segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

CÂNTICO DOS CÂNTAROS, de Catarina Nunes de Almeida

 





Voltando um pouco atrás

à costura das fotografias

àquela escuridão pulmonar onde te vi

pela primeira vez onde eras

mais que certo quase cavalo

quase branco

a galope nos meus dentes.

Fotografias do tempo em que chamavas

árvore de rapina ao instrumento

que te educava os dedos.

Um dedilhar de amigo

à beira do vinhal.

Um encantar de amigo.



Se te deixasse ficar à sombra

haveria ainda as linhas da tua mão

tão irregulares tão imponderáveis

como a chuva nas boas noites.

Haveria ainda o perfume das grainhas

na primeira curva da manhã.

Era no tempo das fotografias.

Agora, dizes tu, há o orvalho dos murtais

um cesto silencioso e humano.



Nunca saberás que isso a que chamas

silêncio orvalho

eu chamo música

e toco-a.



(Bailias, 2011)





(Ilustração: escultura de Camille Claudel - a tocadora de flauta-1905)


sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O CEMITÉRIO DOS LIVROS ESQUECIDOS, de Carlos Ruiz Zafón

 


Ainda me lembro daquele amanhecer em que o meu pai me levou pela primeira vez a visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Desfiavam-se os primeiros dias do Verão de 1945 e caminhávamos pelas ruas de uma Barcelona apanhada sob céus de cinza e um sol de vapor que se derramava sobre a Rambla de Santa Mónica numa grinalda de cobre líquido.

– Não podes contar a ninguém aquilo que vais ver hoje,Daniel - advertiu o meu pai. – Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.

– Nem sequer à mamã? – inquiri eu, a meia-voz. O meu pai suspirou, amparado naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.

– Claro que sim – respondeu, cabisbaixo. – Para ela não temos segredos. A ela podes contar tudo.

Pouco depois da guerra civil, um surto de cólera tinha levado a minha mãe. Enterráramo-la em Montjuic no dia do meu quarto aniversário. Só me lembro de que choveu todo o dia e toda a noite e que quando perguntei ao meu pai se o céu chorava lhe faltou a voz para me responder. Seis anos depois, a ausência da minha mãe era para mim ainda uma miragem, um silêncio gritante que até então não tinha aprendido a emudecer com palavras. O meu pai e eu vivíamos num pequeno andar da Rua Santa Ana, junto da praça da igreja. O andar ficava situado mesmo por cima da livraria especializada em edições de coleccionador e livros usados herdada do meu avô, um bazar encantado que o meu pai contava que um dia passasse para as minhas mãos. Criei-me entre livros, fazendo amigos invisíveis em páginas que se desfaziam em pó e cujo cheiro ainda conservo nas mãos. Em criança aprendi a conciliar o sono enquanto explicava à minha mãe na penumbra do meu quarto as incidências da jornada, as minhas andanças no colégio, o que tinha aprendido nesse dia... Não podia ouvir a sua voz ou sentir o seu contacto, mas a sua luz e o seu calor ardiam em cada recanto daquela casa e eu, com a fé dos que ainda podem contar os seus anos pelos dedos das mãos, acreditava que, se fechasse os olhos e falasse com ela, ela me poderia ouvir de onde estivesse. Às vezes, o meu pai ouvia-me da sala de jantar e chorava às escondidas.

Lembro-me de que naquele alvorecer de Junho acordei a gritar. O coração batia-me no peito como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr pelas escadas abaixo. O meu pai acorreu alvoroçado ao meu quarto e tomou-me nos braços, tentando acalmar-me.

– Não consigo lembrar-me da cara dela. Não consigo lembrar-me da cara da mamã – murmurei ofegante.

O meu pai abraçou-me com força.

– Não te preocupes, Daniel. Eu lembrar-me-ei pelos dois.

Olhámo-nos na penumbra, procurando palavras que não existiam. Foi a primeira vez que me apercebi de que o meu pai envelhecia e de que os seus olhos, olhos de névoa e de perda, olhavam sempre para trás. Pôs-se de pé e abriu as cortinas para deixar entrar a tíbia luz do alvorecer.

– Anda, Daniel, veste-te. Quero mostrar-te uma coisa – disse ele.

– Agora? Às cinco da manhã?

– Há coisas que só se podem ver no meio das trevas– insinuou o meu pai brandindo um sorriso enigmático que provavelmente tinha tomado de empréstimo de algum volume de Alexandre Dumas.

As ruas ainda languesciam entre neblinas e guardas-nocturnos quando chegámos à porta da rua. Os candeeiros das Ramblas desenhavam uma avenida de vapor, pestanejando ao mesmo tempo que a cidade se espreguiçava e se desfazia do seu disfarce de aguarela. Ao chegar à Rua Arco del Teatro aventurámo-nos rumo ao Raval sob a arcada que prometia uma abóbada de bruma azul. Segui o meu pai através daquele caminho estreito, mais cicatriz que rua, até que o relume das Ramblas se perdeu atrás de nós. A claridade do amanhecer filtrava-se das varandas e cornijas em sopros de luz enviesada que não chegavam a roçar o solo.

Finalmente, o meu pai deteve-se defronte de um portão de madeira trabalhada enegrecido pelo tempo e pela humidade. Diante de nós erguia-se o que me pareceu o cadáver abandonado de um palácio, ou um museu de ecos e sombras.

– Daniel, não podes contar a ninguém o que vais ver hoje. Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.

Um homenzinho com traços de ave de rapina e cabeleira prateada abriu-nos a porta. O seu olhar aquilino poisou em mim, impenetrável.

– Bom dia, Isaac. Este é o meu filho Daniel – anunciou o meu pai. - Está quase a fazer onze anos, e um dia ficará ele a tomar conta da loja. Já tem idade para conhecer este lugar.

O tal Isaac convidou-nos a entrar com um leve gesto de assentimento.

Uma penumbra azulada cobria tudo, insinuando apenas traços de uma escadaria de mármore e uma galeria de frescos povoados de figuras de anjos e criaturas fabulosas. Seguimos o guardião através daquele corredor palaciano e chegámos a uma grande sala circular onde uma autêntica basílica de trevas jazia sob uma cúpula retalhada por feixes de luz que pendiam lá do alto. Um labirinto de corredores e estantes repletas de livros subia da base até à cúspide, desenhando uma colmeia tecida de túneis, escadarias, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma gigantesca biblioteca de geometria impossível. Olhei para o meu pai, boquiaberto. Ele sorriu-me, piscando-me o olho.

– Bem-vindo ao Cemitério dos Livros Esquecidos, Daniel.

Salpicando os corredores e plataformas da biblioteca perfilava-se uma dúzia de figuras. Algumas delas voltaram-se para cumprimentar de longe, e reconheci os rostos de diversos colegas do meu pai do grémio de alfarrabistas. Aos meus olhos de dez anos, aqueles indivíduos afiguravam-se uma confraria secreta de alquimistas a conspirar nas costas do mundo. O meu pai ajoelhou-se ao pé de mim e, sustendo-me o olhar, falou-me com aquela voz leve das promessas e das confidências.

– Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte. Há já muitos anos, quando o meu pai me trouxe pela primeira vez aqui, este lugar já era velho. Talvez tão velho como a própria cidade. Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe, ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue aqui. Neste lugar, os livros de que já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo?

O meu olhar perdeu-se na imensidade daquele lugar, na sua luz encantada. Fiz um sinal de assentimento e o meu pai sorriu.

– E sabes o melhor? – perguntou.

Abanei a cabeça em silêncio.

– O costume é que a primeira vez que alguém visita este lugar tem de escolher um livro, aquele que preferir, e adoptá-lo, assegurando-se de que ele nunca desapareça, de que permaneça sempre vivo. É uma promessa muito importante. Para toda a vida – explicou o meu pai. – Hoje é a tua vez.

Pelo espaço de quase meia hora deambulei entre os meandros daquele labirinto que cheirava a papel velho, a pó e a magia. Deixei que a minha mão roçasse as avenidas de lombadas expostas, tentando a minha escolha. Avistei, entre os títulos sumidos pelo tempo, palavras em línguas que reconhecia e dezenas de outras que era incapaz de catalogar. Percorri corredores e galerias em espiral povoadas de centenas, milhares de volumes que pareciam saber mais acerca de mim do que eu deles. Daí a pouco, assaltou-me a ideia de que atrás da capa de um daqueles livros se abria um universo infinito por explorar e de que, para além daqueles muros, o mundo deixava passar a vida em tardes de futebol e folhetins radiofónicos, contentando-se em ver até onde alcança o seu umbigo e pouco mais. Talvez fosse aquele pensamento, talvez o acaso ou o seu parente de gala, o destino, mas naquele mesmo instante soube que já tinha escolhido o livro que ia adoptar. Ou talvez devesse dizer o livro que me ia adoptar a mim. Assomava timidamente no extremo de uma estante, encadernado a pele cor de vinho e sussurrando o seu título em letras douradas que ardiam à luz que a cúpula destilava lá do alto. Aproximei-me dele e acariciei as palavras com a ponta dos dedos, lendo em silêncio:

A Sombra do Vento

JULIÁN CARAX

Nunca tinha ouvido mencionar aquele título ou o seu autor, mas não me importou. A decisão estava tomada. Por ambas as partes. Peguei no livro com extremo cuidado e folheei-o, deixando esvoaçar as suas páginas. Libertado da sua cela na estante, o livro exalou uma nuvem de pó dourado. Satisfeito com a minha escolha, voltei pelo mesmo caminho ao longo do labirinto levando o meu livro debaixo do braço com um sorriso impresso nos lábios. Talvez a atmosfera feiticeira daquele lugar tivesse levado a melhor sobre mim, mas tive a certeza de que aquele livro tinha estado ali à minha espera durante anos, provavelmente desde antes de eu nascer.

Naquela tarde, de volta ao andar da Rua Santa Ana, refugiei-me no meu quarto e decidi ler as primeiras linhas do meu novo amigo. Antes que me apercebesse, tinha caído dentro dele sem remédio. O romance relatava a história de um homem em busca do seu verdadeiro pai, que nunca tinha chegado a conhecer e cuja existência só descobriria graças às últimas palavras que a mãe pronunciava no seu leito de morte. A história daquela busca transformava-se numa odisseia fantasmagórica na qual o protagonista lutava por recuperar uma infância e uma juventude perdidas, e na qual, lentamente, descobríamos a sombra de um amor maldito cuja lembrança o havia de perseguir até ao fim dos seus dias. À medida que avançava, a estrutura do relato começou a lembrar-me uma daquelas bonecas russas que contêm inumeráveis miniaturas de si mesmas no interior. Passo a passo, a narração decompunha-se em mil histórias, como se o relato tivesse penetrado numa galeria de espelhos e a sua identidade se cindisse em dúzias de reflexos diferentes e ao mesmo tempo um só. Os minutos e as horas deslizaram como uma miragem. Horas mais tarde, aprisionado pelo relato, mal dei pelas badaladas da meia-noite na catedral a repicar ao longe. Enterrado na luz de cobre que o candeeiro flexível projectava, mergulhei num mundo de imagens e sensações como nunca as tinha conhecido. Personagens que se me afiguraram tão reais como o ar que respirava arrastaram-me para um túnel de aventura e mistério do qual não queria escapar. Página a página, deixei-me envolver pelo sortilégio da história e pelo seu mundo até que o sopro do amanhecer acariciou a minha janela e os meus olhos cansados deslizaram pela última página. Deitei-me na penumbra azulada do alvorecer com o livro sobre o peito e escutei o rumor da cidade adormecida a gotejar sobre os telhados salpicados de púrpura. O sono e a fadiga batiam à minha porta, mas resisti a render-me. Não queria perder o feitiço da história nem dizer adeus ainda às suas personagens.

Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo – não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos -, vamos regressar.

Para mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos Livros Esquecidos.



(A sombra do vento; tradução de J. Teixeira de Aguilar)


(Ilustração: Thomas Eichmann - Clementium Library – Prague)


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

RESIGNAÇÃO, de Narcisa Amália de Campos

 






No silêncio das noites perfumosas,

Quando a vaga chorando beija a praia,

Aos trêmulos rutilos das estrelas,

Inclino a triste fronte que desmaia.

E vejo o perpassar das sombras castas

Dos delírios da leda mocidade;

Comprimo o coração despedaçado

Pela garra cruenta da saudade.

Como é doce a lembrança desse tempo

Em que o chão da existência era de flores,

Quando entoava o múrmur das esferas

A copla tentadora dos amores!

Eu voava feliz nos ínvios serros

Empós das borboletas matizadas...

Era tão pura a abóbada do elísio

Pendida sobre as veigas rociadas!...

Hoje escalda-me os lábios riso insano,

É febre o brilho ardente de meus olhos:

Minha voz só retumba em ai plangente,

Só juncam minha senda agros abrolhos.

Mas que importa esta dor que me acabrunha,

Que separa-me dos cânticos ruidosos,

Se nas asas gentis da poesia

Eleva-me a outros mundos mais formosos?!...

Do céu azul, da flor, da névoa errante,

De fantásticos seres, de perfumes,

Criou-me regiões cheias de encanto,

Que a luz doura de suaves lumes!

No silêncio das noites perfumosas

Quando a vaga chorando beija a praia,

Ela ensina-me a orar, tímida e crente,

Aquece-me a esperança que desmaia.

Oh! Bendita esta dor que me acabrunha,

Que separa-me dos cânticos ruidosos,

De longe vejo as turbas que deliram,

E perdem-se em desvios tortuosos!...



(Nebulosas; 1872)


(Ilustração: Christoffer Wilhelm Eckersberg- En sovende kvinde i antik dragt -1813)




sábado, 22 de janeiro de 2022

A POETISA DE RESENDE QUE ENCANTOU D. PEDRO II E OS INTELECTUAIS DA ÉPOCA, de Aurelio Paiva

 



Era uma sexta-feira chuvosa em Resende, no dia 16 de outubro de 1874, quando correu a notícia: um trem, com um vagão especial, acabara de chegar à estação da ferrovia. Dele desembarcara ninguém menos que o Imperador D. Pedro II, acompanhado de sua comitiva.

Foi um dia cheio de fatos inéditos. Primeiro, as carruagens de Sua Majestade e comitiva encalharam na atual Rua Albino de Almeida. As chuvas haviam transformado as ruas da cidade em um atoleiro.

Mas nada tirou nem o humor e nem a determinação do Imperador, que queria prestar uma homenagem, através da comenda da Ordem de Cristo, ao professor Joaquim Jacome de Oliveira Campos.

Quando se mudou para Resende em 1863, este professor, poeta e jornalista fundou dois colégios – um para meninos, dirigido por ele, e outro para meninas, dirigido por sua mulher Narcisa Ignácia Pereira de Mendonça, que era também professora. Eram figuras intelectuais respeitadíssimas.

O deslocamento imperial para uma homenagem fora da Corte já era algo incrível. Porém, algo mais inusitado aconteceu: o Imperador pediu para visitar a Loja Maçônica Lealdade e Luz, de Resende.

Embora filho de um Grão-Mestre da Maçonaria (D. Pedro I) e vivesse cercado por maçons, D. Pedro II não era maçom e jamais havia visitado, por iniciativa própria, nenhuma Loja Maçônica da Corte (onde ficava o grão-mestrado nacional, no Palácio do Lavradio) ou em nenhum outro local.

Na visita à Loja Maçônica de Resende mais um ineditismo deixou a Corte embasbacada. D. Pedro II deu à Loja um florete (tipo de sabre) da sua guarda pessoal. Era algo incomum. O florete normalmente era dado a uma pessoa, abrindo-lhe livre acesso à presença do Imperador. Doada à Loja, D. Pedro II franqueou este acesso a todos os maçons do local.

De todos os ineditismos daquela data em Resende, porém, nenhum foi tão marcante quanto a sua visita a uma padaria, onde ele foi para, em suas palavras, consumir o “pão espiritual”. Um pão que não era feito de trigo, mas de poesia. Um pão fabricado por uma jovem poetisa, filha do homenageado do dia, o professor Jacome.

Seu nome?

Narcisa Amália de Campos.

É sobre ela que vamos falar. E vamos descobrir por que o culto e intelectual Imperador Pedro II quis tanto conhecê-la.

A grande surpresa da visita foi justamente quando D. Pedro II, em dado momento, disse que queria conhecer e cumprimentar a poetisa Narcisa Amália, que havia se casado com um padeiro e trabalhava na padaria do casal.

Quando foi dito ao Imperador que ela morava na mesma padaria, e indicaram o local, D. Pedro II declarou:

– Não dilatemos a visita, vamos sem perda de tempo, porque enfim eu vou visitar a sublime padeira, por estar ansioso por lhe provar … do pão espiritual.

O cortejo foi feito com o imperador andando à frente, pisando na lama das ruas em atoleiro, seguido pelo seu séquito, até chegar à padaria da Rua da Misericórdia, onde a jovem Narcisa Amália, com roupa de casa, surpresa, recebeu o Imperador. Um tipo de atenção que normalmente só (e raramente) era dedicado à nobreza.

Aquela mulher que fabricava pães produzia poesias de uma intensidade e beleza raras.

No prefácio do livro de poesias intitulado “Nebulosas”, de autoria de Narcisa, o escritor Pessanha Póvoa assim escreveu: “Um livro que ilumina a grande noite da poesia brasileira. Quando houver um Conselho de Estado ou um Senado Literário, Narcisa Amália terá as honras de Princesa das Letras”.

Não precisou de um Conselho de Estado ou Senado Literário.

O próprio Imperador fez as honras à Princesa das Letras.

O mais incrível na visita é que Narcisa Amália admirava o Imperador, mas era reconhecidamente republicana. E sua produção intelectual não se resumia à poesia. Ela escrevia artigos para vários periódicos. Foi a primeira mulher jornalista profissional do país. Seus textos eram implacáveis na defesa dos direitos das mulheres e pela causa da abolição da escravatura, além da defesa da República.

Sua genialidade na poesia e na prosa surpreenderam o país.

Virou um sucesso.

José do Patrocínio escreveu o poema “À Narcisa Amália”, em homenagem a ela.

Fagundes Varela dedicou-lhe a poesia “Tributo de Admiração – O Gênio e a Beleza”.

Raimundo Correia fez em sua dedicação o “Poema da Noite”.

Narcisa Amália prefaciou o livro “Flores do Campo”, do escritor, também de Resende, Ezequiel Freire. Foi quando Machado de Assis, na Revista Brasileira de 1879, elogiou o livro de Ezequiel Freire, dando destaque ao prefácio de Narcisa.

Disse Machado de Assis:

– As “Flores do Campo”, volume de versos dado em 1874, tiveram a boa fortuna de trazer um prefácio devido à pena delicada e fina de D. Narcisa Amália, essa jovem e bela poetisa, que há anos aguçou a nossa curiosidade com um livro de versos, e recolheu-se depois à turris eburnea da vida doméstica. Resende é a pátria de ambos; além dessa afinidade, temos a da poesia, que em suas partes mais íntimas e do coração, é a mesma.

Embora nascida em São João da Barra, em 3 de abril de 1856, Narcisa foi para Resende aos 11 anos e se considerava resendense. Sua “pátria”, como acentuou Machado.

Pátria, claro, no sentido figurado. Pois a verdadeira pátria de Narcisa era, no sentido literal, o Brasil. Este era o seu campo de batalha na luta contra todo tipo de opressão – em especial a opressão contra as mulheres e os escravos.

Casada pela primeira vez aos 14 anos, separou-se pouco tempo depois e casou-se, aos 28 anos, com Francisco Cleto da Rocha, da Padaria Famílias, em Resende. Sete anos depois separou-se. O padeiro ficou furioso.

Sua independência como mulher e sua luta (até então inédita no Brasil, vindo de uma mulher) por direitos liberais acabaram lhe custando uma campanha de calúnias.

Seu talento e sucesso despertaram inveja e ódio.

O historiador Júlio Cesar Fidelis Soares fez um excelente levantamento do que ocorreu no período:

– O sucesso de Narcisa passou a incomodar o marido que, depois de separado, passou a difamar Narcisa declarando que seus versos não eram de sua autoria, mas escritos por poetas com quem teria tido casos de amor. O escritor Múcio Teixeira fez coro à campanha contra Narcisa declarando que o livro “Nebulosas” tinha sido escrito por um homem com pseudônimo de mulher.

Desgostosa, a poetisa desabafa em um de seus versos:

“Meu nome atirei às ventanias….”

Fora as falsas acusações, era atacada por sua própria condição de mulher. Em dezembro de 1872, C. Ferreira, no jornal Correio do Brasil, elogia a poesia de Narcisa, mas ataca seu envolvimento com as causas libertárias. Diz que acha “fora de lugar” que a poetisa fique “cantando revoluções, apostrofando o rei, endeusando as turbas” e acrescenta:

– O melhor é deixar (o talento da ilustre dama) na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza.

Mais ásperos, outros críticos sugeriam que ela voltasse “aos cestos de costura”. O crítico Sílvio Homero chegou a dizer que textos de cunho social são “indignos de ocupar as páginas de um livro de mulher”.

Narcisa desabafou em poesia:

“Quando tento liberar-me no espaço/ As rajadas em tétrico abraço/ Me arremessam a frase – Mulher!”

Os boatos de que não seria autora dos textos do livro “Nebulosas” foram facilmente derrubados pelo depoimento de várias testemunhas, incluindo o jornalista Alfredo Sodré, que declarou tê-la visto escrevendo vários dos poemas.

Mas no fim Narcisa Amália não conseguiu vencer os preconceitos contra os quais bravamente lutara.

A princípio se considerava uma mulher forte (e era), como escrevera, no prefácio a Ezequiel Freire:

O horror da vida, deslumbrada, esqueço!

É que há dentro vales, céus, alturas,

Que o olhar do mundo não macula, a terna

Lua, flores, queridas criaturas,

E soa em cada moita, em cada gruta,

A sinfonia da paixão eterna!…

– E eis-me de novo forte para a luta.

Mas sucumbiu.

Cansada das difamações em Resende, em 1889, com apenas 33 anos, foi para um exílio voluntário em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Sua chama se apagara. Foi lecionar em uma escola pública. Abandonou toda atividade literária.

Sumiu. Acharam até que tinha morrido.

Narcisa Amália dizia que se consagrava à independência e ao feminino, à liberdade educacional e artística da mulher. Mas, com sua impecável inteligência, sabia da resistência que encontraria uma mulher livre, culta e educada como ela própria o era. Esta condição causava terror em muitos homens, como Narcisa escreveu, em 1882:

– A educação da mulher! Mas tem a mulher por acaso necessidade de ser educada? Para quê? Cautela! A mulher representa o gênio do mal sob uma forma mais ou menos graciosa e cultivar a sua inteligência seria fornecer-lhe novas armas para o mal. Procuremos antes torná-la inofensiva por meio da ignorância. Guerra, pois, à inteligência feminil!

Pois… abriram guerra contra ela.

Mataram sua vivacidade e enterram em seu próprio corpo, obrigando-a carregar o cadáver da sua inspiração até sua morte física.

O que abateu Narcisa não foi a tristeza em si. Foi a impotência diante do mal. Com a tristeza ela sempre convivera muito bem. E da própria tristeza tirava sua inspiração, conforme escreveu:

Meu anjo inspirador não tem nas faces;

Nem tem nos lábios as canções vivaces

Da cabocla pagã!

Não lhe pesa na fronte deslumbrante

Coroa de esplendor e maravilhas,

Nem rouba ao nevoeiro flutuante

As nítidas mantilhas.



Meu anjo inspirador é frio e triste

Como o sol que enrubesce o céu polar!

Trai-lhe o semblante pálido — do antiste

O acerbo meditar!



Traz na cabeça estema de saudades,

Tem no lânguido olhar a morbideza;

Veste a clâmide eril das tempestades,

E chama-se — Tristeza!…

Narcisa morreria em 24 de julho de 1924, aos 72 anos, na residência de um casal de amigos em Rio Comprido.

Com diabetes, a Princesa das Letras – cujo título lhe fora cassado pela inveja – morreu paralítica e cega.

E esquecida.

Mas a Narcisa que morreu derrotada renasce atualmente. Trabalhos e livros de escritoras e historiadoras como Mary del Priori, Heloisa Buarque de Hollanda e Lúcia Nascimento Araújo começam a colocá-la no patamar dos seus méritos.

Ela dá nome a uma escola municipal na Ilha de Guaratiba, no Rio de Janeiro, onde seu nome é cultuado pelos alunos e ex-alunos.

E dá nome a uma rua em Resende.

É pouco, muito pouco para o que foi Narcisa Amália.

Mas a força e a beleza de seus versos, como nos poucos exemplos aqui colocados, não têm como ficar sepultadas pela eternidade.

Mais cedo ou mais tarde sua poesia romperá o esquife em que aprisionaram sua história. Como este renascimento será inevitável, não há por que chorar o esquecimento.

As lágrimas são para os poemas que ela não produziu e os libelos que não escreveu quando, no auge da sua poesia, bárbaros demônios lhe roubaram a alma.



(Diário do Vale; Resende – 8.11.2015)



(Ilustração: Narcisa Amália de Campos)


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

GATO, de Alexandre O’Neill

 





Que fazes por aqui, ó gato?

Que ambiguidade vens explorar?

Senhor de ti, avanças, cauto,

meio agastado e sempre a disfarçar

o que afinal não tens e eu te empresto,

ó gato, pesadelo lento e lesto,

fofo no pelo, frio no olhar!



De que obscura força és a morada?

Qual o crime de que foste testemunha?

Que deus te deu a repentina unha

que rubrica esta mão, aquela cara?

Gato, cúmplice de um medo

ainda sem palavras, sem enredos,

quem somos nós, teus donos ou teus servos?



(Poesias completas)



(Ilustração: Fernando Botero - Niña con gato)



domingo, 16 de janeiro de 2022

ALEXANDRE, O GATO E O ADEUS, de José Jorge Letria

 





(Há miar e miar, há ir e voltar)



O gato, vendo o poeta de ombro apoiado na ombreira a observar a feira cabisbaixa em seu redor, acercou-se dele e perguntou-lhe, no murmúrio ronronado que costuma servir de preâmbulo às grandes questões metafísicas:

— Servos ou donos?

O poeta, por achar a pergunta demasiado enigmática, contornou a resposta afagando-lhe o dorso e dizendo:

— Deves estar cheio de fome, o teu mal é fome, e eu não tenho forma de remediar esse problema, porque não sou rato, nem peixe, nem pássaro estonteado pela luz. Eu sou apenas um pobre poeta de ombro na ombreira.

Mas o gato, apurando o gutural e afectuoso rom-rom, insistiu:

— Sei bem ao que venho, sim, porque eu nunca me esqueço dos versos que me são dedicados. Eu bem me lembro das tuas palavras, Alexandre: Que fazes por aqui, ó gato? / Que ambiguidade vens explorar? Quem sou eu, meu caro Alexandre, para te deixar sem resposta, logo a ti, meu poeta de Lisboa, de coração amarfanhado pela tenaz da mais irónica ternura?

Foi então que Alexandre se lembrou do gato do poema, dessa coisa ágil e esquiva, soberana e livre, em forma de assim, fugaz como um golpe de vento, rebelde como uma metáfora imprevista.

— Tantas vezes te deixei utilizar esta mão — disse — que cheguei a acreditar que, quando escrevesse um poema sobre ti, serias tu mesmo a escrevê-lo, de forma mediúnica, usando o movimento pausado da minha mão sobre o papel.

O gato, esse mesmo, o do poema, roçou a cabeça pelas pernas do poeta, impregnando-se com o seu cheiro, com o perfume das suas palavras exactas e limpas, e depois aventurou-se num breve monólogo de bicho filosofante. Assim:

— É como te digo, Alexandre, tu e eu temos em comum este vício felino de sermos livres, nas palavras, nos gestos, nos silêncios. Um dia, tu partes e eu fico para aqui abandonado a miar à lua, como se perguntasse por ti. Um dia, eu parto e tu ficas sem gato a quem possas dedicar o poema, órfão de gato, nostálgico da sua arqueada liberdade arrastada sobre os telhados como uma confissão de nocturnos cios.

O poeta, emocionado com a enleante sabedoria do gato, esse mesmo, o do poema, só conseguiu perguntar-lhe:

— Afinal, vamos lá a saber, o poeta és tu ou sou eu?

Ao que o gato respondeu:

— Somos os dois, Alexandre, somos os dois, cada um à sua maneira. Tu no que escreves e eu no que não escrevo mas vivo. Temos este destino comum a ligar-nos como uma ponte, como uma centelha de luz, como um arame a juntar as duas extremidades da lua nova.

Alexandre, o poeta, só encontrou uma forma de lhe responder:

— Há miar e miar, há ir e voltar.

Ainda a frase não se deixara concluir e já o gato se empoleirara sobre o parapeito de uma janela, muito perto da ombreira da porta, posto de observação do poeta para ver a feira a ficar cada vez mais cabisbaixa, por falta de esperança para erguer de vez a cabeça em direcção ao sol.

Do gato nunca mais o poeta teve notícias, nem em prosa nem em verso, e quando, num sisudo dia 21 de Abril, o coração do poeta, como um gato triste e cansado, se recusou a levar por diante a faina de estar vivo, houve quem avistasse um velho gatarrão sobre o parapeito da janela do hospital, murmurando com a sapiência do seu estilo ronronado:

— Há miar e miar, e tu, Alexandre, hás-de voltar, porque um gato sem o seu poeta de estimação fica prometido à morte como um pardal à inclemência do relâmpago.

E quando alguém, aproximando-se dele, quis saber “o que fazes por aqui, ó gato?", o bichano, arqueando-se para o derradeiro salto na direcção da lua, respondeu apenas:

— Perguntem ao Alexandre, ao O’Neill, que só ele sabe. Os poetas é que sabem. É dos livros.



(Amados gatos)



(Ilustração: Fernando Botero - cat on a roof)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

TODOS / TODOS, Roque Dalton García

   

 




Todos nacimos medio muertos en 1932

sobrevivimos pero medio vivos

cada uno con una cuenta de treinta mil muertos enteros

que se puso a engordar sus intereses

sus réditos

y que hoy alcanza para untar de muerte a los que siguen

……………..naciendo

medio muertos

medio vivos



Todos nacimos medio muertos en 1932



Ser salvadoreño es ser medio muerto

eso que se mueve

es la mitad de la vida que nos dejaron



Y como todos somos medio muertos

los asesinos presumen no solamente de estar totalmente

………………vivos

sino también de ser inmortales



Pero ellos también están medio muertos

y sólo vivos a medias



Unámonos medio muertos que somos la patria

para hijos suyos podernos llamar

en nombre de los asesinados

unámonos contra los asesinos de todos

contra los asesinos de los muertos y los mediomuertos.



Todos juntos

tenemos más muerte que aquellos

pero todos juntos

tenemos más vida que ellos



La todopoderosa unión de nuestras medias vidas

de las medias vidas de todos los que nacimos medio

…………………….muertos

en 1932



Tradução de Ernesto von Artixzffski:



Todos nascemos meio mortos em 1932

sobrevivemos porém meio vivos

cada um com uma soma de trinta mil mortos inteiros

que se pôs a engordar seus interesses

seus lucros

e que hoje alcança para ungir de morte os que seguem

……………………nascendo

meio mortos

meio vivos



Todos nascemos meio mortos em 1932



Ser salvadorenho é ser meio morto

isso que se move

é a metade da vida que nos deixaram



E como somos todos meio mortos

os assassinos presumem não somente estarem totalmente

……………………vivos

como também serem imortais



Mas eles também estão meio mortos

e apenas vivos às meias



Unamo-nos meio mortos que somos a pátria

para de filhos seu poder nos chamar

em nome dos assassinados

unamo-nos contra os assassinos de todos

contra os assassinos dos mortos e dos meio

.............................. mortos

em 1932



todos juntos

temos mais morte que aqueles

porém todos juntos

temos mais vida que eles



A toda poderosa união de nossas meias vidas

das meias vidas de todos que nascemos meio

………………..mortos

em 1932



(Las historias prohibidas del Pulgarcito – 1974 /As histórias proibidas do pequeno polegar)



(Ilustração: Antonio Bonilla, El Salvador: procesión funeral)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

UMA GUEIXA APRENDIZ DE QUINZE ANOS, NUA E ASSUSTADA, de Arthur Golen


      

Por fim me descobri sozinha no átrio de entrada à luz desvanecente da tardinha. Tomei a liberdade de me ir ajoelhar na sala de tatami próxima, onde fiquei a olhar para os campos através de uma janela com vidros.

Dez ou quinze minutos passaram; por fim o Barão entrou no átrio com grandes passadas. Senti-me a ficar agoniada com preocupação no momento em que o vi, porque não usava nada mais do que um robe de algodão. Tinha uma toalha numa das mãos, que esfregava de encontro aos longos pelos pretos na sua cara que era suposto serem uma barba. Claramente, tinha acabado de sair do banho. Levantei-me e fiz-lhe uma vénia.

- Sayuri, sabes que tonto sou! - disse-me. - Bebi demais. - Esta parte era decerto verdade. Esqueci-me de que estavas à minha espera! Espero que me perdoes quando vires o que guardei para ti.

O Barão foi pelo átrio fora para o interior da casa, contando que eu o seguisse. Mas eu fiquei onde estava, pensando no que Mameha me tinha dito, que uma aprendiza a ponto de ter a sua mizuage era como um prato servido numa mesa.

O Barão parou.

- Vem comigo! - disse-me ele.

- Oh, Barão. Na verdade não devo. Permita-me que espere aqui.

- Tenho uma coisa que gostava de te dar. Vem até aos meus aposentos e sentas-te lá um minuto, e não sejas uma rapariga tonta!

- Mas, Barão - respondi -, não posso deixar de ser uma rapariga tonta, porque é isso que eu sou!

- Amanhã regressas aos olhos observadores de Mameha, eh? Mas aqui não tens ninguém para te vigiar.

Se eu tivesse tido o mínimo bom senso naquele momento, teria agradecido ao Barão por me ter convidado para a sua bela festa e ter-lhe-ia dito como lamentava ter que me tornar pesada por lhe pedir o uso do carro para me levar de regresso à estalagem. Mas tudo tinha uma tal qualidade de sonho... Acho que tinha entrado em estado de choque. Tudo o que sabia ao certo era o medo que sentia.

- Vem comigo enquanto me visto - disse o Barão. - Bebeste muito saqué esta tarde?

Passou um longo momento. Eu estava muito consciente de que a minha cara se sentia como se não tivesse qualquer expressão, mas me estivesse apenas pendurada na cabeça.

- Não, senhor - consegui dizer por fim.

- Calculei que não beberias. Vou dar-te tanto quanto quiseres. Anda daí.

- Barão - disse eu -, por favor, estão à minha espera na estalagem.

- À tua espera? Quem é que está à tua espera?

Não respondi a isto.

- Já perguntei, quem está à tua espera? Não sei porque é que tens de te comportar desta maneira. Tenho uma coisa para te dar. Preferes que eu ta vá buscar e traga aqui?

- Lamento muito - disse eu.

O Barão ficou especado a olhar para mim.

- Espera aqui - disse por fim, e foi a andar até ao interior da casa. Um curto momento depois emergiu trazendo uma coisa chata, embrulhada em papel de linho. Não tive de olhar de perto para perceber que era um quimono.

- Vá, toma - disse-me - dado que insistes em ser uma rapariga tonta, eu fui buscar o teu presente. Sentes-te melhor assim?

Disse ao Barão mais uma vez que lamentava muito.

- Vi quanto admiraste este vestido no outro dia. Gostaria que o tivesses - disse ele.

O Barão colocou o embrulho em cima da mesa e desatou os fios para o abrir. Pensei que o quimono seria o que mostrava a paisagem de Kobe; e para dizer a verdade, sentia-me tão preocupada quanto esperançosa, porque não fazia ideia do que faria com uma coisa tão magnífica, ou como iria explicar a Mameha que o Barão mo tinha dado. Mas o que vi em vez dele, quando o Barão abriu o embrulho, foi um magnífico tecido escuro com fios lacados e bordado em prata. Ele pegou no vestido e ergueu-o pelos ombros. Era um quimono que pertencia a um museu - feito por volta de 1860, como me disse o Barão, para a sobrinha do último Shogun, Tokugawa Yoshinobu. O padrão do vestido era de pássaros de prata a voar contra um céu nocturno, com uma paisagem misteriosa de árvores escuras e pedras a erguerem-se da bainha.

- Tens que vir comigo e experimentá-lo - disse-me. - Vá, agora não sejas uma rapariga tonta! Tenho muita experiência em atar o obi com as minhas próprias mãos. Ponho-te de volta no teu quimono de maneira que ninguém dê por nada.

Teria alegremente trocado o vestido que o Barão me estava a oferecer por alguma maneira de me escapulir daquela situação. Mas ele era um homem com tanta autoridade que nem mesmo Mameha lhe podia desobedecer. Se ela não tinha maneira para lhe recusar os seus desejos, como poderia eu fazê-lo? Podia sentir que ele estava a perder a paciência; os Céus sabem que ele tinha sido bondoso nos meses antes da minha iniciação, permitindo-me que o servisse enquanto almoçava e permitindo que Mameha me levasse à festa na sua propriedade de Quioto. E aqui estava ele sendo mais uma vez bondoso, oferecendo-me um quimono extraordinário.

Calculo que por fim cheguei à conclusão de que não tinha alternativa senão obedecer-lhe e pagar as consequências, quaisquer que elas fossem. Baixei os olhos para os tapetes com vergonha; e neste estado de vergonha e meio de sonho em que me tinha andado a sentir até ali, tomei consciência de o Barão me ter pegado na mão e guiado pelos corredores até aos fundos da casa. Um criado entrou no átrio a dado momento, mas fez uma vénia e recuou no instante em que nos viu. O Barão não disse uma palavra, mas foi-me conduzindo até que chegámos a uma espaçosa sala de tatami, com uma parede forrada de espelhos. Era a sua sala de vestir. Ao longo da parede oposta, havia armários com as portas todas fechadas.

As mãos tremiam-me de medo, mas se o Barão deu por isso não fez comentários. Ficou diante de mim em frente aos espelhos e levantou a minha mão até aos lábios dele; pensei que a ia beijar, mas limitou-se a segurar-me as costas das mãos de encontro às cerdas da sua cara e fez uma coisa que achei estranha; ergueu-me a manga acima do pulso e inspirou o cheiro da minha pele. A barba dele fez-me cócegas no braço, mas de alguma maneira não o sentia. Parecia que não estava a sentir coisa alguma; era como se estivesse enterrada debaixo de camadas de medo, e confusão, e terror... E então o Barão acordou-me do meu estado de choque passando para trás de mim e esticando os braços à volta do meu peito para desatar o meu obijime. Isto era o cordão que segurava o meu obi no lugar.

Experimentei um momento de pânico, agora que sabia que o Barão tencionava mesmo despir-me. Tentei dizer qualquer coisa, mas a minha boca moveu-se de uma maneira tão desastrada que não a conseguia controlar; e de qualquer maneira, o Barão apenas fazia barulhos para me sossegar. Continuei a tentar impedi-lo com as mãos, mas ele empurrou-mas e por fim conseguiu retirar-me o obijime. Depois disto deu um passo atrás e lutou durante um grande bocado de tempo com o nó do obi entre as minhas espáduas. Eu implorava-lhe para não mo tirar - embora a minha garganta estivesse tão seca que das várias vezes em que tentei falar não saía nada - mas ele não me ouvia e em breve começou a desatar o longo obi, enrolando e desenrolando os braços à volta da minha cintura. Vi o lenço do Director desalojar-se do tecido e flutuar até ao chão. Num instante o Barão deixou o obi cair numa pilha sobre o solo, e depois desatou-me o datejime - o cinto por baixo dele. Senti a sensação agoniante do quimono se me soltar de volta da cintura. Tentei mantê-lo fechado com os braços, mas o Barão afastou-mos. Eu já não suportava mais olhar para o espelho. A última coisa de que me recordo antes de fechar os olhos foi o pesado vestido ser erguido de cima dos meus ombros com um roçagar de tecido.

O Barão parecia ter terminado o que se propusera fazer; ou, pelo menos, não avançou mais por uns momentos. Senti-lhe as mãos na cintura, a acariciar-me o tecido da combinação. Quando por fim abri os olhos de novo, ainda estava atrás de mim, inspirando o perfume do meu cabelo e do meu pescoço. Tinha os olhos fixos no espelho - fixos, parecia-me, no cinto que me mantinha a combinação fechada. De cada vez que os dedos dele se moviam, eu tentava com o poder da minha mente mantê-los afastados, mas logo de seguida recomeçavam a rastejar como aranhas através do meu umbigo, e momentos depois tinham-se embaraçado no cinto e começado a puxar. Tentei obrigá-lo a parar várias vezes, mas o Barão afastava-me as mãos como tinha feito antes. Por fim o cinto desatou-se; o Barão deixou-o escorregar dos dedos até cair no chão. Eu tinha as pernas a tremer, e a sala não me parecia mais do que um borrão no momento em que ele pegou nas bainhas da minha combinação e começou a abri-la. Não consegui impedir-me de lhe agarrar nas mãos mais uma vez.

- Não estejas tão preocupada, Sayuri! - sussurrou-me o Barão. - Por amor de Deus, não te vou fazer nada que não devesse. Só quero olhar-te, não compreendes? Não há nada de mal nisso. Qualquer homem faria o mesmo.

Uma cerda brilhante da cara dele fez-me cócegas na orelha enquanto me dizia isto, pelo que tive que virar a cara para um dos lados. Penso que o deve ter interpretado como uma espécie de consentimento, porque agora as mãos dele começaram a mover-se com maior urgência. Ele abriu-me a roupa. Eu senti-lhe os dedos nas minhas costelas, quase a fazerem-me cócegas enquanto lutava para desatar as fitas que me mantinham a combinação fechada. Um instante depois tinha-o conseguido. Eu não conseguia suportar o pensamento do que o Barão poderia estar a ver; de modo que, apesar de ter a cara virada, forcei os olhos a espreitarem para o espelho. A minha combinação estava aberta, expondo uma longa tira de pele pelo centro do meu peito abaixo.

Entretanto, as mãos do Barão tinham-se mudado para as minhas ancas, onde se atarefavam no meu koshimaki. No princípio daquele dia, quando tinha enrolado o koshimaki várias vezes em torno de mim, tinha-o apertado mais à cintura do que provavelmente seria preciso. O Barão estava a ter problemas para descobrir a bainha, mas depois de vários puxões libertou o tecido, de maneira que com um esticão longo conseguiu retirá-lo a todo o comprimento de debaixo da minha combinação. Enquanto a seda me deslizava sobre a pele, ouvi um barulho a sair-me da garganta, uma coisa parecida com um soluço. As minhas mãos tentaram agarrar o koshimaki, mas o Barão retirou-o do meu alcance e deitou-o para o chão. Depois, tão lentamente como um homem poderia destapar uma criança adormecida, abriu-me a combinação num gesto lento e com a respiração suspensa, como se estivesse a descobrir qualquer coisa magnífica. Senti um ardor na garganta que me dizia que estava na eminência de chorar; mas não conseguia suportar o pensamento de que o Barão estivesse a ver a minha nudez e a ver-me chorar ao mesmo tempo. Aguentei as lágrimas nem sei como, mesmo à beira das pálpebras, e observei tão intensamente o espelho que por um grande bocado senti como se o tempo tivesse parado. Certamente que nunca me tinha visto assim tão completamente nua. Era verdade que ainda usava as meias abotoadas nos pés; mas sentia-me mais exposta agora com as bainhas do meu vestido assim abertas de par em par do que alguma vez me sentira mesmo numa casa de banhos quando completamente despida. Observei os olhos do Barão a deterem-se aqui e ali no meu reflexo no espelho. Primeiro ainda me abriu mais a roupa para me observar o contorno da cintura. Depois baixou os olhos para a escuridão que florescera em mim durante os anos desde que viera para Quioto. Os olhos ficaram-lhe ali um longo bocado; mas depois ergueram-se lentamente, passando por cima do meu estômago, ao longo das costelas, para os dois círculos cor de ameixa - primeiro de um lado, depois do outro. Depois o Barão retirou uma das mãos, de modo que a minha combinação pousou sobre mim num dos lados. O que ele fazia com essa mão, não posso dizer, mas não voltei a vê-Ia. A dada altura senti um momento de pânico quando vi um ombro nu sair-lhe do roupão. Não sei o que ele estava a fazer - e mesmo que provavelmente pudesse agora calcular com acuidade, prefiro nem sequer pensar nisso. Tudo o que sei é que me tornei muito consciente da respiração dele a aquecer-me o pescoço. Depois disso, não vi nada mais. O espelho tornou-se um borrão de prata; eu já não conseguia mais suster as lágrimas.

A dada altura a respiração do Barão acalmou outra vez. Eu tinha a pele quente e quase húmida de medo, de modo que quando me libertou a combinação por fim e a deixou cair, senti o sopro de ar contra o meu flanco quase como uma brisa. Em breve estava sozinha na sala; o Barão tinha saído sem eu sequer me aperceber disso. Agora que se tinha ido embora, apressei-me a vestir-me com tal desespero que enquanto me ajoelhava no chão para apanhar as minhas roupas, não parava de ver na minha mente a imagem de uma criança esfomeada a esgravatar para apanhar restos de comida.

Vesti-me a seguir o melhor que pude, com as mãos a tremer. Mas até que recebesse ajuda, não podia ir mais longe do que fechar a combinação e apertá-la com o cinto. Esperei diante do espelho, olhando com alguma preocupação para a maquilhagem esborratada na minha cara. Estava preparada para esperar ali uma hora inteira se fosse preciso. Mas apenas alguns minutos passaram antes que o Barão regressasse com o cinto do roupão bem apertado à volta da sua barriga gorducha. Ajudou-me a vestir o quimono sem uma palavra, e apertou-mo com o datejime tal como o Sr. Itchoda teria feito. Quando ele segurava já o meu grande e longo obi nos braços, medindo-o em laçadas enquanto se preparava para o atar em torno de mim, comecei a experimentar um sentimento terrível. A princípio não conseguia perceber o que era; mas fez o seu caminho até mim tal como uma nódoa é absorvida por um pano, e em breve percebi. Era o sentimento de que tinha feito uma coisa terrivelmente errada. Não queria chorar diante do Barão, mas não o podia evitar - e de qualquer maneira, ele não tinha olhado para mim nos olhos desde que regressara do quarto. Tentei imaginar que eu era apenas uma casa debaixo de chuva com a água a lavar a minha fachada. Mas o Barão deve ter visto, porque deixou a sala e regressou um momento depois com um lenço com o monograma dele bordado. Mandou que eu o guardasse, mas depois de o ter usado, deixei-lho ali em cima de uma mesa.

Em breve me conduziu até à frente da casa e foi-se embora sem dizer uma palavra. Logo a seguir veio um criado, trazendo o quimono antigo embrulhado de novo em papel de linho. Ofereceu-mo com uma vénia e depois acompanhou-me até ao automóvel do Barão. Chorei em silêncio no assento traseiro do carro o caminho todo até à estalagem, mas o condutor fingiu não dar por isso. Eu já não estava a chorar pelo que me tinha acontecido a mim. Tinha em mente uma coisa muito mais terrível nomeadamente, o que iria acontecer quando o Sr. Itchoda visse a minha maquilhagem esborratada, e depois me ajudasse a despir e visse o nó mal dado no meu obi, e depois abrisse o embrulho e visse o presente caríssimo que eu tinha recebido. Antes de sair do carro limpei a cara com o lenço do Director, mas pouco me adiantou. O Sr. Itchoda lançou-me uma olhadela e depois coçou o queixo como se tivesse compreendido tudo o que me acontecera. Enquanto estava a desatar-me o obi no quarto de cima, ele disse:

- O Barão despiu-te?

- Lamento muito - disse eu.

- Ele despiu-te e ficou a olhar para ti no espelho. Mas não gozou contigo. Ele não te tocou, nem se deitou em cima de ti, pois não?

-Não, senhor.

- Então está tudo bem. - disse o Sr. Itchoda, olhando em frente a direito. Nem mais uma palavra passou entre nós.

*

Não direi que as minhas emoções já se tinham acalmado no momento em que o comboio chegou à estação de Quioto na manhã seguinte. Apesar de tudo, quando se deixa cair uma pedra num lago, a água continua a tremer mesmo depois de a pedra ter tocado no fundo. Mas quando desci as escadas de madeira que nos faziam abandonar a plataforma, com o Sr. Itchoda um passo atrás de mim, tive um outro choque que por um momento me fez esquecer tudo o resto.

Ali num caixilho com um vidro estava o cartaz para as Danças da Velha Capital daquela época, e parei para lhe dar uma olhadela. Faltavam apenas duas semanas para o acontecimento. O cartaz tinha sido distribuído apenas no dia anterior, provavelmente enquanto eu andava a passear à volta da propriedade do Barão à espera de encontrar o Director. A dança tem um tema diferente todos os anos, tal como «Cores das Quatro Estações em Quioto», ou «Lugares Famosos dos Contos do Heike». Este ano o tema era «A Luz Brilhante do Sol da Manhã». O cartaz, que evidentemente era desenhado por Uchida Kosaburo - que tinha criado praticamente todos os cartazes desde 1919 - mostrava uma aprendiza de gueixa com um adorável quimono laranja e verde, de pé sobre uma ponte de madeira arqueada. Eu estava exausta depois da minha longa viagem e tinha dormido mal no comboio; por isso fiquei ali por um bocado diante do cartaz numa espécie de encantamento, a absorver os belos verdes e dourados do fundo antes de dar atenção à rapariga de quimono. Ela olhava directamente para a luz brilhante do Sol a nascer, e os olhos dela eram de um espantoso azul acinzentado. Tive que me agarrar ao corrimão para me segurar. Era eu a rapariga que Uchida tinha desenhado naquela ponte!

No caminho de regresso da Estação dos comboios, o Sr. Itchoda apontou-me todos os cartazes por que passámos, e até pediu ao condutor do riquexó para sair do caminho a fim de que pudéssemos ver uma parede cheia deles no velho edifício dos Armazéns Daimaru. Vendo-me a mim ali por toda a cidade, desta maneira, não era assim tão excitante como eu poderia imaginar; eu continuava a pensar na pobre rapariga ali do cartaz de pé diante de um espelho enquanto o obi dela era desatado por um homem mais velho. De qualquer maneira, esperava ouvir todo o tipo de cumprimentos no decurso dos dias seguintes, mas em breve iria aprender que uma honra como esta nunca chega sem o seu preço. A partir do momento em que Mameha conseguira que eu tivesse um papel nas danças sazonais, tinha ouvido um sem número de comentários desagradáveis a meu respeito. Depois do cartaz, as coisas só pioraram. Na manhã seguinte, por exemplo, uma jovem aprendiza que até fora amigável na semana anterior agora desviara a cara quando lhe fiz uma vénia para a cumprimentar.

Quanto a Mameha, fui visitá-la no apartamento dela, onde estava a convalescer, e descobri que se sentia tão orgulhosa como se tivesse sido ela própria a figura do cartaz. Decerto que não estava contente por eu ter feito a viagem até Hakone, mas parecia tão devotada ao meu êxito como sempre estranhamente, talvez ainda mais. Durante um momento fiquei preocupada que ela pudesse pensar que o meu encontro horrível com o Barão fosse uma espécie de traição a ela. Calculava que o Sr. Itchoda lhe devia ter contado tudo... mas se o fez, ela nunca levantou o assunto entre nós. E eu também não.



(Memórias de uma gueixa; tradução de Helena Barbas; edição portuguesa)



(Ilustração: James Doherty - geisha in orange kimono)