sábado, 22 de janeiro de 2022

A POETISA DE RESENDE QUE ENCANTOU D. PEDRO II E OS INTELECTUAIS DA ÉPOCA, de Aurelio Paiva

 



Era uma sexta-feira chuvosa em Resende, no dia 16 de outubro de 1874, quando correu a notícia: um trem, com um vagão especial, acabara de chegar à estação da ferrovia. Dele desembarcara ninguém menos que o Imperador D. Pedro II, acompanhado de sua comitiva.

Foi um dia cheio de fatos inéditos. Primeiro, as carruagens de Sua Majestade e comitiva encalharam na atual Rua Albino de Almeida. As chuvas haviam transformado as ruas da cidade em um atoleiro.

Mas nada tirou nem o humor e nem a determinação do Imperador, que queria prestar uma homenagem, através da comenda da Ordem de Cristo, ao professor Joaquim Jacome de Oliveira Campos.

Quando se mudou para Resende em 1863, este professor, poeta e jornalista fundou dois colégios – um para meninos, dirigido por ele, e outro para meninas, dirigido por sua mulher Narcisa Ignácia Pereira de Mendonça, que era também professora. Eram figuras intelectuais respeitadíssimas.

O deslocamento imperial para uma homenagem fora da Corte já era algo incrível. Porém, algo mais inusitado aconteceu: o Imperador pediu para visitar a Loja Maçônica Lealdade e Luz, de Resende.

Embora filho de um Grão-Mestre da Maçonaria (D. Pedro I) e vivesse cercado por maçons, D. Pedro II não era maçom e jamais havia visitado, por iniciativa própria, nenhuma Loja Maçônica da Corte (onde ficava o grão-mestrado nacional, no Palácio do Lavradio) ou em nenhum outro local.

Na visita à Loja Maçônica de Resende mais um ineditismo deixou a Corte embasbacada. D. Pedro II deu à Loja um florete (tipo de sabre) da sua guarda pessoal. Era algo incomum. O florete normalmente era dado a uma pessoa, abrindo-lhe livre acesso à presença do Imperador. Doada à Loja, D. Pedro II franqueou este acesso a todos os maçons do local.

De todos os ineditismos daquela data em Resende, porém, nenhum foi tão marcante quanto a sua visita a uma padaria, onde ele foi para, em suas palavras, consumir o “pão espiritual”. Um pão que não era feito de trigo, mas de poesia. Um pão fabricado por uma jovem poetisa, filha do homenageado do dia, o professor Jacome.

Seu nome?

Narcisa Amália de Campos.

É sobre ela que vamos falar. E vamos descobrir por que o culto e intelectual Imperador Pedro II quis tanto conhecê-la.

A grande surpresa da visita foi justamente quando D. Pedro II, em dado momento, disse que queria conhecer e cumprimentar a poetisa Narcisa Amália, que havia se casado com um padeiro e trabalhava na padaria do casal.

Quando foi dito ao Imperador que ela morava na mesma padaria, e indicaram o local, D. Pedro II declarou:

– Não dilatemos a visita, vamos sem perda de tempo, porque enfim eu vou visitar a sublime padeira, por estar ansioso por lhe provar … do pão espiritual.

O cortejo foi feito com o imperador andando à frente, pisando na lama das ruas em atoleiro, seguido pelo seu séquito, até chegar à padaria da Rua da Misericórdia, onde a jovem Narcisa Amália, com roupa de casa, surpresa, recebeu o Imperador. Um tipo de atenção que normalmente só (e raramente) era dedicado à nobreza.

Aquela mulher que fabricava pães produzia poesias de uma intensidade e beleza raras.

No prefácio do livro de poesias intitulado “Nebulosas”, de autoria de Narcisa, o escritor Pessanha Póvoa assim escreveu: “Um livro que ilumina a grande noite da poesia brasileira. Quando houver um Conselho de Estado ou um Senado Literário, Narcisa Amália terá as honras de Princesa das Letras”.

Não precisou de um Conselho de Estado ou Senado Literário.

O próprio Imperador fez as honras à Princesa das Letras.

O mais incrível na visita é que Narcisa Amália admirava o Imperador, mas era reconhecidamente republicana. E sua produção intelectual não se resumia à poesia. Ela escrevia artigos para vários periódicos. Foi a primeira mulher jornalista profissional do país. Seus textos eram implacáveis na defesa dos direitos das mulheres e pela causa da abolição da escravatura, além da defesa da República.

Sua genialidade na poesia e na prosa surpreenderam o país.

Virou um sucesso.

José do Patrocínio escreveu o poema “À Narcisa Amália”, em homenagem a ela.

Fagundes Varela dedicou-lhe a poesia “Tributo de Admiração – O Gênio e a Beleza”.

Raimundo Correia fez em sua dedicação o “Poema da Noite”.

Narcisa Amália prefaciou o livro “Flores do Campo”, do escritor, também de Resende, Ezequiel Freire. Foi quando Machado de Assis, na Revista Brasileira de 1879, elogiou o livro de Ezequiel Freire, dando destaque ao prefácio de Narcisa.

Disse Machado de Assis:

– As “Flores do Campo”, volume de versos dado em 1874, tiveram a boa fortuna de trazer um prefácio devido à pena delicada e fina de D. Narcisa Amália, essa jovem e bela poetisa, que há anos aguçou a nossa curiosidade com um livro de versos, e recolheu-se depois à turris eburnea da vida doméstica. Resende é a pátria de ambos; além dessa afinidade, temos a da poesia, que em suas partes mais íntimas e do coração, é a mesma.

Embora nascida em São João da Barra, em 3 de abril de 1856, Narcisa foi para Resende aos 11 anos e se considerava resendense. Sua “pátria”, como acentuou Machado.

Pátria, claro, no sentido figurado. Pois a verdadeira pátria de Narcisa era, no sentido literal, o Brasil. Este era o seu campo de batalha na luta contra todo tipo de opressão – em especial a opressão contra as mulheres e os escravos.

Casada pela primeira vez aos 14 anos, separou-se pouco tempo depois e casou-se, aos 28 anos, com Francisco Cleto da Rocha, da Padaria Famílias, em Resende. Sete anos depois separou-se. O padeiro ficou furioso.

Sua independência como mulher e sua luta (até então inédita no Brasil, vindo de uma mulher) por direitos liberais acabaram lhe custando uma campanha de calúnias.

Seu talento e sucesso despertaram inveja e ódio.

O historiador Júlio Cesar Fidelis Soares fez um excelente levantamento do que ocorreu no período:

– O sucesso de Narcisa passou a incomodar o marido que, depois de separado, passou a difamar Narcisa declarando que seus versos não eram de sua autoria, mas escritos por poetas com quem teria tido casos de amor. O escritor Múcio Teixeira fez coro à campanha contra Narcisa declarando que o livro “Nebulosas” tinha sido escrito por um homem com pseudônimo de mulher.

Desgostosa, a poetisa desabafa em um de seus versos:

“Meu nome atirei às ventanias….”

Fora as falsas acusações, era atacada por sua própria condição de mulher. Em dezembro de 1872, C. Ferreira, no jornal Correio do Brasil, elogia a poesia de Narcisa, mas ataca seu envolvimento com as causas libertárias. Diz que acha “fora de lugar” que a poetisa fique “cantando revoluções, apostrofando o rei, endeusando as turbas” e acrescenta:

– O melhor é deixar (o talento da ilustre dama) na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza.

Mais ásperos, outros críticos sugeriam que ela voltasse “aos cestos de costura”. O crítico Sílvio Homero chegou a dizer que textos de cunho social são “indignos de ocupar as páginas de um livro de mulher”.

Narcisa desabafou em poesia:

“Quando tento liberar-me no espaço/ As rajadas em tétrico abraço/ Me arremessam a frase – Mulher!”

Os boatos de que não seria autora dos textos do livro “Nebulosas” foram facilmente derrubados pelo depoimento de várias testemunhas, incluindo o jornalista Alfredo Sodré, que declarou tê-la visto escrevendo vários dos poemas.

Mas no fim Narcisa Amália não conseguiu vencer os preconceitos contra os quais bravamente lutara.

A princípio se considerava uma mulher forte (e era), como escrevera, no prefácio a Ezequiel Freire:

O horror da vida, deslumbrada, esqueço!

É que há dentro vales, céus, alturas,

Que o olhar do mundo não macula, a terna

Lua, flores, queridas criaturas,

E soa em cada moita, em cada gruta,

A sinfonia da paixão eterna!…

– E eis-me de novo forte para a luta.

Mas sucumbiu.

Cansada das difamações em Resende, em 1889, com apenas 33 anos, foi para um exílio voluntário em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Sua chama se apagara. Foi lecionar em uma escola pública. Abandonou toda atividade literária.

Sumiu. Acharam até que tinha morrido.

Narcisa Amália dizia que se consagrava à independência e ao feminino, à liberdade educacional e artística da mulher. Mas, com sua impecável inteligência, sabia da resistência que encontraria uma mulher livre, culta e educada como ela própria o era. Esta condição causava terror em muitos homens, como Narcisa escreveu, em 1882:

– A educação da mulher! Mas tem a mulher por acaso necessidade de ser educada? Para quê? Cautela! A mulher representa o gênio do mal sob uma forma mais ou menos graciosa e cultivar a sua inteligência seria fornecer-lhe novas armas para o mal. Procuremos antes torná-la inofensiva por meio da ignorância. Guerra, pois, à inteligência feminil!

Pois… abriram guerra contra ela.

Mataram sua vivacidade e enterram em seu próprio corpo, obrigando-a carregar o cadáver da sua inspiração até sua morte física.

O que abateu Narcisa não foi a tristeza em si. Foi a impotência diante do mal. Com a tristeza ela sempre convivera muito bem. E da própria tristeza tirava sua inspiração, conforme escreveu:

Meu anjo inspirador não tem nas faces;

Nem tem nos lábios as canções vivaces

Da cabocla pagã!

Não lhe pesa na fronte deslumbrante

Coroa de esplendor e maravilhas,

Nem rouba ao nevoeiro flutuante

As nítidas mantilhas.



Meu anjo inspirador é frio e triste

Como o sol que enrubesce o céu polar!

Trai-lhe o semblante pálido — do antiste

O acerbo meditar!



Traz na cabeça estema de saudades,

Tem no lânguido olhar a morbideza;

Veste a clâmide eril das tempestades,

E chama-se — Tristeza!…

Narcisa morreria em 24 de julho de 1924, aos 72 anos, na residência de um casal de amigos em Rio Comprido.

Com diabetes, a Princesa das Letras – cujo título lhe fora cassado pela inveja – morreu paralítica e cega.

E esquecida.

Mas a Narcisa que morreu derrotada renasce atualmente. Trabalhos e livros de escritoras e historiadoras como Mary del Priori, Heloisa Buarque de Hollanda e Lúcia Nascimento Araújo começam a colocá-la no patamar dos seus méritos.

Ela dá nome a uma escola municipal na Ilha de Guaratiba, no Rio de Janeiro, onde seu nome é cultuado pelos alunos e ex-alunos.

E dá nome a uma rua em Resende.

É pouco, muito pouco para o que foi Narcisa Amália.

Mas a força e a beleza de seus versos, como nos poucos exemplos aqui colocados, não têm como ficar sepultadas pela eternidade.

Mais cedo ou mais tarde sua poesia romperá o esquife em que aprisionaram sua história. Como este renascimento será inevitável, não há por que chorar o esquecimento.

As lágrimas são para os poemas que ela não produziu e os libelos que não escreveu quando, no auge da sua poesia, bárbaros demônios lhe roubaram a alma.



(Diário do Vale; Resende – 8.11.2015)



(Ilustração: Narcisa Amália de Campos)


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