quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
DE GOIABAS E PRESIDENTES, de Carlos Bruni
Você já jogou bolinha de gude? E pião? Se respondeu afirmativamente, provavelmente é alguém nascido lá pela metade do século passado, quando as crianças ainda não sonhavam com os chamados anos dourados, mas sabiam o que era “morrer sapateiro” ou “zuncar o pião”.
Isso fazia parte de minhas aventuras no caminho diário para a escola, jornadas povoadas de heróis e assombrações, animais ferozes e vilões.
Ah, eles existiam aqui mesmo, em São Paulo, quando a cidade começava a perder sua garoa. O rumo para a aventura era a centenária rua Siqueira Bueno, no Belenzinho, trilha explorada a cada dia no caminho para o Grupo Escolar Queiróz Teles. Ela ainda existe, é claro, mas não é mais a mesma. O asfalto, lojas de revenda de automóveis e até um hospital apareceram como invasores de um terreno que tinha seus donos: a molecada.
Era calçada com paralelepípedos (ou macacos, como eram chamados) que chegavam até o quarteirão de minha casa. Da esquina em diante, era terra mesmo, o que tornava possível cavar as quatro casinhas do jogo de bolinhas, dando ensejo a memoráveis disputas depois das aulas.
Também ficava nessa faixa o Mercado Municipal da Quarta Parada, onde volta e meia entrávamos para roubar azeitonas da banca do “seu” Nicola.
Por ser arborizada, poetas daquela época talvez dissessem ser aquela uma rua perfumada. Eu, a bem dizer, não notava perfume algum, principalmente perto da vacaria dos húngaros, família que se estabelecera numa chácara na esquina da Tobias Barreto, criando vacas e vendendo leite devidamente “batizado”. O que se sentia ali por perto, evidentemente não era nenhum perfume, mas um poeta sempre é capaz de achar que bosta de vaca é uma fragrância. De bonito, mesmo, só as roupas daqueles imigrantes que faziam questão de preservar sua identidade cultural, ainda que mesclada com um pouco da malandragem brasileira. Ou teria vindo de terras magiares o costume de botar água no leite?
A rua Siqueira era uma subidona e lá no topo, antes da virada da rua da escola, havia uma chácara quase abandonada, com um velho casarão. Na cabeça da meninada o que valia mesmo era a imaginação e esta povoava com almas e fantasmas aquela antiga sede de fazenda, fincada de forma ainda imponente no meio de uma selva impenetrável. Nem mesmo o valentão da turma teve, algum dia, coragem de desvendar esse mistério. Ainda bem; teria acabado com o encanto morador em nossas mentes.
As goiabas, sim; eram reais e tentadoras. O velho caseiro que morava nos fundos desse terreno, as vendia para obter algum sustento. Nós, crianças, queríamos mesmo era provar de seu gosto e o fazíamos através de incursões furtivas, mas não tão profundas, naquele terreno proibido. Não tinha graça pedir ou comprá-las; perderia o espírito de aventura negociar as uvas de dezembro ou os caquis de março. Sempre soubéramos que o gosto da fruta roubada era bem mais saboroso.
Depois, a escola. As inesquecíveis aulas com dona Inês, gorda e bondosa como deveriam ser todas as professoras. E foi num desses dias, a caminho do Grupo Escolar, que encontrei colegas descendo a rua, alvoroçados: “Hoje não tem aula. O Getúlio morreu”.
O Getúlio morreu? Isso significava para nós, moleques, que o jogo de bola de gude começaria bem mais cedo e morreria “sapateiro” quem não corresse as quatro casinhas, ida e volta.
Fui para casa tirar o uniforme e encontrei minha mãe junto ao velho rádio Philco, ouvindo notícias do Catete. Na verdade, não era assunto que me interessasse, embora visse o retrato do “Velho”, como meu pai o chamava, por toda parte: na vendinha do “seu” Leon, na barbearia, na padaria. Também não dei importância às mulheres nos portões, em rodinhas, algumas disfarçando uma lágrima. Importante era pegar a caixinha de papelão com as esferas de vidro prontas para o desafio.
Bons tempos, grandes combates, mas as goiabeiras foram abatidas e o casarão, posto no chão. O mercado deu lugar a um banco. Não sobrou nem um metro quadrado de terra para se escavar os quatro buracos do jogo de bolinha de gude. Foram-se também os húngaros e suas vaquinhas, vencidos pelo progresso e pelas lojas de automóveis usados.
Goiabas, hoje em dia, só nas feiras e supermercados. Também não existem mais mulheres que chorem por causa de seu presidente, a não ser, talvez, no sentido figurado.
Mas aí já é outra história.
(Ilustração: Portinari - menino com estilingue)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário