segunda-feira, 1 de março de 2021

LÉOPOLD SÉDAR SENGHOR (1906—2001), de Ieda Machado Ribeiro dos Santos

 



Certo dia, eu saía para trabalhar quando a vizinha me chamou:

— Espere, Ieda. O Dr. Fulano vai para o Campo Grande e pode lhe dar uma carona.

O Dr. Fulano era um senhor grisalho, muito cheio de mesuras e gentilezas.

— Professora, estou encantado em conhecê-la. Soube que a senhora sabe tudo sobre a África.

— Ninguém sabe tudo sobre nenhum assunto — retruquei.

Mas ele não deu nenhuma importância à minha interrupção porque, de fato, aquilo era um mero preâmbulo à cretinice que veio logo em seguida.

— Já que a senhora sabe tudo sobre a África, não acha que, sendo o cérebro do negro comprovadamente menor do que o do branco, ele é, naturalmente, menos inteligente?

Confesso que me senti tão irritada quanto vocês estão se sentindo agora, ao ler esta idiotice. Mas parece que o velho Oxalá jogou o seu alá sobre mim e eu permaneci bastante calma, respondendo com outra pergunta:

— O senhor já ouviu falar em Léopold Senghor?

— Não, nunca ouvi.

Então eu comecei a falar sobre Léopold Sédar Senghor, africano, filho de pai e mãe africanos (porque se for mestiço eles dizem que a inteligência vem do lado branco). Contei como Senghor, muito jovem, lecionou francês, na França, aos franceses. Que ele era membro da Academia Francesa de Letras, vencendo todos os escritores franceses que competiram com ele. Que ele era traduzido para o alemão, o japonês, o inglês e até para o português. Que ele era Doutor em Honoris Causa em mais de 20 Universidades do mundo inteiro, que havia ganho mais de 15 prêmios internacionais de poesia... E, como se tudo isso não bastasse, era um grande estadista, respeitado no mundo inteiro.

Chegando ao nosso destino, mais ou menos uns dez minutos depois, o Dr. Fulano admitiu:

— A senhora me convenceu.

Ao que respondi, com ironia:

— E com um crioulo só.

Gosto de contar essa história como demonstrativo da fragilidade do racismo e também de que, às vezes, uma argumentação tranquila e bem fundamentada funciona melhor do que nossos gritos de cólera, embora essa cólera seja mais que justificada.

Mas, quando começo a escrever sobre Senghor, vejo que toda a sua vida foi exatamente isto: negar, e não apenas para os brancos, como querem os seus inimigos, mas para os próprios negros, principalmente os negros da diáspora, quanta falácia foi escrita e "cientificamente comprovada" sobre nossa inferioridade intelectual, sobre não termos História, Civilização ou Cultura.

Senghor era de família aristocrática. O pai, serere, era um rico comerciante de nobre descendência; a mãe era peul (ou fulani) povo de pastores nômades. Sua infância, em Joal, a aldeia senegalesa onde nasceu, foi sem maiores problemas.

O menino Léopold estudou na missão católica de Ngazobil e completou seus estudos secundários no Lycée Van Vollenhoven.

Ganhou uma bolsa de estudos e foi para Paris, sendo o primeiro africano a obter o título de "agregé" numa universidade francesa.

Os anos de estudo em Paris são fundamentais para o surgimento do movimento da Negritude, resultante do encontro do senegalês Léopold Sédar Senghor com o martinicano Aimé Césaire e com Léon Gontran Damas, da Guiana Francesa.

Sua carreira na França, foi brilhante. Em 1936 foi professor em Tours, mais tarde em Paris. Durante a II Guerra, foi feito prisioneiro pelos nazistas. Na oportunidade, aprendeu alemão e escreveu poemas que depois foram publicados em Hosties Noires (Hóstias Negras) Depois de libertado, fez parte da Resistência.

Em 1945 foi eleito Deputado do Senegal na Assembléia Constituinte Francesa. Quando o Senegal uniu-se ao Sudão para formar a Federação do Mali, Senghor foi Presidente da Assembléia Federal.

Desfeita a Federação, com a independência do Senegal, Senghor foi eleito o primeiro presidente da nova república e permaneceu no cargo até 1980, quando se retirou, por sua livre e espontânea vontade, indo viver na Normandia, terra de sua esposa.

Em 1983 foi eleito para a Academia Francesa de Letras. Os últimos anos de sua vida passou entre a Normandia, Paris e Dakar.

Senghor visitou o Brasil mais de uma vez, tendo recebido, em 1964, o título de Doutor em Honoris Causa pela UFBa.

Sua obra foi traduzida para uma infinidade de idiomas: japonês, alemão, sueco, russo, italiano, português...

Seus prêmios literários se somam aos que ganhou como político e estadista.

Ele foi Doutor em Honoris Causa em mais de 20 universidades.

O encontro de estudantes negros, de diferentes procedências, nas metrópoles europeias, foi de fundamental importância para o surgimento de uma consciência negra, melhor talvez dizer de uma consciência pan-africana, incluindo-se aqui os africanos na diáspora.

Considera-se o marco inicial do Movimento da Negritude a publicação, em 1932, da revista Légitime Défense por um grupo de estudantes antilhanos. Revista que não passou do primeiro número, tendo seus fundadores sofrido as maiores represálias, até mesmo por parte de seus compatriotas conservadores.

Contudo, ela influenciou definitivamente o grupo que surgiu a seguir e fundou outra revista L'étudiant noir (o Estudante Negro). Além da revista, o grupo desenvolveu intensa atividade. Organizando reuniões, exposições, assembléias, publicando artigos e poemas em outras revistas, conseguiu fazer o mundo enxergar que existia, sim, uma cultura, uma civilização africana.

O impacto foi tão forte que Aimé Césaire — o primeiro a usar a palavra negritude em um poema — destruiu tudo o que tinha escrito até então. Para ele e para Léon Damas, foi uma surpresa maravilhosa ouvir Senghor falar de uma África jamais sonhada pelos negros da diáspora, África dos doutores de Tumbuctu, do império Ashanti, das amazonas do Daomé. África cuja música não era feita somente de tambores, mas de sofisticados instrumentos como o khalam e o korá.

Resultante do Movimento foi a publicação da Anthologie de la nouvelle poésie africaine et malgache, com prefácio de Jean Paul Sartre, em que o famoso escritor e filósofo francês escreveu: "Que esperáveis, pois, quando retirásseis a mordaça que tapava estas bocas negras ? Que elas vos entoassem louvores?"

A antologia revela ao mundo uma infinidade de poetas africanos e malgaches (de Madagascar) que vieram a se tornar famosos. Posteriormente, em colaboração com o intelectual senegalês Alioune Diop funda a revista Présence Africaine, que também editou várias obras de escritores africanos em prosa e poesia.

Para Senghor, Negritude significava "a soma total dos valores africanos". E Damas proclamava: não somos mais estudantes martinicanos, senegaleses, ou malgaches, somos, cada um de nós e todos nós, um estudante negro (daí o título da revista).



(Ilustração: baobá no cemitério em Joal-Fadiout onde nasceu Léopold Senghor)


Nenhum comentário:

Postar um comentário