sábado, 27 de julho de 2013

UM ACIDENTE CHOCANTE, de Graham Greene






I


Jerome foi chamado ao gabinete do prefeito no intervalo entre a segunda e a terceira aula numa manhã de quinta-feira. Não tinha receio de encrenca, pois era uma sentinela - nome que o proprietário e diretor de uma dispendiosa escola preparatória resolvera dar a garotos estudiosos e dignos de confiança das séries mais atrasadas (de sentinela passava-se a guardião e por fim, antes de se sair, como era de esperar, para Marlborough ou Rugby, cruzado). O prefeito, Mr. Wordsworth, sentado atrás de sua mesa, tinha um ar de perplexidade e apreensão. Ao entrar, Jerome teve a estranha impressão de estar causando certo temor.

- Sente-se, Jerome - disse Mr. Wordsworth. - Vai tudo bem com a trigonometria? 

- Vai, sim senhor.

- Recebi um telefonema, Jerome. Da sua tia. Lamento dizer que tenho más notícias para você.

- É?

- Seu pai sofreu um acidente.

- Oh!

Mr. Wordsworth encarou-o com alguma surpresa. 

- Um acidente grave.

- É mesmo?

Jerome adorava o pai: o verbo é correto. Como o homem recria Deus, Jerome recriou seu pai, transfigurando um irrequieto escritor viúvo num misterioso aventureiro que viajava por lugares remotos: Nice, Beirute, Maiorca, até mesmo as Canárias. Mais ou menos aos oito anos Jerome passara a acreditar que o pai era ou traficante de armas ou agente do Serviço Secreto Britânico. Então veio-lhe à mente a possibilidade de seu pai ter sido ferido numa "saraivada de balas de metralhadora".

Mr. Wordsworth brincou com a régua sobre a escrivaninha. Parecia sem saber como continuar. Afinal disse: 

- Sabia que seu pai estava em Nápoles?

- Sabia, sim senhor.

- Sua tia recebeu comunicação hoje do hospital.

- Oh!

Mr. Wordsworth explicou em desespero:

- Foi um acidente de rua.

- Mesmo, senhor? - A Jerome parecia perfeitamente natural que chamassem a isso acidente de rua. A polícia naturalmente atirara primeiro: seu pai não mataria a não ser em último recurso.

- Infelizmente seu pai ficou de fato gravemente ferido.

- Oh!

- Na realidade, Jerome, ele morreu ontem. Sem sentir dores.

- O tiro pegou bem no coração?

- Como? Como disse, Jerome?

- O tiro pegou bem no coração?

- Não houve tiro nenhum, Jerome. Um porco caiu em cima dele. - Uma convulsão inexplicável apoderou-se dos nervos faciais de Mr. Wordsworth; por um momento pareceu que ele ia estourar na gargalhada. Fechou os olhos, compôs a fisionomia e falou depressa como se fosse necessário expelir a história com a maior rapidez possível: 

- Seu pai ia andando numa rua de Nápoles quando um porco caiu em cima dele. Um acidente chocante. Ao que tudo indica, nos bairros mais pobres de Nápoles é costume criar porcos nos balcões das janelas. Esse tal estava no quarto andar. Tinha engordado demais. O balcão quebrou-se. O porco caiu em cima de seu pai.

Mr. Wordsworth deixou a escrivaninha e foi para a janela, dando as costas a Jerome. Estremeceu um pouco, emocionado.


II


- Que aconteceu com o porco? - perguntou Jerome.

Isso não era insensibilidade da parte de Jerome, como foi interpretado por Mr. Wordsworth para seus colegas (com quem chegou até a discutir, achando que talvez Jerome ainda não estivesse apto para ser uma sentinela). Jerome estava apenas tentando visualizar a estranha cena e obter todos os pormenores. Tampouco era Jerome um menino dado a chorar; era um menino que meditava, e nunca lhe acudiu à mente, durante o período da escola preparatória, que as circunstâncias da morte de seu pai eram cômicas - eram ainda parte do mistério da vida. Só mais tarde, no primeiro ano de colégio, ao contar a história a seu melhor amigo, foi que começou a notar a reação que ela provocava nos outros. Naturalmente, depois dessa revelação, ganhou o apelido, um tanto desarrazoado, de Porco.

Infelizmente sua tia não tinha senso de humor. Havia um instantâneo ampliado de seu pai em cima do piano: um homem alto e triste metido num inadequado terno escuro, posando em Capri com um guarda-chuva (para protegê-lo contra insolação), os rochedos de Faraglione ao fundo. Aos dezesseis anos Jerome deu-se conta de que o retrato parecia-se mais com o autor de Luz e Sombra e Perambulações nas Baleares do que com um agente do Serviço Secreto. Apesar de tudo, reverenciava a memória do pai - ainda possuía um álbum cheio de cartões postais (havia muito tempo que tirara os selos para a outra coleção) e era-lhe doloroso ver a tia narrar a desconhecidos a história da morte de seu pai.

- Um acidente chocante - começava ela, e o estranho ou estranha ia tratando de dar à fisionomia uma expressão compatível com o interesse e a comiseração. As reações eram, evidentemente, falsas, mas era terrível para Jerome ver como de repente, no meio da divagante fala da tia, o interesse se tornava sincero. - Não consigo imaginar como se permitem tais coisas num país civilizado - dizia a tia. - Suponho que temos de considerar civilizada a Itália. Normalmente se está preparado para toda sorte de coisas no exterior, é claro, e meu irmão era um grande viajante. Sempre levava consigo um filtro. Você sabe, sai muito menos dispendioso do que comprar todas aquelas garrafas de água mineral. Meu irmão dizia sempre que seu filtro pagava o vinho do jantar. Por aí pode-se ver como ele era cuidadoso. Mas quem podia esperar que quando ele estivesse andando pela Via Dottore Manuele Panucci, a caminho do Museu Hidrográfico, um porco lhe cairia na cabeça? - Esse era o momento em que o interesse se tornava sincero.

O pai de Jerome não fora um escritor dos mais eminentes, mas sempre parece chegar o momento, depois da morte de um autor, em que alguém acha que vale a pena mandar uma carta para o Times Literary Supplement anunciando a preparação de uma biografia e pedindo para ver cartas ou documentos ou receber anedotas dos amigos do morto. 

A maioria das biografias, é claro, nunca aparece - a gente se pergunta se tudo aquilo não é uma obscura forma de chantagem e se muito autor potencial de biografia ou tese não encontra desse modo o meio de concluir sua educação em Kansas, em Nottingham. Jerome, porém, sendo um perito-contador, vivia longe do mundo literário. 

Não percebia que a ameaça era realmente muito pequena; nem que a fase de perigo para uma pessoa obscura como seu pai passara havia muito. Às vezes ensaiava o método de narrar a morte do pai de modo a reduzir o elemento cômico às suas dimensões mais insignificantes. Seria inútil recusar-se a dar informações, pois em tal caso o biógrafo indubitavelmente faria uma visita à tia que marchava para uma idade bastante avançada, sem indícios de debilitação. Afigurava-se a Jerome que havia dois métodos possíveis: o primeiro conduzia de mansinho ao acidente, de sorte que, no momento em que era escrito, o ouvinte estava tão bem preparado que a morte surgia realmente como um anticlímax. O principal perigo de gargalhada em tal história era sempre a surpresa. Ao ensaiar esse método, Jerome começava de maneira bastante tediosa.

- Conhece Nápoles e aqueles altíssimos edifícios de apartamentos? Certa vez me contaram que o napolitano sempre se sente à vontade em Nova York, exatamente como o sujeito de Turim se sente à vontade em Londres porque o rio corre mais ou menos do mesmo jeito nas duas cidades. Onde era que eu estava? Ah, sim. Nápoles, claro. Você ficaria surpreendido com as coisas que nos bairros mais pobres o povo põe nas sacadas daqueles arranha-céus... não roupa suja, compreende? mas coisas como animais domésticos, galinhas ou até mesmo porcos. Naturalmente os porcos não têm oportunidade de fazer exercícios e engordam com a maior rapidez. - Imaginava como a essa altura os olhos do ouvinte estariam arregalados. - Não tenho a mínima ideia, e você? do peso a que pode chegar um porco, mas aqueles edifícios velhos precisam todos de reparos urgentes. Uma sacada no quarto andar cedeu sob o peso de um desses porcos. Atingiu a sacada do terceiro andar na queda e como que ricocheteou na rua. Meu pai ia passando para o Museu Hidrográfico quando o porco o alcançou. Vindo daquela altura e daquele ângulo, quebrou o pescoço de meu pai. Essa era de fato uma tentativa magistral de tornar enfadonho um assunto intrinsecamente interessante.

O outro método ensaiado por Jerome tinha a virtude da concisão.

- Meu pai foi morto por um porco.

- Foi mesmo? Na Índia?

- Não. Na Itália.

- Interessante. Nunca imaginei que na Itália se caçava porco com chuço. Seu pai era fã de pólo?

No devido tempo, nem muito cedo nem muito tarde, exatamente como se em sua condição de perito-contador Jerome tivesse estudado as estatísticas e tirado a média, ficou noivo - noivo de uma moça de vinte e cinco anos, agradável, de rosto juvenil, cujo pai era médico em Pinner. Chamava-se Sally, seu autor favorito era ainda Dornford Yates, e adorava crianças desde que ganhara de presente aos cinco anos uma boneca que movia os olhos e fazia xixi. Como convinha aos amores de um perito-contador, as relações entre os dois eram marcadas mais pelo contentamento que pela excitação: não seriam corretas se atrapalhassem as contas.

Entretanto, um pensamento preocupava Jerome. Agora que dentro de um ano ele mesmo podia vir a ser pai, seu amor pelo morto aumentava; sabia quanta afeição banhava os cartões-postais. Sentia um intenso desejo de proteger a memória do morto e não tinha certeza de que esse seu amor tranquilo sobreviveria se Sally se mostrasse tão insensível a ponto de rir quando ouvisse a história da morte do pai dele.

Inevitavelmente ela iria ouvi-la quando Jerome a levasse a jantar com a tia. Várias vezes ele próprio tentou contar, já que ela, como era natural, estava ansiosa de saber tudo a respeito do noivo.

- Você era bem pequeno quando seu pai morreu? 

- Tinha nove anos.

- Coitadinho - disse ela.

- Eu estava na escola. Eles é que me deram a notícia.

- Você sofreu muito?

- Não me recordo.

- Nunca me contou como é que foi.

- Foi muito de repente. Um acidente de rua.

- Você nunca vai dirigir em alta velocidade, vai, Jemmy? - (Ela começara a chamá-lo Jemmy.) Era muito tarde então para tentar o segundo método, ou a caçada de porco com chuço.

Iam casar-se sossegadamente num cartório e passar a lua-de-mel em Torquay. Ele evitou levar a noiva à casa da tia até uma semana antes do casamento, mas então chegou a noite de ir lá, e não pôde deixar de perguntar a si mesmo se sua apreensão era mais pela memória do pai ou pela segurança de seu amor. O momento não tardou a aparecer.

- Esse é o pai de Jemmy? - perguntou Sally, pegando no retrato do homem com o guarda-chuva.

- É, sim, querida. Como adivinhou?

- Ele tem os olhos e a testa de Jemmy, não tem?

- Jerome emprestou a você os livros dele?

- Não.

- Eu lhe darei uma coleção como presente de casamento. Ele escrevia com muita ternura sobre suas viagens. Meu favorito é Recantos e Frinchas. Tinha um belo futuro pela frente. Foi isso que tornou aquele acidente ainda mais chocante.

- Verdade?

Como Jerome desejou ardentemente deixar a sala para não ver aquele rosto amado encrespar-se com a vontade irresistível de rir!

- Recebi muitas cartas dos seus leitores depois que o porco caiu em cima dele. 

A tia nunca fora tão abrupta antes.

E então ocorreu o milagre. Sally não riu. Sally sentou-se com os olhos esbugalhados de horror enquanto a tia contava a história, e no fim:

- Que coisa horrível! exclamou. - Faz a gente pensar, não é mesmo? Acontecer assim. Despencar lá de cima.

O coração de Jerome cantou de alegria. Era como se ela lhe tivesse aplacado o medo para sempre. No táxi, a caminho de casa, ele beijou-a com mais paixão do que jamais revelara, e ela retribuiu do mesmo jeito. Havia bebês nas pupilas azul-claro da moça, bebês que reviravam os olhos e faziam xixi.

- De hoje a uma semana - disse Jerome, e ela lhe apertou a mão. - Em que está pensando, meu amor?

- Fiquei curiosa de saber - disse Sally - o que aconteceu com o pobre do porco.

- É quase certo ter sido comido no jantar - disse Jerome feliz e beijou novamente a criaturinha adorada.



(Tradução de José Laurênio de Meio)



(Ilustração: Monica Cook)


quarta-feira, 24 de julho de 2013

LES AVEUGLES / OS CEGOS, Charles Baudelaire





Contemple-les, mon-âme; ils sont vraiment affreux!

Pareils aux mannequins, vaguement ridicules

Terribles, singuliers comme les sonnambules;

Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux.




Leurs yeux, d'où la divine étincelle est partie,

Comme s'ils regardaient au loin, restent levés

Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés

Pencher rêveusement leur tête appesantie.




Ils traversent ainsi le noir illimité,

Ce frère du silence eternel. O cité!

Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris et beugles,




Éprise du plaisir jusqu'à l'atrocité,

Vois! je me trâine aussi! Mais, plus qu'eux hébété

Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?




Tradução de Ivan Junqueira:



Contempla-os, ó minha alma; eles são pavorosos!

Iguais aos manequins, grotescos, singulares,

Sonâmbulos, talvez, terríveis se os olhares,

Lançando não sei de onde os globos tenebrosos.




Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,

Como se olhassem à distância, estão fincadas

No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas

Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.




Cruzam assim o eterno escuro que os invade,

Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!

Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu!




Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,

Olha! também me arrasto! e, mais do que eles pasmo,

Digo: que buscam estes cegos ver no Céu?





(Ilustração: Bruegel - os cegos)


domingo, 21 de julho de 2013

PHILIMOR, ALMA DE CRIANÇA, de Witold Gombrowicz







 

Em fins do século XVIII, um camponês parisiense teve uma criança; a criança por sua vez, teve uma criança, que teve uma criança por sua vez. Depois, houve outra criança... e a última criança, que se tornara campeã mundial, disputava, certo dia, nas quadras do Racing Club de Paris, em ambiente tenso e sob torrentes de aplausos, uma partida de tênis.

No entanto, (oh, que traições horríveis nos reserva a vida!) um certo coronel dos zuavos, que estava sentado na tribuna lateral, tomou-se de inveja pelo jogo assombroso e impecável dos dois campeões. E, subitamente, querendo mostrar sua capacidade aos seis mil espectadores presentes, - e também à amiguinha que o acompanhava - sacou do revólver e deu um tiro na bola, no momento em que ela voava entre as duas raquetas. A bola estourou e caiu. Privados da bola, os campeões continuaram, par algum tempo, a dar raquetadas no ar, mas, exasperados pelo absurdo daquele momento sem sentido, caíram nos braços um do outro. Uma torrente de aplausos sacudiu a assistência.

O caso poderia ter-se resumido nisso, é claro. Mas, circunstância imprevista, o coronel, em sua excitação, não prestou atenção suficiente (oh, como é preciso ser atento!) aos espectadores que estavam sentados na tribuna em frente. Imaginara, não se sabe por que, que o projétil, depois de ter atravessado a bola de tênis, terminaria sua trajetória; mas infelizmente isso não aconteceu... e, prosseguindo adiante, a bala atingiu o pescoço de um espectador. O sangue jorrou da artéria seccionada. 

A mulher do ferido quis atirar-se sobre o coronel e arrancar-lhe o revólver, mas, vendo que isso seria impossível, pois estava cercada pela multidão, contentou-se em esbofetear seu vizinho da direita. Isso porque não havia outro meio de expandir sua indignação e porque, segundo uma lógica muito feminina, achava (no mais íntimo recanto de seu subconsciente) que, sendo mulher, podia permitir-se qualquer coisa.

Mas, evidentemente, as coisas não se desenrolaram como ela imaginara. Pois o esbofeteado (ah, como nossos cálculos são incertos, e imprevisíveis nossos destinos!) era nada mais nada menos que um epilético em estado de latência. Com o choque do bofetão, o infeliz jorrou de si mesmo um gêiser. A pobre mulher viu-se entre dois homens, um dos quais cuspia sangue e o outro espuma. A multidão explodiu numa torrente de aplausos.

Foi então que, num acesso de pânico, um senhor que estava sentado ali perto atirou-se em cima da cabeça de uma senhora, sentada mais embaixo. Esta se levantou, tomou impulso e pulou para a quadra, carregando-o nas costas, em doida corrida. A multidão explodiu numa torrente de aplausos. E tudo poderia ter-se resumido nisso. Mas aconteceu ainda (tudo! seria preciso prever tudo, pensar em tudo!) que a alguns passos dali estava sentado um pobre-diabo, um obscuro sonhador aposentado que, havia anos, a cada vez que assistia a um espetáculo público, ardia de vontade de pular em cima da cabeça das pessoas sentadas mais embaixo, e só a muito custo conseguia controlar-se. Estimulado pelo exemplo, atirou-se sem mais tardar sobre seu vizinho de baixo que (era uma funcionariazinha chegada havia pouco tempo de Tanger) pensou que era assim mesmo, que era moda, e que essa era a maneira certa de comportar-se nos meios elegantes... Assim sendo, atirou-se também para a quadra, atenta a que seus movimentos não a traíssem, denotando alguma timidez.

O setor mais culto do público pôs-se a aplaudir diplomaticamente, para dissimular o escândalo aos olhos dos representantes das embaixadas e delegações estrangeiras. 

Mas deu-se um mal-entendido, pois outros espectadores menos cultos tomaram esses aplausos como sinal de aprovação... e cada um pôs-se a cavalgar sua dama. Os estrangeiros demonstravam espanto crescente. Que saída restava, portanto, a gente tão fina, diante de tais circunstâncias? Para dissimular o escândalo, puseram-se também eles a cavalgar suas damas.

E tudo poderia ter-se resumido nisso, quase que certamente. Mas então, um certo Marquês de Philimor, sentado na tribuna de honra ao lado de sua esposa e da família desta, achou-se na obrigação de portar-se como um cavalheiro.E, vestido num terno claro de verão, surgiu no centro da quadra, pálido porém decidido, perguntando em tom glacial se alguém, e quem era esse alguém, desejava ofender sua mulher, a Marquesa de Philimor. E atirou à multidão um punhado de cartões de visita, nos quais estava gravado: "Philippe de Philimor" (Ah! Como é preciso prestar atenção, como a vida é difícil e perigosa!) Fez-se um silêncio mortal.

Subitamente, pelo menos trinta e seis senhores, montados em mulheres de raça, de finos jarretes, aproximaram-se da Marquesa, a passo, com a intenção de ofendê-la, para poderem sentir-se tão cavalheiros quanto o Marquês, seu esposo. Mas a Marquesa (oh, quão louca é a existência!), apavorada, deu à luz - ouviu-se, aos pés do Marquês, sob os cascos das mulheres que relinchavam, um vagido de criança!

O Marquês, subitamente apanhado em flagrante criancice, em terrível, completa infantilidade, quando até o presente momento agira de modo muito amadurecido, como um cavalheiro que era, partiu, envergonhado, enquanto os espectadores explodiam numa torrente de aplausos.



(Tradução de Vera Pedroso)


(Ilustração: Jean Bailly)






segunda-feira, 15 de julho de 2013

OS SEXOS, de Dorothy Parker






O rapaz de gravata extravagante olhou nervosamente para a jovem vestida de babados, ao seu lado no sofá. Ela examinava o seu lencinho com tal interesse que era como se aquela fosse a primeira vez que via um e tivesse se encantado pela sua forma, material e possibilidades. O rapaz pigarreou, produzindo um ruído baixinho e sincopado, sem necessidade e sem sucesso.

- Quer um cigarro? - perguntou.

- Não, obrigada - disse ela. - Imensamente obrigada, de qualquer maneira.

- Perdão, só tenho desta marca - disse ele. Você tem da marca que gosta?

- Não sei, talvez tenha - disse ela. - Mas obrigada assim mesmo.

- Porque, se não tiver, não me custaria mais que um minuto para ir à esquina
e comprar um maço.

- Oh, obrigada, mas eu não lhe daria este trabalho por nada deste mundo -disse ela. - É extremamente gentil da sua parte oferecer-se para isso, mas muito obrigada.

- Droga, quer parar de ficar me agradecendo o tempo todo? - disse ele.

- Realmente - disse ela -, eu não sabia que estava dizendo nada inconveniente. Mil perdões se o magoei. Sei como a gente se sente quando é magoada. Nunca imaginei que fosse um insulto dizer "obrigada" a alguém. Não estou exatamente habituada a ouvir alguém gritar comigo quando digo "obrigada".

- Não gritei com você! - gritou ele.

- Ah, não? - disse ela. - Sei.

- Meu Deus - disse ele -, só lhe perguntei se podia ir lá fora comprar cigarros para você. É motivo para você subir pelas paredes?

- Quem está subindo pelas paredes? - disse ela. - Eu apenas não sabia que era um crime dizer que jamais sonharia em lhe dar esse trabalho. Talvez eu seja muito burra ou coisa assim.

- Afinal, quer ou não quer que eu vá lá fora lhe comprar cigarros? - disse ele.

- Pelo amor de Deus - disse ela -, se quer tanto ir, não se sinta na obrigação de ficar aqui. Não se sinta amarrado.

- Ora, não seja assim, tá bom? - disse ele.

- Assim como? - disse ela. - Não estou sendo assim nem assado.

- O que há com você? - disse ele.

- Ué, nada - disse ela. - Por quê?

- Você está esquisita esta noite - disse ele. - Mal me dirigiu a palavra desde que cheguei.

- Peço-lhe mil perdões se não está se divertindo - disse ela. - Por favor, não se sinta obrigado a ficar se está se aborrecendo. Aposto que há milhões de outros lugares onde você se divertiria muito mais. Acontece que eu deveria ter pensado um pouco melhor antes. Quando você disse que viria aqui esta noite, desmarquei um monte de compromissos para ir ao teatro ou algo assim. Mas não faz a mínima diferença. Preferia até que você fosse se divertir em outro lugar. Não é muito agradável ficar sentada aqui, achando que vou matar alguém de tédio.

- Não estou morrendo de tédio! - ele urrou. - E não quero ir a lugar nenhum! Por favor, querida, qual é o problema? Me conte.

- Não tenho a menor idéia do que você está falando - ela disse. - Não há o menor problema. Não sei o que você quer dizer com isso.

- Sabe, sim - disse ele. - Há algum problema. Foi alguma coisa que eu fiz?

- Deus do céu - disse ela -, não é absolutamente da minha conta qualquer coisa que você faça. Seja o que for, eu jamais teria o direito de criticá-la.

- Quer parar de falar desse jeito, por favor? - disse ele.

- Falar de que jeito? - disse ela.

- Você sabe muito bem - disse ele. - Do mesmo jeito com que você falou comigo ao telefone hoje. Estava tão ranzinza quando liguei que tive até medo de falar.

- Perdão - disse ela. - Como é que eu estava mesmo?

- Está bem, desculpe - disse ele. - Retiro a expressão. É que, às vezes, você me enche o saco.

- Lamento - ela disse -, mas não estou habituada a ouvir esse tipo de linguagem. Ninguém nunca falou assim comigo, em toda a minha vida.

- Já lhe pedi desculpas, não pedi? - ele gemeu. - Juro, querida. Não sei como pude dizer uma coisa dessas. Vai me perdoar, vai?

- Oh, claro - disse ela. - Pelo amor de Deus, não fique se desculpando. Não faz a menor diferença. Só achei engraçado ver alguém que sempre considerei uma pessoa educada entrar na minha casa e usar um palavreado como este. Mas não faz a mínima diferença.

- Bem, acho que nada do que eu diga faz a menor diferença para você - ele disse. - Você parece magoada comigo.

- Eu, magoada com você? - ela esse. - Não sei de onde você tirou essa idéia. Por que eu estaria magoada com você?

- É o que eu gostaria de saber - disse ele. - Não vai me dizer o que houve? Fiz alguma coisa para magoá-la, querida? Do jeito que você estava no telefone, fiquei preocupado o dia inteiro. Nem consegui trabalhar direito.

- Eu certamente não gostaria de saber que estou interferindo no seu trabalho - disse ela. - Sei que muitas garotas fazem esse tipo de coisa sem a menor cerimônia, mas eu acho terrível. Não é muito agradável ficar aqui ouvindo que estou interferindo no trabalho de alguém.

- Eu não disse isso! - ele berrou.

- Ah, não? - ela disse. - Bem, foi o que entendi. Deve ser a minha estupidez.

- Acho que o melhor mesmo é ir embora - disse ele. - Nada dá certo. Tudo que eu digo só serve para chateá-la cada vez mais. Quer que eu vá?

- Por favor, faça exatamente o que estiver com vontade de fazer - ela disse. A última coisa que eu gostaria de fazer seria obrigá-lo a ficar quando você prefere ir a outro lugar. Por que não vai a algum lugar onde não se aborreça tanto? Por que não vai à casa de Florence Leaming, por exemplo? Tenho certeza de que ela adoraria recebê-lo.

- Não quero ir à casa de Florence Leaming! - ele zurrou. - O que eu iria fazer na casa de Florence Leaming? Ela é um pé!

- Ah, é? - disse ela. - Não era o que você parecia pensar na festa de Elsie, ontem à noite, como eu notei. Ou não teria conversado com ela a noite toda, sem tempo para mais ninguém.

- Exatamente, e sabe por que eu estava conversando com ela? - disse ele.

- Bem, suponho que você a ache bonita - disse ela. - Algumas pessoas acham. É perfeitamente natural. Há quem a ache bonita.

- Não sei se ela é feia ou bonita - disse ele. - Se ela entrasse agora por esta porta, não sei se a reconheceria. Só fui conversar com ela porque você não me deu a mínima atenção ontem à noite. Eu me dirigia a você e você só sabia dizer, "Oh, como vai?" O tempo todo: "Oh, como vai?" E virava as costas imediatamente.

- Eu não lhe dava a mínima? - ela se espantou. - Oh, mas é tão engraçado! É engraçadíssimo! Não se importa que eu ria, não?

- Pode rir até engasgar - ele disse. - Mas que é verdade, é.

- Bem, no instante em que você chegou, começou a fazer um fuzuê por causa de Florence Leaming, como se o resto do mundo não existisse. Vocês dois pareciam estar se divertindo tanto que eu jamais teria me intrometido.

- Meu Deus - ele disse -, a tal moça Florence-não-sei-das-quantas veio falar comigo antes que eu visse qualquer conhecido. O que você queria que eu fizesse? Que lhe desse um soco no nariz?

- Bem, certamente, não o vi tentar - disse ela.

- Mas me viu tentar falar com você, não viu? - disse ele. - E o que você fez? Ficou repetindo "Oh, como vai?" Aí a tal Florence apareceu de novo e me segurou. Florence Leaming! Acho ela horrível. Quer saber o que eu acho dela? Que é uma pateta.

- Bem - disse ela -, claro que essa sempre foi a impressão que tive de Florence, mas sabe-se lá? Há quem a ache linda.

- Ora - disse ele -, como ela poderia ser linda estando na mesma sala que você?

- Nunca vi um nariz tão feio - disse ela. - Tenho pena de qualquer garota com um nariz como aquele.

- Pois é, um nariz horroroso - disse ele. - Já o seu nariz é lindo. Puxa, como o seu nariz é bonito!

- Ora, que nada - ela disse. - Você está louco.

- Ah, é? - ele disse. - E os seus olhos? E o seu cabelo e a sua boca? E olhe que mãos você tem! Venha cá, me empreste uma dessas mãozinhas. Ai, que mão! Quem tem as mãos mais gostosas do mundo? Quem é a garota mais gostosa do mundo?

- Não sei - ela disse. - Quem?

- Não sabe! - ele riu. - Claro que sabe.

- Não - ela disse. - Quem? Florence Leaming?

- Florence Leaming, uma ova - ele disse. - Está puta comigo por causa de Florence Leaming! E eu sem dormir a noite toda e sem conseguir trabalhar o dia inteiro porque você não falava comigo! Uma garota como você se preocupando com um estupor como Florence Leaming!

- Acho que você é completamente louco - disse ela. - Não estava preocupada.  O que o fez pensar que eu estava? Você é louco. Oh, minhas pérolas novas. Deixe-me tirá-las primeiro. Pronto.



(Tradução de Ruy Castro)



(Ilustração: Damian Klaczkiewicz)


sexta-feira, 12 de julho de 2013

ELA NÃO QUERIA, de Eliana Iglesias










Esse que me abre a porta do carro e se oferece para conduzir-me,

Saberá o caminho do meu coração?




Não amou pra valer

Beijou sem fechar os olhos

Tampouco despertou simpatia

Quando em noite de gala

Vestiu short de veludo

E botas de cano longo




As borbulhas da soda gelada

A neblina na madrugada

As noites de insônia por nada

Passam a exigir companhia




Ela não queria




Mas casa-se comportada

Sentindo embaraço no altar

Quando os cílios postiços

Descolam ao chorar por outro

Que nem conhecia




Ensaiou varias vezes o amor

Falhando em todas elas




Lamentou não ter cheirado lança

Ter perdido a esperança

Mal aprendera a ler




Hoje tenta conviver

Com problemas gástricos

E a carteira profissional em branco

Preenche o tempo com palavras cruzadas

Sorrindo pela manhã

Para que não lhe indaguem a alma




Por esta noite

A lua acerta em cheia

O centro do quarto

Focando a velha poltrona

Que servira sua mãe um dia




Ela não queria




Mas, senta-se

Sem pressa

Escreve um poema

E o reduz a papel picado

Portanto, para investigação

Nenhum recado




Do revólver suicida

Rola o tambor

Uma só bala

Uma vida... só




E nenhum amor






(Ilustração: Damian Klaczkiewicz)


terça-feira, 9 de julho de 2013

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS, de Lima Barreto






Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado a certas convicções e respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blás vivido, até que, em uma pausa de conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:

- Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!

- Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!

- Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil pitoresco.

- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas da vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!

- Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?

- Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.

- Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?

- Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e cortiruei:

- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Commercio o anúncio seguinte:


"PRECISA-SE DE UM PROFESSOR DE LÍNGUA JAVANESA. CARTAS ETC."


Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente, dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir, mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu. A enciclopédia dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia, e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça, dançavam hieroglifos; de quando em quando, consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu abecê malaio, e com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

- Senhor Castelo, quando salda a sua conta?

Respondi-lhe, então, com a mais encantadora esperança:

- Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...

Pois aí o homem interrompeu-me:

- Que diabo vem a ser isso, senhor Castelo?

Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:

- É uma língua que se fala lá pelas bandas de Timor. Sabe onde é?

Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:

- Eu cá por mim não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, senhor Castelo?

Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico.

Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. E seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um 

professar de língua malaia ou se por ter-me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, na rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder- "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé.

Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam, e os beirais do telhado daquelas telhas vidradas de outros tempos estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou malcuidadas.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorães e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos a balão; mas daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da índia, como se diz. Aquela pureza de louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia ao meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

- Eu sou - avancei - o professor de javanês, que o senhor disse precisar.

- Sente-se - respondeu-me o velho. - O senhor é daqui, do Rio?

- Não, sou de Canavieiras.

- Como? - fez ele. - Fale um pouco alto, que sou surdo.

- Sou de Canavieiras, na Bahia - insisti eu.

- Onde fez os seus estudos?

- Em São Salvador.

- E onde aprendeu o javanês? - indagou ele, com aquela teimosia peculiar dos 
velhos.

Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara, e fora com ele que aprendi javanês.

- E ele acreditou? E o físico? - perguntou meu amigo, que até então me ouvia calado.

- Não sou - objetei - lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, curtos e grossos, e a minha pele basanée podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaxes, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

- Bem - fez o meu amigo -, continua.

- O velho - emendei eu - ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:

- Então, está disposto a ensinar-me javanês?

A resposta saiu-me sem querer:

- Pois não.

- O senhor há de ficar admirado - aduziu o Barão de Jacuecanga - que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...

- Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... 

- O que eu quero, meu caro senhor...?

- Castelo - adiantei eu.

- O que eu quero, meu caro senhor Castelo; é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidade para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai - continuou o velho barão - não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, e não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou-os discretamente e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha de rosto; e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão, que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até afinal contratarmos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano. Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguiu aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras.

Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês, e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia. A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.

Mas com que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah!, onde estava!"

O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão) era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim, outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do cronicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!...

Ficava extático, como se estivesse a escutar palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!

Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Eu passava, enfim, uma vida regalada. Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido, que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também. Fui perdendo os remorsos; mas, em todo caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!"

Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações.

Foi um êxito.

O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!" Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses, e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então, sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!" O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro. A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pincenê no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem", disse o ministro, "o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério, e quero que, para o ano, parta para Bali, onde nos vai representar no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!"

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o país em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente, e fez-me uma deixa no testamento. Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não havia meio! Bem-jantado, bem-vestido, bem-dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanio Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês". Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber, e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commercio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

- Como, se tu nada sabias? - interrompeu-me o atento Castro.

- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxilio de dicionários e umas poucas de geografia, e depois citei a mais não poder.

- E nunca duvidaram? - perguntou-me ainda o meu amigo.

- Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - ui!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na secção de tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bali o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por ter-me dado aquela secção; não conhecia os meus trabalhos e julgava que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a secção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bali em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Não perdi meu tempo, nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória pública e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais, e o presidente, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia, no palácio.

Dentro de seis meses, fui despachado cônsul em Havana, onde estive anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.

- É fantástico - observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

- Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?

- Quê?

- Bacteriologista eminente. Vamos?

- Vamos.




(Ilustração: Tinga Tinga Studio - art. R. Duke)