domingo, 31 de outubro de 2021

SECA, de Carlota de Barros

 


Não gostaria de ter visto a seca a crescer
a boa terra a gretar


não gostaria de ter visto o grande tanque a secar as levadas caladas encherem-se de folhas

mortas quebradas


mas vi


esqueletos de goiabeiras retorcidos de secura ocas papaieiras vergadas

sem seiva sem sémen


Não gostaria de ter visto as velhas mangueiras tão magras de fome limoeiros e laranjeiras

a morrer de sede e de pó


mas vi


figueiras bravas nuas de folhas e de frutos bandos de pardais sequiosos abrindo caminho

por entre os galhos ressequidos


Não gostaria de ter visto os altivos coqueiros de pé a morrer sem um gemido o esplendor das árvores

a murchar em silêncio


Não gostaria de ter visto

mas vi



(Sonho Sonhado)


(Ilustração: José Carlos Miranda Brito)


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

A IMPOTÊNCIA ORGÁSTICA DO HOMEM, de Fábio Veronesi

 



Wilhelm Reich, cuja vida e obra são o marco fundador da Psicologia Somática, em seu livro A Função do Orgasmo, apresentou à sociedade científica o conceito de potência orgástica.

Antes disso, somente impotência eretiva, frigidez, anorgasmo ou ninfomania eram considerados disfunções sexuais. Com a concepção da potência orgástica, Reich mostra que mesmo havendo orgasmo pode haver disfunção sexual. Há diferentes níveis ou intensidades de orgasmo e muitos orgasmos não são plenos.

A potência orgástica está diretamente relacionada à capacidade de entrega amorosa. Orgasmo pleno é sinônimo de amar plenamente.

Evocamos essas concepções reichianas com o intuito de mostrar como o machismo rouba dos homens a possibilidade de satisfação plena, impedindo que o homem machista seja orgasticamente potente e, em paralelo, dando demasiado valor à potência masculina. Isso coloca o homem na situação de “cachorro que corre atrás do próprio rabo”, ou seja, buscando desesperadamente o que é impossível alcançar e fechado em si mesmo nessa inconsciência.

O machismo age desde cedo sobre a capacidade do homem sensibilizar-se, entregar-se ao descontrole de suas emoções amorosas, bloqueando o caminho para o orgasmo pleno. Os homens confundem ejaculação com orgasmo e são inconscientes dessa condição de meros ejaculadores. O orgasmo pleno não é uma sensação apenas peniana. O orgasmo pleno toma conta de todo corpo e o submete a poderosas vibrações energéticas, movimentos involuntários e descontrolados, capazes de proporcionar prazeres e emoções dificilmente mensuráveis.

O segmento pélvico dos homens é visivelmente encouraçado – resposta coletiva à opressão do machismo sobre os homens, um dos elementos da repressão sexual moralista – os homens são socialmente castrados de expressar todos os movimentos pélvicos que promovam abertura das nádegas e maior exposição do ânus. Como se houvesse um trauma coletivo ocasionado pelo medo de ser penetrado ‘por trás’ a qualquer instante. A postura geral do homem é de ‘ânus para dentro’. Não admira que também seja epidêmico entre os homens, quando envelhecem, o câncer de próstata, glândula que se localiza na região onde fica estagnada a energia sexual devido a cronicidade dessa postura. O “rebolado” do quadril, consequência natural do modo como o ser humano caminha, é contido no homem adulto.

A liberdade de movimentos do segmento pélvico é fundamental para uma sexualidade sadia. Quanto mais encouraçado for esse segmento, menor a capacidade orgástica do homem.

Também é visível a contenção dos segmentos cervical e torácico nos homens em geral. Os pescoços são duros, os ombros são inexpressivos, cotovelos e pulsos são contidos.

O homem não “desmunheca”. Isso retira uma infinidade de possibilidades expressivas que surgem de movimentos de “quebra” do pescoço, dos ombros, cotovelos e pulsos, de abandono ao próprio peso da cabeça, dos braços ou das mãos. Instaura também uma tensão crônica, uma “força a mais” sempre necessária para manter as mãos sustentadas, os braços armados, a cabeça fixa. Os segmentos cervical e torácico-escapular são a sede dos sentimentos. A livre expressão desses segmentos é fundamental para uma sexualidade sadia e também está relacionada à capacidade orgástica.

A contenção cotidiana dessa expressividade instaura nos homens a incapacidade crônica de viver orgasmos plenos, por conseguinte uma insatisfação também crônica. Por isso há tantos homens insatisfeitos mesmo “comendo” muito, presos num círculo vicioso onde quanto mais “comem”, menos se sentem satisfeitos, permanecendo desnutridos. Essa insatisfação crônica também pode ser uma das gêneses da violência sexual patológica de alguns homens.

Os movimentos do “homem-comedor” clássico, aquele dos filmes pornográficos, são de alguém que mexe os quadris num ritmo constante e unidirecional (para frente e para trás) enquanto mantém o pescoço e os ombros duros, imóveis. O “orgasmo” dos homens de filme pornográfico é tão controlado que na imensa maioria dos roteiros desses filmes cabe ao homem se segurar para ejacular no rosto da mulher. Interessante analisar que à mulher é permitido, esperado e incentivado que se descontrole. Basta ver o quanto gemem as mulheres comparado aos homens nas relações de filme pornográfico. Em geral, essas são falsas manifestações, fingimentos de orgasmo, mas caso ela queira entregar-se ao descontrole de um orgasmo não será interrompida. O homem será! Inclusive é praxe que ele assine um contrato garantindo que fornecerá uma ejaculação visível aos produtores do filme. Essa importância dada à ejaculação se explica por ser ela, em meio a tanta falsidade, a única prova material de que algum orgasmo aconteceu.

O conceito de potência orgástica, sua distinção das potências eretiva e ejaculatória, faz cair por terra a farsa pornográfica, a concepção de que nesse modelo há sexo sem preconceito, quando na verdade há falta quase absoluta de espontaneidade, prazer e potência orgástica. A única prova material de que há algum tipo de prazer sexual nesse modelo se torna falsa quando percebemos que os homens, mesmo ejaculando, têm orgasmos tão falsos quanto aqueles das mulheres que fingem tê-lo. Por fim se revela o ponto que buscamos com insistência: à mulher cabe ao menos a possibilidade de saber que está fingindo enquanto ao homem resta a ilusão de achar que isso é orgasmo.

Nesse momento vale muito trazer as impressões de um dos principais roteiristas da Europa, Jean-Claude Carrière, em seu livro A linguagem secreta do cinema [tradução Fernando Albagli, Benjamim Albagli – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995]. Ele, em um capítulo intitulado “A realidade em fuga”, em determinado ponto (pág. 83 a 85) fala sobre o sexo (não se refere aos filmes pornográficos) apresentado pelo cinema, como as cenas são falsas e idealizadas:

«Os resultados são quase sempre deploráveis e notavelmente pouco convincentes. Nas cenas supostamente suaves (ou “eróticas”, para distingui-las da verdadeira pornografia), onde o membro masculino não é mostrado em plena ereção, a penetração (fora de cena) é sempre efetuada com incrível facilidade, aparentemente sem que ambos tirem as calças, sem uma olhadela para baixo ou uma mão tateando para ajudar, sem um segundo de hesitação. Além disso, o êxtase ocorre para os parceiros após meramente uma dúzia de estocadas precisas. Neste caso também, como no dos táxis e telefones, a ênfase é na pressa. Assim, os filmes de hoje são um monte de ejaculações precoces, a não ser que, como no teatro, estas representem uma experiência em estilo, em sugestão. Mas neste caso, para que chegar às vias de fato? Todos sabem que as imagens mais fortemente eróticas, do tipo que encontramos ocasionalmente no cinema ou em qualquer outro lugar, muito frequentemente provêm da estimulação, da sugestão, da promessa no lugar do desempenho. Então por que essa mania de mostrar sexo malfeito?»

Na sequência ele fala dos filmes pornográficos, tratando-os como a pior parte dessa falsidade porque eles supostamente apresentam sexo livre, desprovido de moral:

“E tampouco é mais convincente a demonstração nos filmes pornográficos. Nestes, a representação do ato de amor é na verdade ainda menos honesta, por parecer mais real. Eles certamente parecem estar fazendo amor selvagem e desinibido nestes filmes, e em todas as posições concebíveis. Tudo o que fazem na verdade é isso: um órgão penetrar no outro, o orgasmo visível [aqui ele tenta fazer a primeira distinção entre tipos diferentes de orgasmo]. O do homem pelo menos; sua visibilidade faz parte até do contrato do ator, com a ejaculação acontecendo na tela, fartamente iluminada, sem qualquer receptáculo à vista, para provar que o prazer do homem não foi simulado. Daí a estranha mania de coitus interruptus [toca na essência das questões que trabalhamos] por parte de machos da pesada, que ejaculam fora das parceiras.

Mas eles ejaculam, sim. Eu vi, não posso negar, e São Tomé concordaria comigo (adicionando seus próprios gritos escandalizados). Talvez estes não sejam orgasmos ideais [aqui a segunda tentativa de distinção entre orgasmos de tipo diferente], mas não tenho nada a ver com isso.

Para a mulher, por outro lado, a mentira é total. Fingir é a palavra de ordem. (…) Tudo, dos gemidos aos desmaios, é completamente falso. Isto dá um mau exemplo, não por tolas razões morais (que não são da minha conta), mas simplesmente porque essa mentira específica poderia levar casais desinformados a acreditarem que as coisas acontecem e devem acontecer desta forma, resultando numa noção de amor totalmente equivocada.

Em Nova York, nos anos 60, estive presente à realização de um filme pornográfico. Havia um homem e duas mulheres numa casa em Greenwich Village. Uma equipe reduzida. Um diretor e um operador de câmera. Passei dez minutos sentado numa cadeira, educadamente, observando tudo. Percebia-se logo o tom ordinário, melancolicamente profissional, banal:

- Vire-se um pouco assim, Lisa… Sim, mais um pouco… Levante este joelho alguns centímetros… Ok, mais um pouco…

Onde está o prazer nisto? Ninguém falou de amor – mas prazer?

Nesse dia pensei numa observação de André Breton, na qual ele definia o erotismo como “uma suntuosa cerimônia numa passagem subterrânea”.

Esse tipo de filme nos engana. O que nos lega de cerimônia, de sensualidade, de sombrio subterfúgio?

E quanto ao realismo? O orgasmo sob medida da mulher é obviamente um embuste; além disso, o orgasmo masculino não acontece tão facilmente quanto se crê, apesar das aparências [aqui a terceira tentativa de distinção]. Na verdade, tudo, nesta repetitiva e estupidamente previsível sequência de rotinas ensaiadas, é cortado, emendado e editado [grifo meu – diz respeito exato ao tipo de orgasmo do homem], como se faz para um filme. A continuidade essencial ao amor desaparece.”

Em sua crítica bem elaborada e precisa sobre o sexo retratado no cinema e principalmente o sexo pornográfico, auxiliaria muito a Carrièrre o conceito de potência orgástica. Ele aborda esse conceito o tempo todo em sua narrativa, estabelece distinções entre ejaculação e orgasmo, mas não com precisão. De certa forma, os trata como sinônimos – “Mas eles ejaculam, sim. Eu vi não posso negar” – e, ao fazê-lo, já o faz questionando a qualidade dessa associação – “Talvez não sejam orgasmos ideais”. O mesmo se percebe quando ele chama a ejaculação que aparece nesses filmes de “orgasmo visível” – somente para que o outro veja, não verdadeiramente sentido, longe de ser um ato de amor, entrega e prazer. Ou quando conclui: “E quanto ao realismo? O orgasmo sob medida da mulher é obviamente um embuste; além disso o orgasmo masculino não acontece tão facilmente quanto se crê, apesar das aparências”.

A partir da constatação dessa associação entre modelo de comportamento sexual pornográfico e impotência orgástica, percebemos que o caminho para retomada da potência orgástica está no homem que se desmancha na mulher, se mistura a ela, promove além do contato pélvico o contato torácico, pulsa em baixo e em cima, entrega-se ao amor, ao descontrole de suas emoções e de seu orgasmo.

O reflexo do orgasmo é um fenômeno orgânico de ondulações verticais que promovem uma conexão harmônica entre os segmentos pélvico e torácico. Uma consequência da criação machista é a contenção da expressão corporal tanto de um quanto de outro segmento.

O problema não está só no fato da imensa maioria dos homens não viver a plenitude de sua sexualidade. O que assusta é o fato de se encontrarem inconscientes disso e incapazes de modificar essa situação.

Com estes escritos quero atingir a fundação desse alicerce – a “virilidade” machista, que continua a esconder suas impotências e ejaculações precoces à base de Viagra, fugindo da conscientização dos reais motivos que geram essa situação.

É fundamental trazer a concepção reichiana de que a impotência orgástica gera o desejo de poder como compensação para falta de desejo de potência. A impotência orgástica é o solo fértil onde a ideologia capitalista dissemina sua cultura do poder, onde ter é mais importante do que ser ou, em outras palavras, a capacidade de possuir substitui a incapacidade de sentir.

Isso explica muito do que há por trás da competição e constante luta por maior poder financeiro. É essa insatisfação que mantém todos sempre querendo ficar mais ricos, ter poder de compra, explica o consumismo que assola populações, resultando no consumo do planeta.

Finalmente, essa é uma das explicações para o envolvimento dos homens com guerras. A guerra é obra dos homens, generais e soldados – comando e execução. Historicamente e ainda hoje, “guerra” é sinônimo de homem matando homem e estuprando mulheres. O que é isso? Como se explica vindo de seres ditos humanos? Como pode se perder a humanidade a tal ponto? Mesmo onde não há guerra oficial, há guerra urbana, extraoficial. Essa guerra também é comandada e executada por homens. Que papel é esse, homem? Por que estamos gastando tanta energia com isso? O que estamos construindo? Estamos construindo? Ou simplesmente compensando a falta de potência? – O cultivo do ódio compensando a falta de capacidade de amar.



(Ilustração: escultura de Bernini - Rape of Proserpina)


domingo, 24 de outubro de 2021

A CHAMA SECRETA, de Denise Emmer

 





Apareço nesta noite como um sol de asas

Venho dos polos desmaiados e das florestas em brasa

Quando ardo sou uma espécie que agoniza

Quando sorrio é porque a grande árvore floresce



Anunciam-me os reis guardados e estamos num gueto

Mulheres descalças de seios de vento me embalam

Sou o beijo que elas já não pedem

O calor de seus ventres sem enredo

A cidade sonhada, o país estrelado, o lar aquecido,

O primeiro e o último filho



Sou a lanterna do cão sem olhos



Novos livros me inventam, revoluções me transformam

Mas passo pelos corredores do mar

Como um navio eterno

E a minha linguagem é a beleza das estrelas

Que atravessa os séculos



Sou o menino sagrado que riscou o céu

Para a paz sem riscos



... a chama secreta que acenderá as lareiras

das casas do inverno.



(Ilustração: Harry Holland - falling)

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

MICHAEL BEARD: O PRÊMIO NOBEL DE FÍSICA E O LADRÃO INOCENTE, de Ian McEwan

 


Pôs de lado o palmtop, recostou-se no assento e semicerrou os olhos. Bem na frente dele, sobre a mesa, reluzia através de seus cílios o saquinho de batatas fritas com sal e vinagre, estando mais além a garrafa plástica de água mineral do seu companheiro. Beard pensou em rever as notas para a palestra, porém o cansaço da viagem e os drinques no almoço o haviam deixado inerte. Além do mais, acreditava conhecer bastante bem o material, havendo também anotado algumas citações úteis num cartão que guardara no bolso de cima do paletó. Quanto às batatinhas, a vontade era menor do que antes, porém ainda estava lá. Alguns daqueles componentes industriais talvez fossem capazes de sacudir seu metabolismo, despertando-o. Era seu céu da boca, e não o estômago, que clamava pelo gosto forte e acídico do revestimento de cada frágil fatia. Ele tinha demonstrado um grau de controle respeitável — o trem já se pusera em marcha alguns minutos antes — e não havia nenhuma boa razão para delongas.

Endireitou o corpo no assento e se inclinou para a frente, cotovelos sobre a mesa, as mãos sustentando o queixo por alguns segundos de reflexão, o olhar fixo na embalagem vistosa: prata, vermelho e azul, com animais estilizados cabriolando debaixo da bandeira do Reino Unido. Tão infantil da parte dele aquela fixação, tão fraca, tão perniciosa, um microcosmo de todos os erros e loucuras do passado, de seu jeito impaciente de querer possuir as coisas instantaneamente. Pegou o saquinho com as duas mãos e o abriu no topo, liberando o aroma penetrante de óleo de fritura e vinagre. Tratava-se de engenhosa simulação, feita em laboratório, das lojinhas de esquina que outrora vendiam peixe com fritas, uma reencenação que envolvia doces memórias, desejo e senso de nacionalidade. A bandeira era uma opção bem inteligente. Retirou uma única batata com o polegar e o indicador, repôs o saquinho na mesa e se recostou de novo. Era um homem que cuidava com seriedade de seus prazeres. O truque consistia em colocar a peça no centro da língua e, após permitir por um momento que a sensação se espalhasse, apertá-la com força contra o céu da boca. Sua teoria era que a superfície rígida e irregular causava minúsculas abrasões na mucosa delicada sobre as quais agiam o sal e as substâncias químicas, criando uma mescla de prazer e dor, suave porém inconfundível.

Como um enólogo num prestigioso teste de vinhos, ele havia cerrado os olhos. Ao abri-los, o homem do lado oposto da mesa o fitava com seus olhos de um tom azulado de cinza. Sentindo-se apenas levemente envergonhado, Beard fez um gesto de impaciência e afastou o olhar. Sabia que projetara a imagem de um gorducho idiota, entrado em anos, que se deleitava intensamente com junk food. Havia se comportado como se estivesse sozinho. E daí? Contanto que não prejudicasse ou ofendesse ninguém, era um direito que tinha. Não se importava mais com o que os outros pensavam dele. Envelhecer trazia poucas vantagens, mas essa era uma delas. Menos para satisfazer sua necessidade desprezível do que numa mera afirmação de individualidade, esticou a mão a fim de pegar outra batata e, ao fazê-lo, olhou de novo para o companheiro de viagem. Ele o encarava de um modo duro e ostensivo, sem piscar, expressando apenas uma curiosidade feroz. Ocorreu a Beard que poderia estar diante de um psicopata. Azar. Ele próprio podia ser também um pouquinho psicótico. O resíduo salgado do primeiro pedaço lhe deu a impressão de que suas gengivas sangravam.

Recostou-se mais uma vez no assento, abriu a boca e repetiu a experiência, embora dessa feita mantendo os olhos abertos. Como era inevitável, a segunda porção foi menos picante, menos surpreendente e aguda que a primeira, e foi justamente esse déficit, esse desapontamento sensual, que deflagrou a necessidade, bem conhecida dos viciados em drogas, de aumentar a dose. Iria comer duas batatas de uma só vez.

Nesse momento, ao erguer os olhos, viu o sujeito ajeitar o corpo para a frente e, ainda de olhos estranhamente fixos nele, plantar os cotovelos na mesa, talvez numa paródia consciente. Depois, deixando o antebraço cair, baixando-o como um guindaste na direção do saquinho, o sujeito roubou uma batata, provavelmente a maior de todas, a manteve diante do rosto por um ou dois segundos e comeu, não com a meticulosidade de Beard, mas com uma mastigação insolente, os lábios abertos permitindo do ver o produto se transformar em pasta na língua dele. Nem ao menos piscou, tão intenso era seu olhar. E o ato foi tão flagrante, tão inortodoxo, que até mesmo Beard, bastante capaz de pensamentos não convencionais — como teria ganhado o Prêmio se não fosse assim? —, ficou paralisado, em estado de choque, tentando salvar a dignidade ao manter as feições inalteradas, sem se trair dando algum sinal de emoção.

Um olhava fixamente para o outro, e agora Beard estava decidido a não desviar a vista. Não havia dúvida, o comportamento do sujeito era agressivo, ele acabara de cometer um roubo ostensivo, não importando que o bem fosse de pouco valor. E, se chegassem às vias de fato, Beard certamente seria posto a nocaute em segundos, com fratura do crânio ou dos braços. Mas havia também outra possibilidade, a de que, por trás daquela máscara rígida, ele estivesse gozando o prazer ridículo de um homem mais velho ao comer junk food. Ou, no estilo ultrapassado dos situacionistas, zombasse de Beard porque ele representava a figura do burguês acomodado. Ou, pior ainda, achasse que Beard fosse veado, quando então tudo aquilo significaria uma forma de cantada, uma abertura moderna utilizada apenas pelos integrantes de alguns subgrupos para quem, por exemplo, sua gravata de seda roxa fosse um convite aberto à sedução. O fato de alguém usar um brinco já não tinha servido como indicador de orientação sexual? Mas usado em que orelha? Aquele sujeito exibia dois brincos em cada orelha. Como físico, Beard entendia muito de luz, porém nada sabia sobre as formas públicas de expressão na cultura contemporânea. Por fim, retornando à impressão inicial, Beard achou que seu companheiro de trem podia ser mesmo um doente mental que resolvera suspender por conta própria o uso do lítio, e nesse caso seria uma má ideia continuar a olhá-lo fixamente. Assim pensando, desviou a vista e fez a única coisa que lhe ocorreu: pegou outra batata.

O que ele esperava? Tão logo a batata aterrissou na sua língua, a mão do indivíduo mergulhou de novo, e dessa vez apanhou duas, exatamente como Beard tencionara fazer, comendo-as do mesmo modo enérgico e vulgar. Sem dúvida não seria de bom alvitre remover o saquinho da mesa — muito violento, muito abrupto. Perigoso alterar as regras do jogo, abrindo espaço para uma briga. Alguém o salvaria caso isso acontecesse? Beard deu uma olhada no vagão. Os passageiros liam, fitavam o espaço sem nenhuma expressão no rosto ou observavam pela janela a paisagem hibernal dos subúrbios do oeste de Londres, desconhecendo o drama em curso na mesa dele. Afinal, que interesse havia em dois homens repartindo silenciosamente um lanchinho? Era paradoxal, porém no entender de Beard fazia mais sentido dar sequência ao que fora iniciado. Não passava por sua cabeça evitar o confronto com um homem mais forte simplesmente cedendo e permitindo que ele ficasse com o saquinho todo. Beard não admitia ser coagido. Podia ser baixinho e gordo demais, mas tinha um senso de justiça muito apurado e sempre lutou por seus direitos. Era realmente capaz de se comportar de forma temerária. Já pagara caro por isso. Pegou outra batatinha frita. Seu oponente, ainda encarando Beard, fez o mesmo. Isso se repetiu por mais duas vezes, as mãos de um e de outro alcançando em movimentos firmes e deliberados o saquinho, sem nenhuma pressa e sem nunca se tocarem.

Quando só restavam duas batatas, o sujeito apanhou o saquinho e, numa paródia de cortesia, as ofereceu a Beard. A única reação possível a esse derradeiro insulto foi afastar o rosto. Era um ultraje. O trem começava a reduzir a velocidade, as pessoas pegavam seus casacões, uma voz eletrônica lembrou os passageiros de que deveriam levar suas bagagens ao sair. Num gesto que assegurou seu triunfo, o sujeito fez uma bolinha com a embalagem de plástico e a jogou na cesta de lixo debaixo da mesa. Em seguida, diligentemente, usou uma das mãos para varrer do tampo as migalhas e grãos de sal. A humilhação de Beard era total. Era isso que significava envelhecer: ser manipulado por alguém mais moço e mais forte sem chance de revidar.

Com um cálido toque de autocomiseração, sentiu que todas as injustiças, todas as opressões históricas, as invasões injustificadas, o despotismo caótico, todas as violações tirânicas ao império da lei estavam compactadas naquele momento, e que lhe cabia dar uma demonstração de resistência por uma questão de respeito próprio e como um dever para com os pobres-diabos de todo o mundo. Se não o fizesse, sua dignidade humana estaria comprometida para sempre. Lançou-se para a frente, pegou a garrafa de água mineral de seu oponente, arrancou a tampa e bebeu sofregamente — estava mesmo com sede —, até o fundo, até a última gota de seus vinte e cinco centilitros. Atirou a garrafa sobre a mesa com o olhar desafiador de quem topa qualquer parada. A tampa azul rolou para o chão.

O indivíduo refletiu por um instante e, pondo-se de pé, no corredor revelou toda a sua altura, algo da ordem de um metro e noventa. Beard, já começando a lamentar a provocação que fizera, permaneceu sentado, decidido a não se encolher de medo. O homem ergueu o braço muito musculoso e, num movimento ágil, pegou a mala de Beard e a depositou suavemente junto a seu dono. Se esse foi um ato de contrição, ele não se sensibilizou e retaliou com um olhar hostil de desprezo. Seu adversário hesitou por um momento, olhando para baixo, na direção do homem mais idoso, com uma expressão de pena ou tristeza, virando então as costas e saindo do vagão com largas passadas.

Antes de se levantar, Beard deixou que ele se afastasse bem. Nunca mais queria ver aquele sujeito. Só um minuto depois pisou na plataforma. Um pouco trêmulo, talvez de raiva, de choque ou um pouco das duas coisas, teve dificuldade em vestir o casacão — o cinto se enroscara numa das mangas. Os cadarços de um sapato estavam desamarrados. Ajoelhando-se para amarrá-los com dedos ainda não de todo obedientes, lembrou-se de sua pilha de jornais e decidiu deixá-los para trás. Por fim, mais ou menos composto, caminhou pela plataforma rumo à catraca na saída. Esse foi o momento que guardou para sempre, que passou a representar todas as reavaliações que viria a fazer sobre seu passado, todas as perspectivas revistas ou melhoradas que iria ter sobre sua própria história, sua idiotice e as motivações das outras pessoas. Havia parado a seis metros da catraca. Pôs de pé a mala com rodinhas e, enfiando a mão por baixo do casacão, buscou a passagem no bolso do paletó. Havia outra coisa lá, algo feito de plástico, volumoso, leve, quebradiço.

Veio-lhe a memória confusa de um truque de mágica numa festa na sua cidadezinha natal, quando um prestidigitador tirou da orelha do Michael Beard de dez anos um ovo, um coelho ou uma galinha, algo fisicamente impossível, tal como aquilo agora: o saquinho com as batatas que já havia comido. Puxou-o para fora e, estupefato, ficou olhando para ele, para a bandeira britânica, a dança dos animais estilizados, desejando que se derretessem. E aquele outro saquinho?

Que turbilhão de reconsiderações sobre cada instante e cada impulso, sobre a natureza do sujeito que ele nunca mais desejava ver e o fato de que ele, Beard, se havia comportado como... como um louco varrido! Havia se comportado tão mal que, por alguns momentos, teve um sentimento de libertação, estranhamente parecido com a alegria. Não havia como se desculpar, não tinha como se defender. Também teve uma vontade desconsolada de rir. O erro era tão patente, tão imaculado, ele se revelava tão completamente diante de si próprio como um perfeito idiota, que se sentiu purificado e redimido, como um penitente, como um flagelado medieval em êxtase ao se dar conta de que suas costas estavam outra vez em carne viva.

Aquele pobre sujeito cuja comida e bebida você havia devorado, que lhe ofereceu os últimos pedaços, que pôs sua bagagem no chão, era um amigo da humanidade. Não, não, não era para fazer aquilo agora, a agonia da retrospecção precisava ser adiada. Embora precisasse correr para o local de seu compromisso, Beard permaneceu por um bom tempo na plataforma, sob o distante teto de vidro e em meio aos entrechoques ecoantes da gare, enquanto os passageiros o contornavam e ele apertava o saquinho de batatas contra o peito, se sentindo, sem nenhuma boa razão, intensamente iluminado.



(Solar; tradução de Jorio Dauster)



(Ilustração: Kestutis Kasparavicius - the honest thief - illustration for book by Dostoevsky)


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

MAIS UM POEMA, de Aryana Frances

 



Um poema para levar no bolso direito da calça

junto à bala de menta e dinheiro da passagem do ônibus

Um poema roto

pra ser lido para os infinitos mendigos postos à sarjeta

Um poema escrito em folha de caderno com letra feia e caneta vermelha

Um poema que faça a professora de português me olhar com asco

e as palavras talhadas no papel

como escrituras na carne (feitas à faca)

Um poema que faça teus olhos castanhos brilharem e o céu se abrir

Um poema que te diga que vá e tente que nada é certo (exceto os erros) o resto é incerto como as rimas nulas que aqui deixo.



Um poema que funcione como um soco na cara ou uma chuva no verão

Um poema desses, que eu sempre escrevo, e logo deixo de canto, mofando à imensidão.

Um poema desses, de amor, falando do teu púbis

e dos teus sinais e sardas na face e da marca de infância nas tuas coxas.

Um poema feio.

Um poema que faça teu peito sangrar e tua alma rugir o eco indefinido de todos os amantes (desde que o mundo é mundo).



(Derivantes e Delirantes)



(Ilustração: Isa Amalee the writer – 2012)





sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O ATOR, de Plinio Marcos

 



Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do cotidiano tornem um homem duro ou cínico o bastante para fazê-lo indiferente às desgraças e alegrias coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo que seja, um recanto suave no qual ele guarda ecos dos sons de algum momento de amor que viveu em sua vida.

Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingi-lo no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade, e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruição a que, por desencanto ou medo, se sujeita, e por aí inquietá-lo e comovê-lo para as lutas comuns da libertação.

Os atores têm esse dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos nos quais não existem defesas. Os atores, eles, e não os diretores e os autores, têm esse dom. Por isso o artista do teatro é o ator.

O público vai ao teatro por causa dos atores. O autor de teatro é bom na medida em que escreve peças que dão margem a grandes interpretações dos atores. Mas, o ator tem que se conscientizar de que é um cristo da humanidade e que seu talento é muito mais uma condenação do que uma dádiva. O ator tem que saber que, para ser um ator de verdade, vai ter que fazer mil e uma renúncias, mil e um sacrifícios. É preciso que o ator tenha muita coragem, muita humildade, e sobretudo um transbordamento de amor fraterno para abdicar da própria personalidade em favor da personalidade de seus personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade entender que o ser humano não tem instintos e sensibilidade padronizados, como os hipócritas com seus códigos de ética pretendem.

Eu amo os atores nas suas alucinantes variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no desespero de sua insegurança, quando ele, como viajor solitário, sem a bússola da fé ou da ideologia, é obrigado a vagar pelos labirintos de sua mente, procurando no seu mais secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem tem. E amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios, surge no palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua sensibilidade para expor sem nenhuma reserva toda a fragilidade do ser humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para expor para a plateia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de que seu público se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de um mundo melhor, que tem que ser construído pela harmonia e pelo amor. Eu amo os atores que sabem que a única recompensa que podem ter – não é o dinheiro, não são os aplausos – é a esperança de poder rir todos os risos e chorar todos os prantos. Eu amo os atores que sabem que no palco cada palavra e cada gesto são efêmeros e que nada registra nem documenta sua grandeza. Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica.



(Ilustração: Picasso - Eric, o ator)



terça-feira, 12 de outubro de 2021

LES PLUS BEAUX VERS / O MELHOR VERSO, de Edmond Haraucourt

 


Les plus beaux vers sont ceux qu’on n’écrira jamais,

Fleurs de rêve dont l’âme a respiré l’arôme,

Lueurs d’un infini, sourires d’un fantôme,

Voix des plaines que l’on entend sur les sommets.



L’intraduisible espace est hanté de poèmes,

Mystérieux exil, Eden, jardin sacré

Où le péché de l’art n’a jamais pénétré,

Mais que tu pourras voir quelque jour, si tu m’aimes.



Quelque soir où l’amour fondra nos deux esprits,

En silence, dans un silence qui se pâme,

Viens pencher longuement ton âme sur mon âme

Pour y lire les vers que je n’ai pas écrits...



(Seul - 1891)



Tradução de Álvaro Reis:



Sempre o verso melhor é o que não foi escrito...

Flor do sonho que envia à noss’alma os perfumes,

Sorriso de um fantasma e luar de um infinito,

Voz de planície ouvida em nebulosos cumes...



O intraduzível céu é todo astral poesia...

Exílio misterioso, Éden, jardim sagrado,

Onde o pecado da arte há jamais penetrado,

Mas que poderás ver, amando-me algum dia!



Quando o amor nos prender com seus grilhões benditos,

Numa noite, em silencio e abismadora calma,

Vem, divina!, inclinar tu’alma sobre minh’alma

Para leres aí meus versos não escritos.



(Sozinho - 1891)




(Anthologie des poètes français contemporains: le parnasse et les ecoles posterieures au parnasse (1866-1906). / Antologia de poetas franceses: do século XV ao século XX)



(Ilustração: Leonid Pasternak - os espinhos da criação)



sábado, 9 de outubro de 2021

A COLÔNIA CECÍLIA, de Zélia Gattai

 



A viagem da família Gattai começara, em realidade, dois anos antes de embarcarem no "Città di Roma", em Gênova. Meu avô tivera a oportunidade de ler um livreto intitulado: "I Comune in Riva ai Maré", escrito por um certo Dr. Giovanni Rossi - que assinava com o pseudônimo de Cárdias -, misto de cientista, botânico e músico. No folheto que tanto fascinara meu avô, Cárdias idealizava a fundação de uma "Colônia Socialista Experimental", num país da América Latina - não especificava qual -, uma sociedade sem leis, sem religião, sem propriedade privada, onde a família fosse constituída de forma mais humana, assegurando às mulheres os mesmos direitos civis e políticos que aos homens.

Cárdias ainda ia mais adiante: nas últimas páginas de seu estudo, de seu plano, fazia um apelo às pessoas que estivessem de acordo com suas teorias e quisessem acompanhá-lo a qualquer parte da Terra, por mais distante, desde que pudessem levar à prática todas as experiências e as ideias contidas no livro, para se apresentarem.

Por fim, Francisco Arnaldo Gattai encontrava alguém com dinamismo e inteligência, disposto a tornar realidade um sonho, seu e de outros camaradas, também discípulos dos ensinamentos de Bakunin e Kropotkin, à procura de um "caminho novo para a humanidade faminta, esfarrapada, ensanguentada, talvez esquecida de Deus".

Buscaria uma oportunidade de encontrar-se com Cárdias. Começava a divisar perspectivas para o futuro de sua família.

Enquanto Argía, sua mulher, amamentava o filho, leu-lhe o precioso documento. Que pensava ela desses planos? Queria saber sua opinião. Deviam aceitar o convite do Dr. Giovanni Rossi? Tinham quatro filhos, um ainda a sugar o peito da mãe.

Com palavras simples e acessíveis, papai nos explicou quem era o Dr. Giovanni Rossi, mais conhecido por Cárdias, o homem que idealizara todo o plano da colônia experimental em terras distantes. Nascera poeta e herdara da família incontestável vocação musical. Mas, deixando de lado poesia e música, inquieto, preocupado com os problemas sociais, preferiu os estudos práticos, formando-se em Agronomia, dedicando-se ao jornalismo e aos problemas sociais e filosóficos. Em suas idas a Milão, costumava hospedar-se com um parente, músico, o Maestro Rossi, cuja casa era frequentada por músicos de renome, entre eles um certo Carlos Gomes, brasileiro, autor de óperas. Encontraram-se os dois, Giovanni Rossi e Carlos Gomes, na ocasião em que o músico brasileiro se entregava com entusiasmo à partitura de mais uma ópera, "Lo Schiavo", que pretendia tocar para o Imperador do Brasil, cuja chegada a Milão estava sendo aguardada.

Carlos Gomes falou a Giovanni Rossi de sua terra, do outro lado do mar, cheia de belezas naturais e de suas riquezas. O músico falava da grandeza de seu país com emoção e saudade.

Cárdias o escutou fascinado! Essa era a terra que buscava, ideal para sua experiência. Não havia dúvidas. Pôs de lado imediatamente o projeto, ainda embrionário, de tentar o Uruguai. O Brasil o chamava.

Entusiasmou-se ainda mais ao saber da próxima chegada de D. Pedro II a Milão. Carlos Gomes seu protegido, o conhecia bem, e o admirava muito. Fez-lhe os maiores elogios: "um rei sábio, um pai para o nosso povo, amigo dos inventores, dos músicos, dos poetas..."

Cheio de esperanças, Cárdias resolveu escrever uma carta ao Imperador do Brasil. Não tinha nem nunca tivera admiração por imperadores, mas se aquele quisesse se interessar por seu projeto... Na longa carta explicou com detalhes seus planos a D. Pedro II, pedindo que lhe permitisse provar a seriedade da experiência e solicitando terras e apoio para a ida dos idealistas para o Brasil.

Essa carta, levada por ele mesmo, foi entregue, em mãos, ao Conde da Mota Maia, médico do Imperador, no hotel onde a comitiva real se hospedava.

Algum tempo depois, já no Brasil, D. Pedro leu por acaso o pequeno livro de Cárdias. Interessou-se pelas ideias e pelo arrojo do autor. Mostrou o pequeno tomo ao Conde da Mota Maia que então se recordou do jovem que havia procurado o Imperador no "Hotel Milão", levando-lhe uma carta. O pseudônimo era o mesmo. D. Pedro lembrou-se vagamente do fato.

Impressionado com o apelo das últimas páginas do livro, convocando voluntários para a experiência e dando seu nome completo e endereço, Pedro II não teve dúvidas, mandou que respondessem à sua carta: felicitava-o por seu trabalho e oferecia-lhe a terra solicitada para a colônia experimental.

Estabeleceu-se, então, uma correspondência entre o jovem idealista e o Imperador. Depois de várias démarches, Cárdias recebeu de D. Pedro II a posse de 300 alqueires de terras, incultas e desertas, num local entre Palmeira e Santa Bárbara, no Paraná, e, ainda, a promessa de ajuda e apoio para o empreendimento.

Tudo acertado, a doação das terras já feita, Cárdias botou mãos à obra dando início ao recrutamento dos voluntários, através dos jornais e em reuniões públicas. Frisava bem que aquela era uma aventura somente para idealistas endurecidos na luta, dispostos a realizar uma grande experiência social, sem medir sacrifícios.

Os candidatos foram surgindo e seu número aumentou rapidamente.

Entre os primeiros que se apresentaram estava Francisco Arnaldo Gattai, meu avô, que entrara em contato havia muito com Cárdias. Agora, já nascera o quinto filho do casal, a menina Hiena. Com a mulher, estudara a situação: não seria arriscado partirem para a aventura, carregando cinco crianças?

Argía Fagnoni Gattai, minha avó, não era mulher de recuar diante de obstáculos. Aos trinta anos de idade, carregada de filhos, não teve medo de enfrentar o desconhecido. Amava o marido, sabia o que representava para ele aquela viagem. Não iria desapontá-lo. Costumava amamentar os filhos até seus dois anos de idade - esse era o intervalo matemático entre um filho e outro -, criando-os fortes e sadios. Jamais lhe faltara leite; por Hiena não precisavam temer. A mãe lhe garantiria a alimentação, pelo menos durante a travessia marítima.

Entre os 150 - talvez um pouco mais - pioneiros que integravam o grupo, havia gente de várias profissões e classes sociais: médicos, engenheiros, artistas, professores, camponeses e operários - em meio a esses últimos, meu avô. Mas havia também outros que conseguiram se infiltrar, alguns criminosos condenados por diversos delitos.

O grupo de idealistas embarcou no navio "Città di Roma" em fevereiro de 1890; o regime imperial no Brasil havia sido derrubado a 15 de novembro de 1889. D. Pedro II fora deposto e desterrado, a República proclamada. Os fundadores da "Colônia Socialista Experimental" não podiam mais contar com a ajuda e o apoio prometido pelo Imperador. Contariam apenas com seus próprios esforços, com a vontade de vencer, mas nada os faria recuar.

No porão do "Città di Roma", junto às caldeiras, viram-se amontoados os pioneiros que, em breve, estariam integrando uma comunidade de princípios puros: a "Colônia Cecília". Iam cheios de esperanças, suportariam corajosamente as condições infames da viagem.

Uma luz artificial, fraca, era tudo o que havia para iluminar o porão; nem a mais leve brisa do mar chegava até ali para atenuar o calor sufocante.

As crianças, inquietas, inconformadas com a escura prisão, tentavam a toda hora, burlando a vigilância dos mais velhos, subir a escada escorregadia e íngreme que as conduziria ao sol.

No segundo dia de viagem já não havia onde pisar. Poças de vômitos espalhavam-se por todo lado. O navio jogava demais e a maioria dos passageiros enjoava. Argía Gattai estava entre os que mais sofriam. Não conseguia alimentar-se, vomitava o que já não trazia no estômago. Com o correr dos dias a situação dos Gattai foi se agravando: grudada aos peitos da mãe - ora num, ora noutro -, Hiena só os largava para reclamar, chorando desesperadamente. Onde estariam aquelas tetas fartas, transbordantes? Elas iam diminuindo, murchando, cada vez menos a quantidade de leite para saciar sua fome... Ninguém dormia com o pranto doloroso da menina mas ninguém reclamava.

Um médico do grupo chegou-se, aproximou-se e sem examinar a criança diagnosticou: fome.

E se conseguissem um pouco de leite em cima? O médico desaconselhou: o leite de bordo não era bom, nas condições de fraqueza em que a criança se encontrava poderia provocar-lhe diarreia A única providência a tomar, urgentemente, era conseguir com o comandante do navio permissão para remover mãe e filha para cima, onde pudessem respirar ar puro. Talvez, quem sabe, seu leite voltasse?

Estirada numa espreguiçadeira, na popa do navio, com a criança grudada ao peito - perninhas e braços finos, olheiras fundas -, a mulher passava o dia. Havia quanto tempo viajavam? Quando chegariam? Deviam ter decorrido muitos dias desde a partida de Gênova. Inda bem que as quatro crianças continuavam com saúde. Guerrando, o mais velho dos filhos, beirando os dez anos, fora encarregado de cuidar dos menores, o pai ocupado com a mulher e a filha doente.

À noite, a mãe e a menina voltavam para a fornalha e o choro recomeçava. Hiena já não mamava com tanta avidez. O leite quase secara, sugava em vão.

Tio Guerrando jamais se esquecera dos tormentos da terrível viagem; quando era ele a narrar a odisseia dos pais, o fazia com tanto sentimento que, sem me dar conta, comparei aquele porão quente e escuro ao Inferno de Dante. 

No porto de Santos formou-se a maior confusão na hora do desembarque. Homens para um lado, mulheres para o outro. Em salas separadas os imigrantes foram despidos, as roupas do corpo e as que traziam nas trouxas levadas para a rotineira desinfecção. Ali permaneceram durante horas a fio, nus, à espera de que lhe devolvessem os pertences, que os liberassem.

Ninguém reclamava, nem havia a quem reclamar. O jeito era esperar com paciência e resignação.

Por fim, depois de infinita demora, roupas e pertences foram devolvidos, devidamente carimbados pelo posto. Apertados em seus trajes encolhidos pelo banho de desinfecção, cheirando a remédio, amarfanhados, os imigrantes, conduzidos em fila, passaram pelo departamento médico, numa última vistoria antes de serem liberados.

Dali mesmo, foram encaminhados e embarcados novamente num pequeno navio que os conduziria ao Paraná. (Tio Guerrando não estava muito certo do novo porto de desembarque, mas achava que era o de Paranaguá.)

O estado da menina não melhorara, o leite materno acabou inteiramente, deram-lhe então leite de vaca. Como prevenira o médico, manifestou-se em seguida violenta diarreia acompanhada de vômitos.

Os pioneiros partiram rumo às terras que os esperavam, a família Gattai permaneceu na cidade. Companheiros compadecidos ofereceram-se para levar as quatro crianças; facilitaria a vida dos pais, às voltas com a menina doente.

- Ficaremos juntos. Não suportaríamos nossos filhos, morreríamos de preocupação... - explicou nono Gattai, agradecendo o oferecimento.

E lá ficaram eles, naquele porto estranho, buscando por todos os meios salvar a vida da filha.

Num carroção de quatro rodas, com suas trouxas de roupa e alguns pertences, passou a família Gattai por Santa Bárbara: marido, mulher e quatro filhos.

Ao verem passar a carroça, algumas crianças gritaram chamando pelas mães: "Venham ver que estão chegando mais ciganos!..." Havia pouco mais de um mês passara por lá grande leva de homens, nas mesmas condições que esses. Ciganos, certamente, pensaram os moradores do pequeno vilarejo, trancando as portas das modestas casas cobertas com folhas de zinco, no medo de serem roubados.

Ao alto de uma colina, por entre os pinheirais, divisava-se, hasteada ao alto de uma palmeira, enorme bandeira vermelha e preta. Era a bandeira da "Colônia Cecília", saudando a chegada dos novos pioneiros.

Ao divisar a bandeira da "Colônia", nono Gattai olhou mais abaixo e exclamou: "Lá estão eles!" Ali estava o acampamento: um grande barracão erguido junto a um córrego, pequenas barracas em construção, homens movimentando-se para cima e para baixo, um pedaço de terra já limpa para o cultivo ao lado de um pequeno bosque.

Nona Argía voltou a cabeça em direção ao dedo estirado do marido. Seus olhos distantes não divisaram nada. Sua alegria, sua esperança, seu entusiasmo ainda permaneciam lá longe, enterrados ao lado do corpinho da filha. Durante toda a viagem não dera uma única palavra, nem para amaldiçoar, nem para acusar. Não derramou uma única lágrima, completamente apática. O marido, disfarçando a tristeza pela morte da filha, procurara distrair a mulher chamando-lhe a atenção para mil e uma coisas durante a longa e dura viagem pela estrada. Sem obter resultados.

Avistando a carroça da família Gattai, os homens do acampamento partiram ao seu encontro. Os Gattai foram alojados provisoriamente no barracão construído pela primeira leva. À chegada todos trabalharam para levantar o galpão onde se abrigarem. Nos dias que se seguiram cada família tratou de construir a sua própria morada. O barracão ficara para depósito e emergências como aquela.

As quatro crianças, ao se verem livres da incômoda carroça, correram em disparada para o regato de águas cristalinas. Ninguém as impediu de se banharem de roupa e tudo. Estavam necessitadas de ar puro, de água e, sobretudo, de liberdade.

- E foi assim que a família Gattai chegou ao Brasil. - Com essa frase papai dava por encerrada sua história.

Estávamos, no entanto, tão impressionados com o relato, que desejávamos ouvir mais. Papai, percebendo nossa emoção, buscou desanuviar o ambiente:

- Vocês estão vendo? Sabiam que eram tão importantes?

Pois, para que vocês estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do Maestro Carlos Gomes e de D. Pedro II, Imperador do Brasil. Que tal? - riu do nosso espanto.

Mas eu não estava ainda satisfeita, queria saber mais. O que havia acontecido à "Colônia Cecília"?

- Manteve-se ainda durante alguns anos, com grandes esforços e muito trabalho, mas resultou em nada, não pôde manter-se.

Era difícil a papai explicar detalhes de fatos que ele mesmo ignorava. Titio Guerrando, que vivera esses episódios e ainda se lembrava de muita coisa, também pouco sabia sobre os motivos que levaram ao fracasso da experiência. De positivo mesmo, sabiam que muita gente desistira ao aparecerem as primeiras dificuldades. Outros idealistas, que foram chegando no correr do tempo para se incorporar à "Colônia", tampouco resistiram às péssimas condições nela reinantes. Alguns mais teimosos tiveram que arranjar emprego fora das terras, nas construções de estradas de ferro, para não morrer de fome. Mas tudo culminou com a intimação das autoridades republicanas que, não estando de acordo com a doação feita pelo Imperador deposto, exigiam dos colonos que, ou comprassem as terras que ocupavam e pagassem os impostos atrasados ou as abandonassem. Havia ainda a versão anticlerical de tio Guerrando: ele contava que, bem próximo à "Colônia", fora construída uma igreja católica com o objetivo exclusivo de hostilizar e boicotar os anarquistas, e que, já na época da colheita, o padre vizinho soltou suas vacas, que rapidamente destruíram todas as plantações, liquidando assim a última esperança dos remanescentes da "Colônia Cecília".

Os Gattai lá permaneceram dois anos, mais ou menos. O último a abandonar o barco, tempos depois, foi o comandante Cárdias, ao ver-se impossibilitado de prosseguir sozinho na sua experiência.

Aprendi muita coisa sobre a "Colônia Cecília", mais com tio Guerrando do que com papai. Tio Guerrando, menino crescido durante a aventura, lembrava-se de detalhes vividos pela família.

Foi no livro do escritor Afonso Schmidt, "Colônia Cecília", publicado em 1942 em São Paulo, que encontrei algumas respostas às minhas indagações, inteirei-me da extensão da aventura anarquista. A família Gattai é citada entre os sonhadores que acompanharam o Dr. Giovanni Rossi ao Brasil, no livro de Schmidt: "Na casa dos Gattai ardia fogo, uma fumaça azul saía alegremente pela única janela."



(Anarquistas, graças a Deus)



(Ilustração: Colônia Cecília - "Uma das raras fotos da Colônia Cecília, experiência anarquista idealizada no século 19, no interior do Paraná, pelo italiano Giovanni Rossi ")

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

CON LA LENGUA / COM A LÍNGUA, de Eduardo Mitre

 




Deseo escribir una loa

en honor de tu sexo:

Nido oculto entre la fronda

y las lomas de tu cuerpo.



Abro el Diccionario

de la Lengua Española.

Suavemente mis dedos

separan sus sabias hojas.



Leo, releo y, tras una pausa,

transcribo al pie de la letra:

Adufa: plancha, compuerta

para cortar el paso del agua.



Corola: segundo verticilo

de las flores completas...

Brasa: carbón encendido,

rojo por la total incandescencia...



Salto, chispeante, a la zeta:

Zaguán: espacio cubierto

situado dentro de una casa,

y que sirve de entrada a ella...



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Desejo escrever uma loa

em honra ao teu sexo:

ninho oculto entre a folhagem

e os cerros de teu corpo.



Abro o dicionário

da língua espanhola.

Suavemente meus dedos

separam suas sábias folhas.



Leio e releio e, após uma pausa,

transcrevo ao pé da letra:

Adufa: prancha, comporta

para cortar o fluxo da água.



Corola: segundo verticilo

das flores completas...

Brasa: carbono em chamas,

rubro pela total incandescência...

Salto, faiscante, à letra esse: [1]

Saguão: espaço coberto

situado dentro de uma casa,

e que a ela serve de entrada...



[1] no original, letra zê.



(Ilustração: Jacqueline Secor - vaginas)