quarta-feira, 31 de março de 2021

NO LAR DA FELIZ IDADE, O ESTEVES SEM METAFÍSICA, de valter hugo mãe (*)

 


olhei para a nossa senhora de fátima e disse-lhe, mariazinha, havias de ser uma mulher de te pores a mexer e tudo e dávamos uma volta pelo jardim depois de enxotarmos aos pontapés as pombinhas. ri-me, fui procurar o senhor pereira e fizemos uma brincadeira juntos, arranjámos um pedaço de papel, um pouco de fita-cola e pusemos na estatueta da senhora de fátima um letreiro a dizer, mariazinha, rodeada de pombinhas. ficou perfeita, com aquele ar de parva aflita sem saber o que fazer, uma santa toda mãe de deus e não sabe nada, não faz nada, perde-se na mesma brancura das paredes em que nos perdemos todos, um embuste, havia de andar na limpeza, entrar com os baldes e as lixívias e trabalhar, que isso é que há-de ser uma santidade de jeito, trabalhar, o senhor pereira, que até acreditava nuns quantos de santos e temia deus às vezes, divertiu-se, como a pecar num frenesi impossível de conter, para sentir, afinal, essa coisa da alma ainda viva. a alma viva, repetia eu, que burrice tão grande para nos enganar e pôr como carneirada a cumprir ordens e atender a medos, e não tem medo de nada, perguntou ele. tenho, tenho medo de ficar para aqui ainda mais sozinho do que estou, você não está só, homem, que aqui somos muitos e sentimos todos exactamente aquilo que você sente, respondeu-me, e eu calei-me, não fosse ele perceber o que eu sentia, e como ainda seguia zangado, capaz de me rir do sofrimento de qualquer um, incluindo o dele.

pusemo-nos depois no pátio, a apanhar um sol intenso que parecia plantar em nós umas quantas fogueiras, subitamente o senhor pereira pôs um braço no ar e chamou para perto um indivíduo bem mais velho do que nós com quem eu nunca falara, esteves, chamou ele, esteves, anda aqui, vou contar-te uma coisa, o homem abancou ao nosso lado, disse boa tarde e sorriu, o senhor pereira continuou, pusemos um letreiro na estatueta aqui do amigo silva, na da nossa senhora, a dizer que se chama mariazinha, rodeada de pombinhas, é a santa das pombinhas. riram-se os dois como tolos, e repetiu, chama-se mariazinha, afinal é como uma boneca qualquer, diz aqui o senhor silva, e o outro disse, então e vocês agora brincam às bonecas, olha, brincamos com o que há, que já não é muito, e riam-se mais. depois calaram-se brevemente, ficámos novamente só a sentir as fogueiras que nos consolavam um bom bocado, entretanto, o tal esteves levantou-se, andou a rodopiar para trás e para diante, e depois foi refilar uma coisa qualquer com alguém, já lá para dentro no salão, nós não percebíamos a conversa, mas também não interessava, surpreendeu-me o senhor pereira que, como que se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de ignorância, e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa, é uma coisa do caraças, está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro. o que diz você, perguntei, ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da tabacaria do fernando pessoa, e eu respondi, não diga asneiras, tem quase cem anos. ó esteves, ó esteves, anda aqui, chamava o senhor pereira todo animado, o outro estava cheio de energia na discussão em que se metera e não fazia caso. o meu companheiro dizia, é verdade, é ele. vai fazer cem anos, já viu como ainda anda aí de pé. um mito da nossa poesia, é do caraças, e depois o esteves lá se desenrascou da conversa e apareceu à nossa beira a perguntar o que lhe queríamos. o senhor pereira mandou-o sentar-se novamente e muito divertido pediu-lhe, ó esteves, conta aqui ao senhor silva como foi que te meteste num poema do fernando pessoa, o homem arregalou os olhos e riu-se respondendo, isso já toda a gente sabe, já o contei mil vezes, e o senhor pereira insistiu, mas o senhor silva não sabe e nem sequer está a acreditar em mim, não vou passar por mentiroso, ai que treta, disse eu, este lar está cheio de velhos tolos, pus--me para diante na cadeira, a encarar o velhote com uma antecipação enorme e ele atirou-se para dentro dos meus olhos e confirmou, sim, é verdade, eu vivia em lisboa e ia sempre àquela tabacaria, é verdade sim. os meus ouvidos afundaram incrivelmente no insondável da cabeça e eu fiquei só a ver aquele rosto, o rosto de um homem com mais quinze anos do que eu, sorridente, aberto, limpo ao mesmo sol que nos cobria, e era como se o próprio maravilhoso genial lindo fernando pessoa ressuscitasse à minha frente, era como dar pele a um poema e trazê-lo à luz do dia, a tocar-me no quotidiano afinal mágico que nos é dado levar, era como se alice viesse do país da fantasia para nos contar como vivem os coelhos falantes e as aventuras de faz-de-conta. e eu voltei a ouvi-lo dizer, mas eu tenho muita metafísica, isto de os poetas nos roubarem a alma não é coisa decente, porque aquilo da poesia leva muita mentira, sorri, sorri verdadeiramente como nunca até ali naquele lar. e o senhor pereira olhou para mim radiante e afirmou num triunfo, isto sim, agora, é o lar da feliz idade.



(*) À publicação desta obra, o autor ainda só usava letras minúsculas, inclusive em seu nome. Contrariamo-lo no título do texto, por padrão do blog.



(a máquina de fazer espanhóis)



(Ilustração:  Omar Camilo)

domingo, 28 de março de 2021

SIC UMBROSA TIBI CONTINGANT TECTA, PRIAPE / ASSIM, UMBROSAS COPAS TE CUBRAM, PRIAPO, de Álbio Tibulo /Albius Tibullus - 60 a.C. (?) – 19 a.C. (?)

 




“Sic umbrosa tibi contingant tecta, Priape,

….ne capiti soles, ne noceantque niues:

quae tua formosos cepit sollertia? certe

….non tibi barba nitet, non tibi culta coma est;

nudus et hibernae producis frigora brumae, [5]

….nudus et aestiui tempora sicca Canis.”

Sic ego; tum Bacchi respondit rustica proles

….armatus curua sic mihi falce deus:

“O fuge te tenerae puerorum credere turbae:

….nam causam iusti semper amoris habent. [10]

Hic placet, angustis quod equum compescit habenis,

….hic placidam niueo pectore pellit aquam;

hic, quia fortis adest audacia, cepit; at illi

….uirgineus teneras stat pudor ante genas.

Sed ne te capiant, primo si forte negabit, [15]

….taedia; paulatim sub iuga colla dabit:

longa dies homini docuit parere leones,

….longa dies molli saxa peredit aqua;

annus in apricis maturat collibus uuas,

….annus agit certa lucida signa uice. [20]

Nec iurare time: Veneris periuria uenti..

….inrita per terras et freta summa ferunt.

Gratia magna Ioui: uetuit Pater ipse ualere,

….iurasset cupide quidquid ineptus amor;

perque suas impune sinit Dictynna sagittas [25]

….adfirmes, crines perque Minerua suos.

At si tardus eris errabis: transiet aetas

….quam cito non segnis stat remeatque dies.

Quam cito purpureos deperdit terra colores,

….quam cito formosas populus alta comas. [30]

Quam iacet, infirmae uenere ubi fata senectae,

….qui prior Eleo est carcere missus equus.

Vidi iam iuuenem, premeret cum serior aetas,

….maerentem stultos praeteriisse dies.

Crudeles diui! serpens nouus exuit annos: [35]

….formae non ullam fata dedere moram.

Solis aeterna est Baccho Phoeboque iuuentas:

….nam decet intonsus crinis utrumque deum.

Tu, puero quodcumque tuo temptare libebit,

….cedas: obsequio plurima uincet amor. [40]

Neu comes ire neges, quamuis uia longa paretur

….et Canis arenti torreat arua siti,

quamuis praetexens picta ferrugine caelum

….uenturam amiciat imbrifer arcus aquam;

uel si caeruleas puppi uolet ire per undas, [45]

….ipse leuem remo per freta pelle ratem.

Nec te paeniteat duros subiisse labores

….aut opera insuetas atteruisse manus;

nec, uelit insidiis altas si claudere ualles,

….dum placeas, umeri retia ferre negent; [50]

si uolet arma, leui temptabis ludere dextra,

….saepe dabis nudum, uincat ut ille, latus.

Tunc tibi mitis erit, rapias tum cara licebit

…..oscula: pugnabit, sed tamen apta dabit.

Rapta dabit primo, post adferet ipse roganti, [55]

….post etiam collo se implicuisse uelit.

Heu! male nunc artes miseras haec saecula tractant:

….iam tener adsueuit munera uelle puer.

At tu, qui uenerem docuisti uendere primus,

….quisquis es, infelix urgeat ossa lapis. [60]

Pieridas, pueri, doctos et amate poetas,

….aurea nec superent munera Pieridas:

carmine purpurea est Nisi coma; carmina ni sint,

….ex umero Pelopis non nituisset ebur.

Quem referent Musae, uiuet, dum robora tellus, [65]

….dum caelum stellas, dum uehet amnis aquas.

At qui non audit Musas, qui uendit amorem,

….Idaeae currus ille sequatur Opis

et tercentenas erroribus expleat urbes

….et secet ad Phrygios uilia membra modos. [70]

Blanditiis uolt esse locum Venus ipsa; querellis

….supplicibus, miseris fletibus illa fauet.”

Haec mihi, quae canerem Titio, deus edidit ore:

….sed Titium coniunx haec meminisse uetat.

Pareat ille suae: uos me celebrate magistrum, [75]

….quos male habet multa callidus arte puer.

Gloria cuique sua est: me, qui spernentur, amantes

….consultent; cunctis ianua nostra patet.

Tempus erit, cum me Veneris praecepta ferentem

….deducat iuuenum sedula turba senem. [80]

Heu! heu! quam Marathus lento me torquet amore!

….Deficiunt artes, deficiuntque doli.

Parce, puer, quaeso, ne turpis fabula fiam,

….cum mea ridebunt uana magisteria.



Tradução de João Paulo Matedi Alves:



“Assim, umbrosas copas te cubram, Priapo,

….nem sol nem neve firam-te a cabeça.

Que ardil teu cativou os belos? Certamente,

….não tens barba nem coma condizentes.

Nu suportas o frio da bruma hibernal; [5}

….nu, dias secos da estival canícula.”

Assim falei: de Baco o descendente rústico,

….deus armado de curva foice, disse-me:

“ó, não creias na tenra turba de meninos,

….sempre motivo têm de justo amor. [10]

Este apraz por reter corcéis com rédea curta;

….este, água fresca fende em níveo peito;

este te cativou por ser valente; aquele,

….virgem pudor se eleva em tenra face.

Não desistas, se alguém no início se negar, [15]

….dará o pescoço ao jugo com vagar:

o tempo deu aos homens leões amansados,

….o tempo abriu, em água branda, rochas;

o ano madura as uvas sob o sol dos vales,

….o ano traz, regular, os astros rútilos. [20]

Podes jurar, o vento dissipa os perjúrios

….vãos de Vênus por sobre terra e mar.

Graças a Júpiter! O pai tornou inválidas

….juras ardentes de um insano amor;

e em vão Dictina deixa que jures por suas [25]

….flechas, Minerva pelos seus cabelos.

Mas, se hesitares, errarás: a idade foge.

…..Tão logo nasce o dia e já se esvai!

Tão logo a terra perde o purpúreo matiz!

….Tão logo o grande choupo, a bela coma! [30]

Jaz, vítima fatal da velhice, o cavalo

….que páreos liderou na raia Eleia.

Já vi homem aflito na maturidade,

….por ter passado à toa os tolos dias.

Deuses cruéis! Serpentes se despem dos anos: [35]

….não deram prazos à beleza os fados.

Só Baco e Febo são eternamente jovens,

….pois intonso cabelo quadra a ambos.

Tu, do menino sejam quaisquer os desejos,

….cedas: o amor triunfa com favores. [40]

Segue-o, mesmo em viagem longa, em que a canícula

….abrase com ardente sede os campos;

mesmo que o arco chuvoso, que colore o céu

….plúmbeo, revele chuvas iminentes;

ou se quiser fender à quilha o mar cerúleo, [45]

….lança tu próprio a nave contra as vagas.

Não te arrependas dura faina suportar

….ou machucar as mãos, hostis à lida.

Se ele quiser munir de insídias fundos vales,

….que lhe agrades levando aos ombros redes. [50]

Se ele quiser espadas, treina-o com mão leve,

….concede-lhe – que vença! – o flanco nu.

E será bom contigo, então roubarás caros

….beijos: resistirá, mas os dará.

Dará no início à força, então te brindará, [55]

….por fim o teu pescoço abraçará.

Ai! Que arte desprezível pratica este século:

….por vezo já se vende o meu menino.

Mas tu, primeiro que vendeste vênus, sejas

….lá quem for, seja-te pesada a lápide. [60]

Doutos vates amai, meninos, e as Piérides;

….áureos brindes não vençam as Piérides.

Devido aos carmes, coma purpúrea tem Niso;

….pelo poema, ebúrneos ombros, Pélops.

Vive quem Musa louva, enquanto der a terra [65]

….carvalho; o céu, estrela; o rio, água.

Mas quem não ouve as Musas, quem o amor seu vende,

….persiga o carro de Ops do Monte Ida;

em seu errar percorra trezentas cidades,

….corte o vil membro ao som da flauta Frígia. [70]

Para a ternura Vênus quer lugar: às súplicas

….ela será bondosa e ao triste pranto”.

Isso, para eu cantar a Tício, disse o deus,

….mas a Tício lembrar a esposa impede.

Que ele obedeça. Vós, que manhoso menino [75]

….seduz com arte, celebrai-me mestre.

Todos têm sua glória: tenho a porta aberta

….às consultas de amantes desprezados.

Um dia, atentos jovens me acompanharão,

….já velho, rico nas lições de Vênus. [80]

Ai! Quão longo tormento é meu amor por Márato!

….Falham ardis e falham artifícios.

Rogo, menino, poupa-me! Que não debochem

….de mim, por rirem de meus vãos preceitos.



(Ilustração: Pompeia - afresco do deus Priapo pesando seu membro com uma balança)

quinta-feira, 25 de março de 2021

O VALOR E A MAJESTADE DA MINHA AVÓ, de Maya Angelou

 


Momma se casou três vezes: com o sr. Johnson, meu avô, que a deixou na virada do século com dois filhos pequenos para criar; com o sr. Henderson, de quem não sei nada (Momma nunca respondeu às perguntas feitas diretamente a ela sobre qualquer coisa que não fosse religião); e finalmente com o sr. Murphy. Eu o vi rapidamente uma vez. Ele foi a Stamps em uma noite de sábado, e vovó me deu a tarefa de fazer a cama dele no chão. Ele era um homem escuro e corpulento que usava um chapéu de aba dura como George Raft. Na manhã seguinte, ele ficou no Mercado até voltarmos da igreja. Isso marcou o primeiro domingo em que eu soube que o tio Willie faltou à igreja. Bailey disse que ele tinha ficado em casa para impedir que o sr. Murphy nos roubasse. Ele saiu no meio da tarde depois de um dos longos banquetes de domingo de Momma. Com o chapéu empurrado para trás na testa, saiu assoviando pela rua. Observei as costas largas até ele virar a curva junto à grande igreja branca.

As pessoas falavam de Momma como uma mulher de boa aparência, e algumas, que se lembravam dela na juventude, diziam que era muito bonita. Eu só via seu poder e sua força. Ela era mais alta do que qualquer mulher do meu mundo pessoal, e suas mãos eram tão grandes que podiam fazer um arco sobre a minha cabeça que ia de uma orelha à outra. A voz era suave só porque ela preferia que fosse assim. Na igreja, quando era chamada para cantar, ela parecia soltar as mandíbulas, e o som alto e quase rouco se espalhava pelos ouvintes e latejava no ar.

A cada domingo, depois de ela se sentar, o pastor anunciava: “Agora a irmã Henderson vai nos guiar em um hino”. E, a cada domingo, ela olhava com expressão surpresa para o pastor e perguntava, silenciosamente: “Eu?”. Depois de um segundo garantindo a si mesma que realmente estava sendo chamada, ela colocava a bolsa no banco e dobrava o lenço lentamente, que era colocado em cima da bolsa. E se inclinava na direção do banco da frente e se botava de pé, depois abria a boca e a música pulava, como se estivesse esperando a hora certa para fazer a aparição. Semana após semana e ano após ano, a performance nunca mudava, mas não me lembro de ninguém comentando sobre a sinceridade dela e nem sobre a prontidão para cantar.

Momma pretendia ensinar a Bailey e a mim a usar os caminhos da vida que ela e a geração dela e todos os Negros anteriores encontraram e achavam seguros. Ela não gostava da ideia de que se podia falar com os brancos sem botar a vida em risco. E sem dúvida não se podia falar com eles com insolência. Na verdade, mesmo na ausência deles, não se podia falar sobre eles com rispidez, a não ser que usássemos o pronome “eles”. Se lhe perguntassem e ela decidisse responder se era covarde ou não, ela diria que era realista. Ela não “os” enfrentava ano após ano? Ela não era a única mulher Negra em Stamps já chamada de senhora?

Esse incidente se tornou uma das pequenas lendas de Stamps. Alguns anos antes de Bailey e eu chegarmos à cidade, um homem foi caçado por agredir uma mulher branca. Ao tentar fugir, ele correu para o Mercado. Momma e tio Willie o esconderam atrás do armário até a noite, deram suprimentos para uma longa viagem e o mandaram embora. Mas ele foi apreendido, e no tribunal, quando foi interrogado sobre seus movimentos no dia do crime, respondeu que, depois que soube que estava sendo procurado, refugiou-se no Mercado da sra. Henderson.

O juiz pediu que a sra. Henderson fosse intimada, e quando Momma chegou e disse que era a sra. Henderson, o juiz, o meirinho e os outros brancos da plateia riram. O juiz realmente cometeu uma gafe ao chamar uma mulher Negra de senhora, mas ele era de Pine Bluff e não tinha como saber que uma mulher que era dona de um mercado naquele vilarejo também seria de cor. Os brancos riram do incidente durante muito tempo, e os Negros acharam que ele provava o valor e a majestade da minha avó.



(Eu sei por que o pássaro canta na gaiola; tradução de Regiane Winarski)



(Ilustração: Felix Edouard Vallotton - Seated Black Woman)



segunda-feira, 22 de março de 2021

הסיפור על הערבי שמת בשריפה / A HISTÓRIA DO ÁRABE QUE MORREU NO INCÊNDIO, דליה רביקוביץ' / Dahlia Ravikovitch






כְּשֶׁהָאֵשׁ אָחֲזָה בְּגוּפוֹ זֶה לֹא קָרָה בְּהַדְרָגָה.

לֹא הָיָה קֹדֶם פֶּרֶץ חֹם,

אוֹ נַחְשׁוֹל עָשָׁן מַחְנִיק

וּתְחוּשָׁה שֶׁל חֶדֶר נוֹסָף שֶׁרוֹצִים לָנוּס אֵלָיו.

הָאֵשׁ אָחֲזָה בּוֹ מִיָּד,

אֵין לְזֶה מָשָׁל,

קִלְּפָה אֶת בְּגָדָיו

אָחֲזָה בִּבְשָׂרוֹ

עֲצַבֵּי הָעוֹר נִפְגְּעוּ רִאשׁוֹנִים

הַשֵּׂעָר הָיָה לְמַאֲכֹלֶת אֵשׁ,

אֱלֹהִים, שׂוֹרְפִים, הוּא צָעַק

וְזֶה כָּל מַה שֶּׁיָּכֹל לַעֲשׂוֹת לַהֲגָנָה עַצְמִית.

הַבָּשָׂר כְּבָר בָּעַר עִם קַרְשֵׁי הַצְּרִיף

שֶׁקִּיְּמוּ אֶת הַבְּעֵרָה בַּשָּׁלָב הָרִאשׁוֹן.

כְּבָר לֹא הָיְתָה בּוֹ דַּעַת,

מַאֲכֹלֶת הָאֵשׁ בַּבָּשָׂר

שִׁתְּקָה אֶת תְּחוּשַׁת הֶעָתִיד

וְאֶת זִכְרוֹנוֹת מִשְׁפַּחְתּוֹ.

כְּבָר לֹא הָיָה לוֹ קֶשֶׁר לְיַלְדוּתוֹ.

וְהוּא צָרַח בְּלִי בְּלָמִים שִׂכְלִיִּים

וְאִבֵּד אֶת הַקֶּשֶׁר עִם כָּל מִשְׁפַּחְתּוֹ

וְהוּא לֹא בִּקֵּשׁ נְקָמָה, תְּשׁוּעָה, לִרְאוֹת אֶת הַשַּׁחַר הַבָּא.

הוּא רַק רָצָה לְהַפְסִיק לִבְעֹר

אֲבָל גּוּפוֹ שֶׁלּוֹ פִּרְנֵס אֶת הַבְּעֵרָה.

וְהוּא הָיָה כְּמוֹ עָקוּד וְקָשׁוּר

וְגַם עַל כָּךְ הוּא לֹא חָשַׁב.

וְהוּא הוֹסִיף לִבְעֹר בְּכוֹחַ גּוּפוֹ

הֶעָשׂוּי בָּשָׂר וְחֵלֶב וְגִידִים.

וְהוּא בָּעַר הַרְבֵּה זְמַן.

וְיָצְאוּ מִגְּרוֹנוֹ קוֹלוֹת לֹא אֱנוֹשִׁיִּים

כִּי הַרְבֵּה תִּפְקוּדִים אֱנוֹשִׁיִּים כְּבָר פָּסְקוּ אֶצְלוֹ,

לְהוֹצִיא אֶת הַכְּאֵב שֶׁמּוֹלִיכִים הָעֲצַבִּים

בִּזְרָמִים חַשְׁמַלִּיִּים לְמֶרְכַּז הַכְּאֵב בַּמּוֹחַ.

וְזֶה לֹא נִמְשַׁךְ יוֹתֵר מִיּוֹם אֶחָד.

וְטוֹב שֶׁיָּצְאָה נִשְׁמָתוֹ בַּיּוֹם הַזֶּה,

כִּי הִגִּיעַ לוֹ לָנוּחַ.

תודה למאור תמם על התזכורת לשיר הקשה והחשוב הזה, שלמרבה הצער, הפך



Tradução de Adriano Scandolara, via Tsipi Keller:



Quando o fogo pegou seu corpo, não foi gradualmente

Não houve um primeiro estouro de calor,

nem rajada da fumaça que sufoca,

ou uma noção de algum lugar próximo

para onde fugir.

A chama o pegou instantaneamente –

isso não tem símile –

tirou suas roupas,

chamuscou-lhe a carne.

Os nervos epidérmicos foram atingidos primeiro,

o cabelo alimentou a chama,

Meu Deus, ele gritou, queima,

e foi só isso que pôde fazer em autodefesa.

A carne já queimava com as tábuas do barraco,

que alimentaram a chama no primeiro estágio.

Ele não mais possuía compreensão;

a chama alimentada na carne

amortecia a noção do futuro.

Ele não tinha mais vínculo com sua infância.

E gritava sem quaisquer freios mentais

e perdeu toda a relação com os familiares;

não rogava por vingança, salvação,

não rogava para ver a manhã do dia seguinte.

Desejava só parar de queimar,

mas o próprio corpo mantinha o fogo.

Era como se estivesse preso e amarrado –

mas não pensava nisso também.

E continuou a queimar com o vigor de seu corpo

feito de carne, medula e nervos.

E queimou por muito tempo.

E sons desumanos emanaram de sua garganta,

pois várias funções humanas já haviam parado de funcionar,

exceto pela dor que os nervos conduzem em correntes elétricas ao centro de dor no cérebro.

E não durou mais do que um dia.

E felizmente seu espírito rendeu-se aquele dia,

ele merecia descanso.



(Ilustração: Salvador Dalí - Flagellation à la colonne, 1964)

sexta-feira, 19 de março de 2021

QUANDO VOCÊ CRESCER, TALVEZ NÃO TENHA UM EMPREGO, de Yuval Noah Harari

 



Não temos ideia de como será o mercado de trabalho em 2050. Sabemos que o aprendizado de máquina e a robótica vão mudar quase todas as modalidades de trabalho — desde a produção de iogurte até o ensino da ioga. Contudo, há visões conflitantes quanto à natureza dessa mudança e sua iminência. Alguns creem que dentro de uma ou duas décadas bilhões de pessoas serão economicamente redundantes. Outros sustentam que mesmo no longo prazo a automação continuará a gerar novos empregos e maior prosperidade para todos.

Estaríamos à beira de uma convulsão social assustadora, ou essas previsões são mais um exemplo de uma histeria ludista infundada? É difícil dizer. Os temores de que a automação causará desemprego massivo remontam ao século XIX, e até agora nunca se materializaram. Desde o início da Revolução Industrial, para cada emprego perdido para uma máquina pelo menos um novo emprego foi criado, e o padrão de vida médio subiu consideravelmente. [1] Mas há boas razões para pensar que desta vez é diferente, e que o aprendizado de máquina será um fator real que mudará o jogo.

Humanos têm dois tipos de habilidades — física e cognitiva. No passado, as máquinas competiram com humanos principalmente em habilidades físicas, enquanto os humanos se mantiveram à frente das máquinas em capacidade cognitiva. Por isso, quando trabalhos manuais na agricultura e na indústria foram automatizados, surgiram novos trabalhos no setor de serviços que requeriam o tipo de habilidade cognitiva que só os humanos possuíam: aprender, analisar, comunicar e acima de tudo compreender as emoções humanas. No entanto, a IA está começando agora a superar os humanos em um número cada vez maior dessas habilidades, inclusive a de compreender as emoções humanas. [2] Não sabemos de nenhum terceiro campo de atividade — além do físico e do cognitivo — no qual os humanos manterão sempre uma margem segura.

É crucial entender que a revolução da IA não envolve apenas tornar os computadores mais rápidos e mais inteligentes. Ela se abastece de avanços nas ciências da vida e nas ciências sociais também. Quanto mais compreendemos os mecanismos bioquímicos que sustentam as emoções, os desejos e as escolhas humanas, melhores podem se tornar os computadores na análise do comportamento humano, na previsão de decisões humanas, e na substituição de motoristas, profissionais de finanças e advogados humanos.

Nas últimas décadas a pesquisa em áreas como a neurociência e a economia comportamental permitiu que cientistas hackeassem humanos e adquirissem uma compreensão muito melhor de como os humanos tomam decisões. Constatou-se que todas as nossas escolhas, desde comida até parceiros sexuais, resultam não de algum misterioso livre-arbítrio, e sim de bilhões de neurônios que calculam probabilidades numa fração de segundo. A tão propalada “intuição humana” é na realidade a capacidade de reconhecer padrões. [3] Bons motoristas, profissionais de finanças e advogados não têm intuições mágicas sobre trânsito, investimento ou negociação — e sim, ao reconhecer padrões recorrentes, eles localizam e tentam evitar pedestres desatentos, tomadores de empréstimo ineptos e trapaceiros. Também se constatou que os algoritmos bioquímicos do cérebro humano estão longe de ser perfeitos. Eles se baseiam em heurística, atalhos e circuitos ultrapassados, adaptados mais à savana africana do que à selva urbana. Não é de admirar que bons motoristas, profissionais de finanças e advogados às vezes cometam erros bestas.

Isso quer dizer que a IA pode superar o desempenho humano até mesmo em tarefas que supostamente exigem “intuição”. Se pensarmos que a IA tem de competir com os pressentimentos místicos da alma humana, pode parecer impossível. Mas como a IA na realidade tem de competir com redes neurais para calcular probabilidades e reconhecer padrões — isso soa muito menos assustador.

Em especial, a IA pode ser melhor em tarefas que demandam intuições sobre outras pessoas. Muitas modalidades de trabalho — como dirigir um veículo numa rua cheia de pedestres, emprestar dinheiro a estranhos e negociar um acordo — requerem a capacidade de avaliar corretamente as emoções e os desejos de outra pessoa. Será que aquele garoto vai correr para a estrada? Será que o homem de terno pretende pegar meu dinheiro e sumir? Será que aquele advogado vai cumprir suas ameaças ou só está blefando? Quando se pensava que essas emoções e esses desejos eram gerados por um espírito imaterial, parecia óbvio que os computadores nunca seriam capazes de substituir motoristas, banqueiros e advogados humanos. Pois como poderia um computador compreender o divinamente criado espírito humano?

Mas, se essas emoções e esses desejos na realidade não são mais do que algoritmos bioquímicos, não há razão para os computadores não decifrarem esses algoritmos — e até certo ponto, melhor do que qualquer Homo sapiens.

O motorista que prevê as intenções de um pedestre, o profissional que avalia a credibilidade de um tomador potencial e o advogado que é sensível ao humor reinante na mesa de negociação não se valem de feitiçaria. Sem que eles saibam, o cérebro deles está reconhecendo padrões bioquímicos ao analisar expressões faciais, tons de voz, movimentos das mãos e até mesmo odores corporais. Uma IA equipada com os sensores certos poderia fazer tudo isso com muito mais precisão e confiabilidade do que um humano.

Por isso a ameaça de perda de emprego não resulta apenas da ascensão da tecnologia da informação, mas de sua confluência com a biotecnologia. O caminho que vai do escâner de ressonância magnética ao mercado de trabalho é longo e tortuoso, mas ainda assim poderá ser percorrido em poucas décadas. O que os neurocientistas estão aprendendo hoje sobre a amígdala e o cerebelo pode permitir que computadores superem psiquiatras e guarda costas humanos em 2050.

E a IA não só está em posição de hackear humanos e superá-los no que eram, até agora, habilidades exclusivamente humanas. Ela também usufrui de modo exclusivo de habilidades não humanas, o que torna a diferença entre a IA e um trabalhador humano uma questão qualitativa e não apenas quantitativa. Duas habilidades não humanas especialmente importantes da IA são a conectividade e a capacidade de atualização.

Como humanos são seres individuais, é difícil conectar um ao outro e se certificar de que estão todos atualizados. Em contraste, computadores não são indivíduos, e é fácil integrá-los numa rede flexível. Por isso estamos diante não da substituição de milhões de trabalhadores humanos individuais por milhões de robôs e computadores individuais, mas, provavelmente, da substituição de humanos individuais por uma rede integrada. No que diz respeito à automação, portanto, é errado comparar as habilidades de um único motorista humano com as de um único carro autodirigido, ou as de um único médico humano com as de um único médico de IA. Em vez disso, deveríamos comparar as habilidades de uma coleção de indivíduos humanos com as habilidades de uma rede integrada.

Por exemplo, muitos motoristas não estão familiarizados com todas as regras de trânsito e frequentemente as transgridem. Além disso, como cada veículo é uma entidade autônoma, quando dois deles se aproximam do mesmo cruzamento ao mesmo tempo, os motoristas podem comunicar erroneamente suas intenções e colidir. Carros autodirigidos, em contraste, podem ser conectados entre si. Quando dois desses veículos se aproximam do mesmo cruzamento eles não são duas entidades separadas — são parte de um único algoritmo. As probabilidades de que possam se comunicar erroneamente e colidir são, portanto, muito menores. E, se o Ministério dos Transportes decidir mudar qualquer regra de trânsito, todos os veículos autodirigidos podem ser atualizados com facilidade e exatamente no mesmo momento, e, salvo a existência de algum bug no programa, todos seguirão o novo regulamento à risca. [4]

Da mesma forma, se a Organização Mundial de Saúde identificar uma nova doença, ou se um laboratório produzir um novo remédio, é quase impossível atualizar todos os médicos humanos no mundo quanto a esses avanços. Em contraste, mesmo que haja 10 bilhões de médicos de IA no mundo — cada um monitorando a saúde de um único ser humano —, ainda se poderá atualizar todos eles numa fração de segundo, e todos serão capazes de dar uns aos outros feedbacks quanto às novas doenças ou remédios. Essa vantagem potencial de conectividade e capacidade de atualização é tão enorme que ao menos em algumas modalidades de trabalho talvez faça sentido substituir todos os humanos por computadores, mesmo que individualmente alguns humanos sejam melhores em seu trabalho do que as máquinas.

Poder-se-ia contrapor que, ao se trocar indivíduos humanos por uma rede de computadores, perderemos as vantagens da individualidade. Por exemplo, se um médico humano fizer um diagnóstico errado, ele não vai matar todos os pacientes do mundo e não vai bloquear o desenvolvimento de todos os novos medicamentos. Em contraste, se todos os médicos são na verdade um único sistema, e se esse sistema comete um erro, os resultados podem ser catastróficos. No entanto, um sistema integrado de computadores pode maximizar as vantagens da conectividade sem perder os benefícios da individualidade. Podem-se rodar muitos algoritmos alternativos na mesma rede, de modo que um paciente numa aldeia remota na selva seja capaz de acessar com seu smartphone não apenas um único médico capacitado, mas cem médicos de IA diferentes, cujos desempenhos relativos são comparados o tempo inteiro. Você não gostou do que o médico da IBM lhe disse? Não tem problema. Mesmo que esteja enfurnado em algum lugar das encostas do Kilimanjaro, você pode contatar facilmente o médico da Baidu para ter uma segunda opinião.

Os benefícios para a sociedade humana provavelmente serão imensos. A IA em medicina poderia prover serviços de saúde muito melhores e mais baratos a bilhões de pessoas, especialmente para as que hoje não têm acesso algum a esses serviços. Graças a algoritmos de aprendizagem e sensores biométricos, um aldeão pobre num país subdesenvolvido poderia usufruir de uma assistência médica muito melhor usando seu smartphone do que a pessoa mais rica do mundo obtém hoje em dia no mais avançado dos hospitais urbanos. [5]

Da mesma forma, veículos autodirigidos poderiam oferecer às pessoas serviços de transporte muito melhores e reduzir a taxa de mortalidade por acidentes de trânsito. Hoje, cerca de 1,25 milhão de pessoas morrem todo ano em acidentes de trânsito (o dobro das mortes causadas por guerra, crime e terrorismo somadas). [6] Mais de 90% desses acidentes são causados por erros humanos: alguém que bebeu e dirigiu, alguém digitando uma mensagem enquanto dirige, alguém que adormeceu ao volante, alguém sonhando acordado em vez de prestar atenção à estrada. A Administração Nacional de Segurança de Trânsito em Estradas dos Estados Unidos estimou que, em 2012, 31% dos acidentes fatais no país envolveram uso abusivo de álcool, 30% envolveram excesso de velocidade e 21% envolveram desatenção do motorista. [7] Veículos autodirigidos nunca farão nada disso. Embora tenham seus próprios problemas e limitações, e embora alguns acidentes sejam inevitáveis, espera-se que a substituição de motoristas humanos por computadores reduza mortes e ferimentos na estrada em cerca de 90%. [8] Em outras palavras, a mudança para veículos autônomos pode poupar a vida de 1 milhão de pessoas por ano.

Por isso seria loucura bloquear a automação em campos como o do transporte e o da saúde só para proteger empregos humanos. Afinal, o que deveríamos proteger são os humanos — não os empregos. Motoristas e médicos obsoletos simplesmente terão de achar outra coisa para fazer.



Notas


1. Gregory R. Woirol, The Technological Unemployment and Structural Unemployment Debates (Westport: Greenwood Press, 1996, pp. 18-20); Amy Sue Bix, Inventing Ourselves out of Jobs? America’s Debate over Technological Unemployment, 1929-1981 (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2000, pp. 1-8). Joel Mokyr, Chris Vickers e Nicolas L. Ziebarth, “The History of Technological Anxiety and the Future of Economic Growth: Is


This Time Different?” (Journal of Economic Perspectives, v. 29, n. 3, pp. 33-42, 2015). Joe Mokyr, The gifts of Athena: Historical Origins of the Knowledge Economy (Princeton: Princeton University Press, 2002, pp. 255-7). David


H. Autor, “Why Are There Still So Many Jobs? The History and the Future of Workplace Automation” (Journal of Economic Perspectives, v. 29, n. 3, pp. 3-30, 2015). Melanie Arntz, Terry Gregory e Ulrich Zierahn, “The Risk of Automation for Jobs in OECD Countries” (OECD Social, Employment and Migration Working Papers, n. 189, 2016). Maria Cristina Piva e Marco Vivarelli, “Technological Change and Employment: Were Ricardo and Marx Right?” (iza Institute of Labor Economics, Discussion Paper N. 10471, 2017).


2. Veja, por exemplo, a IA superando o homem: em condições de voo, e especialmente em simulações de combateaéreo: Nicholas Ernest et al., “Genetic Fuzzy Based Artificial Intelligence for Unmanned Combat Aerial Vehicle Control in Simulated Air Combat Missions” (Journal of Defense Management, v. 6, n. 1, pp. 1-7, 2016); sobre tutoria inteligente e sistemas de ensino: Kurt VanLehn, “The Relative Effectiveness of Human Tutoring, Intelligent Tutoring Systems, and Other Tutoring Systems” (Educational Psychologist, v. 46, n. 4, pp. 197-221, 2011); negociação algorítmica: Giuseppe Nuti et al., “Algorithmic Trading” (Computer, v. 44, n. 11, pp. 61-9, 2011); planejamento financeiro, gerência de portfólios etc.: Arash Baharammirzaee, “A Comparative Survey of Artificial Intelligence Applications in Finance: Artificial Neural Networks, Expert System and Hybrid Intelligent Systems” (Neural Computing and Applications, v. 19, n. 8, pp. 1165-95, 2010); análise de dados complexos em sistemas médicos e produção de diagnóstico e tratamento: Marjorie Glass Zauderer et al., “Piloting IBM Watson Oncology within Memorial Sloan Kettering’s Regional Network” (Journal of Clinical Oncology, v. 32, n. 15, e17653, 2014); criação de textos originais em linguagem natural a partir de maciça quantidade de dados: Jean-Sébastien Vayre et al., “Communication Mediated through Natural Language Generation in Big Data Environments: The Case of Nomao” (Journal of Computer and Communication, v. 5, pp. 125-48, 2017); reconhecimento facial: Florian Schroff, Dmitry Kalenichenko e James Philbin, “FaceNet: A Unified Embedding for Face Recognition and Clustering” (ieee


Conference on Computer Vision and Pattern Recognition — CVPR, pp. 815-23, 2015); direção de veículos: Cristiano Premebida, “A Lidar and Vision-based Approach for Pedestrian and Vehicle Detection and Tracking” (ieee Intelligent Transportation Systems Conference, 2007).


3. Daniel Kahneman, Thinking, Fast and Slow [Rápido e devagar, duas formas de pensar] (Nova York: Farrar,


Straus & Giroux, 2011). Dan Ariely, Predictably Irrational (Nova York: Harper, 2009). Brian D. Ripley, Pattern Recognition and Neural Networks (Cambridge: Cambridge University Press, 2007). Christopher M. Bishop, Pattern Recognition and Machine Learning (Nova York: Springer, 2007).


4. Seyed Azimi et al., “Vehicular Networks for Collision Avoidance at Intersections” (sae International Journal of Passenger Cars — Mechanical Systems, v. 4, pp. 406-16, 2011). Swarun Kumar et al., “CarSpeak: A Content-Centric Network for Autonomous Driving” (sigcom Computer Communication Review, v. 42, pp. 259-70, 2012). Mihail L. Sichitiu and Maria Kihl, “Inter-Vehicle Communication Systems: A Survey” (ieee Communications Surveys & Tutorials, p. 10, 2008). Mario Gerla, Eun-Kyu Lee e Giovanni Pau, “Internet of Vehicles: From Intelligent Grid to Autonomous Cars and Vehicular Clouds” (ieee World Forum on Internet of Things — wf-iot, pp. 241-6, 2014).


5. David D. Luxton et al., “Health for Mental Health: Integrating Smartphone Technology in Behavioural Healthcare” (Professional Psychology: Research and Practice, v. 42, n. 6, pp. 505-12, 2011). Abu Saleh Mohammad Mosa, Illhoi Yoo e Lincoln Sheets, “A Systematic Review of Healthcare Application for Smartphones” (bmc Medical Informatics and Decision Making, v. 12, n. 1, p. 67, 2012). Karl Frederick Braekkan Payne, Heather Wharrad e Kim Watts, “Smartphone and Medical Related App Use among Medical Students and Junior Doctors in the United Kingdom (UK): A Regional Survey” (bmc Medical Informatics and Decision Making, v. 12, n. 1, p. 121, 2012). Sandeep Kumar Vashist, E. Marion Schneider e John H. T. Loung, “Commercial Smartphone-Based Devices and Smart Applications for Personalised Healthcare Monitoring and Management” (Diagnostics, v. 4, n. 3, pp. 104-28, 2014). Maged N. Kamel Bouls et al., “How Smartphones Are Changing the Face of Mobile and Participatory Healthcare: An Overview, with Example from eCAALYX” (BioMedical Engineering OnLine, v. 10, n. 24, 2011. Disponível em: <https://doi.org/10.1186/1475-925X-10-24>. Acesso em: 30 jul. 2017. Paul J. F. White, Blake W. Podaima e Marcia R. Friesen, “Algorithms for Smartphone and Tablet Image Analysis for Healthcare Applications” (ieee Access, v. 2, pp. 831-40, 2014).


6. World Health Organization, Global Status Report on Road Safety 2015 (2016); “Estimates for 2000-2015, Cause-Specific Mortality”. Disponível em: <http://www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/estimates/en/index1.html>. Acesso em: 6 set. 2017.


7. Para uma pesquisa sobre a causa de acidentes automobilísticos nos Estados Unidos, veja: Daniel J. Fagnant eKara Kockelman, “Preparing a Nation for Autonomous Vehicles: Opportunities, Barriers and Policy Recommendations” (Transportation Research Part A: Policy and Practice, v. 77, pp. 167-81, 2015); para uma pesquisa em âmbito mundial, veja, por exemplo: OECD/ITF, Road Safety Annual Report 2016 (Paris: OECD Publishing, 2016). Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1787/irtad-2016-en>. Acesso em: 6 set. 2017.


8. Kristofer D. Kusano e Hampton C. Gabler, “Safety Benefits of Forward Collision Warning, Brake Assist, andAutonomous Braking Systems in Rear-End Collisions” (ieee Transactions on Intelligent Transportation Systems, v. 13, n. 4, pp. 1546-55, 2012); James M. Anderson et al., Autonomous Vehicle Technology: A Guide for Policymakers (Santa Monica: RAND Corporation, 2014, esp. pp. 13-5); Daniel J. Fagnant e Kara Kockelman, “Preparing a Nation for Autonomous Vehicles: Opportunities, Barriers and Policy Recommendations” (Transportation Research Part A: Policy and Practice, v. 77, pp. 167-81, 2015); Jean-Francois Bonnefon, Azim Shariff e IyadRahwan, “Autonomous Vehicles Need Experimental Ethics: Are We Ready for Utilitarian Cars?”, (arXiv, pp. 1-15, 2015). Para sugestões de redes interveiculares para evitar colisões, veja: Seyed R. Azimi et al., “Vehicular Networks for Collision Avoidance at Intersections” (sae International Journal of Passenger Cars — Mechanical Systems, v. 4, n. 1, pp. 406-16, 2011); Swarun Kumar et al., “CarSpeak: A Content-Centric Network for Autonomous Driving” (sigcom Computer Communication Review, v. 42, n. 4, pp. 259-70, 2012); Mihail L. Sichitiu e Maria Kihl, “Inter-Vehicle Communication Systems: A Survey” (ieee Communications Surveys & Tutorials, v. 10, n. 2, 2008); Mario Gerla et al., “Internet of Vehicles: From Intelligent Grid to Autonomous Cars and Vehicular Clouds” (ieee World Forum on Internet of Things — wf-iot, pp. 241-6, 2014).



(21 lições para o século XXI; tradução de Paulo Geiger)



(Ilustração: pintura digital criada pela inteligência artificial da Google)



terça-feira, 16 de março de 2021

NO BANHO, de Adolfo Caminha



Ninfas do bosque, Náiades formosas,

Sátiros, Faunos, vinde vê-la agora,

Nua, no banho, esta ideal senhora,

Que em beleza e frescura excede as rosas.



Vinde todos depressa!… Ei-la que cora,

Ei-la que solta as tranças graciosas

Sobre as espáduas níveas, capitosas…

Ei-la que treme à loura luz da aurora…



Tinge-se o céu de cores purpurinas,

O sol desponta; as tímidas boninas

Mostram à luz os cálices dourados.



Vede-as, Ninfas, agora: os nacarados

Lábios, os seios túmidos, nevados,

Segredam coisas ideais, divinas.



(Ilustração: Edgar Degas, 1885: After the Bath, study)

sábado, 13 de março de 2021

MATA, QUE AMANHÃ FAREMOS OUTRO, de Pauline Chiziane

 


“Mata, que amanhã faremos outro”.

Este é o ditado dos tempos do velho Império de Gaza, que se tornou célebre, sobrevivendo muitos sóis e muitas luas e, como o grão, semeado de boca em boca, até aos nossos dias.

Há mais de cem anos, as terras de Mananga foram invadidas por guerreiros de tronco nu, pés descalços, orelhas furadas e saiotes de pele, ornamentadíssimos com colares multicolores, amuletos, braçadeiras felpudas, trazendo longas zagaias à direita e escudos de pele à esquerda. Os generais deste exército, os verdadeiros ngunis, laureados com coroas de penas, marchavam na retaguarda e em segurança, enquanto o grosso do efectivo formado por changanes marchava à frente, servindo de protecção aos senhores ngunis, pois em caso de ataque seriam os primeiros a morrer.

Eram os guerreiros do exército de Muzila, marchando de vitória em vitória, espalhando ordem e soberania por essas terras, chacinando os inimigos, submetendo as tribos conquistadas, apoderando-se das suas mulheres e incorporando no exército todos os jovens das terras usurpadas.

Quando os guerreiros de Muzila marchavam, a terra abalava em violentos sismos, o Sol parava, as árvores abriam alas e até soldados de Portugal buscavam abrigo nas trincheiras. As populações em bando fugiam para cá e para lá, procurando refúgio no interior da savana.

Os grupos em fuga estabeleceram normas de segurança: é proibido falar, tossir ou espirrar no esconderijo. Podes borrar-te, ou mijar-te, mover-te é que não, porque é perigoso. As crianças são livres, nada as detém. Quando têm fome, choram até enrouquecer a voz. Quando têm sede berram até enervar, e quando estão felizes cantam até de mais. Não suportam a fome, a sede e o calor e choram. As vozinhas dos meninos ouviram-se no espaço, em direcção aos tímpanos atentos dos heróicos guerreiros, que seguiram as ondas do som até descobrir o esconderijo. A vingança foi implacável, e até os fetos foram estripados dos ventres das mães. Deste modo estabeleceram-se novas normas de segurança: é preciso silenciar o choro dos meninos.

A caminho do novo abrigo os maridos aproximavam-se delicadamente das esposas com crianças de colo e transmitiam a ordem: mulher, o menino vai chorar e seremos descobertos. Mata este, que depois faremos outro.

Nos momentos de perigo, a solidariedade é a lei: ou morre um por todos ou todos por um.

Com gestos desesperados, a mulher puxava a ponta da capulana, sufocando a crença que se batia até à paragem respiratória. O menino morto era escondido na vegetação, não havia tempo para enterrar os mortos. Cuidado, mulher, é proibido chorar, mas também não vale a pena, a quem comovem as lágrimas no tempo de guerra?

O marido abraçava carinhosamente a mulher, sussurrando ao ouvido: coragem, mulher, tinha que ser assim. Este já morreu, amanhã faremos outro.



(Ventos do Apocalipse)



(Ilustração: Otis Porritt - children of war)

domingo, 7 de março de 2021

NAVALHA DE OCCAM, de Willyans Maciel



Formulada pelo filósofo medieval Guilherme de Occam (por vezes grafado Ockham), a lex parsimoniae (lei da parcimônia) é um princípio, solucionador de problemas, filosófico reducionista, que permite distinguir entre teorias equivalentes e pode ser utilizado como técnica para formulação de modelos teóricos. Em sua formulação mais simples, a Navalha de Occam dirá que, entre duas teorias com iguais resultados, que explicam ou preveem os mesmos fenômenos, devemos sempre escolher a teoria mais simples.

A navalha de Occam é frequentemente utilizada para evitar inflações ontológicas desnecessárias, quando uma entidade ou substância é postulada, sem que haja evidências de sua existência, simplesmente para possibilitar a aplicação ou consistência de uma teoria.

Não obstante a expressão, normalmente atribuída a Occam, "entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem" (entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade) não possa ser encontrada em sua obra, outras afirmações semelhantes o são e servem de base para atribuir a ele a fundação do conceito, embora este apareça em autores anteriores, entre eles John Duns Scotus, Maimonides e mesmo em Aristóteles, em seus Analíticos Posteriores, quando este afirma que devemos assumir a superioridade da explicação que se utiliza de um número menor de postulados ou hipóteses, quando todos os outros elementos forem equivalentes (ceteris paribus - outras coisas sendo iguais).

Antes do século XX, a suposição de que a natureza era simples e desta forma a explicação mais simples teria maior probabilidade de ser verdadeira. Tomás de Aquino defendeu, no século XIII, que, se algo pode ser feito por meio de um elemento, seria supérfluo fazê-lo por meio de diversos elementos, uma vez que a natureza emprega apenas os elementos necessários, nunca mais do que isto. Com o desenvolvimento da ciência, especialmente a partir do século XX, no entanto, ganha popularidade a ideia de que os eventos podem ser mais complexos que nossas melhores teorias supõem e a defesa da navalha de Occam baseada na suposição de simplicidade da natureza perde força.

Em termos pragmáticos, entende-se que teorias simples são mais fáceis de entender. Desta forma, a navalha de Occam torna a apresentação de teorias mais simples e as discussões mais práticas. Elliot Sober defendeu que, em termos estritos, sequer a própria razão pode ser justificada rigorosamente e, afim de estabelecer um diálogo promissor, é preciso aceitar alguns elementos de antemão, a navalha de Occam é, segundo ele, um bom candidato para realizar a tarefa de escolher os elementos a partir dos quais a discussão será iniciada. Outra justificação para a navalha de Occam vem da matemática, mais especificamente da lei de probabilidades. Entende-se que a cada elemento introduzido há um aumento da possibilidade de erros. Desta forma, se um elemento não aumenta a precisão de uma teoria, seu único efeito é aumentar a possibilidade de que a teoria esteja errada.

O filósofo Karl Popper defendeu que nossa preferência por simplicidade pode ser justificada pelo critério de falseabilidade, uma vez que uma teoria mais simples seria aplicável a uma quantidade maior de casos, seria mais fácil testá-la e falseá-la do que uma teoria mais complexa. Por outro lado, Walter Chatton, contemporâneo de Occam, considerou o proceder de Occam excessivamente minimalista e defendeu que, se as entidades ou elementos propostos não são suficientes para verificar uma proposição afirmativa sobre algo, outros elementos devem ser propostos até que se possa verificar. Entre os filósofos que formularam anti-navalhas encontramos ainda Gottfried Wilhelm Leibniz, Karl Menger e Immanuel Kant. Com variações próprias de cada autor, a posição anti-navalha é geralmente uma defesa de que a variedade dos seres não deve ser reduzida precipitadamente, atribuindo assim uma posição precipitada e extremada a Occam.



Referências bibliográficas:

Ariew, Roger (1976). Ockham's Razor: A Historical and Philosophical Analysis of Ockham's Principle of Parsimony. Champaign-Urbana, University of Illinois.

Capitão Travis Patriquin, Exército dos EUA. O Princípio da Navalha de Occam para Vincular Fatos. Military Review.2007.

Kant, Immanuel. Crítica da razão pura, Martin Claret/Cassier, Ernst, Kants Leben und lehre, Berlin, 1921.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da filosofia. /Il pensiero occidentale dalle origini adoggi. Trad. São Paulo: Paulinas, v.1, 1990, 693 p.

Reductionism: Occam's Razor, Reductionism, Monism, Reduction, Type Physicalism, Dialectical Monism, Separation of Concerns. General Books. 2010.



(Ilustração: foto de Chema Madoz)

quinta-feira, 4 de março de 2021

FEMME NUE, FEMME NOIRE... / MULHER NUA, MULHER NEGRA, de Léopold Sédar Senghor

 



Femme nue, femme noire

Vétue de ta couleur qui est vie,

de ta forme qui est beauté

J'ai grandi à ton ombre;

la douceur de tes mains bandait mes yeux

Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi,

Je te découvre, Terre promise,

du haut d'un haut col calciné

Et ta beauté me foudroie en plein coeur,

comme l'éclair d'un aigle



Femme nue, femme obscure

Fruit mûr à la chair ferme,

sombres extases du vin noir, bouche qui fais

lyrique ma bouche

Savane aux horizons purs,

savane qui frémis aux caresses ferventes du Vent d'Est

Tamtam sculpté,

tamtam tendu qui gronde sous les doigts du vainqueur

Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée



Femme noire, femme obscure

Huile que ne ride nul souffle,

huile calme aux flancs de l'athlète, aux

flancs des princes du Mali

Gazelle aux attaches célestes,

les perles sont étoiles sur la nuit de ta peau.

Délices des jeux de l'Esprit,

les reflets de l'or ronge ta peau qui se moire

A l'ombre de ta chevelure,

s'éclaire mon angoisse aux soleils prochains

de tes yeux.



Femme nue, femme noire

Je chante ta beauté qui passe,

forme que je fixe dans l'Eternel

Avant que le destin jaloux

ne te réduise en cendres pour nourrir les

racines de la vie.



Tradução de Leo Gonçalves:




mulher nua, mulher negra

vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!

eu cresci à tua sombra;

a doçura de tuas mãos vendava meus olhos.

e eis que no ventre do verão e do meio-dia,

eu te descubro, terra prometida,

do alto de um alto colo calcinado

e tua beleza me acerta em pleno peito,

como o relâmpago de uma águia.



mulher nua, mulher obscura

fruto maduro de carne firme,

sombrios êxtases do vinho negro,

boca que bota lírica a minha boca.

savana dos horizontes puros,

savana que freme às carícias quentes do vento leste

atabaque esculpido,

atabaque tenso que rosna sob os dedos do vencedor

tua voz grave de contralto é o cântico espiritual da amada.



mulher nua, mulher obscura

azeite que não crispa nenhum sopro,

azeite plácido nos flancos do atleta,

nos flancos dos príncipes do mali

gazela de laços celestes,

as pérolas são estrelas sobre a noite de tua pele

gozo de jogos espirituosos,

os reflexos do ouro rubro sobre tua pele que rebrilha

à sombra de teus cabelos, se esclarece minha angústia

aos sóis próximos de teus olhos.



mulher nua, mulher negra

eu canto tua beleza que passa,

forma que fixo no eterno

antes que o destino cioso

te reduza a cinzas para nutrir as raízes da vida.



Tradução de Guilherme de Souza Castro:



Mulher nua, mulher negra

Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!

Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos.

E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro,

Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado,

E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro

de uma águia.

Fêmea nua, fêmea escura.

Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro,

boca que faz lírica a minha boca

savana de horizontes puros, savana que freme com

as carícias ardentes do vento Leste.

Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos

do vencedor

Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada.

Fêmea nua, fêmea negra,

Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos flancos do atleta,

nos flancos dos príncipes do Mali.

Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre

a noite da tua pele.

Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que ondula

à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia,

ante o sol dos teus olhos.

Mulher nua, fêmea negra,

Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente,

antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para

alimentar as raízes da vida.



(Ilustração: Odette Dalpé)

segunda-feira, 1 de março de 2021

LÉOPOLD SÉDAR SENGHOR (1906—2001), de Ieda Machado Ribeiro dos Santos

 



Certo dia, eu saía para trabalhar quando a vizinha me chamou:

— Espere, Ieda. O Dr. Fulano vai para o Campo Grande e pode lhe dar uma carona.

O Dr. Fulano era um senhor grisalho, muito cheio de mesuras e gentilezas.

— Professora, estou encantado em conhecê-la. Soube que a senhora sabe tudo sobre a África.

— Ninguém sabe tudo sobre nenhum assunto — retruquei.

Mas ele não deu nenhuma importância à minha interrupção porque, de fato, aquilo era um mero preâmbulo à cretinice que veio logo em seguida.

— Já que a senhora sabe tudo sobre a África, não acha que, sendo o cérebro do negro comprovadamente menor do que o do branco, ele é, naturalmente, menos inteligente?

Confesso que me senti tão irritada quanto vocês estão se sentindo agora, ao ler esta idiotice. Mas parece que o velho Oxalá jogou o seu alá sobre mim e eu permaneci bastante calma, respondendo com outra pergunta:

— O senhor já ouviu falar em Léopold Senghor?

— Não, nunca ouvi.

Então eu comecei a falar sobre Léopold Sédar Senghor, africano, filho de pai e mãe africanos (porque se for mestiço eles dizem que a inteligência vem do lado branco). Contei como Senghor, muito jovem, lecionou francês, na França, aos franceses. Que ele era membro da Academia Francesa de Letras, vencendo todos os escritores franceses que competiram com ele. Que ele era traduzido para o alemão, o japonês, o inglês e até para o português. Que ele era Doutor em Honoris Causa em mais de 20 Universidades do mundo inteiro, que havia ganho mais de 15 prêmios internacionais de poesia... E, como se tudo isso não bastasse, era um grande estadista, respeitado no mundo inteiro.

Chegando ao nosso destino, mais ou menos uns dez minutos depois, o Dr. Fulano admitiu:

— A senhora me convenceu.

Ao que respondi, com ironia:

— E com um crioulo só.

Gosto de contar essa história como demonstrativo da fragilidade do racismo e também de que, às vezes, uma argumentação tranquila e bem fundamentada funciona melhor do que nossos gritos de cólera, embora essa cólera seja mais que justificada.

Mas, quando começo a escrever sobre Senghor, vejo que toda a sua vida foi exatamente isto: negar, e não apenas para os brancos, como querem os seus inimigos, mas para os próprios negros, principalmente os negros da diáspora, quanta falácia foi escrita e "cientificamente comprovada" sobre nossa inferioridade intelectual, sobre não termos História, Civilização ou Cultura.

Senghor era de família aristocrática. O pai, serere, era um rico comerciante de nobre descendência; a mãe era peul (ou fulani) povo de pastores nômades. Sua infância, em Joal, a aldeia senegalesa onde nasceu, foi sem maiores problemas.

O menino Léopold estudou na missão católica de Ngazobil e completou seus estudos secundários no Lycée Van Vollenhoven.

Ganhou uma bolsa de estudos e foi para Paris, sendo o primeiro africano a obter o título de "agregé" numa universidade francesa.

Os anos de estudo em Paris são fundamentais para o surgimento do movimento da Negritude, resultante do encontro do senegalês Léopold Sédar Senghor com o martinicano Aimé Césaire e com Léon Gontran Damas, da Guiana Francesa.

Sua carreira na França, foi brilhante. Em 1936 foi professor em Tours, mais tarde em Paris. Durante a II Guerra, foi feito prisioneiro pelos nazistas. Na oportunidade, aprendeu alemão e escreveu poemas que depois foram publicados em Hosties Noires (Hóstias Negras) Depois de libertado, fez parte da Resistência.

Em 1945 foi eleito Deputado do Senegal na Assembléia Constituinte Francesa. Quando o Senegal uniu-se ao Sudão para formar a Federação do Mali, Senghor foi Presidente da Assembléia Federal.

Desfeita a Federação, com a independência do Senegal, Senghor foi eleito o primeiro presidente da nova república e permaneceu no cargo até 1980, quando se retirou, por sua livre e espontânea vontade, indo viver na Normandia, terra de sua esposa.

Em 1983 foi eleito para a Academia Francesa de Letras. Os últimos anos de sua vida passou entre a Normandia, Paris e Dakar.

Senghor visitou o Brasil mais de uma vez, tendo recebido, em 1964, o título de Doutor em Honoris Causa pela UFBa.

Sua obra foi traduzida para uma infinidade de idiomas: japonês, alemão, sueco, russo, italiano, português...

Seus prêmios literários se somam aos que ganhou como político e estadista.

Ele foi Doutor em Honoris Causa em mais de 20 universidades.

O encontro de estudantes negros, de diferentes procedências, nas metrópoles europeias, foi de fundamental importância para o surgimento de uma consciência negra, melhor talvez dizer de uma consciência pan-africana, incluindo-se aqui os africanos na diáspora.

Considera-se o marco inicial do Movimento da Negritude a publicação, em 1932, da revista Légitime Défense por um grupo de estudantes antilhanos. Revista que não passou do primeiro número, tendo seus fundadores sofrido as maiores represálias, até mesmo por parte de seus compatriotas conservadores.

Contudo, ela influenciou definitivamente o grupo que surgiu a seguir e fundou outra revista L'étudiant noir (o Estudante Negro). Além da revista, o grupo desenvolveu intensa atividade. Organizando reuniões, exposições, assembléias, publicando artigos e poemas em outras revistas, conseguiu fazer o mundo enxergar que existia, sim, uma cultura, uma civilização africana.

O impacto foi tão forte que Aimé Césaire — o primeiro a usar a palavra negritude em um poema — destruiu tudo o que tinha escrito até então. Para ele e para Léon Damas, foi uma surpresa maravilhosa ouvir Senghor falar de uma África jamais sonhada pelos negros da diáspora, África dos doutores de Tumbuctu, do império Ashanti, das amazonas do Daomé. África cuja música não era feita somente de tambores, mas de sofisticados instrumentos como o khalam e o korá.

Resultante do Movimento foi a publicação da Anthologie de la nouvelle poésie africaine et malgache, com prefácio de Jean Paul Sartre, em que o famoso escritor e filósofo francês escreveu: "Que esperáveis, pois, quando retirásseis a mordaça que tapava estas bocas negras ? Que elas vos entoassem louvores?"

A antologia revela ao mundo uma infinidade de poetas africanos e malgaches (de Madagascar) que vieram a se tornar famosos. Posteriormente, em colaboração com o intelectual senegalês Alioune Diop funda a revista Présence Africaine, que também editou várias obras de escritores africanos em prosa e poesia.

Para Senghor, Negritude significava "a soma total dos valores africanos". E Damas proclamava: não somos mais estudantes martinicanos, senegaleses, ou malgaches, somos, cada um de nós e todos nós, um estudante negro (daí o título da revista).



(Ilustração: baobá no cemitério em Joal-Fadiout onde nasceu Léopold Senghor)