terça-feira, 31 de julho de 2018

MADEMOISELLE FIFI - Guy de Maupassant





O major comandante prussiano, conde de Farlsberg, acabava de ler sua correspondência, com as costas afundadas numa ampla poltrona estofada e as botas pousadas no elegante mármore da lareira, onde as esporas, no decurso dos três meses em que ocupava o castelo de Uville, haviam traçado dois fundos orifícios, dia a dia um pouco mais escavados. 

Uma xícara de café fumegava sobre uma mesa redonda de marchetaria, manchada pelos licores, queimada pelos charutos, talhada pelo canivete do oficial, que às vezes traçava sobre o gracioso móvel algarismos ou desenhos, ao capricho da sua indolente fantasia. 

Tendo terminado a leitura das cartas e percorrido os jornais alemães que seu ordenança lhe trouxera, levantou-se, e depois de ativar o fogo com três ou quatro enormes achas de lenha verde, das árvores que derrubavam do parque para se aquecer, aproximou-se da janela. 

A chuva caía a cântaros, uma chuva normanda que se diria atirada por mão furiosa, uma chuva enviesada, espessa como uma cortina, formando uma espécie de muro de listras oblíquas, uma chuva fustigante, tudo salpicando, tudo inundando, verdadeira chuva dos arredores de Rouen, esse vaso noturno da França. 

O oficial contemplou longamente os relvados cheios d’água, e ao longe o Andelle engrossado, que transbordava. Tamborilava contra a vidraça uma valsa do Reno, quando um rumor fê-lo voltar-se. Era seu imediato, o barão de Kelweigstein, que ocupava o posto equivalente ao de capitão. 

O major era um gigante de espáduas largas, com longa barba em forma de leque, abrindo-se sobre o peito como um guardanapo. Da cabeça aos pés, a sua pessoa avantajada dava a ideia de um pavão militar, um pavão cuja cauda se desdobrasse no queixo. Tinha olhos azuis, frios e tranquilos, uma das faces lanhada por um golpe de sabre, recebido na guerra da Áustria, e diziam-no homem tão reto quanto oficial destemido. 

O capitão, homenzinho corado, de ventre proeminente, estreitamente cintado, usava muito curta a barba vermelha, cujos fios cor de fogo fariam supor, quando batidos por certos reflexos, que seu rosto fora esfregado com fósforo. Dois dentes perdidos numa noite de pândega, sem que ao menos se lembrasse como, faziam-no cuspir palavras espessas, nem sempre inteligíveis. Era calvo apenas no alto do crânio, tonsurado como um frade, com uma coroa de cabelinhos frisados, dourados e brilhantes orlando aquele círculo de carne nua. 

O comandante apertou-lhe a mão, e em seguida engoliu de um só trago a sua xícara de café, a sexta nessa manhã, enquanto escutava do seu subordinado a relação dos incidentes ocorridos em serviço. Depois ambos se aproximaram da janela, comentando que aquilo não era nem um pouco divertido. Homem sossegado, casado em sua pátria, o major adaptava-se facilmente à situação. O barão, porém, boêmio incorrigível, frequentador de lupanares, impetuoso conquistador, irritava-se com estar encerrado havia três meses naquela posição perdida, numa castidade obrigatória. 

Ouvindo alguém bater à porta, o comandante mandou entrar e um de seus soldados autômatos apareceu, anunciando pela sua simples presença que o almoço estava servido. 

Na sala de refeição encontraram três oficiais de posto inferior: um tenente, Otto de Gossling; dois subtenentes, Fritz Schcenaubourg e o marquês Wilhem d’Eyrik, lourinho orgulhoso e brutal com seus subordinados, duro para com os vencidos e violento como uma arma de fogo. 

Desde que entrara na França, os companheiros do marquês d’Eyrik só o tratavam por Mademoiselle Fifi. Devia a alcunha ao seu andar requebrado, à sua cintura fina que se diria comprimida por espartilho, ao seu rosto pálido onde mal repontava um bigode incipiente, e também ao hábito que adquirira de, para expressar seu soberano desprezo pelos seres e pelas coisas, servir-se a todo momento da locução francesa fi, fi donc, que pronunciava com ligeiro sibilo. 

A sala de jantar do castelo de Uville era uma peça ampla e imponente. Os espelhos de cristal antigo, agora estrelados de balas, e as requintadas tapeçarias de Flandres, dilaceradas por golpes de sabre e despregadas em alguns lugares, denunciavam as ocupações de Mlle. Fifi nas suas horas de lazer. Nas paredes, três retratos de família — um guerreiro de armadura, um cardeal e um presidente fumando longo cachimbo de porcelana — enquanto uma nobre dama de busto espartilhado, na sua moldura desdourada pelos anos, exibia um enorme bigode desenhado a carvão. 

O almoço dos oficiais decorreu quase em silêncio naquele salão mutilado, ensombrecido pela embriaguez, confrangedor pelo seu aspecto de derrota, tornado sórdido como um chão de taberna o seu antigo soalho de carvalho. 

Terminada a refeição, à hora de fumar, puseram-se a falar, como faziam todos os dias, do tédio que experimentavam. As garrafas de conhaque e de licores passavam de mão em mão, e todos, recostados nas cadeiras, bebiam vagarosamente, em goles repetidos, conservando o cachimbo no canto da boca, longo tubo curvo rematado pelo ovo de faiança, sarapintado como para seduzir hotentotes. Mal os copos se esvaziavam, tornavam a enchê-los, com um gesto de resignada lassidão. Mlle. Fifi quebrava o seu, a toda hora, e imediatamente um soldado lhe apresentava outro. 

Envolvia-os uma cerração feita de fumaça acre, e pareciam engolfar-se numa embriaguez triste e entorpecedora, naquela ebriedade melancólica das pessoas que nada têm com que se ocupar. 

Subitamente, o barão se aprumou. Sacudia-o um assomo de revolta. Praguejou: 

— Com todos os diabos! Isto assim não pode continuar! Afinal, é preciso inventar qualquer coisa para fazer! 

O tenente Otto e o subtenente Fritz, dois alemães dotados de características fisionomias pesadas e graves, indagaram: 

— O que podia ser, capitão? 

Ele refletiu alguns segundos, e depois observou: 

— O quê? Ora, é preciso organizar uma festa, caso o comandante o permita. 

O major largou o cachimbo: 

— Que festa, capitão? 

O barão aproximou-se: 

— Encarrego-me de tudo, comandante. Mandarei o ajudante de ordens a Rouen, e ele nos trará algumas damas. Sei onde encontrá-las. Uma ceia será preparada aqui. Aliás, nada falta, e passaremos uma noitada divertida. 

O conde de Farlsberg meneou os ombros com um sorriso: 

— O senhor está louco, meu amigo. 

Mas todos os oficiais se tinham levantado e rodeavam o superior, suplicando: 

— Comandante, consinta, por favor. É tão triste a nossa vida aqui. 

— Está bem — concordou finalmente o major. 

Sem perder tempo, o barão mandou chamar o ajudante de ordens. Era um velho subtenente, a quem jamais ninguém vira rir-se, mas que cumpria fanaticamente todas as ordens de seus superiores, fossem quais fossem. 

Perfilado, rosto impassível, recebeu as instruções do barão. Retirou-se em seguida, e cinco minutos mais tarde um grande carro militar, coberto com um toldo encerado estendido à maneira de cúpula, deslocava-se apressadamente sob a chuva torrencial, ao galope de quatro cavalos. 

Imediatamente um frêmito perpassou pelos espíritos, despertando-os. Os corpos languidamente recostados se aproximaram, animaram-se os rostos e todos se puseram a conversar. 

Embora o aguaceiro continuasse a cair com a mesma intensidade, o major afirmou que já estava menos escuro, e o tenente Otto anunciou, convicto, que o céu ia clarear. O próprio Mlle. Fifi parecia inquieto. Levantava-se, tornava a sentar-se. Seu olhar claro e duro procurava algo para quebrar. De repente, fitando a dama de bigodes, o lourinho puxou o revólver: 

— Você não assistirá a nada disso — declarou ele. 

Sem se levantar da cadeira, fez pontaria, e duas balas sucessivamente furaram os dois olhos do retrato. Exclamou depois: 

— Agora vamos fazer a mina! 

E as palestras interromperam-se, como se um novo e poderoso interesse a todos empolgasse. “Fazer mina” era a invenção de Mlle. Fifi, sua maneira de destruir, seu divertimento predileto. 

Ao abandonar o castelo, o seu legítimo proprietário, conde Fernand d’Amoys d’Uville, não tivera tempo para transportar nem esconder coisa alguma, salvo a prataria oculta no oco de uma parede. Como era muito rico e munificente, o salão do castelo, cuja porta se abria para a sala de jantar, apresentava antes da fuga precipitada o aspecto de uma galeria de museu. Telas, desenhos e aquarelas de preço pendiam das paredes. Dispostos sobre os móveis e aparadores, e nas vitrines elegantes, mil bibelôs, porcelanas, estatuetas, figurinhas de Saxe e bonecos da China, marfins antigos e cristais de Veneza, enchendo o vasto aposento com a sua presença preciosa e rara. 

Pouco restava de tudo aquilo. Não que os objetos houvessem sido pilhados, pois tal coisa o major conde de Farlsberg não teria permitido. Porém, de quando em quando, Mlle. Fifi preparava uma mina, e então os oficiais realmente se divertiam durante quinze minutos. 

O marquesinho foi ao salão buscar o material de que precisava. Trouxe um bule de chá de porcelana chinesa, família rósea, sobremaneira frágil, que encheu de pólvora. Introduziu no bico, com delicadeza, um longo pedaço de estopim, e apressou-se em levar essa máquina infernal ao compartimento vizinho. Acendeu-o e regressou rápido, depois de fechar a porta. Os alemães esperaram de pé, o rosto sorridente espelhando uma curiosidade infantil. Assim que a explosão estremeceu o castelo, precipitaram-se todos para o salão. 

Mlle. Fifi, o primeiro a entrar, batia freneticamente as mãos diante de uma Vênus de terracota, cuja cabeça afinal saltara. Cada um deles apanhou cacos de porcelana, admirando os estranhos recortes dos estilhaços, verificando os estragos novos e atribuindo outros a uma explosão anterior. E o major considerava com ar paternal o vasto salão, violentamente abalado por aquela metralha à maneira de Nero e coalhado de fragmentos de objetos de arte. Foi o primeiro a sair, depois de observar com bonomia: 

— Desta vez foi um sucesso. 

Mas tamanho turbilhão de fumaça invadira a sala de jantar, misturando-se ao fumo dos cachimbos, que ninguém mais conseguia respirar. O comandante abriu a janela, e os oficiais, que haviam retornado para beber um último copo de conhaque, foram-se aproximando. 

O ar úmido penetrou no aposento, trazendo consigo uma espécie de poeira d’água e um cheiro de inundação. Puseram-se a contemplar as enormes árvores, vergadas pelo aguaceiro, o amplo vale obscurecido pela aglomeração de nuvens baixas e sombrias, e bem ao longe o campanário da igreja, alteando-se como uma flecha cinzenta no meio da chuva torrencial. 

Desde que eles tinham chegado, os sinos da igreja haviam deixado de tocar. Era a única resistência com que os invasores tinham deparado nos arredores: a do campanário. O vigário absolutamente não se recusara a abrigar e alimentar soldados prussianos. Concordara até em beber uma garrafa de cerveja ou de bordeaux com o comandante inimigo, que muitas vezes o utilizava como intermediário voluntário. Porém, não lhe pedissem uma só badalada de seu sino! Mais depressa se deixaria fuzilar. Era a sua maneira de protestar contra a invasão: protesto pacífico, protesto de silêncio, o único, segundo dizia, adequado a um sacerdote, homem de doçura e não de sangue. E todos, numa circunferência de dez léguas, gabavam a firmeza, o heroísmo do Pe. Chantavoine, que ousava afirmar o luto público e proclamá-lo através do obstinado mutismo da sua igreja. 

A aldeia inteira, entusiasmada com essa resistência, mostrava-se disposta a apoiar até o fim o seu pastor, disposta a tudo afrontar, pois considerava esse protesto tácito como um desagravo à honra nacional. Os camponeses tinham a impressão de que a pátria lhes devia mais do que a Blefort e a Strasbourg; parecia-lhes ter dado um exemplo equivalente, e que haviam imortalizado o nome da aldeia. Com exceção disso, nada recusavam aos prussianos vencedores. 

Tanto o comandante como os oficiais se riam dessa inofensiva coragem. Como a região inteira se mostrava obediente e submissa para com eles, de boa vontade toleravam aquele silencioso patriotismo. 

Apenas o pequeno marquês Wilhem teria gostado de forçar o sino a tocar. Irritava-o a condescendência política do seu superior em relação ao pároco, e todos os dias insistia com o comandante para que o deixasse fazer “ding-don-don” uma vez, uma única vez, somente para divertir-se um pouco. Fazia tal pedido com requebros felinos, meiguices femininas e as doçuras na voz que teria uma amante obcecada por um desejo. Mas o comandante não cedia, e para consolar-se Mlle. Fifi “fazia mina” no castelo de Uville. 

Durante alguns momentos, os cinco homens permaneceram agrupados no mesmo lugar, aspirando a umidade. Enfim, soltando uma risada pastosa, o tenente Fritz assim se expressou: 

— Aquelas senhorritas tecididamente não terrão uma tempo ponito para sua passeio. 

Logo em seguida eles se separaram. Cada um retomou seu serviço, e o capitão ocupou-se com os múltiplos preparativos do jantar. 

Ao cair da noite, quando novamente se encontraram, puseram-se a rir, vendo-se todos faceiros e reluzentes como nos dias de revista solene, os cabelos lustrosos, perfumados e limpos. Os cabelos do comandante se haviam tornado menos grisalhos do que pela manhã, e o capitão fizera a barba, só conservando o bigode ruivo, que lhe parecia uma chama sob o nariz. 

Não obstante a chuva, deixaram a janela aberta, e de vez em quando um deles ia escutar. Às seis horas e dez minutos, o barão percebeu um rodar longínquo. Todos se alvoroçaram, e o enorme carro não tardou em aproximar-se, sem deter o galope dos quatro cavalos esbaforidos, enlameados até às costas. 

Cinco mulheres desceram no patamar, cinco bonitas raparigas escolhidas a dedo por um companheiro do capitão. Não se tinham feito rogar, certas de que seriam bem pagas. Conheciam os prussianos, que há três meses aguentavam, e sabiam tirar partido tanto dos homens como das coisas. “São exigências da profissão” — explicavam, a caminho, sem dúvida para acalmar o secreto prurido de uns restos de consciência. 

Imediatamente entraram na sala de jantar. Iluminada, esta ainda parecia mais lúgubre, deixando perceber o lamentável estado a que fora reduzida. A mesa farta de carnes, com a rica baixela e a prataria encontrada na parede onde a escondera seu proprietário, conferia-lhe o aspecto de uma taverna, na qual bandidos fossem cear depois de uma pilhagem. Radiante, o capitão apossou-se das raparigas como de objetos familiares, aquilatando-as como dispensadoras de prazer. Como os três mais moços se apressavam em fazer sua escolha, opôs-se categoricamente, atribuindo-se a partilha, que seria feita dentro da maior equidade, tendo-se em conta as patentes, a fim de que a hierarquia fosse respeitada. 

Assim sendo, no propósito de evitar qualquer discussão, qualquer contestação, qualquer suspeita de parcialidade, alinhou-as pela estatura, e dirigindo-se à mais alta, indagou com voz de comando: 

— Seu nome? 

— Pamela. 

— Número um, a chamada Pamela, adjudicada ao comandante. 

Em seguida, depois de beijar em sinal de posse a Blondine, a segunda, ofereceu ao comandante Otto a rechonchuda Amanda, Eva ao subtenente Fritz, e Raquel, a mais baixa de todas, ao mais moço dos oficiais, o marquesinho Wilhem d’Eyrik. Raquel era morena muito jovem, de olhos negros como borrões de tinta, uma judia, cujo nariz adunco confirmava a regra que caracteriza sua raça, 

Todas eram gordas e bonitas, sem fisionomias muito marcadas, como se as práticas quotidianas e a vida comum nos prostíbulos as tivessem tornado parecidas de rosto e de porte. 

Os três jovens tencionavam subir com as suas damas, sob o pretexto de oferecer-lhes escovas e sabão para se lavarem. Prudentemente o capitão se opôs, declarando que estavam bastante limpas para sentarem-se à mesa, e argumentando que aqueles que subissem poderiam propor permutas, com isso perturbando os outros pares. Sua experiência deu-lhe ganho de causa. 

Sentaram-se. O próprio comandante parecia encantado. Colocou Pamela à sua direita, Blondine à sua esquerda, e observou, ao desdobrar o guardanapo: 

— O senhor teve uma ótima ideia, capitão. 

Os tenentes Otto e Fritz, afetando polidez como se tratassem com senhoras da sociedade, intimidavam um pouco as suas vizinhas. Mas o barão de Kelweigstein, entregue ao seu prazer predileto, soltava palavras picantes, galanteava em francês do Reno, e seus cumprimentos de taverna, expectorados pela abertura dos dois dentes partidos, chegavam às raparigas de envolto a uma metralha de saliva. 

De resto, elas não compreendiam coisa alguma, e sua inteligência só pareceu despertar quando ele começou a cuspir-lhes palavras obscenas, expressões cruas, que o seu sotaque estropiava. Então, todas ao mesmo tempo puseram-se a rir como loucas, repetindo as palavras que o barão se comprazia em deformar, a fim de obrigá-las a proferir obscenidades. Vomitavam tais obscenidades sem hesitar, bêbedas desde as primeiras garrafas de vinho. Tendo assim voltado a ser elas mesmas, e aberto a porta aos hábitos, bebiam em todos os copos, cantavam coplas francesas e trechos de canções alemãs aprendidas nos seus contatos quotidianos com o inimigo. 

Bem depressa os homens, também embriagados, puseram-se a berrar e a quebrar a baixela, enquanto às suas costas, impassíveis, os soldados os serviam. 

O comandante era o único a guardar a compostura. 

Tinham chegado à sobremesa. O champanhe estava sendo servido. O comandante levantou-se, e no mesmo tom que empregaria para erguer um brinde à imperatriz Augusta, saudou: 

— Às nossas damas! 

Foi o início de uma série de toasts, de galanterias de soldados bêbedos misturadas a gracejos obscenos, que a ignorância do idioma tornava ainda mais brutais. Um por um eles se levantaram, tentando mostrar-se espirituosos, esforçando-se por parecer engraçados. E as mulheres embriagadas, olhos vagos, lábios pastosos, aplaudiam freneticamente. 

Na provável intenção de acrescentar um toque galante à orgia, mais uma vez o capitão ergueu o copo e proferiu: 

— Às nossas vitórias sobre os corações! 

Então o tenente Otto, espécie de urso da Floresta Negra, retesou-se, inflamado, saturado de bebidas. Subitamente possuído de patriotismo alcoólico, gritou: 

— Às nossas vitórias sobre a França! 

Por mais bêbedas que estivessem, as mulheres calaram-se. Raquel, trêmula, retrucou: 

— Fique sabendo: conheço franceses diante dos quais você não falaria assim. 

O marquesinho pôs-se a rir, pois o vinho o deixara muito alegre: 

— Ah! ah! ah! Nunca vi esses franceses. Mal aparecemos, eles somem! 

— Você está mentindo, seu sujo! — gritou-lhe ao rosto a rapariga, exasperada. 

Durante um segundo ele fixou nela os olhos claros, tal como os fixava nas telas quando as furava a tiros de revólver, e depois soltou uma risada. 

— Ah! Quanto a isso, beleza, acaso estaríamos aqui se eles fossem valentes? Somos donos dos franceses! A França é nossa! — Levantou-se, estendeu o copo até ao centro da mesa, e repetiu: — A França é nossa, assim como os franceses, os bosques, os campos e as casas da França! 

Completamente bêbedos, subitamente dominados por um entusiasmo militar, um entusiasmo de brutos, os outros também empunharam os copos, vociferando: 

— Viva a Prússia! — e esvaziaram os copos de um só trago. 

As raparigas não protestavam, emudecidas e presas do medo. A própria Raquel calava-se, impotente para responder. Foi então que o marquesinho colocou sobre a cabeça da judia a taça de champanha que tornara a encher, e gritou: 

— A nós também todas as mulheres da França! 

Raquel se pôs de pé rapidamente, derramando sobre seus cabelos o cálice de champanhe, que em seguida caiu ao chão, espatifando-se. Com os lábios trêmulos, afrontava com o olhar o oficial, que continuava a rir-se. E balbuciou, com voz sufocada pela cólera: 

— Isso... isso não é verdade! Absolutamente vocês não terão as mulheres da França! 

Ele se sentou, para rir-se mais à vontade, e procurando imitar o sotaque parisiense: 

— Essa é pem poa, pem poa, enton que veiu facer aqui, pequena? 

Interdita, ela se calou, tão perturbada que não podia compreender bem o que ele dizia. Depois, assim que alcançou o sentido daquelas palavras, retorquiu, indignada e veemente: 

— Eu... eu... não sou mulher, sou prostituta. É o que serve para vocês, prussianos. 

Nem bem terminara, e ele já a esbofeteara com força. Ao vê-lo erguer a mão outra vez, enlouquecida pela raiva, Raquel apanhou na mesa uma faca, e bruscamente cravou-a no pescoço do marquesinho, bem no côncavo onde começa o peito. A palavra que articulava foi cortada na garganta, e ele se quedou de boca escancarada, com olhar terrível. 

Um bramido ergueu-se, e todos se levantaram em tumulto. Porém, depois de atirar sua cadeira às pernas do tenente Otto, que se estatelou no chão, Raquel correu à janela, abriu-a antes que conseguissem alcançá-la, e desapareceu na noite, sob a chuva que continuava a cair. 

Dois minutos depois, Mlle. Fifi morria. Então Fritz e Otto desembainharam as espadas e quiseram trucidar as outras mulheres. Não sem dificuldade, o major impediu o morticínio e mandou fechá-las num quarto, sob a guarda de dois soldados. 

Tal como se dispusesse militares para um combate, o major organizou a perseguição à fugitiva, plenamente convencido de que seria capturada. Cinquenta homens, fustigados por ameaças, foram lançados ao parque. Duzentos outros esquadrinharam os bosques e as casas do vale. 

A mesa, instantaneamente desocupada, servia agora de leito mortuário. Os quatro oficiais, dissipada a embriaguez, rígidos e perfilados junto às janelas, com a fisionomia de guerreiros em serviço, sondavam a noite. 

A chuva torrencial continuava. Um marulhar contínuo enchia as trevas, murmúrio ondeante de água que cai e de água que escorre, de água que goteja e de água que esguicha. 

De repente ressoou um tiro, depois outro, muito ao longe. Durante algumas horas, de quando em quando repercutiram detonações próximas ou distantes, assim como gritos para reunir e palavras estranhas, lançadas como apelos por vozes guturais. Pela manhã todos regressaram. Dois soldados haviam sido mortos e três outros feridos por companheiros, durante a caçada, na confusão daquela perseguição noturna. 

Raquel não fora encontrada. 

Em consequência, os habitantes do lugar foram submetidos a um regime de terror, as casas revistadas, toda a região percorrida, explorada, revolvida. A judia parecia não haver deixado um único vestígio da sua passagem. 

Informado, o general ordenou que se abafasse o caso, para não dar maus exemplos ao exército, e infligiu uma pena disciplinar ao comandante, que por sua vez puniu seus inferiores. O general dissera: 

— Ninguém faz guerra para se divertir e meter-se com mulheres da vida. 

E o conde de Farlsberg, exasperado, resolveu vingar-se sobre a região. Como necessitasse de um pretexto para exercer livremente as suas represálias, mandou chamar o vigário e deu-lhe ordem para tocar o sino por ocasião do sepultamento do marquês d’Eyrik. Contra a sua expectativa, o sacerdote mostrou-se dócil, humilde, cheio de deferência. 

Quando o corpo de Mlle. Fifi, carregado por soldados, precedido, cercado e acompanhado por soldados que marchavam de armas embaladas, deixou o castelo de Uville a caminho do cemitério, pela primeira vez o sino dobrou a finados, mas com um ritmo vivo, como se mão amiga o acariciasse. 

Ressoou também à noite, no dia seguinte, e todos os dias daí em diante. Repicou todas as vezes que desejaram. Mesmo durante a noite, acontecia-lhe agitar-se sozinho, de manso, e lançar à sombra duas ou três sonoridades, tomado de estranhas alegrias, despertado não se sabia por quê. Os camponeses do lugar deram-no como enfeitiçado, e ninguém, salvo o vigário e o sacristão, se aproximava do campanário. 

É que uma pobre rapariga vivia lá no alto, na angústia e na solidão, alimentada às escondidas por aqueles dois homens. 

No alto permaneceu até a retirada das tropas alemãs. Certa noite, tendo pedido emprestado a carroça do padeiro, o próprio vigário conduziu sua prisioneira às portas de Rouen. Algum tempo depois um patriota a desposou, entusiasmado pela bela ação que praticara. 



(Maravilhas do conto universal



(Ilustração: museum artes xfig Eugène Delacroix - a morte de Sardanapalo – 1827)



sexta-feira, 27 de julho de 2018

SERÁ BRANDO O RIGOR, de Sóror Violante do Céu






Será brando o rigor, firme a mudança,

Humilde a presunção, vária a firmeza,

Fraco o valor, cobarde a fortaleza,

Triste o prazer, discreta a confiança;



Terá a ingratidão firme lembrança,

Será rude o saber, sábia a rudeza,

Lhana a ficção, sofística a lhaneza,

Áspero o amor, benigna a esquivança;



Será merecimento a indignidade,

Defeito a perfeição, culpa a defensa,

Intrépido o temor, dura a piedade,



Delito a obrigação, favor a ofensa,

Verdadeira a traição, falsa a verdade,

Antes que vosso amor meu peito vença.





(Cem Sonetos Portugueses)

(Ilustração: Domenico Fetti - La Meditazione -1618)

quarta-feira, 25 de julho de 2018

OS TRINTA E CINCO CAMELOS, de Malba Tahan







Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista. 

Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos: 

— Não pode ser! 

— Isto é um roubo! 

— Não aceito! 

O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava. 

— Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas? 

— É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe. 

Neste ponto, procurei intervir na questão: 

— Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo? 

— Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar. 

Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros. 

— Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36. 

E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou: 

— Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão. 

Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou: 

— E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação. 

E disse, por fim, ao mais moço: 

— E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado. 

Numa voz pausada e clara, concluiu: 

— Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança. 

— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e eqüidade. 

E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia: 

— Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim. 

E continuamos a nossa jornada para Bagdá. 





(Seleções - Os melhores contos



(Ilustração: Ludwig Hans Fischer - an arab caravana)


domingo, 22 de julho de 2018

CISNES, de Júlio Mário Salusse


     





A vida, manso lago azul algumas

Vezes, algumas vezes mar fremente,

Tem sido para nós constantemente

Um lago azul, sem ondas sem espumas!



Sobre ele, quando, desfazendo as brumas

Matinais, rompe um sol vermelho e quente,

Nós dois vagamos indolentemente,

Como dois cisnes de alvacentas plumas!



Um dia um cisne morrerá, por certo:

Quando chegar esse momento incerto,

No lago, onde talvez a agua se tisne,



Que o cisne vivo, cheio de saudade,

Nunca mais cante, nem sozinho nade,

Nem nade nunca ao lado de outro cisne...




(Ilustração: Jan Weenix - Cygne mort et paon, 1708)




quinta-feira, 19 de julho de 2018

O SANTO QUE NÃO ACREDITAVA EM DEUS, de João Ubaldo Ribeiro








Temos várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come lama, o peixe que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando sopa fazendo chupações na água, o peixe que, quando vê a fêmea grávida pondo ovos, não pode se conter e com agitações do rabo lava a água de esporras a torto e a direito ficando a água leitosa, temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas, temos por exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do Recôncavo, o qual peixe não somente fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem filtro, hoje em falta, mas também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que futuca suas partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que nunca podem parar de nadar para não morrer afogados. 

É engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas entendo. Os peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o chicharro e a sardinha. Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o barrigame-dói, o qual o primeiro é venenoso e o segundo causa bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa, que já foi bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo, porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o rei dos peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um cabeçudo, um frade, um barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou ainda uma moreia, isto dificilmente. O bom da pesca do peixe miúdo é quando estão mordendo verdadeiramente e sentamos na rampa ou então vamos esfriando as virilhas nestas águas de agosto e ficamos satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada mais desejamos da vida. 

Ou quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente carrapatos. Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de mencionar o carrapato, que não aparece muito a não ser em certas épocas, devendo ter recebido o nome de carrapato justamente por ser uma completa infernação, como os carrapatos do ar. Notadamente porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para o tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos, digamos um vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa decente, quando que me vem lá de baixo, parecendo uma borboletinha pendurada na ponta da linha, um carrapato. Revolta a pessoa. 

E estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por intermédio de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa, com dois chumbos de cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca de arame, linha esta que não me dá confiança, agora se vendo que é especializada em carrapatos. Mas temos uma vazante despreocupada, vem aí setembro com suas arraias no céu e, com esses dois punhados de camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos restos da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me dar ao desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça como é o certo, pode ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos da Matriz e uns meninos como formiguinhas escorregando nas areias descarregadas pelos saveiros, mas o barulho deles chega a mim depois da vista e assim os gritos deles parecem uns rabos compridos. Temos uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa, fresca, fresca; meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água, se não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta nada e então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos o corpo na popa, enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando na vida. 

Nisso começa o carrapato, que no princípio tive na conta de baiacus ladrões. Quem está com dois anzóis dos grandes, pegou isca de graça e a mulher já mariscou a comida do meio-dia pode ser imaginado que não vai dar importância a beliscão leve na linha. Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas não tem esse santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no apeador sem se mexer e tomar uma providência. Estamos sabendo: é um desgraçado de um baiacu. Se for, havendo ele dado todo esse trabalho, procuremos arrancar o anzol que o miserável engole e estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar, dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é um baiacu, mas um carrapato subdesenvolvido, um carrapatinho de merda, com mais boca do que qualquer outra coisa, boca essa assoberbando um belo anzol preparado pelo menos para um dentão, não se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come com uma exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena gastar fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça d'água do fundo da canoa e, dessa hora em diante, um carrapato por segundo mordendo o anzol, uma azucrinarão completa. Foi ficando aquela pilha de carrapatinhos no fundo da canoa e eu pensei que então não era eu quem ia aparecer com eles em casa, porque com certeza iam perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho e nem gato ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega a falta de vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira que só podemos abrir essa quartinha, retirar o anzol da água, verificar se vale a pena remar até o pesqueiro de Paparrão nesta soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não vai acabar, e ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa. 

Nisto que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes, não podendo também ser da aguardente, pois que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora, com as calças arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório por cima da camisa. 

— Ai égua! — disse eu. — Veio nadando e está enxuto? 

— Eu não vim nadando — disse ele. — Muito peixe? 

— Carrapato miúdo. 

— Olhe ali — disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para o lado da Ilha do Medo. — Peixe. 

Ora, uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É conhecida porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor e aquilo vai igual a muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas dessas azeiteiras, como as peixas chamadas solteiras, não se pode esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de bomba. 

— Azeiteira — disse eu. — Só mesmo uma bela rede. E mais canoa e mais braço. 

— Mas eles ficam pulando — disse ele, que tinha um sorriso entusiasmado, possivelmente porque era difícil não perceber que a água em cima como que era o aço de um espelho, só que aço mole como o do termômetro, e então cada peixe que subia era um orador. Aí eu disse, meu compadre, se vosmecê botar um anzol e uma dessas meninas gordurentas morder esse tal anzol, eu dou uma festa para você no hotel — ainda que mal pergunte, como é a sua graça? 

Assim levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não apreciava mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu disse que não botava na minha canoa aquele de quem não saiba o nome e então ficasse ele ali o resto da manhã, a tarde e a noite pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom tempo. Mas que coisa interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você falou. 

— É o seguinte — disse ele, dando outro suspiro. — É porque eu sou Deus. 

Ora, ora me veja-me. Mas foi o que ele disse e os carrapatinhos, que já gostam de fazer corrote-corrote com a garganta quando a gente tira a linha da água ficaram muitíssimo assanhados. 

— É mais o seguinte — continuou ele, com a expressão de quem está um pouco enfadado. — Está vendo aqui? Não tem nada. Está vendo alguma coisa aqui? Nada! Muito bem, daqui eu vou tirar uma porção de linhas e jogar no meio dessas azeiteiras. E dito e feito, mais ligeiro que o trovão, botou os braços para cima e tome tudo quanto foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um arco-íris. Ele aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu não sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu que, na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por um carrapato e, quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da canoa. Eu fiz: quá-quá-quá, não está vendo tu que temos somente carrapatos? Carrapato, carrapato, disse eu, está vendo a cara do besta? Ele, porém, se retou. 

— Não se abra, não — disse ele — que eu mando o peixe lhe dar porrada. 

— Porrada dada, porrada respostada — disse eu. 

Para que eu disse isto, amigo, porque me saiu um mero que não tinha mais medida, saiu esse mero de junto assim da biriba, dando um pulo como somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara que minha cara ficou vermelha dois dias depois disto. 

— Donde saiu essa, sai mais uma grosa! — disse ele dando risada, e o mero ficou a umas três braças da canoa, mostrando as gengivas com uma cara de puxa-saco. 

— Não procure presepada, não — disse ele. — Senão eu mando dar um banho na sua cara. 

— Mande seu banho — disse eu, que às vezes penso que não tenho inteligência. 

Pois não é que ele mandou esse banho, tendo saído uma onda da parte da Ponta de Nossa Senhora, curvando como uma alface aborrecida a ponta da coroa, a qual onda deu tamanha porrada na canoa que fiquemos flutuando no ar vários momentos. 

— Então? — disse ele. — Eu sou Deus e estou aqui para tomar um par de providências, sabe vosmecê onde fica a feira de Maragogipe? 

— Qual é feira de Maragogipe nem feira de Gogiperama — disse eu, muito mais do que emputecido, e fui caindo de pau no elemento, nisso que ele se vira num verdadeiro azougue e me desce mais que quatrocentos sopapos bem medidos, equivalentemente a um catavento endoidado e, cada vez que eu levantava, nessa cada vez eu tomava uma porrada encaixada. Terminou nós caindo das nuvens, não sei qual com mais poeira em torno da garupa. Ele, no meio da queda, me deu uns dois tabefes e me disse: está convertido, convencido, inteirado, percebido, assimilado, esclarecido, explicado, destrinchado, compreendido, filho de uma puta? E eu disse sim senhor, Deus é mais. Pare de falar em mim, sacaneta, disse ele, senão lhe quebro todo de porrada. Reze aí um padre-nosso antes que eu me aborreça, disse ele. Cale essa matraca, disse ele. 

Então eu fui me convencendo, mesmo porque ele não estava com essas paciências todas, embora se estivesse vendo que ele era boa pessoa. Esclareceu que, se quisesse, podia andar em cima do mar, mas era por demais escandaloso esse comportamento, podendo chamar a atenção. Que qualquer coisa que ele resolvesse fazer ele fazia e que eu não me fizesse de besta e que, se ele quisesse, transformava aqueles carrapatos todos em lindos robalos frescos. No que eu me queixei que dali para Maragogipe era um bom pedaço e que era mais fácil um boto aparecer para puxar a gente do que a gente conseguir chegar lá antes que a feira acabasse e aí ele mete dois dedos dentro da água e a canoa sai parecendo uma lancha da Marinha, ciscando por cima dos rasos e empinando a proa como se fosse coisa, homem ora. Achei falta de educação não oferecer um pouco do da quartinha, mas ele disse que não estava com vontade de beber. 

Nisso vamos chegando muito rapidamente a Maragogipe e Deus puxa a poita desparramando muitos carrapatos pelos lados e fazendo a alegria dos siris que por ali pastejam e sai como que nem um peixe-voador. No meio do caminho, ele passa bastante desencalmado e salva duas almas com um toque só, uma coisa de relepada como somente quem tem muita prática consegue fazer, vem com a experiência. Porque ele nem estava olhando para essas duas almas, mas na passagem deu um toque na orelha de cada uma e as duas saíram voando ali mesmo, igual aos martins depois do mergulho. Mas aí ele ficou sem saber para onde ia, na beira da feira, e então eu cheguei perto dele. 

— Tem um rapaz aqui — disse Deus, coçando a gaforinha meio sem jeito — que eu preciso ver. 

— Mas por que vosmecê não faz um milagre e não acha logo essa pessoa? — perguntei eu, usando o vosmecê, porque não ia chamar Deus de você, mas também não queria passar por besta se ele não fosse. 

— Não suporto fazer milagre — disse ele. — Não sou mágico. E, em vez de me ajudar, por que é que fica aí falando besteira? 

Nessa hora eu quase ia me aborrecendo, mas uma coisa fez que eu não mandasse ele para algum lugar, por falar dessa maneira sem educação. É que, sendo ele Deus, a pessoa tem de respeitar. Minto: três coisas, duas além dessa. A segunda é que pensei que ele, sendo carpina por profissão, não estava acostumado a finuras, o carpina no geral não alimenta muita conversa nem gosta de relambórios. A terceira coisa é que, justamente por essa profissão e acho que pela extração dele mesmo, ele era bastante desenvolvidozinho, aliás, bem dizendo, um pau de homem enormíssimo, e quem era que estava esquecendo aquela chuva de sopapos e de repente ele me amaldiçoa feito a figueira e eu saio por aí de perna peca no mínimo, então vamos tratar ele bem, quem se incomoda com essas bobagens? Indaguei com grande gentileza como é que eu ia ajudar que ele achasse essa bendita dessa criatura que ele estava procurando logo na feira de Maragogipe, no meio dos cajus e das rapaduras, que ele me desculpasse, mas que pelo menos me dissesse o nome do homem e a finalidade da procura. Ele me olhou assim na cara, fez até quase que um sorriso e me explicou que ia contar tudo a mim, porque sentia que eu era um homem direito, embora mais cachaceiro do que pescador. Em outro caso, ele podia pedir segredo, mas em meu caso ele sabia que não adiantava e não queria me obrigar a fazer promessa vã. Que então, se eu quisesse, que contasse a todo mundo, que ninguém ia acreditar de qualquer jeito, de forma que tanto faz como tanto fez. E que escutasse tudo direito e entendesse de uma vez logo tudo, para ele não ter de repetir e não se aborrecer. Mas Deus, ah, você não sabe de nada, meu amigo, a situação de Deus não está boa. Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus. 

Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu. 

Tendo eu perguntado como é que ele botava as mãos para o céu e tendo ele respondido que eu não entendia nada de Santíssima Trindade e calasse minha boca, esclareceu que estava procurando um certo Quinca, conhecido como Das Mulas, que por ali trabalhava. Mas como esse Quinca, perguntei, não pode ser o mesmo Quinca! Pois esse Quinca era chamado Das Mulas justamente por viver entre burros e mulas e antigamente podendo ter sido um rapaz rico, mas havendo dado tudo aos outros e passando o tempo causando perturbação, ensinando besteiras e fazendo questão de dar uma mão a todos que ele dizia que eram boas pessoas, sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas. Porém ninguém fazia nada com ele porque o povo gostava muito dele e, quando ele falava, todo mundo escutava. Além de tudo, gastava tudo com os outros e vivia dando risadas e tomava poucos banhos e era um homem desaforado e bebia bastante cana, se bem que só nas horas que escolhia, nunca em outras. E, para terminar, todo mundo sabia que ele não acreditava em Deus, inclusive brigava bastante com o padre Manuel, que é uma pessoa distintíssima e sempre releva. 

— Eu sei — respondeu Deus. — Isto é mais uma dificuldade. 

E, de fato, fomos vendo que a vida de Deus e dos santos é muito dificultosa desde aí, porque tivemos de catar toda a feira atrás desse Quinca e sempre onde a gente passava ele já tinha passado. Ele foi encontrado numa barraca, falando coisas que a mulher de Lóide, aquela outra santa, fingia que achava besteira, mas estava se convencendo e então eu vi que aquilo ia acabar dando problema. Olha aí, mostrei eu, ele ali causando divergência. É isso mesmo, disse Deus com olhar de grande satisfação, certa feita eu também disse que tinha vindo separar homem e mulher. Não quero nem saber, me apresente. 

E então tivemos um belo dia, porque depois da apresentação parece que Quinca já tinha tomado algumas e fomos comer um sarapatel, tudo na maior camaradagem, porque estava se vendo que Quinca tinha gostado de Deus e Deus tinha gostado dele, de maneira que ficaram logo muitíssimo amigos e foi uma conversa animada que até às vezes eu ficava meio de fora, eles tinham muita coisa a palestrar. Nisso tome sarapatel até as três e todo mundo já de barriga altamente estufada, quando que Quinca me resolve tomar uma saideira com Deus e essa saideira é nada mais nada menos do que na casa de Adalberta, a qual tem mulheres putas. Nessa hora, minha obrigação, porque estou vendo que Deus está muito distraído e possa ser que não esteja acostumado com essas aguardentes de Santo Amaro que ele tomou mais de uma vintena, é alertar. Chamei assim Deus para o canto da barraca enquanto Quinca urinava e disse olhe, você é novo por aqui, pelo menos só conhecíamos de missa, de maneira que essa Adalberta, não sei se você sabe, é cafetina, não deve ficar bem, não tenho nada com isso, mas não custa um amigo avisar. Ora, rapaz, você tem medo de mulher, disse Deus, que estava mais do que felicíssimo e, se não fosse Deus, eu até achava que era um pouco do efeito da bebida. Mas, se é ele que fala assim, não sou eu que fala assado, vá ver que temos lá alguma rapariga chamada Madalena, resolvi seguir e não perguntar mais nada. 

Pois tomaram mais e fizeram muito grande sucesso com as mulheres e era uma risadaria, uma coisa mesmo desproporcionada, havendo mesmo um serviço de molho pardo depois das seis, que a fome apertou de novo, e bastantes músicas. Cada refrão que Quinca mandava, cada refrão Deus repicava, estava uma farra lindíssima, porém sem maldade, e Deus sabia mais sambas de roda que qualquer pessoa, leu mãos, recitou, contou passagens, imitou passarinho com perfeição, tirou versos, ficou logo estimadíssimo. Eu, que estava de reboque bebendo de graça e já tinha aprendido que era melhor ficar calado, pude ver com o rabo do olho que ele estava fazendo uns milagres disfarçados, a mim ele não engana. As mulheres todas parece que melhoraram de beleza, o ambiente ficou de uma grande leveza, a cerveja parecia que tinha saído do congelador porém sem empedrar e, certeza eu tenho mas não posso provar, pelo menos umas duas blenorragias ele deve de ter curado, só pelo olhar de simpatia que ele dava. E tivemos assim belas trocas de palavras e já era mais do que onze quando Quinca convidou Deus para ver as mulas e foram vendo mulas que parecia que Deus, antes de fazer o mundo, tinha sido tropeiro. E só essa tropica e essa não tropica, essa empaca e essa não empaca, essa tem a andadura rija, essa pisa pesado, essa está velha, um congresso de muleiros, essa é que é a verdade. 

É assim que vemos a injustiça, porque, a estas alturas, eu já estou sabendo que Deus veio chamar Quinca para santo e que dava um trabalho mais do que lascado, só o que ele teve de estudar sobre mulas e decorar de sambas de roda deve ter sido uma esfrega. Mas eu já estava esperando que, de uma hora para outra, Deus desse o recado para esse Quinca das Mulas. Como de fato, numa hora que a conversa parou e Quinca estava só estalando a língua da cachaça e olhando para o espaço, Deus, como quem não quer nada, puxou a prosa de que era Deus e tal e coisa. 

Ah, para quê? Para Quinca dizer que não acreditava em Deus. E para Deus, no começo com muita paciência, dizer que era Deus mesmo e que provava. Fez uns dois milagres só de efeito, mas Quinca disse que era truques e que, acima de tudo, o homem era homem e, se precisasse de milagre, não era homem. Deus, por uma questão de honestidade, embora o coração pedisse contra nessa hora, concordou. Então ande logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu só preocupado com a falta de paciência de Deus, porque, se ele se aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui nesta hora. Mas ele só patati-patatá, que porque ser santo era ótimo, que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que deixasse daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer dez por cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta e os dois foram andando para fora, num particular e, de repente, se desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos, meio dispersados pelo vento. 

— Você tem que ser santo, seu desgraçado! — gritava Deus. 

— Faz-se de besta! — dizia Quinca. 

E só quebrando porrada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na porrada, eu já conhecia. Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz! cale essa boca, mentiroso! E por aí ia. Eu só sei que, umas cinco horas mais ou menos, com Gerdásia do mercado trazendo um mingau do que ela ia vender na praça e fazendo a caridade de dar um pouco para mim e para Deus, por sinal que ele toma mingau como se fosse acabar amanhã e não tivesse mais tempo, os dois resolveram apertar a mão, porém não resolveram mais nada: nem Deus desistia de chamar Quinca para o cargo de santo, nem Quinca queria aceitar esse cargo. 

— Muito bem — disse Deus, depois de uma porção de vezes que todo mundo dizia que já ia, mas enganchava num resto de conversa e regressava. — Eu volto aqui outra vez. 

 Voltar, pode voltar, terá comida e bebida — disse Quinca. — Mas não vai me convencer! 

— Rapaz, deixe de ser que nem suas mulas! 

— Posso ser mula, mas não tenho cara de jegue! 

E aí mais pau, mas, quando o dia já estava moço, aí por umas seis ou sete horas da manhã, estamos Deus e eu navegando de volta para Itaparica, nenhum dos dois falando nada, ele porque fracassou na missão e eu porque não gosto de ver um amigo derrotado. Mas, na hora que nós vamos passando pelas encostas do Forte, quase nos esquecendo da vida pela beleza, ele me olhou com grande simpatia e disse: fracasso nada, rapaz. não falei nada, disse eu. Mas sentiu, disse ele. Se incomode não, disse ele, nem toda pesca rende peixes. E então ficou azul, esvoaçou, subiu nos ares e desapareceu no céu." 



(Já Podeis da Pátria Filhos e Outras Histórias)



(Ilustração: Salvador Dalí)