quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A MORTE E O RISO, de Toni d'Agostinho









Euripideu Sacarema era desses que não alterava o espírito por nada; era a razão que não baixava armas jamais. Não viera o sujeito ao mundo para brincadeiras. Desde pequerrucho, a carranca fora sua expressão usual, de tal sorte que nada, nem o evento mais fértil em felicidade, o fazia entreabrir a boca para o riso. Ganhou bicicleta e não sorriu; recebeu o primeiro beijo e não sorriu; namorou e não sorriu; casou e não sorriu; ganhou na loteria e não sorriu; teve filhos, netos, bisnetos... e não sorriu! Aos noventa anos, Euripideu Sacarema esperava a ceifadora visitar o leito de morte. Seus parentes, comovidos, perguntaram o motivo de uma vida de abstinência ao prazer; urgia, naquele instante último, saber a razão de tamanho esforço para nunca ceder mesmo ao ínfimo gracejo.



- Não ri - respondeu o moribundo -, porque não encontrei motivos nesse mundo de tamanho sofrimento e desigualdade.



E morreu, com a habitual máscara de poucos amigos, deixando como herança a culpa cristã que temos interiorizada. A parentalha, perplexa e envergonhada pela falta de compaixão para com as dores alheias, cerrou os olhos em prece à alma do finado.



- Pai nosso que estais nos céus...



Súbito, o inesperado: o corpo sem vida expeliu gases, semelhantes ao punzinho solto, daqueles bem espremidos pelas nádegas, agudinhos, sem pressa para acabar. O riso dos ainda vivos começou tímido ante a solenidade fúnebre; aos poucos ganhou volume e, em uníssono, preencheu até os cantos mais obscuros do quarteirão, anunciando a impotência da morte quando do confronto com o riso. Houve até quem jurasse que o próprio Euripideu Sacarema relaxou o semblante e, depois de morto, assumiu-se cômico e sorriu.




(Ilustração: Gelísio - palhaço)



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