segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

INSÔNIA, de Eliana Iglésias








Tão reduzido esse meu corpo
Para um tamanho de alma que atinge as nuvens
O excesso de vinho nesta noite quente
Torna-me insone, consciente
De meus desvarios
Sinto-me culpada, nem ao menos pequei
Culpa genuína, das boas, culpa que brota do nada
O pecador não duvida
Ajoelha-se e confessa
em nome da redenção, pela interveniência de um sacerdote
A culpa é diferente, tem linha direta com os céus
Melhor a culpa, que o pecado
Pois este, é datado, a culpa imemorial
relativa, sem local certo, difusa, saborosa
Melhor a culpa, disparado
Ainda mais, quando não se tem noção do que é clamar por anjos
O zumbido do ventilador de agora, espanta moscas
é pecado, o zumbido
porque risca o silêncio da noite
Com seu rangido enjoado
Os ventiladores de antes, eram para as moscas, espantá-las
agora é como antes, cheio de moscas, posso senti-las
todas elas, as moscas
Moscas dos ventiladores da minha infância
Vocês já nem existem mais
ainda posso vê-las, senti-las
Lá estão, todas vocês, cristalizadas no tempo
Num sítio longínquo, eu nunca perdi de vista
O sítio da minha infância
Nem preciso levar a mão ao peito pra sentir o coração bater celerado,
Sei lá, se pelo vinho, a embriaguez da noite
Deixa-me dormir, coração!
O luminoso da Fuji entra com tudo, pela fresta da janela, é sua vez
Verde-vermelho, verde-vermelho
Há quanto tempo não reparava nessas coisas, as cores
Verde-vermelho, verde-vermelho
Nem que há um hospital junto de casa
E que é desrespeitoso, um luminoso, junto a um hospital
Mas, o que interessa essa percepção
O que interessa se os doentes dormem,
ou necessitam barbitúricos, como eu
Querer saber das dores cancerígenas
Se estas suportam o verde-vermelho do maldito Fuji, luminoso
Será que dores suportam cores?
Verde-vermelhas, verde-vermelhas? Verde-insistente, verde-doente
As cores combatem dores?
Serão bálsamos? Inócuas? instrumentos de tortura?
Escrevo no escuro, sem cores, prefiro
Sem ser poeta, sem sentir dores, prefiro
Sem moscas, cem moscas, refiro-me
Sem retorno, cem retornos, reviro-me
Vejo no escuro, alegrias. O que digo!
Sinto no escuro, alegrias. Mentira!
Por que não se vê alegria?
O que deve ser visto ou sentido? Quem é que determina?
O que faz o cego com sua escuridão?
Alegria é prerrogativa das grandes luzes?
O que faz o cego que tudo sente, nada vê, quem determina?
Deixa-me dormir, coração
Sinto-me só
Não me sinto só
Só, um pouco,
Masturbo-me. Perturba-me ainda essa palavra,
Não é palavra bonita, mas de alguma valia
Não muito,
Só, um pouco
Noite de vinho tinto, que tinge a noite de rubro
Rubra a noite, dá a impressão de quente
a camisola é alva, nem por isso fresca. Não é 100% algodão, por isso mesmo, quente
O vinho esquenta o corpo, tinge a noite de rubro, a camisola de sonhos, inventa a masturbação
É hora de relaxar, orar, levitar
Nada é factível, quando o verbo acaba em ar
Quantas vezes mais perguntar
Quantos carneiros contar
Se a noite é quente, o vinho é rubro, o algodão é misto e o nylon câncer
se orar é ópio, masturbar imperioso, a lógica o que é? o luminoso da Fuji? verde – vermelho? Verde – vermelho? Eu não sei
Só sei que
Uma boca qualquer, faz falta
outra mão, não esta que masturba, faz falta
outro braço, que não este, e um abraço seja de quem for, faz falta
Um trago a mais, com certeza, há de fazer muita falta
Hmm, cá estou eu
Apenas uma garrafa d’água, ao meu lado direito
Ao esquerdo, um criado-mudo e
a respiração ofegante de minha velha mãe.



(Ilustração: Achille Deveria)





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