consecução de seus projetos davam feição às mudanças por eles sugeridas e afiançadas, seguros de que sempre seria possível acionar-se os freios do avião antes da decolagem, se algo de errado surgisse a meio caminho. Assim confiantes, mal perceberiam se o ponto de inflexão entre a interrupção bem sucedida e o desastre já não fora ultrapassado. Mas quem se importaria caso o avião se esborrachasse no chão? Muitíssimo dinheiro, além de tempo perdido e gente degolada, já foi jogado no lixo das empresas por conta disso, sem que cabeças no topo da pirâmide administrativa fossem cortadas. Quanto às consultorias, ainda hoje pouco se importam com as consequências, uma vez posto o dinheiro (que não é pouco) no bolso: são sabedoras de que o mercado tem memória curta e necessidades prementes de seus serviços, e que sempre necessitará de bacias profundas onde mãos de dirigentes despreocupados, pois que livres das auditorias internas, como sugerido pela reengenharia, e sem compromissos com os procedimentos que desencadeiam, possam ser lavadas de qualquer culpa. (A bem dizer, o que importa aos acionistas majoritários é o quanto a organização cresceu em relação ao balanço do ano anterior, pois pouco se importam se o lucro provém da exploração de trabalhadores miseráveis nos confins do antes chamado Terceiro Mundo, ou como consequência de salários a cada dia mais desgastados, ou da contínua eliminação de empregos) Tampouco essas consultorias são levadas às barras dos tribunais ou instadas a dar conta do dinheiro investido na canoa furada. Assim, isentas de culpa, continuam a circular pelo mercado, vendendo serviços que são depois auditados por um outro ramo do negócio a que pertencem, num conflito de interesses espúrio e desavergonhado. No fim das contas, as consequências sobrarão mesmo para os trabalhadores, que carregam a empresa nos ombros e pagam com a perda do emprego os prejuízos lançados no balanço ao término do ano fiscal. 

Mas não é só no interior das empresas que se esbarra com consultores ou seus afeiçoados prosélitos: as revistas de negócios estão sempre recheadas da sabedoria desses mestres manipuladores de bujarronas e velachos de empresas que singram os mares do capitalismo desregulado em busca de um novo rumo. Sua sabedoria é sempre formulada em conselhos aureolados de esotérica magia, como exemplifica o informe publicitário inserido em número da revista Você S/A, publicada quando os consultores experimentavam o auge de seu esplendor dentro das organizações (o exemplo é velho, mas tão representativo de uma época que hoje assemelha-se tão singela que julgo por bem mantê-lo vivo) [12]. A matéria, intitulada O mundo das consultorias de RH, faz descrições sucintas de alguns serviços disponíveis no mercado de então, entremeadas por pontos de vista de diretores e vice-presidentes de Recursos Humanos (uma outra espécie em extinção dentro das corporações, pois que já quase dizimados ou terceirizados), onde abundam exemplos de seu jargão profissional, a linguagem dos consultores. Sob o primeiro subtítulo da matéria, Executive Search, descobre-se que “o mundo das consultorias envolve vários tipos de serviços, alguns contratados pela alta cúpula de uma empresa, outros por executivos de níveis inferiores. Remunerados com honorários que giram em torno de 33% do pacote de salário anual do executivo pesquisado, os headhunters, ou ‘caça-talentos’, atuam basicamente na alta administração”. Opinião de um contrariado vice-presidente de RH: “Às vezes o networking é insuficiente ou esbarra em questões éticas. Para posições onde há carência de profissionais, o search amplia o radar e consegue captar mais talentos em campos escassos”. Choraminga um diretor: “O preço cobrado é excessivo”. Mais à frente, sob um outro subtítulo, Outplacement, a autora do texto elucida origens e constata a inexorabilidade do desemprego que se dissemina pelo mundo ao reconhecer que “fusões, reestruturações e novas estratégias que demandam recomposição do quadro funcional são hoje parte do jogo entre empregadores e força de trabalho”. Reforçando essa assertiva, uma pragmática diretora de RH reconhece que “a consciência de que, numa organização, estamos todos de passagem já está desenvolvida”, um truísmo do novo capitalismo. Concordando com esse ponto de vista, a redatora do texto reconhece que “neste contexto, têm ganhado força os serviços de outplacement patrocinados pelas empresas” que, segundo uma outra diretora, é o reconhecimento implícito da contribuição dada pelo profissional à companhia. Finalmente, sob o subtítulo “Aconselhamento de Carreira” (estranhamente escrito em português), oferecem-se variados tipos de salva-vidas aos executivos à deriva: “Outra vertente que está conquistando espaço é o das consultorias de aconselhamento de carreira, que oferecem programas em assessment, counseling, mentoring, coaching e congêneres”. 

Que os menos afeitos ao idioma dos consultores, presidentes de empresa, executivos emproados e profissionais de recursos humanos não sintam-se constrangidos caso as diversas palavras do idioma inglês, realçadas em itálico no parágrafo anterior, padeçam de significados. Dentre as que merecem elucidação estão as enfileiradas na última citação, que guardam em si tudo o que pais e mães (a que ponto chegamos) exercem ao educar seus filhos segundo preceitos hoje quase ultrapassados dentro dos lares: testar e avaliar suas habilidades, encorajá-los, aconselhá-los, acompanhar seu aprendizado e dar um reforço nas tarefas da escola, quando necessário for; quanto a congêneres, que todos sabem o que significa, no contexto a palavra é tão supérflua quanto obscura; quanto a outplacement, o neologismo disfarça um rito de despedida encenado nas empresas ainda temerosas (poucas delas nos dias atuais) do que vão dizer lá fora os infelizes executivos que recebem um pé no traseiro em seu interior. Na verdade, outplacement recende a falso interesse ou, voltando ao idioma dos consultores, a crocodile tears, o nosso bem conhecido “lágrimas de crocodilo”. 

Finalmente, na página 25 da revista, a legenda de uma foto informa que uma empresa de São Paulo, “encontrou uma forma inusitada de promover a integração de sua equipe: No Dia das Bruxas (porque não Halloween?) todos os funcionários de seu Call Center trabalharam fantasiados”. Dessa forma, além de mostrar que já importávamos bobagens como o Dia das Bruxas, o texto ainda reforça a suspeita de que os laços afetivos dentro das empresas, a cada dia mais e mais tênues e esgarçados, que era necessário introjetar nas mentes de seus efêmeros passageiros sentimentos de coleguismo e camaradagem. 



_________________________ 

[1] Michael Hammer e James Champy, Editora Campus(1994). 

[2] https://hbr.org/…/reengineering-work-dont-automate-oblitera… 

[3] Richard Sennett, A Corrosão do Caráter, Editora Record (2000) p. 59. 

[4] Mais-valia: “deduzindo-se o custo das matérias-primas, das máquinas e do salário, o restante do valor da mercadoria constitui a mais-valia, na qual estão contidos todos os lucros”. Karl Marx, A Origem do Capital – A Acumulação Primitiva. Centauro Editora, 2000, p.11, nota de rodapé. 

[5] Esse fragmento de frase foi extraído de seu contexto original: “Enquanto as empresas consistirem em pessoas, algum grau de verificação e controle será inevitável.”. Seu sentido guarda, indubitavelmente, subliminar esperança. 

[6] Ofende aos bons quem protege aos maus. 

[7] A matéria, de Alan Pyke, foi publicada em 24/09/2014 no blog ThinkProgress com o título “Os Norte-Americanos não Imaginam quão Menos Eles Ganham que os Presidentes das Empresas em que Trabalham” (https://thinkprogress.org/americans-have-no-idea-how-much-…/). 

[8] Melhores práticas (ou best practices) é um conceito de contornos vagos, celebrado em livros e manuais de administração. Na verdade, as best practices não passam de métodos e técnicas dinâmicas em constante evolução, cuja momentânea eficácia é, em princípio, superior a de outras tantas técnicas já antes experimentadas para o atingimento (termo muito usado por executivos e consultores) de metas preestabelecidas. 

[9] “... Os que fizeram a revolução foram inquestionavelmente os trabalhadores pobres. Foram eles que morreram nas barricadas urbanas [...] Foi sua fome que alimentou as demonstrações que se transformaram em revoluções” – Eric J. Hobsbawn, A Era do Capital 1848-1875, Editora Paz e Terra (2000), p. 35. 

[10] “Alguns contemporâneos conceberam as jornadas de junho de 1848, esse primeiro embate de vulto entre a república liberal e o proletariado insurrecto de Paris, como um genocídio social, uma tentativa sem precedentes de exterminar toda uma classe da sociedade” [...] “Assim, pode-se compreender o acontecimento das jornadas de junho, que parecem absolutamente inimagináveis num século XIX civilizado, como o paradigma da vida moderna, como o fruto tão monstruoso quanto natural do cotidiano burguês” – Dolf Oehler, O Velho Mundo Desce aos Infernos. Editora Companhia das Letras(1999), p. 10, p. 23. 

[11] “Desde então, não iria mais ocorrer nenhuma revolução social geral do tipo buscado antes de 1848 nos países ‘avançados’ do mundo’” [...] “A revolução industrial (inglesa) havia destruído a revolução política (francesa)” – Eric. J. Hobsbawm, op.cit., p. 21. 

[12] Você S/A, novembro/2001, pp. 66-70 





(Ilustração: Al Margen - Argentina)




quarta-feira, 24 de outubro de 2018

EN SOURDINE / EM SURDINA, de Paul Verlaine








Calmes dans le demi-jour

Que les branches hautes font,

Pénétrons bien notre amour

De ce silence profond.



Fondons nos âmes, nos coeurs

Et nos sens extasiés,

Parmi les vagues langueurs

Des pins et des arbousiers.



Ferme tes yeux à demi,

Croise tes bras sur ton sein,

Et de ton coeur endormi

Chasse à jamais tout dessein.



Laissons-nous persuader

Au souffle berceur et doux

Qui vient à tes pieds rider

Les ondes de gazon roux.



Et quand, solennel, le soir

Des chênes noirs tombera,

Voix de notre désespoir,

Le rossignol chantera.




Tradução de Onestaldo de Pennafort:

Calmo, na paz que difunde

a sombra nos altos ramos,

que o nosso amor se aprofunde

neste silêncio em que estamos.



Coração, alma e sentidos

se confundam com estes ais

que exalam, enlanguescidos,

medronheiros e pinhais.



Fecha os olhos mansamente

e cruza as mãos sobre o seio.

Do teu coração dolente

afasta qualquer anseio.



Deixemo-nos enlevar

ao embalo desta brisa

que a teus pés, doce, a arrulhar,

a relva crestada frisa.



E quando a noite sombria

dos carvalhos for baixando,

o rouxinol a agonia

da nossa alma irá cantando.





Tradução de Guilherme de Almeida:




Calmos, na sombra incolor

Que dos galhos altos vem,

Impregnemos nosso amor

Deste silêncio de além.



Juntemos os corações

E as almas sentimentais

Entre as vagas lassidões

Das framboesas, dos pinhais.



Cerra um pouco o olhar, no teu

Seio pousa a tua mão,

E da alma que adormeceu

Afasta toda intenção.



Deixemo-nos persuadir

Pelo sopro embalador

Que vem a teus pés franzir

As ondas da relva em flor.



A noite solene, então,

Dos robles negros cairá,

E, voz da nossa aflição,

O rouxinol cantará.



(Ilustração: Leonid Afremov – desire)





domingo, 21 de outubro de 2018

UNION STREET, de Irvine Welsh







Mais um dia de perambulação estoica pela cidade, percorrendo a Union Street e sendo açoitado pelas rajadas de vento. Edimburgo podia ser um lugar desolador, mas Aberdeen realmente levou a pior. Dá pra desperdiçar uma vida inteira esperando o céu trocar de cinza pra azul. Mas tô passando a maior parte do meu tempo aqui agora e indo menos pra casa. 

Na última vez que voltei, me entupi de heroína com o Matty, o Spud e o Keezbo no Swanney. 

Não lembro como cheguei no apê do Swanney depois de sair de uma noite de drogas na moradia do junky veterano Dennis Ross naquela nojeira de Abbeyhill, embora eu lembre vagamente de vasculhar os bolsos por uma eternidade, procurando grana pra pagar o viado do táxi que não parava de cornetear na minha orelha, mas retornei ao mundo consciente em Tollcross. Lembro do sol nascendo e derramando na sala do Johnny uma luz devastadora que jogou de volta em cima da gente toda a nossa decadência e fraqueza humana. Levantei e fui com o Matty e o Spud encontrar o resto da turma no Roseburn Bar, que abriu cedo antes do clássico entre Hearts e Hibs, e depois eu e mais uns outros continuamos bebendo em Haymarket. As duas torcidas tavam se ameaçando pela rua e aquela merda toda, mas a fileira de policiais se mantinha firme entre elas. A partida foi um empate suado e sem gols. Como eu tava lesado, quase todo o jogo passou batido por mim, mas lembro que o Hibs quase meteu uma bola no finalzinho; McBride driblando um Jambo e passando pro Jukebox, que deixou outro marrom pra trás e passou pro Steve Cowan, que deu um petardo de direita que passou raspando e derrubou o goleiro. Sick Boy, o papa-feto, também tava entupido de heroína, mas continuava totalmente maluco, arrastando aquela pobrezinha da Maria atrás dele. Ela é meio novinha pra ele, e parecia totalmente perdida no meio do oceano revolto de malucos. 

Depois do jogo, rolaram várias sandices com o Begbie. Ele, o Saybo e uns outros desceram a porrada nuns otários em Fountainbridge. Esse viado vai acabar preso em Saughton se continuar com essa merda, tenho certeza. Mas o caos de Edimburgo me fez lembrar do quanto aprendi a gostar do ritual da minha vida em Aberdeen. Me fez perceber que minha pretensão de ser um espírito livre era besteira. Na verdade, eu saturava a minha vida de rotina até ficar tão irritado que precisava subverter tudo com um rompante dramático. Mergulhar na heroína ajudava. Aqui, porém, eu tinha Fiona, meus estudos e minhas caminhadas. E minha necessidade de visitar Edimburgo tinha diminuído: eu tinha encontrado um fornecedor de heroína. 

Caminhei pra caramba; investigando as ruas por horas sem fim, não importava o clima. Parecia que era sem rumo, mas eu era atraído invariavelmente pra área da estação de trem, na direção das docas. Eu parava e ficava olhando os barcos grandes saindo pra Orkney, Shetland e vai saber pra onde. As gaivotas gritavam em círculos no céu; às vezes eu caminhava pela Regent Quay e era como se elas tivessem dando risada da minha cara, como se soubessem o que eu pretendia, mesmo que eu próprio não soubesse. 

Aqueles pubs náuticos: o Crown and Anchor Bar, a Regent Bridge Tavern (um barzinho ótimo) e o Cutter Wharf. E o Peep Peeps, bem mais sórdido, que fica na ruazinha lateral e onde eu sempre acabava parando; ficava ali sentado com minha cerveja, mas eu tava querendo outra coisa. Esperando chegar. Quase farejando. Sentado sempre no mesmo lugar, convencido de que ia aparecer, se eu esperasse o suficiente. 

Foi lá que avistei ele; um viado sentado sozinho do lado do jukebox, lendo o Financial Times, com uma Pepsi na frente. Intocada. Um cabelo comprido, ensebado, preto e começando a ficar grisalho, no alto do corpo magro e cadavérico e com uma tonalidade azul translúcida. Uma barba rala e irregular brotando do ninho de espinhas amarelo-mostarda no queixo. Os dentes grandes e amarelados pareciam que iam sair voando se o viado espirrasse. Em outras palavras, ele transpirava heroína. Eu não. Eu era um estudante arrumadinho com uma namorada bonita. Eu não tinha como dar sinal, não com meus olhos brilhantes, pele lisa e dentes brancos. A Fiona tinha até me ensinado a usar fio dental. Mesmo assim, quando ele me viu, como se soubesse na hora. E eu também. Sentei do lado dele. 

– Tudo em paz? – perguntou ele. 

Não fazia sentido enrolar. – Não muito. Tô meio mal. 

– Tremelique? 

Vai saber que porra isso queria dizer, mas soou correto, e ao reconhecer o meu estado foi como se eu tivesse me dado permissão pra me sentir uma bosta. 

Antes, o mal-estar era um sentimento vago de sintomas como os de uma gripe; membros pesados, cabeça boiando, dores difusas. Agora havia a sensação de alguma coisa urgente escondida por trás desse abatimento. 

– Tá precisando de um remédio, então? 

– Sim. 

Don me lançou um olhar baço como uma vela bruxuleante, similar ao de outros viciados mais velhos que conheci pelo caminho. – Sai e dá uma voltinha no quarteirão – disse-me ele com uma voz metálica e anasalada – e eu te encontro no portão das docas daqui a dez minutos – concluiu antes de voltar ao seu Financial Times. 

Tive de esperar 17 minutos até o Don se dignar a sair do bar e vir na minha direção, parecendo tão detonado quanto eu. Eu não podia estar fisicamente viciado, não logo depois de um fim de semana me injetando, mas minha mente e meu corpo tavam se contorcendo de antecipação por uma dose. Fiz força pra esconder a excitação e a ansiedade quase massacrantes no caminho até o apê imundo dele, onde fechamos a compra. 

A casa do Don podia ser a do Swanney, Dennis Ross, Mikey Forrester ou mesmo a nossa na Montgomery Street. Os mesmos cartazes meio descolados no papel de parede horrendo com padrões opressores colocado ali por uns viados que já tinham morrido ou tavam tão velhos que dava na mesma. Os cestos de lixo transbordando, uma pilha caótica de pratos numa pia que lembrava uma cidade mediterrânea atingida por um terremoto, e os obrigatórios montes de roupa suja pelo chão: os selos de garantia dos fracassados crônicos e desleixados em toda parte. 

Don preparou a dose pra nós dois. Dei tapas no braço direito, fazendo a minha melhor veia no pulso saltar com obediência, e dei a picada. O produto era bom e o barato foi excelente. Percorreu meu corpo inteiro e o impacto me fez desabrochar irresistivelmente como a florescência da primavera. De repente alguma coisa frutosa e azeda começou a subir do meu estômago. Fiz menção de vomitar e Don meteu uma edição antiga do Financial Times embaixo do meu rosto, mas eu empurrei de volta. Aquele momento tinha passado e agora eu era invencível. 

Embora eu não precisasse de mais nada, a não ser me deitar e curtir o efeito (incrível como a heroína torna possível ouvir até esses lixos imundos como a fita do Grateful Dead que o Don botou pra tocar), ele insistiu em puxar papo, mesmo depois de se picar. O viado aplicou uma tremenda duma dose e não pareceu se afetar quase nada. Fiquei imaginando a quantidade que ele andava injetando. – Mas então... cê é de Edimburgo, é? Tem heroína boa de sobra por lá. 

– Sim... – falei. Tive vontade de explicar que no Leith a gente se considerava separado de Edimburgo, mas do jeito que eu tava agora, derretido e curtindo a onda, aquilo parecia uma questão trivial. 

– É de lá que vem tudo. – Ergueu um saquinho plástico cheio de pó branco contra a luz de uma lâmpada descoberta. – É lá que fabricam: no belo centro de Gorgie. Cê conhece o Seeker? 

Sei lá que caralho é esse papo de Gorgie, eu cresci no Leith, mas que sera. – Só pela reputação. 

– Pois é, ele é barra-pesada, cara. Melhor ficar longe desse maluco. 

Sorria diante da doce futilidade de tudo aquilo. Era inevitável que eu e esse tal de Seeker nos tornássemos no mínimo sócios de alguma espécie. A única coisa surpreendente era que isso ainda não tinha acontecido. Então fiquei ali sentado, ouvindo a ladainha monótona do Don e vendo a sala se enchendo de escuridão. 

Eu não tava nem um pouco interessado em nada que ele tava dizendo; o viado podia estar falando do cachorrinho que deu de presente pra sobrinha ou nos cadáveres que tavam debaixo do assoalho, mas a voz ritmada dele tinha um efeito calmante e confortante. 

Quando consegui me mexer de novo, fui embora e voltei pro meu quarto na moradia estudantil. A Fiona tinha deixado um bilhete por baixo da porta. 

                      M 

                      Passei aqui e não encontrei nenhum lindo 
                      limpinho do Leith. Buá. 

                     Te vejo amanhã na aula de Renascimento 
                     ou passo aqui de noite pra 
                     tomar um chá... e bolinhos? 

                      Com amor 

                      F xxxx 

O bilhete tremia na minha mão. Eu amava essa garota, amava mesmo. Senti um espasmo terrível por dentro ao perceber, ali e naquele instante, que em breve ela ia ser menos importante pra mim do que um vagabundo que eu tinha acabado de conhecer e com quem não ia muito com a cara. Mas foi só um sussurro passageiro, logo abafado pelo discursinho da heroína, que cantarolava: “Cê tá bem, tá tudo bem.” 

Mas não fui atrás dela. Fiquei deitado na minha cama, encarando as espirais do reboco do teto. Depois de cair num sono sofrido e anêmico, acordei com contrações de fome na luz fraca do início do dia. Percebi que não tinha comido nada no dia anterior. Minhas roupas tavam no chão, do lado da cama; de algum jeito eu tinha me livrado delas durante a noite. Tinha uma mancha amarela na dobra do meu braço. Naquela manhã, decidi não ir na aula sobre Renascimento. 

Em vez disso, fui caminhar. Tava frio. Durante cerca de um minuto, o céu cinzento se abriu com ferocidade e a luz do sol conseguiu passar, se derramando por cima da cidade e refletindo no granito cintilante. O sangue pulsou na minha cabeça, me dando vontade de estar em outro lugar. Em seguida o sol sumiu e o manto cinzento nos encobriu de novo. Eu preferia assim; gosto do jeito que minha mente se desacelera ao caminhar debaixo de um céu desses, até eu ficar amortecido e vazio de pensamentos, livre do peso opressor das infinitas escolhas mundanas. 

Eu só tinha que trocar uma sepultura por outra, mais acima no litoral. Mas tudo bem; Aberdeen me servia. Gostava da cidade e gostava das pessoas em geral. Eram calmas e tranquilas; diferentes da maioria dos cretinos presunçosos e autorreferentes das Terras Baixas, que vivem se gabando, acreditando que cê achava que eles eram grande coisa, enquanto na verdade são todos um pé no saco. Em vez da vida estudantil, em preferia beber com os velhos que me contavam histórias de pesca de arrastão e do cotidiano das docas. Coroas jogadores de bola que falavam de partidas e brigas do passado; eles raramente sentiam necessidade de enfeitar as histórias em favor próprio, era tudo muito casual. Eu sempre era o único aluno nesses lugares. 

Mesmo assim, isso tudo ficava muito perto de Marischal College, o prédio da Universidade de Aberdeen, que parecia um projeto desenhado em papel quadriculado. Só de vez em quando eu me aventurava a entrar no bar do diretório estudantil com o Bisto e alguns outros, ou com a Fiona. Mas eu evitava ao máximo. Uma vez fui arrastado até lá pra comemorar o aniversário da Joanne. 

Ela ficou meio bêbada e falou comigo de um jeito agressivo e condenatório: – O que cê vive fazendo, Mark, onde cê vai? Alguma outra pessoa disse algo sobre “o misterioso Mark Renton” e percebi que a Fiona me encarava com um olhar de incentivo. Tava todo mundo prestando atenção em mim, e eu só ri e disse alguma coisa sobre gostar de andar por aí. Na verdade, eu tava passando uma boa parte do meu tempo livre frequentando os bares da área das docas, esperando o Don. 

Fiona apareceu de novo numa manhã de sábado. Ela não era nem um pouco boba, mas, embora a gente tivesse um relacionamento, cada um também tinha uma vida independente. Edimburgo ficava perto o bastante pra que eu pudesse dizer pra ela que ia passar a noite em casa por um motivo qualquer, em geral pra ficar de olho na minha família fragilizada. Mas eu ia pro sofá do Don, que ficava numa parte de Aberdeen em que poucos alunos ou professores apareciam. Dessa vez, porém, meu estado geral parecia confirmar a impressão que minha ausência das aulas durante a semana já tinha causado, ou seja, a de que algo tava errado. – Mark... onde cê tem andado... tá tudo bem? 

– Acho que peguei uma gripe daquelas de derrubar. 

– Cê tá com uma cara horrível... vou descer e comprar um antigripal, amado. 

– Cê pode me fazer uma cópia das suas anotações do Renascimento? 

– Claro que posso. Cê devia ter me falado que tava mal desse jeito, bobalhão – disse ela, me dando um beijo na testa suada e saindo. Voltou cerca de meia hora depois com os remédios. Depois me deixou ali e foi pro trabalho que ela fazia no sábado. Esperei um pouco e então, ansioso pra sair do cheiro rançoso e químico daquele quarto, o meu cheiro (como ela podia não sentir o meu cheiro, se eu próprio sentia?), fiz a mesma coisa que ela e fui pra rua. 

Fiona fazia trabalho voluntário nos sábados com crianças carentes; uns pivetinhos briguentos que adoravam ela. Psicopatas embrionários com orelhas de abano ficavam vermelhos de vergonha quando ela os cumprimentava; garotinhas de olhar fulminante, mascando chiclete, começavam a implorar atenção de uma hora pra outra. Algumas semanas atrás, num dos meus passeios sem rumo, vi ela encontrando uma turma deles em frente ao teatro Lemon Tree. Parecia feliz; era careta. Andava falando sobre a gente procurar um apê pra morar junto ano que vem. Depois formatura, emprego das nove às cinco e outro apê com financiamento. Depois noivado. Depois casamento. Financiamento maior ainda pra comprar uma casa. Filhos. Despesas. Depois os quatro Ds: desencanto, divórcio, doença e decesso. Apesar dela fazer questão de dizer o contrário, ela era assim. Era isso que ela esperava. Mas eu amava ela, e por isso lutava pra esconder os sentimentos ruins que ela despertava em mim. Ali parado na rua, vendo ela conduzir a garotada como um bando de gatos pra dentro do teatro, eu sabia que nunca ia conseguir ser daquele jeito. Nunca ia poder ter ela: ter ela de verdade, no sentido de me entregar pra ela. Ou talvez eu só estivesse agindo como um babaca. Tinha mais que uma migalha de aceitação pra mim no mundo dela. As aspirações dos meus pais eram dignas. Eu odiava essa merda dessa palavra. Me dava calafrios. 

Mas eles se importavam. 

Dentro da livraria, fiquei numa posição de onde podia espiar, escutando o que diziam na cafeteria ao lado. Tinha um quatro-olhos desajeitado e entusiasmado junto com Fi e as crianças. – Ei, meninada, podem largar o papel e caneta agora mesmo e me acompanhar? 

Ela acabaria ficando com um cara como ele. Talvez uma versão mais descolada, que comia alguém de vez em quando, talvez um viado um pouco mais arrogante, que cedo ou tarde acabaria sacaneando ela; mas essencialmente a mesma coisa. Dá pra fazer o cara vestir um anoraque ou meter óculos de fundo de garrafa bele, ou botar uma camisa de rúgbi e um monte de músculos; não faria diferença alguma, um janotinha é sempre um janotinha. 

Vou pra casa. Quando Fiona chega, tô sentado esperando. Não tomei nada além de dois antigripais. O cabelo dela tá molhado de chuva. Ela tira uma toalha da mochila e se seca. A chaleira aquece e eu preparo um pouco de chocolate quente. 

Sabendo da minha queda por cabelos molhados, Fiona lança um olhar na direção da cama, mas então percebe que o grau da minha doença elimina a possibilidade de que eu a agarre e jogue no colchão. – Cê tá tremendo, amor. 

Devia ir no médico... 

– Posso te contar uma coisa? 

Assim que as pupilas dela se dilatam e ela diz “É claro, Mark, o que foi?”, sei que não vou ser capaz de dizer o que pretendo, mas pra esconder isso tenho que contar alguma outra coisa igualmente profunda e importante. 

– Meu irmão menor – me pego dizendo, quase chocado com minha própria voz, como se uma outra pessoa no recinto tivesse me dedurado. – Nunca contei isso pra ninguém... 

Ela assente com a cabeça, enrola os cabelos com a toalha e pega a caneca fumegante. Parece aquela mina que toma um pé na bunda no comercial de Nescafé. 

Limpo a garganta enquanto ela senta na poltrona em posição de lótus. – O Pequeno Davie, eu percebi uma vez, tinha uma queda pela Mary Marquis, que apresentava o noticiário na TV. Cê deve ter visto, ela tem um visual... italiano, digamos; cabelo preto, um monte de maquiagem, com atenção especial aos olhos, e batom vermelho brilhante. 

– Acho que sei quem é, amor. A do jornal da noite? 

– Sim, ela mesma. Bom, eu meio que percebi que o Pequeno Davie ficava agitado quando ela falava pra câmera. A respiração dele ficava mais intensa. E não dava pra não reparar no que acontecia ali na calça de moletom... 

Fiona dá um aceno de cabeça compreensivo. Tem uma mancha vermelha no joelho da calça jeans dela, eu não tinha visto antes. Deve ser tinta de alguma oficina com a crianças. 

– Eu costumava ficar cuidando dele na hora do chá, nas sextas. Quando começava o noticiário local, eu via o Davie encarando a tela com o pau visivelmente ereto, e aí comecei a pensar, caralho, ele tem 15 anos, porra, coitado do pirralho... entende o que eu tô dizendo? 

– Sim – diz Fiona com um tom pesaroso, mas analítico. – Tipo, ele tem uma sexualidade, mas nenhuma válvula de escape. 

– Exatamente – expiro, aliviado porque finalmente alguém é capaz de entender essa porra. – Então... decidi que ia bater uma punheta pra ele. 

Os olhos da Fiona se cravam no chão por um momento e depois procuram os meus. Seus lábios se comprimem. Ela não tá me estimulando a prosseguir nem me pedindo pra parar. 

Respiro fundo. – E foi o que eu fiz. Ele pareceu ficar aliviado. 

– Ai, Mark... 

– Eu sei, eu sei... ele é meu irmão e é um ato sexual, então não foi uma atitude muito sensata. Hoje eu percebo isso. Só que na época eu só tava pensando em aliviar o tormento dele, igual a bater nas costas dele pra ajudar a drenar o fluido do peito. Então eu fiz. O pobrezinho ficou maluco e esporrou no que pareceu ser uma fração de segundo. Depois ele caiu no sono, todo feliz. Nunca tinha visto ele tão em paz. Limpei ele, e então ele tirou a melhor soneca da vida. 

De modo que eu pensei: tá tudo bem. 

– O que aconteceu? – Ela relaxa a posição e larga a caneca no piso, sem tirar os olhos de mim nem por um instante. 

– Ele começou a ficar na expectativa. Crianças autistas são programadas pra aderir a uma rotina. Como um relógio. Refeições sempre na mesma hora, sono sempre na mesma hora. Aquilo virou uma espécie de presentinho de sexta-feira pra ele; não fossem os outros problemas físicos, ele continuaria fazendo sozinho, dia e noite. Mas nos outros dias em que a TV ficava ligada ele olhava pra tela, depois pra mim e gritava – e aí eu imito aquele guincho horrível – MAY-HAY! MAY-HAY!... e é claro que eu não podia mais ajudar, com todo mundo em casa. 

Agora a expressão da Fiona é de aversão. Ela senta bem reto na poltrona, de pernas cruzadas. 

– Todo mundo pensava que ele tava gritando “Marky ” e achava bonitinho. Só eu e ele sabíamos que ele tava gritando “Mary ” – explico, e agora a Fiona tá tão imóvel que começo a ficar nervoso. – Cê acha que eu fiz errado? 

– Não... – diz ela, hesitante – claro que não, amor... é só que... é só que... cê não podia contar pra eles do que aconteceu com o Davie? 

– A gente não tem esse tipo de relação. São os meus pais. 

Fiona acena com a cabeça pensativamente, pega a caneca e acaricia entre as mãos. 

– Bom, continuei batendo punheta pra ele, toda sexta, diante da imagem da Mary na tevê. Não era fácil; foi ficando cada vez mais complicado. Ela tava lendo as notícias no estúdio e ele tava quase gozando, mas aí cortavam pra uma tomada externa e ele se encolhia todo, gritava e às vezes tinha um acesso de tosse. A coisa continuou nesse rumo. Chegou a um ponto em que eu tinha que caprichar muito pra conseguir fazer ele gozar. Bem, aí teve o dia em que esqueci que o Billy tinha folga em Belfast e tava vindo pra casa. Não ouvi ele chegando de mansinho, como ele costumava entrar pra fazer surpresa pra mãe. Ele chegou por trás da gente no sofá... bem na hora que a Mary apareceu de novo na tela... 

Os olhos da Fiona ficam arregalados. – Então... então... ele te pegou fazendo aquilo no Davie? Seu irmão, o Billy? 

– Pior. A caceta do Pequeno Davie entrou em erupção, o jorro saiu voando no ar e a porra acertou o Billy em cheio como uma serpentina, no rosto e na frente do uniforme do exército. 

Fiona leva as mãos à boca. – Ai meu Deus... ai, Mark... o que aconteceu? 

– Ele me arrancou pra longe do Davie, me afastou do sofá e me acertou um chute nas costelas. Levantei e até que consegui acertar uns socos, mas tomei uma surra. O Pequeno Davie só gritava. Os vizinhos escutaram a briga e a sra. McGoldrick começou a bater na porta ameaçando chamar a polícia, o que provavelmente me livrou de uma sova muito maior. A gente acabou se acalmando, mas quando o pai e a mãe chegaram perceberam na hora que a gente tinha brigado. Fomos interrogados e cada um contou seu lado da história. 

Começou a chover. Escuto os pingos batendo no vidro. 

– O que eles disseram? 

– Eles mais ou menos ficaram do lado dele. Disseram que eu era um merdinha doente e depravado. Eu mal tinha acabado o colégio; não conseguia articular o que pretendia ao fazer aquilo com ele. O direito dos deficientes físicos à sexualidade! – Bato no peito, como se ela tivesse me questionado, mas ela se mantém tesa, concordando com a cabeça numa tentativa de mostrar empatia. 

Diante do silêncio dela, porém, me dou conta da impressão que tô passando. Sei que se Fiona tivesse uma irmã deficiente, a última coisa que passaria pela cabeça dela seria tocar uma siririca pra mina diante da imagem de, digamos, o David Hunter de Crossroads. Pela primeira vez, sou obrigado a reconhecer que talvez eu seja, em algum nível, um pervertido, ou pelo menos um cara equivocado. 

Meu tom de voz se reduz a um apelo angustiado: – Ele tava sofrendo, e eu só tava tentando dar algum alívio pro pobre desgraçado. Não dá pra dizer que eu gostei de fazer aquilo! 

Por um momento, no meio da luz que se esvai, Fiona me observa com um olhar quase vazio, mas seu rosto mantém a compostura de uma pessoa perfeitamente em paz. – Você não pode dizer isso pra eles agora? Pros seus pais? 

– Já tentei algumas vezes, mas o momento certo nunca chega. Além disso, acho que já decidiram o que pensam de mim. 

Ela assopra entre os lábios apertados. – Por que não escreve uma carta pra eles? Coloca tudo ali, preto no branco. 

– Não sei, Fi... ia parecer que eu tava dando mais importância que o devido... – digo, me sentindo cansado e enjoado de repente. Me encosto na poltrona, mas em seguida me inclino de novo pra frente e cruzo os braços em volta do corpo. 

– Mas é óbvio que isso significa alguma coisa pra eles, Mark. E pra você também, do contrário cê não estaria contando isso pra mim. 

– Eu sei. – Olho pra ela com ar derrotado. – Vou pensar nisso. Obrigado por escutar. 

– É claro, amor... – Fiona abre um sorriso tristonho, percebendo como estou suando e me contorcendo. – Vou sair agora, querido, e te deixar descansando um pouco – ela sussurra, e então põe a mão e dá um beijo na minha testa suada. O abraço dela parece duro e pesado, e fico aliviado quando ela sai. 

Assim que passa um bom par de minutos, desço até o telefone público e ligo pro Sick Boy na Montgomery Street. Começo a falar descontroladamente, conto a respeito de Don e pergunto como ele anda fazendo pra descolar heroína. Ele me diz: – Cê não se interessa por nada além de um pico. 

Protestos parecem inapropriados e fúteis, e pela primeira vez me dou conta de que essa afirmação é basicamente verdadeira. O que me faz pensar: tá realmente na hora de parar. Não ouço mais nada que ele diz até as moedas acabarem. 

Cê precisa parar com isso agora mesmo ou vai arruinar tudo. 

O que eu fiz, então, foi sair e atravessar a pé a cidade fria e tempestuosa até a Union Street. 



(Skagboys; tradução de Daniel Galera e Daniel Pelizzari) 



(Ilustração: Samadhi Rajakarunanayake – autismo)