sexta-feira, 30 de junho de 2023

LILIAN SERPAS NÃO VAI PARA CASA ESTA NOITE, de Roberto Bolaño

 




Saí da casa de Remedios Varo pior do que uma sonâmbula porque os sonâmbulos sempre voltam para as suas casas e eu sabia que não ia voltar à casa de Remedios Varo. Eu sabia que ia acordar à intempérie, de noite ou quando já estivesse amanhecendo, dava na mesma, no meio da cidade que tinha escolhido por amor ou por raiva.

Minhas lembranças que remontam sem ordem nem concerto para trás e para a frente daquele desamparado mês de setembro de 1968 me dizem, balbuciando, gaguejando, que decidi permanecer na expectativa debaixo daquele sol cor de água, de pé numa esquina, escutando todos os ruídos da Cidade do México, até o das sombras das casas que se perseguiam sem trégua como feras recém-saídas do covil do taxidermista.

Não sei quanto tempo passou, se muito ou se pouco, porque eu tinha os sentidos presos com alfinete no espaço, e não no tempo, até que vi se abrir a porta da casa de Remedios Varo e vi sair aquela mulher que tinha se escondido no quarto, no banheiro ou atrás das cortinas durante a minha visita.

Uma mulher de pernas compridas e finas, mas sem dúvida nenhuma, como calculei enquanto a seguia, de estatura inferior a minha. Porque aquela mulher era alta, principalmente para os cânones mexicanos, mas eu era mais alta ainda.

Da minha posição de perseguidora só podia ver suas costas e suas pernas, uma figura fina, como já disse, e o cabelo, uma cabeleira castanha e ligeiramente ondulada que lhe caía abaixo dos ombros e que, apesar de certo descuido (que eu poderia, embora não me atrevesse a tanto, confundir com desalinho), não carecia de graça.

A verdade é que ela toda estava circundada pela graça, imbuída pela graça, embora me parecesse difícil precisar onde estava essa graça, pois se vestia de forma normal, com decoro, roupas que ninguém se atreveria a julgar originais: uma saia preta e um casaquinho creme muito gastos, desses que você pode encontrar numa barraca do mercado por uns poucos pesos. Seus sapatos, ao contrário, eram de salto, um salto não muito alto, mas estilizado, sapatos que não combinavam nem um pouco com o resto da indumentária. Debaixo do braço levava uma pasta cheia de papéis.

Ao contrário do que eu esperava, não parou no ponto de ônibus e seguiu andando em direção ao centro. Pouco mais tarde entrou numa cafeteria. Fiquei do lado de fora e observei-a através da vidraça. Vi-a dirigir-se a uma mesa e mostrar uma coisa que tirou de dentro da pasta: uma folha, depois outra. Eram desenhos ou reproduções de desenhos. O homem e a mulher que estavam sentados observaram os papéis, depois fizeram um gesto negativo com a cabeça. Ela sorriu para eles e repetiu a cena a mesa vizinha O resultado foi o mesmo.

Sem perder o ânimo foi até outra mesa, depois a outra, e a outra, até falar com todas as pessoas da cafeteria. Conseguiu vender um desenho. Só umas poucas moedas, o que me fez pensar que quem realmente punha o preço na mercadoria era a vontade do comprador. Depois se dirigiu para o balcão, onde trocou umas palavras com uma garçonete. Ela falou e a garçonete ouviu. Provavelmente se conheciam. Quando a garçonete lhe deu as costas para preparar um café, ela aproveitou para se dirigir aos homens que estavam no balcão e oferecer seus desenhos, mas dessa vez falou com eles sem sair do lugar, e um ou talvez dois homens se aproximaram de onde ela estava e deram uma olhada distraída em seu tesouro.

Devia ter sessenta anos feitos. E muito mal vividos. Ou talvez mais. E isso aconteceu dez anos depois de Remedios Varo morrer, isto é, em 1973, e não em 1963.

Então tive um calafrio. E o calafrio me disse: che, Auxilio (porque o calafrio era uruguaio, não mexicano), a mulher que você está seguindo, a mulher que saiu sub-repticiamente da casa de Remedios Varo, é a verdadeira mãe da poesia e não você, a mulher em cujas pegadas você vai é a mãe e não você, não você, não você.

Creio que minha cabeça começou a doer e fechei os olhos. Creio que os dentes que eu já não tinha começaram a doer e fechei os olhos. E, quando os abri, ela estava no balcão, definitivamente sozinha, sentada num tamborete, tomando café com leite e lendo uma revista que provavelmente guardava na pasta, junto com as reproduções dos desenhos do seu filho adorado.

A mulher que a tinha atendido, a um par de metros de distância, estava com os cotovelos apoiados no balcão e o olhar sonhador num ponto impreciso além das vidraças, situado acima da minha cabeça. Algumas mesas tinham se esvaziado. Em outras, a gente tornava a cuidar de seus assuntos.

Soube então que estivera seguindo, na vigília ou durante um sonho, Lilian Serpas, e me lembrei da sua história ou do pouco que sabia da sua história.

Durante uma época, suponho que na década de 50, Lilian havia sido uma poeta mais ou menos conhecida e uma mulher de extraordinária beleza. O sobrenome é de origem incerta, parece grego (para mim, parece), soa a húngaro, pode ser um velho sobrenome castelhano. Mas Lilian era mexicana e tinha vivido a vida quase toda no DF. Dizia-se que em sua dilatada juventude teve muitos namorados e pretendentes. Mas Lilian não queria namorados, e sim amantes, e também os teve.

Eu gostaria de ter lhe dito: Lilian, não tenha tantos amantes, dos homens a gente não pode esperar grande coisa, vão te usar e depois te largarão numa esquina, mas eu era como uma virgem louca e Lilian vivia sua sexualidade da forma que mais lhe apetecia, intensamente, entregue apenas ao prazer do seu próprio corpo e ao prazer dos sonetos que naqueles anos escrevia. E, claro, se deu mal. Ou se deu bem.

Quem sou eu para dizer? Teve amantes. Eu mal tive amantes.

Um dia, porém, Lilian se apaixonou por um homem e teve um filho com ele. O tipo era um tal Coffeen, talvez fosse americano, talvez fosse inglês, talvez fosse mexicano. O caso é que teve um filho com ele e o menino se chamou Carlos Coffeen Serpas. O pintor Carlos Coffeen Serpas.

Depois (quanto tempo depois, ignoro) o senhor Coffeen desapareceu. Talvez tenha abandonado Lilian. Talvez Lilian o tenha abandonado. Talvez, e isso é mais romântico, Coffeen tenha morrido e Lilian acreditou que ela também devia morrer, mas havia o menino, e ela sobreviveu à ausência. Uma ausência que logo foi preenchida por outros senhores, porque Lilian continuava sendo bonita e continuava gostando de ir para a cama com homens e uivar de prazer até o sol raiar. Enquanto isso, o menino Coffeen Serpas crescia e frequentava, desde pequenininho, os ambientes de sua mãe, e todos se maravilhavam com sua inteligência e prognosticavam um futuro promissor para ele no proceloso mundo da arte.

Quais eram os ambientes frequentados por Lilian Serpas acompanhada do filho? Os de sempre, os bares e cafeterias do centro do DF, onde se reuniam os velhos jornalistas fracassados e os exilados espanhóis. Gente muito simpática, mas não precisamente a classe de pessoas que eu recomendaria a um menino sensível frequentar.

Os trabalhos de Lilian, naqueles anos, foram múltiplos. Foi secretária, atendente em várias lojas de moda, trabalhou um tempo nuns jornais e até numa rádio vagabunda. Não ficava muito tempo em nenhum, porque ela, me disse isso com uma ponta de tristeza, era poeta, a vida noturna a chamava, desse modo não havia quem pudesse trabalhar regularmente.

Claro, eu a entendia, estava de acordo com ela, embora manifestasse meu acordo com uma voz e com expressões que adquiriam automática e inconscientemente um ar de superioridade nauseabundo, como se eu lhe dissesse: Lilian, concordo com você, mas no fundo isso me parece uma criancice, Lilian, não nego que é simpático e divertido, mas que ninguém conte comigo para tal experiência.

Como se eu, por alternar a infecta avenida Bucareli com a universidade, fosse melhor. Como se eu, por frequentar e conhecer os jovens poetas e não só os velhos jornalistas fracassados, fosse melhor. A verdade é que não sou melhor. A verdade é que os jovens poetas geralmente acabam sendo velhos jornalistas fracassados. E a universidade, minha querida universidade, está esperando sua oportunidade bem ali embaixo, nos esgotos da avenida Bucareli.

Uma noite, isso também ela me contou, conheceu no café Quito um sul-americano exilado com o qual ficou conversando até fecharem. Depois foram para a casa de Lilian e se meteram na cama sem fazer barulho, para que Carlitos Coffeen não acordasse. O sul-americano era Ernesto Guevara. Não posso acreditar, Lilian, falei. Sim, era ele, me disse Lilian com aquela maneira de falar que tinha quando eu a conheci, uma voz muito fina, de boneca quebrada, uma voz como a que teria o licenciado Vidriera[1], se ela houvesse sido licenciada ou pelo menos bacharela, e se houvesse ficado louca e superlúcida ao mesmo tempo, em pleno Século de Ouro desditado. E como o Che era na cama?, foi a primeira coisa que eu quis saber. Lilian disse uma coisa que não entendi. O quê?, perguntei, o quê?, o quê? Normal, disse Lilian com o olhar perdido nas rugas da sua pasta.

Pode ser que fosse mentira. Quando eu a conheci, Lilian só parecia se importar com vender as reproduções dos desenhos do filho. A poesia a deixava indiferente. Chegava ao café Quito já muito tarde e sentava na mesa dos jovens poetas ou na mesa dos velhos jornalistas fracassados (todos ex-amantes dela) e ficava ouvindo as conversas de sempre. Se alguém lhe dizia, por exemplo, fale do Che Guevara, ela dizia normal. Isso era tudo. No café Quito, aliás, mais de um dos velhos jornalistas fracassados tinha conhecido o Che e Fidel, que o frequentaram durante sua estada no México, e a ninguém parecia estranho que Lilian dissesse normal, embora eles talvez não soubessem que Lilian tinha ido para a cama com o Che, eles acreditavam que Lilian só tinha ido para a cama com eles e com alguns peixes gordos que não frequentavam a avenida Bucareli a altas horas da noite, mas no caso dava na mesma.

Reconheço que teria gostado de saber como o Che Guevara trepava. Normal, claro, mas como.

Esses meninos, eu disse uma noite a Lilian, têm o direito de saber como o Che trepava. Uma loucura minha, sem pé nem cabeça, mas soltei-a mesmo assim.

Eu me lembro que Lilian olhou para mim com sua máscara de boneca enrugada, martirizada, da qual parecia a ponto de emergir a cada segundo a rainha dos mares com sua coorte de trovões, mas onde nunca acontecia mais nada. Esses meninos, esses meninos, disse ela, depois olhou para o teto do café Quito que naquele momento dois adolescentes estavam pintando em cima de um andaime portátil.

Assim era Lilian, assim era a mulher que eu segui a partir do sonho de Remedios Varo, a grande pintora catalã, até o sonho das ruas terminais do DF onde sempre aconteciam coisas que pareciam sussurrar, gritar ou cuspir que ali nunca acontecia nada.

E assim eu me vi outra vez no café Quito em 1973, ou talvez nos primeiros meses de 1974, e vi Lilian chegar através da fumaça e das luzes traçantes do café às onze da noite, e ela chega, como sempre, envolta em fumaça, e sua fumaça e a fumaça do interior do café se contemplam como aranhas, antes de se fundirem numa só fumaça, uma fumaça onde prima o cheiro de café, pois no Quito há uma torradeira de café e, além disso, é um dos raros lugares da avenida Bucareli em que há uma máquina italiana de café expresso.

E então meus amigos, os poetas jovens do México, sem se levantar da mesa a cumprimentam, dizem boa noite, Lilian Serpas, tudo bem, Lilian Serpas, inclusive os mais tontos dizem boa noite, Lilian Serpas, como se mediante o ato de cumprimentá-la uma deusa descesse das alturas do café Quito (onde dois jovens operários intrépidos se empenham num equilíbrio que não posso deixar de considerar precário) e lhes pendurasse no peito a medalha de honra da poesia, quando o que na realidade acontece (mas isso eu só penso, não digo) é que, ao cumprimentá-la assim, dessa maneira, a única coisa que estão fazendo é pôr suas cabeças jovens e tontas na mesa do carrasco.

Lilian para, como se ouvisse mal, procura a mesa onde eles estão (e onde eu estou) e ao nos ver se aproxima para nos cumprimentar e, de passagem, tentar vender uma das suas reproduções. Eu olho para o outro lado.

Por que olho para o outro lado?

Porque conheço sua história.

De modo que olho para o outro lado, enquanto Lilian, de pé ou já sentada, cumprimenta todo o mundo, geralmente mais de cinco poetas jovens espremidos ao redor de uma mesa, e quando me cumprimenta deixo de olhar para o chão e viro a cabeça com uma lentidão exasperante (mas é que não posso virar mais depressa) e lhe dou, obediente, boa-noite eu também.

E assim passa o tempo (Lilian não tenta nos vender nenhum desenho porque sabe que não temos dinheiro nem vontade de comprar mas deixa quem quiser dar uma olhada nas reproduções, curiosas reproduções, feitas não de qualquer maneira mas numa prensa e em papel acetinado, o que diz algo, pelo menos, com respeito à singular disposição mercantil de Carlos Coffeen Serpas ou de sua mãe, ermitões ou mendigos, mas que num momento de inspiração que prefiro não imaginar decidem viver exclusivamente da sua arte) e pouco a pouco as pessoas começam a ir embora ou a mudar de mesa, pois no café Quito, a certa hora da noite uns mais outros menos, todo o mundo se conhece e todos desejam trocar pelo menos algumas palavras com seus conhecidos. E assim, náufraga no meio de uma rotação incessante, em determinado momento fico sozinha olhando para a minha xícara de café cheia pela metade, e, no momento seguinte (mas quase sem transição), uma sombra esquiva, que de tão esquiva parece reunir sobre si todas as sombras do café, como se seu campo gravitacional só atraísse os objetos inertes, se desloca até a minha mesa e senta junto de mim.

Como vai, Auxilio?, pergunta o fantasma de Lilian Serpas.

Vou levando, respondo.

E é então que o tempo torna a parar, imagem mais do que batida, pois o tempo, ou não para nunca, ou está parado desde sempre, digamos então que o continuum do tempo sente um calafrio, ou digamos que o tempo abre as pernas, se agacha, enfia a cabeça entre as coxas e me olha ao contrário, uns centímetros apenas abaixo da bunda, e pisca para mim um olho louco, ou digamos que a lua cheia ou crescente, ou a escura lua minguante do DF torna a deslizar pelos ladrilhos do banheiro das mulheres do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras [2], ou digamos que se ergue um silêncio de velório no café Quito e que só ouço os murmúrios dos fantasmas da corte de Lilian Serpas e que não sei, mais uma vez, se estou em 68, em 74, em 80, ou se, de uma vez por todas, estou me aproximando como a sombra de um navio naufragado do feliz ano 2000 que não verei.

Seja como for, alguma coisa acontece com o tempo. Sei que alguma coisa acontece com o tempo, para não dizer com o espaço.

Pressinto que alguma coisa acontece e que, além do mais, não é a primeira vez que acontece, embora em se tratando do tempo tudo acontece pela primeira vez, e nisso não há experiência que valha, o que no fundo é melhor, porque a experiência geralmente é uma fraude.

E então Lilian (que é a única ilesa nesta história, porque ela já sofreu tudo) me pede, mais uma vez, o primeiro e último favor que vai me pedir em toda a sua vida.

Diz: é tarde. Diz: como você está linda, Auxilio. Diz: penso muito em você, Auxilio. Eu a observo e observo o teto do café Quito, onde os dois jovens sonolentos continuam trabalhando ou fazendo como se trabalhassem trepados num andaime pessimamente construído, depois volto a observá-la, a ela, que fala olhando não para o meu rosto mas para seu copo grande e grosso de café com leite, enquanto escuto com um ouvido suas palavras e com o outro os gritos que os frequentadores do café Quito dirigem aos jovens do andaime, frases que constituem um ritual de iniciação masculina, deduzo, ou frases que pretendem ser carinhosas mas que são apenas premonitórias de um desastre que arrastará não só o par de pintores de parede (ou encanadores, ou eletricistas, não sei, só os vi, ainda os vejo enquanto a lua cruza enlouquecida cada um dos ladrilhos do banheiro das mulheres, como se essa singradura contivesse toda a subversão possível, e isso me espanta), mas também eles, os vociferantes, os que aconselham, nós.

E então Lilian diz: você tem de ir à minha casa. Diz: não posso ir esta noite à minha casa. Diz: você tem de ir por mim e dizer a Carlos que volto amanhã cedo. A primeira coisa que me ocorre é negar sumariamente. Mas então Lilian me encara e sorri para mim (ela não tapa a boca quando fala, como eu, nem quando sorri, embora devesse fazê-lo), e eu fico sem palavras, porque estou diante da mãe da poesia mexicana, a pior mãe que a poesia mexicana podia ter, mas a única e autêntica, afinal de contas. Então digo que sim, que irei à sua casa se me der o endereço e se não for muito longe, e que direi a Carlos Coffeen Serpas, o pintor, que sua mãe vai passar aquela noite fora. 



(Amuleto; tradução de Eduardo Brandão)



Notas:

[1] Personagem da novela homônima de Cervantes. (N. T.)

[2] A personagem/narradora -Auxilio Lacouture – ficou presa por 13 dias no banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras, em setembro de 1968, sem ter o que comer, quando o campus foi invadido por tropas militares. (Nota do blog).



(Ilustração: Remedios Varo - Magic Flight ou Zamfonia)

terça-feira, 27 de junho de 2023

A AUSENTE, Augusto Frederico Schmidt

 



Os que se vão, vão depressa,

Ontem, ainda, sorria na espreguiçadeira.

Ontem dizia adeus, ainda, da janela.

Ontem vestia, ainda, o vestido tão leve cor-de-rosa.



Os que se vão, vão depressa.

Seus olhos grandes e pretos há pouco brilhavam.

Sua voz doce e firme faz pouco ainda falava,

Suas mãos morenas tinham gestos de bênçãos.

No entanto hoje, na festa, ela não estava.

Nem um vestígio dela, sequer,

Decerto sua lembrança nem chegou, como os convidados —

Alguns, quase todos, indiferentes e desconhecidos.



Os que se vão, vão depressa.

Mais depressa que os pássaros que passam no céu,

Mais depressa que o próprio tempo,

Mais depressa que a bondade dos homens,

Mais depressa que os trens correndo nas noites escuras,

Mais depressa que a estrela fugitiva

Que mal faz um traço no céu.

Os que se vão, vão depressa.

Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações,

Só no coração sempre ferido do poeta

É que não vão depressa os que se vão.



Ontem ainda sorria na espreguiçadeira,

E o seu coração era grande e infeliz.

Hoje, na festa ela não estava, nem a sua lembrança.

Vão depressa, tão depressa os que se vão…



(Pássaro cego)



(Ilustração: Evangelos Papapostolou – absence)


sábado, 24 de junho de 2023

TARDE DE INVERNO NO PARQUINHO, de Leïla Slimani

     


Os parquinhos nas tardes de inverno. A garoa varre as folhas mortas. As pedrinhas congeladas grudam nos joelhos das crianças. Nos bancos, nas aleias discretas, cruza-se com aqueles que o mundo não quer mais. Eles fogem de apartamentos exíguos, de salas tristes, de poltronas afundadas pela inatividade e pelo tédio. Preferem tremer ao ar livre, com as costas curvadas, os braços cruzados. Às quatro da tarde, os dias ociosos parecem intermináveis. É no meio da tarde que percebemos o tempo desperdiçado, que nos preocupamos com a noite que vai chegar. Nessa hora, temos vergonha de não servir para nada.

Os parquinhos nas tardes de inverno são assombrados pelos vagabundos, os mendigos, os desempregados e os velhos, os doentes, os errantes, os instáveis. Os que não trabalham, os que não produzem nada. Os que não ganham dinheiro. Na primavera, claro, os amantes voltam, os casais clandestinos encontram um refúgio sob as tílias, nas alcovas floridas, e os turistas fotografam as estátuas. No inverno é outra coisa.

Em torno do escorregador congelado, há babás e seu exército de crianças. Embrulhados em jaquetas acolchoadas que os prendem, os pimpolhos correm como gordas bonecas japonesas, o nariz escorrendo muco, os dedos roxinhos. Assopram fumaça branca e ficam maravilhados. Nos carrinhos, os bebês presos pelos cintos contemplam os mais velhos. Talvez alguns estejam melancólicos, impacientes. Têm pressa, sem dúvida, de poder se aquecer trepando nos brinquedos de madeira. Batem os pés imaginando escapar à vigilância das mulheres que os seguram com uma mão firme ou brutal, gentil ou nervosa. Mulheres com túnicas muçulmanas no inverno glacial.

Há mães também, mães com o olhar vago. Mães que um parto recente mantém à beira do mundo e que, no banco, sentem o peso de seu ventre ainda flácido. Carregam seu corpo de dor e secreções, seu corpo que cheira a leite azedo e sangue. Essa carne que elas carregam e a quem não oferecem nem cuidado nem repouso. Há as mães sorridentes, radiosas, tão raras, que todas as crianças invejam. As que não se despediram nessa manhã, que não os deixaram nos braços de outra. Aquelas que um dia de descanso excepcional levou para lá e que aproveitam aquele banal dia de inverno com um entusiasmo estranho.

Há homens também, mas, mais perto dos bancos do parquinho, mais perto da caixa de areia, mais perto dos pimpolhos, as mulheres fazem uma parede compacta, uma defesa intransponível. Desconfia-se dos homens que se aproximam, daqueles que se interessam por esse mundo de mulheres. Aqueles que sorriem para as crianças, que olham para suas bochechas gordas e suas perninhas, são expulsos. As vovós os deploram: “Todos esses pedófilos que existem hoje em dia! No meu tempo isso não existia”.

Louise não tira os olhos de Mila. A menininha corre do escorregador ao balanço. Não para nunca, não quer dar chance ao frio. Suas luvas estão encharcadas e ela as enxuga, esfregando-as contra seu casaco rosa. Adam dorme no carrinho. Louise o enrolou em uma coberta e acaricia gentilmente a pele de sua nuca, entre o casaco e o gorro de lã. Um sol glacial, de brilho metálico, faz com que ela aperte os olhos.

— Aceita?

Uma jovem sentou a seu lado, com as pernas separadas. Estende uma caixinha onde estão alguns doces de mel. Louise a observa. Ela não tem mais de vinte e cinco anos e sorri de maneira um pouco vulgar. Seus cabelos negros estão sujos e sem pentear, mas supõe-se que ela poderia ser bonita. Atraente, ao menos. Ela tem curvas sensuais, um pouco de barriga e coxas grossas. Mastiga seu doce com a boca aberta e chupa os dedos cobertos de mel fazendo barulho.

— Obrigada. — Louise recusa o doce com um gesto.

— De onde eu venho, sempre oferecemos de comer a desconhecidos. Só aqui vi pessoas comendo sozinhas.

Um menino de uns quatro anos se aproxima da jovem e ela enfia um doce na sua boca. O menininho ri.

— É bom pra você — ela diz. — É nosso segredo, certo? Não conte pra sua mãe.

O menininho se chama Alphonse, e Mila gosta de brincar com ele. Louise vem ao parquinho todo dia e todo dia ela recusa os doces gordurosos que Wafa lhe oferece. Proíbe Mila de comê-los, mas Wafa não se ofende. A jovem é muito tagarela e, no banco, com o quadril colado em Louise, conta sua vida. Fala, sobretudo, de homens.

Wafa lembra uma espécie de grande felino pouco sutil, mas muito hábil. Ela ainda está ilegal e não parece se preocupar com isso. Chegou na França graças a um velho para quem fazia massagens em um hotel suspeito de Casablanca. O homem se apegou a suas mãos, tão macias, depois a sua boca e suas nádegas e, enfim, a todo esse corpo que ela lhe ofereceu, seguindo assim seu instinto e os conselhos da mãe. O velho a levou a Paris, onde vivia em um apartamento miserável e recebia dinheiro do Estado.

— Ele ficou com medo de que eu ficasse grávida e seus filhos me puseram pra fora. Mas o velho bem que queria que eu ficasse.

Frente a Louise e seu silêncio, Wafa fala como quem se confessa a um padre ou à polícia. Ela conta os detalhes de uma vida que nunca será escrita. Depois de sair da casa do velho, foi recolhida por uma moça que a registrou em um site de encontros para jovens muçulmanas imigrantes ilegais. Uma noite, um homem marcou um encontro com ela em um McDonald’s de periferia. O cara achou ela bonita. Deu em cima dela. Até tentou violá-la. Ela conseguiu acalmá-lo. Começaram a falar de dinheiro. Youssef aceitou se casar com ela por vinte mil francos. “Não é caro comprar documentos franceses”, ele explicou.

Ela encontrou esse trabalho, uma sorte, junto a um casal franco-americano. Eles a tratam bem, embora sejam bastante exigentes. Alugaram um quartinho para ela a cem metros de sua casa.

— Eles pagam o aluguel, mas, em troca, eu nunca posso dizer não pra eles. Eu adoro esse menino — ela diz, devorando Alphonse com os olhos.

Louise e Wafa se calam. Um vento glacial varre o parquinho e elas sabem que logo terão que ir.

— Coitadinho. Olhe pra ele, mal consegue se mexer de tanta roupa que pus nele. Mas se ele pega uma friagem, a mãe dele me mata.

Wafa tem medo, às vezes, de envelhecer em um desses parques. De sentir seus joelhos cederem nesses velhos bancos gelados, de não ter mais força nem para erguer uma criança. Alphonse vai crescer. Não vai mais colocar os pés no parquinho em uma tarde fria de inverno. Ele vai para o sol. Vai tirar férias. Talvez um dia até durma em um dos quartos do Grand Hôtel, onde ela massageava os homens. Ele, que ela criou, será atendido por uma de suas irmãs ou primas, no terraço de ladrilhos amarelos e azuis.

— Veja só, tudo volta e se inverte. Sua infância e minha velhice. Minha juventude e sua vida de homem. O destino é perverso como um réptil, ele sempre dá um jeito de empurrar a gente pro lado ruim do caminho.

A chuva cai. É preciso voltar.



(Canção de ninar; tradução Sandra M. Stroparo)



(Ilustração: Camille Pissarro: Le Jardin des Tuileries - effet de neige)

quarta-feira, 21 de junho de 2023

QUE BICHA SEREI EU, de Mike Sullivan

 




Que bicha serei eu

daqui a vinte, trinta anos?

A bicha que frequenta saunas.

A bicha que gasta metade

do salário com os boys.

A bicha arrependida,

que pede perdão a Deus constantemente.

A bicha deprimida,

que se entope de

antidepressivos e ansiolíticos.

A bicha que chora todas as noites

com saudade dos mortos.

A bicha que cuida da mãe e

que acredita ser esse o último

gesto de misericórdia.

A bicha nostálgica,

a se lamentar sempre daquilo

que poderia ter sido.

A bicha drogada,

isolada em seu apartamento.

A bicha de coração amputado,

fria,

gelada,

incapaz de amar a si mesma.

A bicha viajada,

culta,

rodeada de livros,

cheia de opiniões e conselhos

que não interessam a ninguém.

A bicha que se julga autossuficiente,

mas que não passa de um ser

que depende dos falsos elogios

recebidos em reuniões de trabalho.

A bicha que só se sente viva

nas madrugadas, pois durante o dia

o sol ilumina demais suas frustrações.

A bicha cansada,

triste,

velha,

sozinha,

que tem medo da morte.

Que bicha sou eu hoje,

aos quarenta anos?

A bicha que só faz sexo com boys.

A bicha que ainda desconfia

que dar o cu é pecado.

A bicha deprimida.

A bicha que chora diariamente.

A bicha que ama a mãe mais que tudo.

A bicha metade nostalgia,

metade desilusão.

A bicha viciada em bala, vinho, calmantes.

A bicha que tem no coração

a dor de existir.

A bicha que tem na arte

o último refúgio

A bicha que gastou

todas as suas economias

comprando um terreno no cemitério,

onde caberá ela e toda a sua família.

Todos juntinhos.

Ali.

Embaixo da terra.

Em silêncio.

Quietos.

Aceitando finalmente

aquilo que nunca devia

ter sido questionado

ou rejeitado.

Ali.

Juntinhos.

Iguais.

Insignificantes.



(Ilustração: Felix D'eon - la muerte)

domingo, 18 de junho de 2023

GALINHAS, de Rafael Barrett

 


Enquanto não possuía mais que minha cama e meus livros, fui feliz. Agora possuo nove galinhas e um galo e minha alma está perturbada.

A propriedade me tornou cruel. Sempre que comprava uma galinha, a prendia por dois dias em uma árvore, para impô-la ao meu domicílio, destruindo em sua frágil memória o amor à sua antiga residência. Remendei a cerca do meu quintal, para evitar a evasão das minhas aves e a invasão de raposas de quatro e de dois pés. Me isolei, fortifiquei minha fronteira, tracei uma linha diabólica entre meu próximo e eu. Dividi a humanidade em duas categorias: eu, dono das minhas galinhas e os demais, que podiam roubá-las. Defini o delito. O mundo, para mim, se encheu de supostos ladrões e pela primeira vez lancei para o outro lado da cerca um olhar hostil.

Meu galo era muito jovem. O galo do vizinho saltou a cerca e começou a fazer corte às minhas galinhas e a amargurar a existência do meu galo. Expulsei o intruso a pedradas, mas ele saltava a cerca e voava para casa do vizinho. Reclamei os ovos e o vizinho me aborreceu. Desde então vi sua cara sobre a cerca, seu olhar inquisidor e hostil, idêntico ao meu. Seus frangos passavam pela cerca e devoravam o milho molhado que deixava para os meus. Os frangos alheios me pareciam criminosos. Persegui-os e cegado pela raiva, matei um. O vizinho atribui uma importância enorme ao atentado. Não quis aceitar uma indenização monetária. Retirou o cadáver do seu frango de modo muito sério e, no lugar de comê-lo, mostrou a seus amigos, começando a circular pelo povo a lenda da minha brutalidade imperialista. Tive que reforçar a cerca, aumentar a vigilância, elevar, em uma palavra, meu pressuposto de guerra. O vizinho dispõe de um cão disposto a tudo; eu penso em adquirir um revólver.

Onde está minha velha tranquilidade? Estou envenenado pela desconfiança e pelo ódio. O espírito do mal se apoderou de mim. Antes era um homem. Agora sou um proprietário...



(Mi Anarquismo y otros ensayos; tradução de Eduardo Cunha)



(Ilustração: Johann Wenzel Peter - Poultry in a Landscape)


quinta-feira, 15 de junho de 2023

NASCIMENTO DO POEMA, de Dora Ferreira da Silva

 


  

É preciso que venha de longe

do vento mais antigo

ou da morte

é preciso que venha impreciso

inesperado como a rosa

ou como o riso

o poema inecessário.



É preciso que ferido de amor

entre pombos

ou nas mansas colinas

que o ódio afaga

ele venha

sob o látego da insônia

morto e preservado.



E então desperta

para o rito da forma

lúcida

tranquila:

senhor do duplo reino

coroado

de sóis e luas.




(Ilustração: Ferdinand Georg Waldmuller, 1845: The Love Letter)

segunda-feira, 12 de junho de 2023

DA MATURIDADE À VELHICE, de Simone de Beauvoir


A História da mulher — pelo fato de se encontrar ainda encerrada em suas funções de fêmea — depende muito mais que a do homem de seu destino fisiológico; e a curva desse destino é mais ab-rupta, mais descontínua do que a curva do homem. Todo período da vida feminina é calmo e monótono: mas as passagens de um período para outro são de uma perigosa brutalidade; evidenciam-se através de crises muito mais decisivas do que no homem: puberdade, iniciação sexual, menopausa. Enquanto ele envelhece de maneira contínua, a mulher é bruscamente despojada de sua feminilidade; perde, jovem ainda, o encanto erótico e a fecundidade de que tirava, aos olhos da sociedade e a seus próprios olhos, a justificação de sua existência e suas possibilidades de felicidade: cabe-lhe viver, privada de todo futuro, cerca de metade de sua vida de adulta.

“A idade perigosa” é caracterizada por certas perturbações orgânicas, mas o que lhes dá importância é o valor simbólico de que se revestem. A crise é sentida de maneira muito menos aguda pelas mulheres que não apostaram particularmente na sua feminilidade; as que trabalham duramente — em seus lares ou fora deles — acolhem com alívio o desaparecimento da servidão menstrual; a camponesa, a mulher do operário, que uma nova gravidez ameaça sem cessar, sentem-se felizes quando veem enfim esse risco evitado. Nessa conjuntura, como em muitas outras, é menos do próprio corpo que provêm os incômodos da mulher que da consciência angustiada que tem deles. O drama moral inicia-se antes que os fenômenos fisiológicos se declarem e termina quando eles já de há muito desapareceram.

Muito antes da mutilação definitiva, a mulher sente-se obcecada pelo horror de envelhecer. O homem maduro acha-se empenhado em empreendimentos mais importantes que os do amor; seus ardores eróticos são menos vivos do que na mocidade; e como não lhe pedem as qualidades passivas de um objeto, as alterações de seu rosto e de seu corpo não arruínam suas possibilidades de sedução. Ao contrário, é geralmente por volta dos 35 anos que a mulher, tendo enfim superado todas as suas inibições atinge sua plena maturidade erótica: é então que seus desejos são mais violentos e que ela deseja mais ardentemente satisfazê-los; muito mais do que o homem, ela apostou nos valores sexuais que detém; para reter o marido, para se assegurar proteções, é necessário que agrade na maior parte dos ofícios que exerce; só lhe permitiram ter algum domínio sobre o mundo por intermédio do homem: o que lhe acontecerá quando não tiver mais domínio sobre este? É o que se pergunta ansiosamente enquanto assiste impotente à degradação desse objeto de carne com o qual se confunde; luta, mas pintura, operações estéticas não podem senão prolongar sua juventude agonizante. Pode trapacear com o espelho, mas quando se esboça o processo fatal, irreversível, que vai destruir nela todo o edifício construído durante a puberdade, sente-se tocada pela própria fatalidade da morte.

Poderíamos acreditar que é a mulher que mais ardentemente se embriagou de sua beleza, de sua mocidade, quem conhece os piores desatinos; mas não; a narcisista preocupa-se demais com sua pessoa para não ter previsto a inelutável decadência e organizado posições de retirada. Sofrerá por certo com sua mutilação: mas não será pelo menos surpreendida e se adaptará depressa. A mulher que se esqueceu, que se dedicou, que se sacrificou ficará muito mais desnorteada pela súbita revelação: “Tinha só uma vida para viver; eis meu quinhão, agora!” Para espanto dos que a cercam, produz-se nela então uma mudança radical: desalojada de seus retiros, arrancada a seus projetos, acha-se colocada subitamente, sem ter para que apelar, em face de si mesma. Ultrapassado este marco contra o qual se chocou sem esperar, parece-lhe que não faz senão sobreviver a si mesma; seu corpo será sem promessa; os sonhos, os desejos que não realizou permanecerão para sempre insatisfeitos; é nesta nova perspectiva que se volta para o passado; é chegado o momento de parar, de fazer as contas; é a hora do balanço. E ela se apavora com as estreitas limitações que a vida lhe infligiu. Em face dessa história breve e decepcionante que foi a sua, reencontra as condutas da adolescente no limiar de um futuro ainda inacessível: recusa sua finidade; opõe à pobreza de sua existência a riqueza nebulosa de sua personalidade. Pelo fato de que, sendo mulher, suportou mais ou menos passivamente seu destino, parece-lhe que lhe roubaram suas possibilidades, que a enganaram, que escorregou da juventude para a maturidade sem ter tomado consciência disso. Descobre que seu marido, seu meio e suas ocupações não eram dignos dela; sente-se incompreendida. Isola-se do meio a que se considera superior; encerra-se com o segredo que traz no coração e é a chave misteriosa de seu destino infeliz; procura tornar a ponderar as possibilidades que não esgotou. Põe-se a escrever um diário íntimo; se encontra confidentes compreensivos, expande-se em conversas indefinidas; e rumina dias e noites suas queixas e seus ressentimentos. Como a moça que sonha com o que será seu futuro, ela evoca o que poderia ter sido o seu passado; revê as oportunidades que deixou escapar e forja belos romances retrospectivos. H. Deutsch cita o caso de uma mulher que rompera, muito jovem, um casamento infeliz e passara em seguida longos anos tranquila ao lado de um segundo marido; com 45 anos, pôs-se a sofrer com saudades do primeiro marido e afundar-se na melancolia. As preocupações da infância e da puberdade reavivam-se, a mulher remói indefinidamente a história de seus jovens anos e sentimentos adormecidos pelos pais, irmãos, irmãs, amigos de infância, exaltam-se novamente. Por vezes, entrega-se a uma melancolia sonhadora e passiva. Mas, o mais das vezes, tenta bruscamente salvar sua existência falhada. Essa personalidade que acaba de descobrir por contraste com a mesquinhez de seu destino, ela a exibe, louva-lhe os méritos, reclama imperiosamente que lhe façam justiça. Amadurecida pela experiência, pensa que é capaz enfim de se valorizar; gostaria de recomeçar. Antes de tudo, procura deter o tempo num esforço patético. Uma mulher maternal afirma que pode ainda conceber; procura apaixonadamente criar vida mais uma vez. Uma mulher sensual esforça-se por conquistar um novo amante. A coquete mostra-se, mais do que nunca, ávida de agradar. Declaram todas que nunca se sentiram tão jovens. Querem persuadir os outros de que a passagem do tempo não as atingiu efetivamente, põem-se a “vestir-se como jovens”, adotam mímicas infantis. A mulher que envelhece sabe muito bem que se deixa de ser um objeto erótico não é somente porque sua carne não oferece mais ao homem riquezas frescas: é também porque seu passado, sua experiência fazem dela, queira ou não, uma pessoa; lutou, amou, quis, sofreu, gozou por sua conta: esta autonomia a intimida; procura renegá-la; exagera sua feminilidade, enfeita-se, perfuma-se, faz-se toda encanto, graça, pura imanência; admira com um olhar ingênuo e entonações infantis o interlocutor masculino, evoca com volubilidade suas recordações de menina; ao invés de falar, cacareja, bate palmas, ri às gargalhadas. É com uma espécie de sinceridade que representa essa comédia. Pois o interesse novo que dedica a si mesma, o desejo de se arrancar às antigas rotinas e de partir novamente dão-lhe a impressão de que recomeça.



(O Segundo Sexo; tradução de Sérgio Milliet)


(Ilustração: Simone de Beauvoir nue - foto de Art Shay, 1952)

sexta-feira, 9 de junho de 2023

NUM MEIO-DIA DE FIM DE PRIMAVERA, de Fernando Pessoa (Alberto Caieiro)

 




Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas pelas estradas

Que vão em ranchos pela estradas

com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as cousas.

Aponta-me todas as cousas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou —

"Se é que ele as criou, do que duvido" —

"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres."

E depois, cansados de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

e eu levo-o ao colo para casa.

.............................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos-mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do sol

A variar os montes e os vales,

E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?



(O guardador de rebanhos)



(Ilustração : William-Adolphe Bouguereau(1825-1905) -Child at Bath)

terça-feira, 6 de junho de 2023

O ELOGIO DO ÓCIO, de Bertrand Russell

 


 


Mover coisas de um lugar para outro, embora necessário até certo ponto, definitivamente não constitui uma finalidade da vida humana. Se esse fosse o caso, consideraríamos todo estivador superior a Shakespeare. Fomos ludibriados nesse assunto por dois eventos. Em primeiro lugar, a necessidade de manter os pobres conformados levou os ricos, por milhares de anos, a enaltecer a dignidade do trabalho do pobre, enquanto tomavam todo o cuidado para permanecerem indignos de trabalhar. Em segundo lugar, o novo prazer do mecanismo, o deleite em observar com surpresa as modificações que uma máquina consegue efetivar na superfície da terra.

Nenhum dos dois motivos exerce grande atração sobre o trabalhador de verdade. Se você lhe perguntar o que ele identifica como a melhor parte da vida, ele dificilmente responderá:

“Eu adoro trabalho braçal pesado, porque sinto que apoio a Missão da Humanidade. Fico feliz só de imaginar minha contribuição para Humanidade transformar o planeta. É verdade que nem sempre descanso o suficiente, mas isso não diminui o evidente contentamento que me invade assim que retomo a árdua labuta do meu trabalho de manhã bem cedinho.”

Nunca ouvi um trabalhador dizer palavras sequer similares a essas. Qualquer trabalhador considera o trabalho, tal como deve, aliás, ser considerado por todos, um meio necessário à subsistência. Qualquer felicidade que consiga, o trabalhador a obtém nas horas de lazer.

Alguém pode me dizer que, embora o lazer seja bom, as pessoas não sabem aproveitar as horas vagas. Mesmo que isso seja verdade, e apenas até certo ponto, no mundo moderno, trata-se de uma condenação exclusiva de nossa civilização; não era verdade em épocas anteriores. Havia antigamente uma disposição para a brincadeira que foi bastante inibida pelo culto da eficiência. Existe uma crença na modernidade de que uma coisa deve ser feita para conseguir outra coisa, nunca como um fim em si mesmo. Pessoas sérias condenam o hábito de ir ao cinema, afirmam que o cinema estimula a criminalidade dos jovens, mas elogiam o trabalho de construção de um cinema. Pensam assim porque a construção civil, além de ser trabalho, gera lucro.

A noção de que atividades desejáveis são aquelas que geram lucro deixou tudo confuso. O açougueiro, que corta a carne que você come, e o padeiro, que fabrica o pão, são louváveis porque ganham dinheiro; mas se você desfruta da comida fabricada por eles, você é taxado de frívolo, exceto se disser que come apenas para ter energia com que trabalhar. Falando genericamente, assume-se que ganhar dinheiro é bom e gastar dinheiro é ruim. Levando em conta que são dois lados de uma mesma transação, a ideia é um absurdo, equivale a sustentar a bondade das chaves contra a maldade das fechaduras. O indivíduo, em nossa sociedade, trabalha por dinheiro, mas o objetivo social do trabalho está no consumo da produção. Em um mundo em que a geração de lucro serve de incentivo à industriosidade, esse divórcio entre o objetivo social e o objetivo individual da produção atordoa o discernimento. Pensamos demais na produção e quase nunca no consumo. Como resultado, pouco ligamos ao deleite e à alegria do consumo, e não julgamos a produção pelo prazer proporcionado ao consumidor.

Quando sugiro reduzir a jornada diária de trabalho para quatro horas, não defendo preencher todo o tempo restante com tolices. Defendo que quatro horas de trabalho diário deveriam prover uma pessoa de necessidades e confortos elementares e que o resto do tempo ela poderia usar como quisesse. É uma verdade para qualquer sistema social que a educação deveria continuar por tempo além do costumeiro e deveria ensinar, entre outras coisas, como usar o tempo livre de forma inteligente.

Não penso, porém, em atividades sérias. As danças camponesas se extinguiram por quase toda parte, exceto pelas mais remotas zonas rurais, mas a natureza humana provavelmente ainda abriga os impulsos que as motivaram. Os prazeres da população urbana tornaram-se em sua maioria passivos: ver filmes, ver partidas de futebol, ouvir rádio e por aí vai. A passividade é consequência de uma jornada de trabalho que exaure as energias; se as pessoas tivessem tempo livre, voltariam a desfrutar de prazeres em que desempenham um papel ativo.

No passado, havia uma pequena classe ociosa e uma grande classe trabalhadora. A classe ociosa desfrutava de vantagens sem nenhuma preocupação com justiça social; essa situação transformou a classe ociosa em uma classe opressora, antipática, incentivada a inventar justificativas para seus privilégios. Em consequência, sua qualidade diminuiu drasticamente, mas, apesar dessas distorções, a classe ociosa gerou metade do que chamamos de civilização. A classe ociosa cultivou as artes e descobriu as ciências; escreveu os livros, inventou as filosofias e refinou as relações sociais. Membros da classe ociosa chegaram a inaugurar a libertação das classes oprimidas. Sem a classe ociosa, a humanidade jamais teria emergido da barbárie.

Os métodos de uma classe ociosa desprovida de deveres provocavam, entretanto, um extraordinário desperdício. Nenhum dos seus membros aprendeu a ser industrioso e a classe como um todo não possuía uma inteligência excepcional. Embora pudesse produzir um Darwin, gerava em contrapartida centenas de cavalheiros provincianos que não concebiam nada mais inteligente do que o direito exclusivo de caçar raposas e punir as caçadas ilegais. Hoje em dia, espera-se que as universidades providenciem sistematicamente os conhecimentos e a cultura que a classe ociosa providenciava como um resíduo acidental. É uma melhora espantosa, mas tem suas limitações.

A vida universitária se aparta tanto da vida no mundo em geral que os acadêmicos tendem a passar ao largo das preocupações e dos problemas comuns; para completar, expressam-se de uma forma que impede que suas ideias influenciem o público em geral. Para piorar, as universidades organizam os estudos em disciplinas, fazendo com que linhas de pesquisa originais sejam desencorajadas. As universidades, úteis como são, nem por isso são as guardiãs adequadas dos interesses da civilização em um mundo onde todos fora de suas paredes vivem tão ocupados que não podem perder um segundo em investigações inúteis.

Em uma sociedade em que as jornadas laborais ficam limitadas a quatro horas diárias, qualquer curioso está livre para exercer sua curiosidade; cientistas pesquisam, artistas pintam, escritores escrevem — nenhum teme passar fome. O cientista não descobriu nada, o pintor fez telas ruins, o escritor escreveu um romance sem graça? Ainda assim, nenhum passa fome por isso. Sei de jovens escritores que se esmeram na redação de best-sellers escandalosos com a esperança de ganhar o dinheiro com que financiar suas ambições artísticas; mas, se tiverem sucesso, terão eles ainda essas ambições? Terão eles ainda o gosto e a capacidade de realizar essas ambições?

Se alguém se interessa pela economia ou pelo governo, que desenvolva suas ideias sem o distanciamento acadêmico que frequentemente torna inverossímeis os livros dos economistas universitários. Trabalhando menos, os médicos têm tempo de acompanhar os progressos das ciências, os professores não precisam perder os cabelos ensinando, através de métodos rotineiros, assuntos que eles aprenderam na juventude, e que podem, nesse intervalo, ter sido demonstrados como falsos.

Acima de tudo, haveria felicidade e regozijo na vida, em lugar de nervos aos frangalhos, exaustão e gastrite. O trabalho desempenhado proporcionaria sozinho um lazer agradável, sem provocar exaustão. Desde que não estivessem cansadas demais, as pessoas não ocupariam o tempo livre com entretenimentos passivos e estúpidos. Pelo menos um por cento devotaria o tempo livre a assuntos importantes, e, desde que não dependesse desses afazeres para sobreviver, nada bloquearia sua originalidade, pois não haveria razão para conformar-se a padrões acadêmicos arcaicos.

Não somente em casos excepcionais as vantagens do lazer se manifestariam. Homens e mulheres comuns, diante da oportunidade de uma vida feliz, seriam mais bondosos e menos agressivos, menos inclinados a suspeitar da vizinhança. O gosto pela guerra desvaneceria, em parte pela maior bondade das pessoas, em parte porque uma guerra demanda trabalho longo e árduo de todos.

A generosidade é, de todas as qualidades morais, aquela de que o mundo precisa, e resulta de conforto e segurança, não de uma vida de disputas aguerridas.

Os métodos modernos de produção deram-nos a oportunidade de distribuir conforto e segurança para todos; escolhemos, ao invés disso, que uns trabalhem demais enquanto outros morrem de fome por falta de trabalho. Até agora, continuamos a queimar tanta energia trabalhando quanto era regra antes da invenção das máquinas; nisso somos tolos, mas não há razão para sermos tolos para sempre.



(O elogio do ócio; tradução de Pedro Jorgensen Júnior)



(Ilustração: Lyudmila Tomovas - street musicians)

sábado, 3 de junho de 2023

ROÇA, Manuela Margarido

 



A noite sangra

no mato,

ferida por uma aguda lança

de cólera.

A madrugada sangra

de outro modo:

é o sino da alvorada

que desperta o terreiro.

E o feito que começa

a destinar as tarefas

para mais um dia de trabalho.



A manhã sangra ainda:

salsas a bananeira

com um machim de prata;



capinas o mato

com um machim de raiva;

abres o coco

com um machim de esperança;

cortas o cacho de andim

com um machim de certeza.



E à tarde regressas

a senzala;

a noite esculpe

os seus lábios frios

na tua pele

E sonhas na distância

uma vida mais livre,

que o teu gesto

há-de realizar.



(Ilustração: Olavo Amado - mulheres na feira - São Tomé e Príncipe, 2005)