quinta-feira, 21 de outubro de 2021

MICHAEL BEARD: O PRÊMIO NOBEL DE FÍSICA E O LADRÃO INOCENTE, de Ian McEwan

 


Pôs de lado o palmtop, recostou-se no assento e semicerrou os olhos. Bem na frente dele, sobre a mesa, reluzia através de seus cílios o saquinho de batatas fritas com sal e vinagre, estando mais além a garrafa plástica de água mineral do seu companheiro. Beard pensou em rever as notas para a palestra, porém o cansaço da viagem e os drinques no almoço o haviam deixado inerte. Além do mais, acreditava conhecer bastante bem o material, havendo também anotado algumas citações úteis num cartão que guardara no bolso de cima do paletó. Quanto às batatinhas, a vontade era menor do que antes, porém ainda estava lá. Alguns daqueles componentes industriais talvez fossem capazes de sacudir seu metabolismo, despertando-o. Era seu céu da boca, e não o estômago, que clamava pelo gosto forte e acídico do revestimento de cada frágil fatia. Ele tinha demonstrado um grau de controle respeitável — o trem já se pusera em marcha alguns minutos antes — e não havia nenhuma boa razão para delongas.

Endireitou o corpo no assento e se inclinou para a frente, cotovelos sobre a mesa, as mãos sustentando o queixo por alguns segundos de reflexão, o olhar fixo na embalagem vistosa: prata, vermelho e azul, com animais estilizados cabriolando debaixo da bandeira do Reino Unido. Tão infantil da parte dele aquela fixação, tão fraca, tão perniciosa, um microcosmo de todos os erros e loucuras do passado, de seu jeito impaciente de querer possuir as coisas instantaneamente. Pegou o saquinho com as duas mãos e o abriu no topo, liberando o aroma penetrante de óleo de fritura e vinagre. Tratava-se de engenhosa simulação, feita em laboratório, das lojinhas de esquina que outrora vendiam peixe com fritas, uma reencenação que envolvia doces memórias, desejo e senso de nacionalidade. A bandeira era uma opção bem inteligente. Retirou uma única batata com o polegar e o indicador, repôs o saquinho na mesa e se recostou de novo. Era um homem que cuidava com seriedade de seus prazeres. O truque consistia em colocar a peça no centro da língua e, após permitir por um momento que a sensação se espalhasse, apertá-la com força contra o céu da boca. Sua teoria era que a superfície rígida e irregular causava minúsculas abrasões na mucosa delicada sobre as quais agiam o sal e as substâncias químicas, criando uma mescla de prazer e dor, suave porém inconfundível.

Como um enólogo num prestigioso teste de vinhos, ele havia cerrado os olhos. Ao abri-los, o homem do lado oposto da mesa o fitava com seus olhos de um tom azulado de cinza. Sentindo-se apenas levemente envergonhado, Beard fez um gesto de impaciência e afastou o olhar. Sabia que projetara a imagem de um gorducho idiota, entrado em anos, que se deleitava intensamente com junk food. Havia se comportado como se estivesse sozinho. E daí? Contanto que não prejudicasse ou ofendesse ninguém, era um direito que tinha. Não se importava mais com o que os outros pensavam dele. Envelhecer trazia poucas vantagens, mas essa era uma delas. Menos para satisfazer sua necessidade desprezível do que numa mera afirmação de individualidade, esticou a mão a fim de pegar outra batata e, ao fazê-lo, olhou de novo para o companheiro de viagem. Ele o encarava de um modo duro e ostensivo, sem piscar, expressando apenas uma curiosidade feroz. Ocorreu a Beard que poderia estar diante de um psicopata. Azar. Ele próprio podia ser também um pouquinho psicótico. O resíduo salgado do primeiro pedaço lhe deu a impressão de que suas gengivas sangravam.

Recostou-se mais uma vez no assento, abriu a boca e repetiu a experiência, embora dessa feita mantendo os olhos abertos. Como era inevitável, a segunda porção foi menos picante, menos surpreendente e aguda que a primeira, e foi justamente esse déficit, esse desapontamento sensual, que deflagrou a necessidade, bem conhecida dos viciados em drogas, de aumentar a dose. Iria comer duas batatas de uma só vez.

Nesse momento, ao erguer os olhos, viu o sujeito ajeitar o corpo para a frente e, ainda de olhos estranhamente fixos nele, plantar os cotovelos na mesa, talvez numa paródia consciente. Depois, deixando o antebraço cair, baixando-o como um guindaste na direção do saquinho, o sujeito roubou uma batata, provavelmente a maior de todas, a manteve diante do rosto por um ou dois segundos e comeu, não com a meticulosidade de Beard, mas com uma mastigação insolente, os lábios abertos permitindo do ver o produto se transformar em pasta na língua dele. Nem ao menos piscou, tão intenso era seu olhar. E o ato foi tão flagrante, tão inortodoxo, que até mesmo Beard, bastante capaz de pensamentos não convencionais — como teria ganhado o Prêmio se não fosse assim? —, ficou paralisado, em estado de choque, tentando salvar a dignidade ao manter as feições inalteradas, sem se trair dando algum sinal de emoção.

Um olhava fixamente para o outro, e agora Beard estava decidido a não desviar a vista. Não havia dúvida, o comportamento do sujeito era agressivo, ele acabara de cometer um roubo ostensivo, não importando que o bem fosse de pouco valor. E, se chegassem às vias de fato, Beard certamente seria posto a nocaute em segundos, com fratura do crânio ou dos braços. Mas havia também outra possibilidade, a de que, por trás daquela máscara rígida, ele estivesse gozando o prazer ridículo de um homem mais velho ao comer junk food. Ou, no estilo ultrapassado dos situacionistas, zombasse de Beard porque ele representava a figura do burguês acomodado. Ou, pior ainda, achasse que Beard fosse veado, quando então tudo aquilo significaria uma forma de cantada, uma abertura moderna utilizada apenas pelos integrantes de alguns subgrupos para quem, por exemplo, sua gravata de seda roxa fosse um convite aberto à sedução. O fato de alguém usar um brinco já não tinha servido como indicador de orientação sexual? Mas usado em que orelha? Aquele sujeito exibia dois brincos em cada orelha. Como físico, Beard entendia muito de luz, porém nada sabia sobre as formas públicas de expressão na cultura contemporânea. Por fim, retornando à impressão inicial, Beard achou que seu companheiro de trem podia ser mesmo um doente mental que resolvera suspender por conta própria o uso do lítio, e nesse caso seria uma má ideia continuar a olhá-lo fixamente. Assim pensando, desviou a vista e fez a única coisa que lhe ocorreu: pegou outra batata.

O que ele esperava? Tão logo a batata aterrissou na sua língua, a mão do indivíduo mergulhou de novo, e dessa vez apanhou duas, exatamente como Beard tencionara fazer, comendo-as do mesmo modo enérgico e vulgar. Sem dúvida não seria de bom alvitre remover o saquinho da mesa — muito violento, muito abrupto. Perigoso alterar as regras do jogo, abrindo espaço para uma briga. Alguém o salvaria caso isso acontecesse? Beard deu uma olhada no vagão. Os passageiros liam, fitavam o espaço sem nenhuma expressão no rosto ou observavam pela janela a paisagem hibernal dos subúrbios do oeste de Londres, desconhecendo o drama em curso na mesa dele. Afinal, que interesse havia em dois homens repartindo silenciosamente um lanchinho? Era paradoxal, porém no entender de Beard fazia mais sentido dar sequência ao que fora iniciado. Não passava por sua cabeça evitar o confronto com um homem mais forte simplesmente cedendo e permitindo que ele ficasse com o saquinho todo. Beard não admitia ser coagido. Podia ser baixinho e gordo demais, mas tinha um senso de justiça muito apurado e sempre lutou por seus direitos. Era realmente capaz de se comportar de forma temerária. Já pagara caro por isso. Pegou outra batatinha frita. Seu oponente, ainda encarando Beard, fez o mesmo. Isso se repetiu por mais duas vezes, as mãos de um e de outro alcançando em movimentos firmes e deliberados o saquinho, sem nenhuma pressa e sem nunca se tocarem.

Quando só restavam duas batatas, o sujeito apanhou o saquinho e, numa paródia de cortesia, as ofereceu a Beard. A única reação possível a esse derradeiro insulto foi afastar o rosto. Era um ultraje. O trem começava a reduzir a velocidade, as pessoas pegavam seus casacões, uma voz eletrônica lembrou os passageiros de que deveriam levar suas bagagens ao sair. Num gesto que assegurou seu triunfo, o sujeito fez uma bolinha com a embalagem de plástico e a jogou na cesta de lixo debaixo da mesa. Em seguida, diligentemente, usou uma das mãos para varrer do tampo as migalhas e grãos de sal. A humilhação de Beard era total. Era isso que significava envelhecer: ser manipulado por alguém mais moço e mais forte sem chance de revidar.

Com um cálido toque de autocomiseração, sentiu que todas as injustiças, todas as opressões históricas, as invasões injustificadas, o despotismo caótico, todas as violações tirânicas ao império da lei estavam compactadas naquele momento, e que lhe cabia dar uma demonstração de resistência por uma questão de respeito próprio e como um dever para com os pobres-diabos de todo o mundo. Se não o fizesse, sua dignidade humana estaria comprometida para sempre. Lançou-se para a frente, pegou a garrafa de água mineral de seu oponente, arrancou a tampa e bebeu sofregamente — estava mesmo com sede —, até o fundo, até a última gota de seus vinte e cinco centilitros. Atirou a garrafa sobre a mesa com o olhar desafiador de quem topa qualquer parada. A tampa azul rolou para o chão.

O indivíduo refletiu por um instante e, pondo-se de pé, no corredor revelou toda a sua altura, algo da ordem de um metro e noventa. Beard, já começando a lamentar a provocação que fizera, permaneceu sentado, decidido a não se encolher de medo. O homem ergueu o braço muito musculoso e, num movimento ágil, pegou a mala de Beard e a depositou suavemente junto a seu dono. Se esse foi um ato de contrição, ele não se sensibilizou e retaliou com um olhar hostil de desprezo. Seu adversário hesitou por um momento, olhando para baixo, na direção do homem mais idoso, com uma expressão de pena ou tristeza, virando então as costas e saindo do vagão com largas passadas.

Antes de se levantar, Beard deixou que ele se afastasse bem. Nunca mais queria ver aquele sujeito. Só um minuto depois pisou na plataforma. Um pouco trêmulo, talvez de raiva, de choque ou um pouco das duas coisas, teve dificuldade em vestir o casacão — o cinto se enroscara numa das mangas. Os cadarços de um sapato estavam desamarrados. Ajoelhando-se para amarrá-los com dedos ainda não de todo obedientes, lembrou-se de sua pilha de jornais e decidiu deixá-los para trás. Por fim, mais ou menos composto, caminhou pela plataforma rumo à catraca na saída. Esse foi o momento que guardou para sempre, que passou a representar todas as reavaliações que viria a fazer sobre seu passado, todas as perspectivas revistas ou melhoradas que iria ter sobre sua própria história, sua idiotice e as motivações das outras pessoas. Havia parado a seis metros da catraca. Pôs de pé a mala com rodinhas e, enfiando a mão por baixo do casacão, buscou a passagem no bolso do paletó. Havia outra coisa lá, algo feito de plástico, volumoso, leve, quebradiço.

Veio-lhe a memória confusa de um truque de mágica numa festa na sua cidadezinha natal, quando um prestidigitador tirou da orelha do Michael Beard de dez anos um ovo, um coelho ou uma galinha, algo fisicamente impossível, tal como aquilo agora: o saquinho com as batatas que já havia comido. Puxou-o para fora e, estupefato, ficou olhando para ele, para a bandeira britânica, a dança dos animais estilizados, desejando que se derretessem. E aquele outro saquinho?

Que turbilhão de reconsiderações sobre cada instante e cada impulso, sobre a natureza do sujeito que ele nunca mais desejava ver e o fato de que ele, Beard, se havia comportado como... como um louco varrido! Havia se comportado tão mal que, por alguns momentos, teve um sentimento de libertação, estranhamente parecido com a alegria. Não havia como se desculpar, não tinha como se defender. Também teve uma vontade desconsolada de rir. O erro era tão patente, tão imaculado, ele se revelava tão completamente diante de si próprio como um perfeito idiota, que se sentiu purificado e redimido, como um penitente, como um flagelado medieval em êxtase ao se dar conta de que suas costas estavam outra vez em carne viva.

Aquele pobre sujeito cuja comida e bebida você havia devorado, que lhe ofereceu os últimos pedaços, que pôs sua bagagem no chão, era um amigo da humanidade. Não, não, não era para fazer aquilo agora, a agonia da retrospecção precisava ser adiada. Embora precisasse correr para o local de seu compromisso, Beard permaneceu por um bom tempo na plataforma, sob o distante teto de vidro e em meio aos entrechoques ecoantes da gare, enquanto os passageiros o contornavam e ele apertava o saquinho de batatas contra o peito, se sentindo, sem nenhuma boa razão, intensamente iluminado.



(Solar; tradução de Jorio Dauster)



(Ilustração: Kestutis Kasparavicius - the honest thief - illustration for book by Dostoevsky)


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