quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A MORTE E O RISO, de Toni d'Agostinho









Euripideu Sacarema era desses que não alterava o espírito por nada; era a razão que não baixava armas jamais. Não viera o sujeito ao mundo para brincadeiras. Desde pequerrucho, a carranca fora sua expressão usual, de tal sorte que nada, nem o evento mais fértil em felicidade, o fazia entreabrir a boca para o riso. Ganhou bicicleta e não sorriu; recebeu o primeiro beijo e não sorriu; namorou e não sorriu; casou e não sorriu; ganhou na loteria e não sorriu; teve filhos, netos, bisnetos... e não sorriu! Aos noventa anos, Euripideu Sacarema esperava a ceifadora visitar o leito de morte. Seus parentes, comovidos, perguntaram o motivo de uma vida de abstinência ao prazer; urgia, naquele instante último, saber a razão de tamanho esforço para nunca ceder mesmo ao ínfimo gracejo.



- Não ri - respondeu o moribundo -, porque não encontrei motivos nesse mundo de tamanho sofrimento e desigualdade.



E morreu, com a habitual máscara de poucos amigos, deixando como herança a culpa cristã que temos interiorizada. A parentalha, perplexa e envergonhada pela falta de compaixão para com as dores alheias, cerrou os olhos em prece à alma do finado.



- Pai nosso que estais nos céus...



Súbito, o inesperado: o corpo sem vida expeliu gases, semelhantes ao punzinho solto, daqueles bem espremidos pelas nádegas, agudinhos, sem pressa para acabar. O riso dos ainda vivos começou tímido ante a solenidade fúnebre; aos poucos ganhou volume e, em uníssono, preencheu até os cantos mais obscuros do quarteirão, anunciando a impotência da morte quando do confronto com o riso. Houve até quem jurasse que o próprio Euripideu Sacarema relaxou o semblante e, depois de morto, assumiu-se cômico e sorriu.




(Ilustração: Gelísio - palhaço)



terça-feira, 29 de dezembro de 2009

SONNET / SONETO, de Félix Arvers











Mon âme a son secret, ma vie a son mystère,

un amour eternel en un moment conçu;

Le mal est sans espoir, aussi j'ai dú le taire,

et celle qui l'a fait n'en a janais riens su.




Helas! j'aurai passé près d'elle inaperçu


toujours à ses côtes et toujours solitaire;

et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre

n'osant rien demander, et n'ayant rien reçu.




Pour elle, quoique Dieu l'ait faite bonne et tendre,

elle ira son chemin, distraite, et sans entendre

ce murmure d'amour elevé sur ses pas;




à l'austère devoir pieusement fidèle,

elle dira, lisant ces vers tout remplis d'elle,

"Quelle est donc cette femme"?" et ne comprendra pas....




Tradução de Guilherme de Almeida:


Tenho na alma um segredo e um mistério na vida:

um amor que nasceu, eterno, num momento.

É sem remédio a dor; trago-a pois escondida,

e aquela que a causou nem sabe o meu tormento.



Por ela hei de passar, sombra inapercebida,

sempre a seu lado, mas num triste isolamento,

e chegarei ao fim da existência esquecida

sem nada ousar pedir e sem um só lamento.




E ela, que entanto Deus fez terna e complacente,

há de, por seu caminho, ir surda e indiferente

ao murmúrio de amor que sempre a seguirá.




A um austero dever piedosamente presa,

ela dirá lendo estes versos, com certeza:

"Que mulher será esta? " e não compreenderá.




Tradução de J.G. de Araújo Jorge:




Tenho um segredo na alma, e um mistério na vida:

Um repentino amor que me empolga e devora;

Louca paixão que trago em minha alma escondida

E aquela que a inspirou, entretanto ignora…



Ai, de mim! Sigo só, mesmo a seu lado, embora

Leve no coração sua imagem querida

Até que venha a morte, e amanhã, como agora,

Nada possa esperar dessa paixão proibida…



E ela que a alma possui só de ternuras cheia

Seguirá seu caminho, indiferente, e alheia

Ao sussurro de amor que em vão a seguirá…



Presa a um nobre dever, a um tempo fiel e bela,

Dirá depois que ler meus versos cheios dela:

-”Que mulher será essa?…” E não compreenderá…




Tradução de Olegário Mariano:




Tenho um mistério na alma e um segredo na vida:

Eterno amor que, num momento, apareceu.

Mal sem remédio, é dor que conservo escondida

E aquela que o inspirou nem sabe quem sou eu.



A seu lado serei sempre a sombra esquecida

De um pobre homem de quem ninguém se apercebeu.

E hei de esse amor levar ao fim da humana lida,

Certo de que dei tudo e ele nada me deu.



E ela que Deus formou terna, pura e distante,

Passa sem perceber o murmúrio constante

Do amor que, a acompanhar-lhe os passos, seguirá.



Fiel ao dever que a fez tão fria quanto bela,

Perguntará, lendo estes versos cheios dela:

"Que mulher será esta?" E não compreenderá.




Tradução de Francisco Miguel de Moura:




Minha vida é mistério e na alma há um segredo

De amor eterno, num instante percebido,

Mal sem cura, do qual por meu medo duvido,

E ela, a causadora, nada sabe do enredo.



Ai! Eu passo por ela tão despercebido,

Sempre fico a seu lado e sempre solitário,

E farei até o fim, a morte em meu calvário,

Sem ousar pedir nada e nada hei recebido.



E a ela, que Deus fez distante, doce e pura,

Os sussurros de amor sobem até a altura

Dos passos no caminho e aonde quer que vá.



No austero mister, fiel e piamente bela,

Dirá lendo os meus versos, todos cheios dela,

“mas quem é essa moça?” E não compreenderá.




Tradução de J. Santiago Naud:




Minha alma e seu segredo, é vida este mistério;

Amor de eternidade em tempo concebido:

Mal sem cura, calado com todo o seu critério,

Por aquela que o fez sem dele haver sabido.



Ai de mim, que passei por ela imperceptível,

Sempre junto ao seu lado, no entanto solitário,

Até o fim dos meus dias cruzando esse calvário

Sem nada ousar pedir, a nada receptível.



E ela, que Deus criou assim doce e sensível,

Seguirá seu caminho, distraída, inaudível

Nos murmúrios do amor alçado ao seu andar.



Grave em seu proceder, piedosamente bela,

Dirá, talvez, se ler versos tão cheios dela

“Quem seria essa dama?”, sem nada adivinhar.




Tradução de Luís Caminha:





De amor guardo um segredo, um mistério na vida,

tão perene é a hora em que nos conhecemos.

Não posso querer mais: o sonho em que lho diga

há-de ser o pior de entre os meus pesadelos.



Estarei sempre só nesta viagem sofrida

porque estar ao seu lado é todo o meu desejo.

E quando enfim chegar o meu último dia

nem saberá que foi demasiado cedo.


É doce o gesto, é terno o olhar que ela oferece

ao longo do caminho... E porém desconhece

o murmúrio de amor que a minha espera traz;



fiel à sua escolha, em seu dever austera,

destes versos dirá, que apenas falam dela:

«Quem é esta mulher?» E não compreenderá.



Tradução de Ialmar Pio Schneider:



Minh´alma tem segredo e a vida seu mistério,

um amor eternal no instante conhecido,

o mal sem esperança é também muito sério,

mas aquela que o fez jamais terá sabido.



Ai de mim ! Passarei perto dela perdido,

sempre junto a seu lado e, no entanto, gaudério,

e terei justamente aqui meu tempo térreo,

não ousando pedir e nada recebido.



Por ela, que Deus fez de espírito tão brando,

ela caminhará, distraída e ignorando

o murmúrio de amor que aos seus passos irá;



para austero dever, piedosamente fiel,

dos meus versos dirá, repletos do seu mel:

“Que mulher será esta? E não compreenderá.



Tradução de Oswaldo Orico:



Guardo um segredo n'alma; existe em minha vida

Um mistério; este amor que não pude evitar.

Jamais lhe revelei esta paixão proibida.

Que para um mal sem cura o remédio é calar.



Andarei por aí, como sombra perdida,

Sem que imagine que a seu lado vim pousar,

E, que assim ficarei para o resto da vida,

Sem lhe pedir sequer a graça dum olhar;



Ela, que é toda amor e que é toda ternura,

Há de ser sempre a mesma insensível criatura

Indiferente à voz que vibra, onde ela está.



Escrava do dever, que a torna tão feliz,

Ainda dirá, lendo estes versos que lhe fiz:

"Que mulher será esta?" E não compreenderá.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:


Trago na alma um segredo; na vida um mistério;

Um eterno amor, num instante percebido.

A dor é incurável, razão do meu silêncio,

E quem a causou jamais soube do ocorrido.



Ai! Passei ao seu lado desapercebido,

Sempre junto dela, e no entanto solitário,

Nesta terra até o fim viverei meu calvário,

Nada ousando pedir e nada tendo obtido.



Ainda que feita por Deus doce e querida,

Não entenderá, ao caminhar distraída,

Esse murmúrio de amor que provocará;



Piamente fiel à dedicação austera,

Dirá, lendo estes versos tão repletos dela:

“Quem será esta mulher?”, e não compreenderá.


Tradução de Bastos Tigre:




Guardo um segredo n’alma e um mistério na vida,

Imorredouro amor que irrompeu de momento.

Se o mal é sem remédio, a queixa é descabida

E a que me fez o mal, nunca ouviu meu lamento.



Por ela já passei – sombra despercebida,

E ao meu lado a sentir, no meu isolamento!

Ao termo chegarei dessa terrena lida,

E não ouso pedir, e receber não tento.



Quanto a ela, apesar da doçura e carinho

Com que Deus a dotou, seguirá seu caminho,

Sem ouvir que a acompanha um murmúrio de amor...



E, fiel ao seu dever que austeramente zela,

Ela dirá, lendo os meus versos plenos dela:

– “O soneto de Arvers tem mais um tradutor!”




Tradução de Dom Pedro II:



Segredo d'alma, da existência arcano,


Eterno amor num instante concebido,

Mal sem esperança, oculto a ente humano,

E nunca de quem fê-lo conhecido.



Ai! Perto dela desapercebido

Sempre a seu lado, e só, cruel engano,

Na terra gastarei meu ser insano

Nada ousando pedir e havendo tido!



Se Deus a fez tão doce e carinhosa,

Contudo anda inatenta e descuidosa

Do murmúrio de amor que a tem seguido.



Piamente ao cru dever sempre fiel

Dirá lendo a poesia, seu painel:

"Que mulher é?" Sem tê-lo compreendido.




Tradução de José Lino Grünewald:


Minha alma tem segredo e esta vida, um mistério,

Um sempre eterno amor num momento nascido;

Também devo calar o mal que é deletério,

E aquela que assim fez jamais teve-o sabido.



Ai! por ela eu passei, perto, despercebido

Incessante a seu lado e, no entanto, funério;

E teria sido ao fim, até o cemitério,

Nada pedindo, nada havendo recebido.



Já que Deus a fez boa e terna, vai seguir

A trilha, distraída e sem poder ouvir

O murmúrio de amor por sobre seu andar;



Ao austero dever que piamente zela,

Dirá, lendo estes versos, eles plenos dela,

“Quem será essa mulher?” e não vai desvendar.






(Ilustração: Alfred Stevens - girl reading)











domingo, 27 de dezembro de 2009

POEMA PARA GALILEU, de António Gedeão(*)






Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, aquele teu retrato que toda a gente conhece, em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.

(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício. Disse Galeria dos Ofícios). Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença. Lembras-te? A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria... Eu sei... Eu sei... As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia. Ai que saudade, Galileu Galilei!

Olha. Sabes? Lá na Florença está guardado um dedo da tua mão direita num relicário. Palavra de honra que está! As voltas que o mundo dá! Se calhar até há gente que pensa que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileu, a inteligência das coisas que me deste. Eu, e quantos milhares de homens como eu a quem tu esclareceste, ia jurar - que disparate, Galileu! - e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação – que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileu? Quem acredita que um penedo caia com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia? Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileu, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente um guiso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo, que parecia impossível que um homem da tua idade e da tua condição, se estivesse tornando um perigo para a Humanidade e para a civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, e percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas, desceram lá das suas alturas e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las - nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma, aquelas abomináveis heresias que ensinavas e escrevias para eterna perdição da tua alma. Ai, Galileu!

Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços, andava a correr e a rolar pelos espaços à razão de trinta quilómetros por segundo Tu é que sabias, Galileu Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos, por isso era teu coração cheio de piedade, piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso, estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, foram caindo,

caindo,

caindo,

caindo,

caindo sempre,

e sempre,

ininterruptamente, na razão directa dos quadrados dos tempos.




(*) Pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, 1906-1977




(Ilustração: Solomon Alexander Hart - 1806-1881 - Milton visiting Galileo when a prisoner of th inquisition)





sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

POESIA MATEMÁTICA, de Millôr Fernandes









Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar, mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

(Tempo e Contratempo)

(Ilustração: Mondrian Piet)





quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

DE GOIABAS E PRESIDENTES, de Carlos Bruni








Você já jogou bolinha de gude? E pião? Se respondeu afirmativamente, provavelmente é alguém nascido lá pela metade do século passado, quando as crianças ainda não sonhavam com os chamados anos dourados, mas sabiam o que era “morrer sapateiro” ou “zuncar o pião”.

Isso fazia parte de minhas aventuras no caminho diário para a escola, jornadas povoadas de heróis e assombrações, animais ferozes e vilões.

Ah, eles existiam aqui mesmo, em São Paulo, quando a cidade começava a perder sua garoa. O rumo para a aventura era a centenária rua Siqueira Bueno, no Belenzinho, trilha explorada a cada dia no caminho para o Grupo Escolar Queiróz Teles. Ela ainda existe, é claro, mas não é mais a mesma. O asfalto, lojas de revenda de automóveis e até um hospital apareceram como invasores de um terreno que tinha seus donos: a molecada.

Era calçada com paralelepípedos (ou macacos, como eram chamados) que chegavam até o quarteirão de minha casa. Da esquina em diante, era terra mesmo, o que tornava possível cavar as quatro casinhas do jogo de bolinhas, dando ensejo a memoráveis disputas depois das aulas.

Também ficava nessa faixa o Mercado Municipal da Quarta Parada, onde volta e meia entrávamos para roubar azeitonas da banca do “seu” Nicola.

Por ser arborizada, poetas daquela época talvez dissessem ser aquela uma rua perfumada. Eu, a bem dizer, não notava perfume algum, principalmente perto da vacaria dos húngaros, família que se estabelecera numa chácara na esquina da Tobias Barreto, criando vacas e vendendo leite devidamente “batizado”. O que se sentia ali por perto, evidentemente não era nenhum perfume, mas um poeta sempre é capaz de achar que bosta de vaca é uma fragrância. De bonito, mesmo, só as roupas daqueles imigrantes que faziam questão de preservar sua identidade cultural, ainda que mesclada com um pouco da malandragem brasileira. Ou teria vindo de terras magiares o costume de botar água no leite?

A rua Siqueira era uma subidona e lá no topo, antes da virada da rua da escola, havia uma chácara quase abandonada, com um velho casarão. Na cabeça da meninada o que valia mesmo era a imaginação e esta povoava com almas e fantasmas aquela antiga sede de fazenda, fincada de forma ainda imponente no meio de uma selva impenetrável. Nem mesmo o valentão da turma teve, algum dia, coragem de desvendar esse mistério. Ainda bem; teria acabado com o encanto morador em nossas mentes. 

As goiabas, sim; eram reais e tentadoras. O velho caseiro que morava nos fundos desse terreno, as vendia para obter algum sustento. Nós, crianças, queríamos mesmo era provar de seu gosto e o fazíamos através de incursões furtivas, mas não tão profundas, naquele terreno proibido. Não tinha graça pedir ou comprá-las; perderia o espírito de aventura negociar as uvas de dezembro ou os caquis de março. Sempre soubéramos que o gosto da fruta roubada era bem mais saboroso.

Depois, a escola. As inesquecíveis aulas com dona Inês, gorda e bondosa como deveriam ser todas as professoras. E foi num desses dias, a caminho do Grupo Escolar, que encontrei colegas descendo a rua, alvoroçados: “Hoje não tem aula. O Getúlio morreu”.

O Getúlio morreu? Isso significava para nós, moleques, que o jogo de bola de gude começaria bem mais cedo e morreria “sapateiro” quem não corresse as quatro casinhas, ida e volta.

Fui para casa tirar o uniforme e encontrei minha mãe junto ao velho rádio Philco, ouvindo notícias do Catete. Na verdade, não era assunto que me interessasse, embora visse o retrato do “Velho”, como meu pai o chamava, por toda parte: na vendinha do “seu” Leon, na barbearia, na padaria. Também não dei importância às mulheres nos portões, em rodinhas, algumas disfarçando uma lágrima. Importante era pegar a caixinha de papelão com as esferas de vidro prontas para o desafio.

Bons tempos, grandes combates, mas as goiabeiras foram abatidas e o casarão, posto no chão. O mercado deu lugar a um banco. Não sobrou nem um metro quadrado de terra para se escavar os quatro buracos do jogo de bolinha de gude. Foram-se também os húngaros e suas vaquinhas, vencidos pelo progresso e pelas lojas de automóveis usados.

Goiabas, hoje em dia, só nas feiras e supermercados. Também não existem mais mulheres que chorem por causa de seu presidente, a não ser, talvez, no sentido figurado.

Mas aí já é outra história.




(Ilustração: Portinari - menino com estilingue)






segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

INSÔNIA, de Eliana Iglésias








Tão reduzido esse meu corpo
Para um tamanho de alma que atinge as nuvens
O excesso de vinho nesta noite quente
Torna-me insone, consciente
De meus desvarios
Sinto-me culpada, nem ao menos pequei
Culpa genuína, das boas, culpa que brota do nada
O pecador não duvida
Ajoelha-se e confessa
em nome da redenção, pela interveniência de um sacerdote
A culpa é diferente, tem linha direta com os céus
Melhor a culpa, que o pecado
Pois este, é datado, a culpa imemorial
relativa, sem local certo, difusa, saborosa
Melhor a culpa, disparado
Ainda mais, quando não se tem noção do que é clamar por anjos
O zumbido do ventilador de agora, espanta moscas
é pecado, o zumbido
porque risca o silêncio da noite
Com seu rangido enjoado
Os ventiladores de antes, eram para as moscas, espantá-las
agora é como antes, cheio de moscas, posso senti-las
todas elas, as moscas
Moscas dos ventiladores da minha infância
Vocês já nem existem mais
ainda posso vê-las, senti-las
Lá estão, todas vocês, cristalizadas no tempo
Num sítio longínquo, eu nunca perdi de vista
O sítio da minha infância
Nem preciso levar a mão ao peito pra sentir o coração bater celerado,
Sei lá, se pelo vinho, a embriaguez da noite
Deixa-me dormir, coração!
O luminoso da Fuji entra com tudo, pela fresta da janela, é sua vez
Verde-vermelho, verde-vermelho
Há quanto tempo não reparava nessas coisas, as cores
Verde-vermelho, verde-vermelho
Nem que há um hospital junto de casa
E que é desrespeitoso, um luminoso, junto a um hospital
Mas, o que interessa essa percepção
O que interessa se os doentes dormem,
ou necessitam barbitúricos, como eu
Querer saber das dores cancerígenas
Se estas suportam o verde-vermelho do maldito Fuji, luminoso
Será que dores suportam cores?
Verde-vermelhas, verde-vermelhas? Verde-insistente, verde-doente
As cores combatem dores?
Serão bálsamos? Inócuas? instrumentos de tortura?
Escrevo no escuro, sem cores, prefiro
Sem ser poeta, sem sentir dores, prefiro
Sem moscas, cem moscas, refiro-me
Sem retorno, cem retornos, reviro-me
Vejo no escuro, alegrias. O que digo!
Sinto no escuro, alegrias. Mentira!
Por que não se vê alegria?
O que deve ser visto ou sentido? Quem é que determina?
O que faz o cego com sua escuridão?
Alegria é prerrogativa das grandes luzes?
O que faz o cego que tudo sente, nada vê, quem determina?
Deixa-me dormir, coração
Sinto-me só
Não me sinto só
Só, um pouco,
Masturbo-me. Perturba-me ainda essa palavra,
Não é palavra bonita, mas de alguma valia
Não muito,
Só, um pouco
Noite de vinho tinto, que tinge a noite de rubro
Rubra a noite, dá a impressão de quente
a camisola é alva, nem por isso fresca. Não é 100% algodão, por isso mesmo, quente
O vinho esquenta o corpo, tinge a noite de rubro, a camisola de sonhos, inventa a masturbação
É hora de relaxar, orar, levitar
Nada é factível, quando o verbo acaba em ar
Quantas vezes mais perguntar
Quantos carneiros contar
Se a noite é quente, o vinho é rubro, o algodão é misto e o nylon câncer
se orar é ópio, masturbar imperioso, a lógica o que é? o luminoso da Fuji? verde – vermelho? Verde – vermelho? Eu não sei
Só sei que
Uma boca qualquer, faz falta
outra mão, não esta que masturba, faz falta
outro braço, que não este, e um abraço seja de quem for, faz falta
Um trago a mais, com certeza, há de fazer muita falta
Hmm, cá estou eu
Apenas uma garrafa d’água, ao meu lado direito
Ao esquerdo, um criado-mudo e
a respiração ofegante de minha velha mãe.



(Ilustração: Achille Deveria)





sábado, 19 de dezembro de 2009

SAUDADE DE CERTO INSTANTE, de Marcel Proust






O sol se havia posto. A natureza recomeçava a reinar sobre o Bois, de onde se alara a ideia de que era o Jardim Elísio da Mulher; acima do moinho falso, o verdadeiro céu era cinzento; o vento enrugava o Grande Lago em pequeninas vagas, como um lago; grandes pássaros cruzavam rapidamente o Bosque, como a um bosque, e soltando gritos agudos, pousavam um após outro nos grandes carvalhos que, sob a sua coroa druídica e com uma majestade dodônea, pareciam proclamar o vazio inumano da floresta desapropriada, e me ajudavam a melhor compreender a contradição que existe em procurar na realidade os quadros da memória, aos quais faltaria sempre o encanto que lhes vem da própria memória e de não serem percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a senhora Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos.




(Em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann, tradução de Mário Quintana)



(Ilustração: Camille Pissarro)


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

COBERTA, de Giselda Penteado Di Guglielmo






“Why needst thou have more

covering than a man?”



John Donne – Going to bed



Não preciso de atavios,
de jóias, de elogios.
Não preciso do sol,
da lua, do canto da cotovia.
Não preciso das sedas
nem do perfume da rosa.
Não preciso de nada –
só de minha nudez
e do teu desejo: teu corpo
é a coberta que almejo.


(Ilustração: Adrian Gottlieb - Heathers reverie)


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

ESSES DIAS SUPORTÁVEIS E SUBMISSOS, de Hermann Hesse










O dia passara como normalmente passam os dias: eu o havia desperdiçado, dissipado suavemente, como minha primitiva e arredia maneira de ser; trabalhara algumas horas a compulsar velhos livros e sentira dores durante duas horas seguidas, como os velhos costumam sentir; engolira uns pós e me alegrara porque as dores se haviam deixado enganar; metera-me num banho quente e absorvera o agradável calor; recebera três vezes o correio e correra a vista pelas cartas e os impressos sem importância; fizera meus exercícios respiratórios, mas achara conveniente transferir para outro dia os exercícios mentais; dera um passeio de uma hora e vira, recortados contra o céu, delicadas e belas amostras de cirros preciosos. Agradável, assim como ler os livros antigos ou demorar-me no banho quente, mas, afinal de contas, não fora a bem dizer um dia encantador, nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão somente um desses dias como desde algum tempo costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que até mesmo a pergunta, de que se não seria o momento de seguir o exemplo de Adalbert Stifter e degolar-me com a navalha de barbear, era meditada tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia.

Quem havia passado pelos outros dias, aqueles terríveis de ataque de gota, das dores malignas por detrás dos globos oculares, transformando a alegria de ver e de ouvir num tormento alucinante sob os efeitos da enlouquecedora enxaqueca, ou aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos quais em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o mundo dos homens e a chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética, e quando tudo está concentrado e levado ao clímax do insuportável dentro de nosso próprio ser enfermo, - quem já havia passado por aqueles dias infernais mostrava-se bem contente com estes de agora, normais e vulgares, em que se sentava agradecido junto à estufa a ler os jornais, verificando satisfeito que não estalara nenhuma nova guerra, que não surgira nenhuma nova ditadura, que não se descobrira nenhum nauseante escândalo no mundo da política e das finanças, e podia planger agradecido as cordas de sua empoeirada lira para entoar um salmo de graças em tom moderado, suportavelmente alegre, quase regozijante, com o qual aborrecerá seu calado e tranquilo semideus, um tanto anestesiado pelo brometo, e no morno ar desse contente aborrecimento, dessa ausência de dor tão digna de nota, o semideus solitário e o semideus um tanto encanecido que cantava o salmo incolor pareciam gêmeos.

Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar nas pontas dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara insatisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.

Nesse estado de espírito, portanto, havia atravessado mais um dia vulgar e tolerável, quando chegou a noite. Não o iria encerrar, entretanto da maneira normal e convincente a um homem um tanto enfermo que devia ir para a cama tentado por uma botija de água quente. Em vez disso, calcei os sapatos um tanto mal humorado, descontente e insatisfeito com o parco trabalho que fizera, e saí para as ruas escuras e nevoentas para beber no Elmo de Aço, o que de acordo com antiga convenção os homens chamavam de “um copinho de vinho”.

Assim desci eu os degraus de minha mansarda, essa escura escada dos estranhos à casa, essa escada inteiramente burguesa, encerada e limpa, de uma casa de respeito, de três famílias decentíssimas, em cujo sótão eu vivia. Não sei por que motivo, eu, o Lobo da Estepe, o sem pátria e solitário odiador do mundo burguês, sempre morei em verdadeiras casas burguesas, talvez por um velho sentimentalismo de minha parte. Não vivia nem em palácios nem em casas proletárias, mas precisamente naqueles ninhos da pequena burguesia, decentíssimos, cheios de tédio e cuidadosamente conservados, onde há sempre um cheiro de terebintina e sabão e conde todos se sobressaltam quando alguém deixa a porta bater com força ou entra com sapatos sujos de lama. O amor por essa atmosfera vinda, sem dúvida, de minha infância, e meu secreto anseio por algo assim como um lar sempre me leva desesperadamente por esses velhos e estúpidos caminhos. Além disso, agrada-me o contraste que apresenta a minha vida, esta minha vida solitária, sem amor, gasta e inteiramente desordenada, em ralação ao ambiente familiar e burguês. Agrada-me respirar na escada este cheiro de calma, de ordem, de limpeza, de decência e de domesticidade, o que, apesar de meu desprezo pela burguesia, tem sempre algo de comovente para mim, e me apraz também atravessar o umbral do meu quarto, em cujo interior tudo isso se acaba, onde entre os montões de livros aparecem pontas de cigarro e garrafas de vinho vazias, onde tudo está desordenado e negligente, e onde tudo, livros, manuscritos, pensamentos, está marcado e embebido pela miséria do solitário, pela problemática do ser humano, pelo anseio de dar um novo sentido a uma vida humana que já perde seu rumo.




(O Lobo da Estepe; tradução de Augusto de Souza)








(Ilustração: Walter Sickert - Lazarus)









domingo, 13 de dezembro de 2009

VARIAÇÃO, de Hermes Fontes







Pois que tudo acabou, mando-te agora

os passaportes dessa despedida:

puna pálida rosa ressequida,

uma sombra de flor, murcha c inodora.



E o teu retrato que se descolora como

se descolora a minha vida,

vestida de anjo, a receber na ermida

tua primeira comunhão outrora.



Mando-te as cartas e os cabelos; mando

uma luva, de que essa mão foi alma,

quando. . . e dizer que já nem eu sei quando!



Mando-te. E manda-me, afinal te digo,

manda-me o eterno sono, a eterna calma,

manda-me o coração que está contigo!


(Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou)



(Ilustração: Pierre Bonnard - the garden)


sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O MITO DA CAVERNA, de Platão










Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.

Glauco – Estou vendo.

Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.

Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.

Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?

Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?

Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?

Glauco - É bem possível.

Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?

Glauco - Sim, por Zeus!

Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados?

Glauco - Assim terá de ser.

Sócrates - Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?

Glauco - Muito mais verdadeiras.

Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?

Glauco - Com toda a certeza.

Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?

Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.

Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz.

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.

Glauco - Necessariamente.

Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.

Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.

Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?

Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.

Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?

Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.

Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?

Glauco - Por certo que sim.

Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?

Glauco - Sem nenhuma dúvida.

Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.

Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.



(A República)



(Ilustração: pinturas rupestres, foto, autoria não identificada)