segunda-feira, 30 de março de 2020

ADIÓS AL SIGLO XX / ADEUS AO SÉCULO XX, de Eugenio Montejo



a Álvaro Mutis 



Cruzo la calle Marx, la calle Freud;

ando por una orilla de este siglo,

despacio, insomne, caviloso,

espía ad honorem de algún reino gótico,

recogiendo vocales caídas, pequeños guijarros

tatuados de rumor infinito.

La línea de Mondrian frente a mis ojos

va cortando la noche en sombras rectas

ahora que ya no cabe más soledad

en las paredes de vidrio.

Cruzo la calle Mao, la calle Stalin;

miro el instante donde muere un milenio

y otro despunta su terrestre dominio.

Mi siglo vertical y lleno de teorías...

Mi siglo con sus guerras, sus posguerras

y su tambor de Hitler allá lejos,

entre sangre y abismo.

Prosigo entre las piedras de los viejos suburbios

por un trago, por un poco de jazz,

contemplando los dioses que duermen disueltos

en el serrín de los bares,

mientras descifro sus nombres al paso

y sigo mi caminho.





Tradução de Wagner Mourão Brasil:



a Álvaro Mutis 

[poeta colombiano] 



Atravesso a rua Marx, a rua Freud;

ando por uma margem deste século,

devagar, insone, cismado,

espião ad honorem de algum reino gótico,

recolhendo vogais caídas, pequenos seixos

tatuados de rumor infindo.

A linha de Mondrian frente aos meus olhos

vai cortando a noite em sombras retilíneas

agora que já não cabe mais solidão

sobre as paredes de vidro.

Atravesso a rua Mao, a rua Stálin,

vejo o instante em que morre o milênio

e outro desponta em seu terrestre domínio.

Meu século vertical e pleno de teorias...

Meu século com suas guerras, seus pós-guerras

e seu tambor de Hitler ao longe,

entre sangue e abismo.

Prossigo por entre as pedras dos velhos subúrbios

por um trago, por um pouco de jazz,

contemplando os deuses que dormem desfeitos

sobre a serragem dos bares,

enquanto decifro seus nomes sem deter-me

e sigo o meu caminho.



(Ilustração: Piet Mondrian - Composition with Double Line and Yellow - 1932)



sexta-feira, 27 de março de 2020

GATOS EM PARTICULAR, de Doris Lessing




Senti raiva do holocausto de gatos, porque ele poderia ter sido evitado; mas não me lembro de ficar triste. Havia me dissociado disso por causa da minha angústia com a morte de uma gata alguns anos antes, quando eu tinha onze anos de idade. Diante do corpo frio e pesado que, inexplicavelmente, havia sido a criatura leve como pluma do dia anterior, eu dissera: nunca mais. Mas já tinha feito esse juramento antes, e sabia disso. Meus pais me contaram que, aos três anos de idade, eu estava passeando com a babá em Teerã quando, apesar dos protestos dela, peguei na rua um gatinho faminto e o levei para casa. Segundo eles, eu disse que aquele gatinho era meu e lutei por ele quando o pessoal de casa se recusou a abrigá-lo. Deram-lhe um banho de permanganato de potássio, de tão imundo que estava; e, a partir daí ele passou a dormir na minha cama. Eu não deixava que ninguém o tirasse de mim; mas é claro que alguém tirou, pois minha família deixou a Pérsia e o gato ficou para trás. Ou talvez tenha morrido. Talvez – mas como posso saber? De qualquer maneira, em algum ponto do passado, uma menina muito pequena tinha brigado e vencido em nome de um gato que lhe fazia companhia dia e noite; mas, então, ela o perdera. 

Depois de certa idade – e, para alguns de nós, isso pode ocorrer muito cedo – não existem novas pessoas, animais, sonhos, rostos, acontecimentos: tudo já aconteceu antes, já apareceu antes, com outra máscara, outras roupas, outra nacionalidade, outra cor; mas é igual, igual, tudo é eco e repetição; e não há nem dor que não seja uma recorrência de algo há muito esquecido que se expressa numa angústia inacreditável, em dias de lágrimas, solidão, consciência de traição; e tudo por um gato pequeno, magro e moribundo. 

Fiquei doente naquele inverno. Foi um problema, porque meu quarto ia receber uma demão de cal. Alojaram-me num quartinho nos fundos. A casa, que ficava quase no topo da colina, mas não exatamente, sempre parecia prestes a escorregar até os milharais lá embaixo. Esse quarto minúsculo, não mais do que uma fatia da extremidade da casa, tinha uma porta, sempre aberta, e janelas, sempre abertas, apesar do vento frio de um mês de julho cujos céus eram de um azul interminável, claro e sem nuvens. O céu, repleto de sol; os campos, iluminados. Mas frios, muito frios. A gata, uma persa cinza-azulada, chegou ronronando na minha cama e se acomodou para compartilhar minha doença, minha comida, meu travesseiro, meu sono. Quando eu acordava de manhã, ao me virar, meu rosto tocava lençóis semicongelados; o lado externo da coberta de pele sobre a cama estava frio; o cheiro de cal que vinha do cômodo ao lado era frio e antisséptico; o vento que levantava e baixava a poeira do lado de fora era frio – mas na dobra do meu braço havia um calor leve e ronronante, a gata, minha amiga. 

Nos fundos da casa, na frente do banheiro, uma bacia de madeira sobre a terra recolhia a água do banho. Naquela fazenda não havia encanamento: quando se precisava de água, ia-se até um poço a dois ou três quilômetros de distância, numa carroça puxada por bois. Nos meses da estação seca, a única água disponível para o jardim era a do banho, suja. A gata caiu nessa bacia num dia em que ela estava cheia de água quente. Ela gritou, foi arrancada de lá em meio a um vento gelado e banhada com permanganato de potássio – pois a bacia estava imunda, a água com sabão coalhada de folhas e poeira –; foi seca e posta na minha cama para se aquecer. Mas espirrava e resfolegava, e então começou a arder de febre. Era pneumonia. Demos a ela o que tínhamos em casa, mas naquela época não existia antibiótico, e assim a gata morreu. Ficou nos meus braços por uma semana, ronronando, ronronando, numa vozinha rouca e trêmula que foi se tornando vez mais fraca, até silenciar; lambeu minha mão; abriu os enormes olhos verdes quando a chamei e lhe implorei que vivesse; fechou os olhos, morreu e foi atirada num poço escuro – com mais de trinta metros de profundidade – que havia secado, porque num determinado ano os rios subterrâneos tinham mudado de curso e transformado aquilo que acreditávamos ser um poço confiável num buraco seco, rachado e pedregoso que logo estava cheio até a metade de lixo, latas e cadáveres. Pronto. Nunca mais. E durante anos fiquei comparando gatos em casas de amigos, gatos em lojas, gatos em fazendas, gatos na rua, gatos em muros, gatos na memória com aquela criatura doce e cinza-azulada que ronronava e que para mim era o gato, o Gato, impossível de um dia ser substituído. 

E, além disso, durante alguns anos minha vida não incluía supérfluos, artigos desnecessários, adornos. Gatos não cabiam numa existência sempre cambiante, de lugar em lugar, de quarto em quarto. Um gato precisa de um local que lhe pertença, tanto quanto precisa de uma pessoa que lhe pertença. 

Assim, só 25 anos mais tarde houve espaço para um gato na minha vida. 



(Sobre gatos; tradução de Júlia Romeu) 



(Ilustração: Bacchiacca)




terça-feira, 24 de março de 2020

MERECES UN AMOR / MERECES UM AMOR, de Estefanía Mitre




Mereces un amor que te quiera despeinada,

con todo y las razones que te levantan de prisa,

con todo y los demonios que no te dejan dormir.

Mereces un amor que te haga sentir segura,

que pueda comerse al mundo si camina de tu mano,

que sienta que tus abrazos van perfectos con su piel.

Mereces un amor que quiera bailar contigo,

que visite el paraíso cada vez que mira tus ojos,

y que no se aburra nunca de leer tus expresiones.

Mereces un amor que te escuche cuando cantas,

que te apoye en tus ridículos,

que respete que eres libre,

que te acompañe en tu vuelo,

que no le asuste caer.

Mereces un amor que se lleve las mentiras,

que te traiga la ilusión, el café

y la poesía.



Tradução de Isaias Edson Sidney:




Mereces um amor que te ame despenteada,

apesar dos pesadelos que te acordam de repente,

apesar dos demônios que não te deixam dormir.

Mereces um amor que te proteja,

que enfrente o mundo se caminhares a seu lado,

que sinta que teus abraços aquecem o seu corpo.

Mereces um amor que queira dançar contigo,

que vá ao paraíso cada vez que contemple teus olhos,

e que não se canse nunca de olhar para ti.

Mereces um amor que te escute quando cantas,

que não ria quando fores ridícula,

que respeite tua liberdade,

que voe contigo,

sem medo de cair.

Mereces um amor que aceite tuas mentiras,

que te traga esperança, café

e poesia.



(Ilustração: Gerda Wegener - 1886-1940)



sábado, 21 de março de 2020

AMANHÃ É DEMASIADO TARDE, de Chimamanda Ngozi Adichie




Foi o último verão que passaste na Nigéria, o verão antes do divórcio dos teus pais, antes de a tua mãe jurar que nunca mais porias os pés na Nigéria para ver a família do teu pai, especialmente a Vovó. Lembraste claramente do calor daquele verão, mesmo agora, dezoito anos depois—como o quintal da Vovó parecia quente e úmido, um quintal com tantas árvores que o fio do telefone estava emaranhado nas folhas e ramos diferentes entrelaçavam-se uns nos outros e às vezes apareciam mangas nas árvores de caju e goiabas nas mangueiras. O tapete espesso de folhas em decomposição era um lamaçal debaixo dos teus pés descalços. À tarde, abelhas de barriga amarela zuniam à volta da tua cabeça e das cabeças do teu irmão Nonso e do teu primo Dozie, e ao fim da tarde a tua Vovó só deixava o teu irmão Nonso trepar às árvores para sacudir um ramo carregado de fruta, embora tu trepasses melhor do que ele. Choviam os frutos, abacates e cajus e goiabas, e tu e o teu primo Dozie enchiam baldes velhos com eles. 

Foi no verão em que a Vovó ensinou Nonso a colher cocos. Era difícil trepar aos coqueiros, pois não tinham ramos e eram tão altos, e a Vovó deu a Nonso um pau comprido e mostrou-lhe como empurrar os frutos para baixo. Não te mostrou a ti, porque disse que as raparigas nunca colhiam cocos. A Vovó rachava os cocos contra uma pedra, com cuidado, para o leite aguado ficar na parte de baixo, uma taça com um rebordo irregular. Toda a gente provava o leite arrefecido pelo vento, mesmo as crianças do fundo da rua que vinham brincar, e a Vovó presidia ao ritual da prova para se assegurar de que Nonso era o primeiro. 

Foi no verão em que perguntaste à Vovó porque é que Nonso provava primeiro, embora Dozie tivesse treze anos, um ano mais velho do que Nonso, e a Vovó disse que Nonso era o único filho do filho dela, o que manteria o apelido Nnabuisi, enquanto que Dozie era só um nwadiana, filho da filha dela. Foi no verão em que encontraste a pele de uma serpente no relvado, inteira e transparente como meias de vidro, e a Vovó disse que a serpente se chamava echi eteka, "Amanhã É Demasiado Longe". Uma mordida, disse ela, e está tudo acabado em dez minutos. 

Não foi nesse verão que te apaixonaste pelo teu primo Dozie, porque isso tinha acontecido alguns verões antes, quando ele tinha dez anos e tu sete e ambos se enfiaram no espaço minúsculo por trás da garagem da Vovó e tentaram meter o que ambos chamavam a "banana" dele no que ambos chamavam o teu "tomate", mas nenhum dos dois tinha a certeza de qual era o buraco certo. Mas foi nesse verão que apanhaste piolhos e que tu e o teu primo Dozie enterravam as mãos na tua cabeleira espessa para encontrar os minúsculos insetos pretos e os esmagar entre as unhas e rir com o estalido das suas barrigas cheias de sangue a rebentarem; o verão em que o teu ódio pelo teu irmão Nonso cresceu tanto que sentias que te apertava as narinas, e em que o teu amor pelo teu primo Dozie inchou e te envolveu toda a pele. 

Foi no verão em que viste uma mangueira fender-se em duas metades quase perfeitas durante uma trovoada, quando os relâmpagos traçavam linhas de fogo no céu. Foi no verão em que Nonso morreu. 


* * * 

A Vovó não lhe chamava verão. Ninguém o fazia na Nigéria. Era agosto, encaixado entre a estação das chuvas e a estação do harmatão. Podia chover a cântaros todo o dia, chuva prateada a molhar a varanda onde tu e Nonso e Dozie espantavam os mosquitos à palmada e comiam milho assado; ou o sol cegava de tão forte e tu flutuavas no reservatório de água que a Vovó tinha serrado a meio, uma piscina improvisada. O tempo estava ameno no dia em que Nonso morreu; uns chuviscos de manhã, um sol morno à tarde e, ao fim do dia, a morte de Nonso. A Vovó gritou-lhe — gritou ao seu corpo sem vida —dizendo i laputago m, que ele a tinha traído, perguntando-lhe quem manteria agora o apelido Nnabuisi, quem protegeria a linhagem da família. 

Os vizinhos vieram lá a casa quando a ouviram. Foi a senhora da casa do outro lado da estrada — aquela cujo cão remexia no caixote do lixo da Vovó de manhã— que fez os teus lábios dormentes pronunciarem o número de telefone americano e que telefonou à tua mãe. Foi também essa vizinha que separou a tua mão da de Dozie, te fez sentar e te deu água. A vizinha tentou abraçar-te com força para não ouvires o que a Vovó dizia à tua mãe ao telefone, mas tu soltaste-te da vizinha e aproximaste-te do telefone. A Vovó e a tua mãe estavam concentradas no corpo de Nonso em vez de na sua morte. A tua mãe estava a insistir que o corpo de Nonso fosse enviado de avião para a América imediatamente e a Vovó estava a repetir as palavras da tua mãe e a abanar a cabeça. A loucura espreitava nos seus olhos. 

Tu sabias que a Vovó nunca tinha gostado da tua mãe. (Tinhas ouvido a Vovó dizer isto alguns verões antes à sua amiga: "Aquela negra americana atou o meu filho e meteu-o ao bolso.") Mas ao ver a Vovó ao telefone, compreendeste que ela e a tua mãe estavam unidas. Tinhas a certeza de que a tua mãe tinha a mesma loucura vermelha nos olhos. 

Quando falaste com a tua mãe, a voz dela ecoou na linha de uma maneira que nunca tinha acontecido em todos os anos em que tu e Nonso passaram o verão com a Vovó. 

Estás bem? perguntava-te repetidamente. Estás bem? Parecia estar com medo, como se suspeitasse que tu estavas bem, apesar da morte de Nonso. Tu mexias no fio do telefone e pouco dizias. Ela disse que ia mandar recado ao teu pai, embora ele estivesse algures numa floresta a assistir a um festival de Arte Negra onde não havia telefones nem rádios. Finalmente, soltou um soluço áspero, um soluço como o latido de um cão, antes de te dizer que ia ficar tudo bem e que ia arranjar maneira de o corpo de Nonso ser enviado para a América. Fez-te pensar no riso dela, um riso ho-ho-ho que começava lá no fundo da barriga dela e não ficava mais moderado ao chegar cá acima e não se adequava de todo ao seu corpo delgado. Quando ela ia ao quarto de Nonso dar-lhes as boas-noites, saía sempre a rir aquele riso. Na maior parte das vezes, tu tapavas as orelhas com as palmas das mãos para não ouvir, e mantinhas as palmas das mãos nas orelhas mesmo quando ela entrava no teu quarto para te dizer Boa-noite, querida, dorme bem. Nunca saía do teu quarto com aquele riso. 

Depois do telefonema, a Vovó ficou deitada de costas no chão, sem pestanejar, a rolar de um lado para o outro como se estivesse a brincar a um jogo pateta qualquer. 

Disse que era errado mandar o corpo de Nonso para a América, que o seu espírito pairaria sempre aqui. Ele pertencia a esta terra dura que não conseguira absorver o choque da sua queda. Ele pertencia às árvores daqui, uma das quais o tinha largado. Ficaste sentada a olhar para ela e primeiro desejaste que ela se levantasse e te tomasse nos braços e depois desejaste que não o fizesse. 

Passaram dezoito anos e as árvores no quintal da Vovó parecem não ter mudado; os seus ramos ainda se estendem e se entrelaçam, ainda lançam sombras sobre o quintal. 

Mas tudo o resto parece mais pequeno: a casa, o jardim nas traseiras, o reservatório da cor do cobre por causa da ferrugem. Até a sepultura da Vovó no quintal das traseiras parece minúscula, e imaginas o seu corpo dobrado para caber no caixão pequeno. A sepultura está coberta com uma camada fina de cimento; a terra à sua volta foi cavada recentemente e tu pões-te ao lado dela e imagina-la daqui a dez anos, por tratar, com ervas daninhas emaranhadas a cobrirem o cimento, a sufocarem a sepultura. 

Dozie está a observar-te. No aeroporto, abraçou-te de forma reservada, desejou-te as boas-vindas e disse que era uma surpresa teres voltado e tu fitaste o seu rosto durante muito tempo no átrio movimentado do aeroporto até ele desviar os olhos, aqueles olhos castanhos e tristes como os do caniche da tua amiga. Não precisavas daquele olhar para saber que o segredo de como Nonso morreu está seguro com Dozie, sempre esteve seguro com Dozie. Enquanto ele te levava de carro à casa da Vovó, perguntou-te como estava a tua mãe e tu disseste-lhe que a tua mãe vivia agora na Califórnia; não mencionaste que vivia numa comuna entre pessoas com a cabeça rapada e piercings no peito, ou que quando ela te telefonava desligavas sempre enquanto ela ainda estava a falar. 

Diriges-te para o abacateiro. Dozie continua a observar-te e tu olhas para ele e tentas recordar o amor que te entupia tão completamente naquele verão dos teus dez anos, que te fez segurar com força a mão de Dozie naquela tarde depois de Nonso morrer, quando a mãe de Dozie, a tua Titi Mgbechibelije, veio buscá-lo. Há um sofrimento delicado nas linhas da sua testa, uma melancolia na maneira como fica parado, com os braços caídos. Perguntaste subitamente se também ele tinha o mesmo anseio, como tu. Nunca soubeste o que estava por detrás do seu sorriso calmo, nas alturas em que ele se sentava tão imóvel que as moscas da fruta vinham pousar-lhe nos braços, o que estava por detrás dos desenhos que ele te dava e dos pássaros que ele tinha em gaiolas de cartão, afagando-os até morrerem. Perguntaste o que é que ele sentiria, se é que sentia alguma coisa, por ser o neto errado, o que não tinha o nome Nnabuisi. 

Estendes a mão para tocar no tronco do abacateiro no momento em que Dozie começa a dizer alguma coisa, sobressaltando-te porque pensas que ele vai falar da morte de Nonso, mas ele diz-te que nunca imaginou que regressarias para te despedires da Vovó, porque ele sabia o quanto a odiavas. Essa palavra—"odiar"— fica suspensa no ar entre ambos como uma acusação. Queres dizer-lhe que quando ele te telefonou para Nova Iorque, a primeira vez que ouvias a sua voz em dezoito anos, para te dizer que a Vovó tinha morrido — Pensei que quisesses saber, foram as suas palavras —  encostaste-te à secretária do teu escritório, as tuas pernas ficaram bambas, uma vida inteira de silêncio a desmoronar-se, e não foi na Vovó que pensaste, foi em Nonso, e foi nele, Dozie, e foi no abacateiro e foi naquele verão úmido no reino amoral da tua infância e foi em todas as coisas em que não te tinhas permitido pensar, que tinhas alisado até não passarem de folha fina e guardado. 

Mas não dizes nada e pressionas as palmas das tuas mãos com força contra o tronco rugoso da árvore. A dor acalma-te. Lembraste de comer os abacates; gostavas de os comer com sal e Nonso não gostava de os comer com sal e a Vovó ria sempre e dizia que tu não sabias o que era bom quando dizias que o abacate sem sal te provocava enjoos. 

No funeral de Nonso num cemitério frio da Virgínia, com pedras lapidares que se projetavam de forma obscena, a tua mãe estava de preto desmaiado da cabeça aos pés, até com um véu, o que fazia a sua pele cor de canela resplandecer. O teu pai manteve-se afastado de ambas, no seu dashiki habitual, com conchas da cor do leite enroladas à volta do pescoço. Dava a ideia de não ser da família, de ser um dos conhecidos que fungavam alto, e mais tarde perguntavam à tua mãe num murmúrio exatamente como é que Nonso tinha morrido, exatamente como é que tinha caído de uma das árvores a que trepava desde pequeno. 

A tua mãe não lhes disse nada, a todas aquelas pessoas que lhe faziam perguntas. Também não te disse nada a ti, sobre Nonso, nem quando limpou o quarto dele e arrumou as suas coisas. Não te perguntou se querias ficar com alguma coisa e tu sentiste-te aliviada. Não querias ficar com nenhum dos livros dele com a sua letra que a tua mãe dizia que era mais bonita do que frases escritas à máquina. Não querias as suas fotografias de pombos no parque, que o teu pai dizia que eram muito promissoras para uma criança. Não querias as suas pinturas, que eram meras cópias das do teu pai, mas em cores diferentes. Ou as suas roupas. Ou a sua coleção de selos. 

A tua mãe falou de Nonso, por fim, três meses depois do funeral, quando te informou do divórcio. Disse que o divórcio não tinha a ver com Nonso, que ela e o teu pai há muito tempo que vinham a afastar-se. (O teu pai estava em Zanzibar na altura; tinha partido logo a seguir ao funeral de Nonso.) Depois, a tua mãe perguntou: Como morreu o Nonso? 

Ainda te perguntas como é que aquelas palavras te saíram da boca. Continuas a não reconhecer a criança de olhos límpidos que tu eras. Talvez fosse por causa da maneira como ela disse que o divórcio não tinha a ver com Nonso — como se Nonso fosse o único capaz de ser uma razão, como se tu não estivesses sequer em jogo. Ou talvez fosse simplesmente o facto de sentires o desejo ardente que ainda sentes por vezes, a necessidade de alisar rugas, de espalmar coisas que achas demasiado irregulares. 

Disseste à tua mãe, num tom adequadamente relutante, que a Vovó tinha pedido a Nonso para trepar ao ramo mais alto do abacateiro para lhe mostrar que era um homem a sério. Depois pregou-lhe um susto — era uma brincadeira, garantiste à tua mãe — dizendo-lhe que havia uma serpente, a echi eteka, no ramo junto a ele. Disse-lhe que não se mexesse. É claro que ele se mexeu e escorregou do ramo e quando caiu ao chão o som foi como muitos frutos a caírem ao mesmo tempo. Um baque surdo, final. 

A Vovó ficou parada a olhar fixamente para ele e depois começou a berrar-lhe, a dizer que ele era o único filho, que tinha traído a linhagem ao morrer, que os antepassados ficariam desagradados. Ele estava a respirar, disseste à tua mãe. Estava a respirar quando caiu, mas a Vovó ficou só ali a berrar ao seu corpo partido até ele morrer. 

A tua mãe começou aos gritos. E tu perguntaste-te se as pessoas gritavam daquela maneira louca quando tinham acabado de optar por rejeitar a verdade. Ela sabia perfeitamente que Nonso tinha batido com a cabeça numa pedra e morrera instantaneamente — tinha visto o seu corpo, a cabeça rachada. Mas optou por acreditar que Nonso ainda estava vivo depois de cair. Gritou, uivou e amaldiçoou o dia em que tinha posto os olhos no teu pai na primeira exposição das pinturas dele. Depois telefonou-lhe, ouviste-a berrar-lhe ao telefone: A tua mãe é responsável! Ela fê-lo entrar em pânico e cair! Ela podia ter feito alguma coisa depois, mas em vez disso ficou ali como a africana fetichista e estúpida que é e deixou-o morrer! 

O teu pai falou contigo mais tarde, e disse que compreendia que era muito difícil para ti, mas que tinhas de ter cuidado com o que dizias, para não causares mais dor. E tu pensaste nas palavras dele — e perguntaste-te se ele saberia que estavas a mentir. 

Aquele verão, há dezoito anos, foi o verão da tua primeira revelação. O verão em que compreendeste que alguma coisa tinha de acontecer a Nonso para tu poderes sobreviver. 

Mesmo aos dez anos, sabias que algumas pessoas podiam ocupar demasiado espaço simplesmente por existirem, que, por existirem, algumas pessoas podem sufocar outras. 

A ideia de assustar Nonso com a echi eteka foi só tua. Mas explicaste-a a Dozie, explicaste que ambos precisavam que Nonso se magoasse — talvez que ficasse deficiente, que torcesse as pernas. Querias estragar a perfeição do seu corpo flexível, torná-lo menos adorável, menos capaz de fazer tudo o que fazia. Menos capaz de ocupar o teu espaço. Dozie não disse nada e limitou-se a fazer um desenho de ti com os teus olhos em forma de estrela. 

A Vovó estava lá para dentro a cozinhar e Dozie estava de pé em silêncio junto a ti, com os vossos ombros a tocarem-se, quando sugeriste a Nonso que trepasse até ao cimo do abacateiro. Era fácil levá-lo a fazê-lo; só tinhas de lhe lembrar que trepavas às árvores melhor do que ele. E realmente tu trepavas melhor às árvores, eras capaz de escalar uma árvore, qualquer árvore, em segundos —  eras melhor nas coisas que não precisavam de ser ensinadas, nas coisas que a Vovó não podia ensinar-te. 

Disseste-lhe que fosse primeiro, para ver se ele conseguia chegar ao ramo mais alto do abacateiro antes de tu o seguires. Os ramos eram fracos e Nonso era mais pesado do que tu. Pesado daquela comida toda que a Vovó o fazia comer. Come um bocadinho mais, dizia ela muitas vezes. Para quem pensas que fiz a comida? Como se tu não estivesses lá. Por vezes, ela dava-te uma palmadinha nas costas e dizia em igbo, É bom que aprendas, nne, é assim que vais tomar conta do teu marido um dia. 

Nonso trepou à árvore. Cada vez mais alto. Tu esperaste até ele estar quase no cimo, até as suas pernas hesitarem antes de treparem, a medo, um pouco mais alto. 

Esperaste por aquele breve instante em que ele estava entre movimentos. Um instante aberto, um instante em que viste o azul de tudo, da própria vida — o azul puro de uma das pinturas do teu pai, da oportunidade, de um céu lavado por uma chuvada matinal. E depois gritaste: — Uma serpente! É a echi eteka! Uma serpente! Não sabias bem se havias de dizer que a serpente estava num ramo perto dele ou a rastejar pelo tronco. Mas não importava, porque, naqueles breves segundos, Nonso olhou para baixo, para ti, e soltou-se, o pé escorregou-lhe, os braços soltaram-se. Ou talvez fosse a árvore que rejeitasse Nonso. 

Não te recordas agora de quanto tempo ficaste a olhar para Nonso antes de entrares em casa para chamar a Vovó, com Dozie durante todo o tempo em silêncio ao teu lado. 

A palavra de Dozie —"odiar" — flutua-te agora na cabeça. Odiar. Odiar. Odiar. A palavra dificulta-te a respiração, como foi difícil respirares enquanto esperavas, naqueles meses depois de Nonso morrer, que a tua mãe reparasse que tinhas uma voz pura como a água e pernas como elásticos, que a tua mãe acabasse as visitas de boas-noites ao teu quarto com aquele riso profundo, ho-ho-ho. Em vez disso, abraçava-te delicadamente quando te desejava boa-noite, falando sempre em murmúrios, e tu começaste a evitar os seus beijos, fazendo de conta que tinhas de tossir ou de espirrar. Ano após ano, enquanto ela te levava de estado em estado, acendendo lâmpadas vermelhas no seu quarto, proibindo qualquer menção à Nigéria ou à Vovó, recusando-se a deixar-te ver o teu pai, nunca mais riu aquele riso. 

Dozie fala agora, diz-te que começou a sonhar com Nonso há uns anos, sonhos em que Nonso é mais velho e mais alto do que ele, e tu ouves fruta a cair de uma árvore perto e perguntas-lhe, sem te voltares, O que é que tu querias, naquele verão, o que é que tu querias? 

Não sabes quando Dozie avança, quando se vem pôr por trás de ti, tão perto que sentes um cheiro cítrico nele, talvez tenha descascado uma laranja e não tenha lavado as mãos depois. Ele vira-te para si e olha para ti e tu olhas para ele e há linhas finas na sua testa e uma nova dureza nos seus olhos. Ele diz-te que não lhe passou pela cabeça querer nada, porque o que importava era o que tu querias. Há um longo silêncio enquanto observas a coluna de formigas pretas a dirigir-se para o tronco, cada formiga transporta um pedacinho de cotão branco, criando um padrão a preto e branco. Ele pergunta-te se sonhavas como ele e tu dizes que não, os teus olhos evitam os dele, e ele desvia-se de ti. Queres falar-lhe da dor que sentiste no peito e do vazio nos ouvidos e do ar agitado depois do seu telefonema, das portas abertas de par em par e das coisas espalmadas que voltaram a ganhar a sua forma, mas ele está a afastar-se. E tu estás a chorar, sozinha debaixo do abacateiro.



(A coisa à volta do teu pescoço; traduzido do inglês por Ana Saldanha)



(Ilustração: Ayogu Kingsley)



quinta-feira, 19 de março de 2020

SAO PAULO / SÃO PAULO, de Blaise Cendrars





Enfin voici des usines une banlieue un gentil petit

tramway

Des conduites électriques

Une rue populeuse avec des gens qui vont faire leurs

emplettes du soir

Un gazomètre

Enfin on entre en gare

Saint-Paul

Je crois être en gsre de

Nice

Ou débarquer à

Charring-Cross à

Londres

Je trouve tous mes amis

Bonjour

C’est moi



Tradução de Patrícia Galvão (Pagu):




Enfim eis usinas um subúrbio um gentil bondinho

Fios elétricos

Uma rua populosa com gente que vai fazer as suas compras da tarde

Um gasômetro

Enfim se chega na estação

São Paulo

Penso estar na estação de Nice

Ou desembarcar em Charring-Cross em Londres

Encontro todos meus amigos

Bom dia

Sou eu.



(Ilustração: Tarsila do Amaral – São Paulo)






domingo, 15 de março de 2020

NINGUEM PENSA COM O SEXO!, de Ercilia Nogueira Cobra[*]






A educação que se vem dando á mulher desde a idade Media deve-se attribuir o estado precario da sua saúde e a consequente degenerescência da raça humana, sobretudo no Brasil. 

E' logico. 

Ninguem se lembra de cuidar da arvore que dá o fructo humano. 

Educa-se a musculatura masculina, fundam-se centenas de clubs esportivos para os homens, mas, Si a mulher sae a campo para tomar parte em qualquer jogo, lá vêm os moralistas de chinó, sensualistas, velhos, que não podem ver uma perna de mulher sem ficarem excitados, lá vèm elles, os tartufos a berrar em nome da moral. 

Em nome da moral praticam-se infinitas immoralidades!... 

Cuida-se de tudo quanto diz respeito à elevação moral do homem e ao seu preparo para a luta pela existencia; á mulher, quando se lhe escolhe um collegio, é um convento. 

Ó curta mentalidade dos pais! Mandar para um collegio de reclusas creanças que deverão mais tarde viver no torvellinho humano! Enviar para a casa mystica, onde se sonha, creanças que deverão viver em plena vida, onde se luta e soffre! Confiar a irmãs religiosas completamente desinteressadas do mundo, creanças que deverão paimilhar os asperos caminhos da terra! 

E extranham o nervosismo das mulheres... 

E boquiabrem-se admirados deante da falta de tino pratico das filhas de Eva... 

Plantam flôres de estufa e querem colher fructos vulgares de alimentação! 

Querem que uma menina anemica, resultado de uma reclusão de annos e annos em collegios completamente leigos em coisas praticas, entre para o mundo e seja capaz de comprehender a engrenagem terra-a-terra e complicadissima da vida. 

E admiram-se da futilidade da mulher! 

E riem-se da infantilidade com que ella se lambuza de pinturas. 

Obrigam a mulher permanecer menor durante toda a vida por falta de uma instrucção. que a faça conhecer o mundo, fazem com que ella seja obrigada a se submetter a uma tutela aviltante por parte de homens que muitas vezes lhe são inferiores intellectualmente. 

Mas, si já está mais que provado que o cerebro não tem sexo e que o individuo humano é um producto do meio e da educação, como exigir mentalidade consciente. de um ser cujo cerebro é imbecilizado paulatinamente, mercê de uma educação que obedece aos mais estupidos preconceitos? 

Allegam a inferioridade da mulher. 

Esta inferioridade só poderia ser provada si a mulher fosse educada em condições de egualdade com o homem. 

Inferioridade na materia dos tecidos que formam o corpo humano, não ha nenhuma. 

A anatomia da mulher é perfeitamente egual á do homem. Nas escolas estuda-se anatomia humana e não anatomia feminina ou masculina, sepradamente. A differença única está no sexo. 

Mas ninguem pensa com o sexo! 

Pensa-se com o cerebro e este, está demonstrado á saciedade, é da mesma massa na mulher e no homem. 

Voltando a fallar na differença existente nas partes sexuaes, podemos argumentar contra os homens com as mesmas palavras de que elles se servem para argumentar contra a mulher. Assim, erigindo esta em padrão de superioridade da obra da natureza, diremos: o homem é sexualmente differente da mulher, lógo elle lhe é inferior. Como vêem, é uma lamina de dous gumes. 

Dando como exemplo os mamiferos domesticos, faceis de serem observados, vê-se que, em virtude de sua creação livre de preconceitos, feita nos campos em perfeita egualdade de condições, são elles perfeitamente eguaes em tamanho e intelligencia, só se distinguindo pelo sexo. Exemplo: o touro e a vaca, o cavallo e a égua. 

Só podemos distinguir-lhes os sexos examinando as respectivas partes sexuaes. 

Em tudo mais são perfeitamente eguaes, nos ossos, nos musculos, nos nervos, na massa encephalica, etc. 

E o homem das cavernas não devia ser mais differente da mulher coeva que hoje o macaco da macaca. 

Ainda agora as pernas cabelludas de algumas mulheres e o bigode quasi impossivel de disfarçar, assim como um principio de barba rebelde á pinça, são os melhores testemunhos e os unicos insuspeitos, porque materiaes. 

Hoje, a differença que ha entre uma mulher é um homem, devida á educação, já é notavel nos paizes quentes, sobretudo no Brasil. O musculo da mulher latina tende a desapparecer. Quem pega num braço de mulher gorda tem a sensação de estar pegando uma posta de carne. Não sente resistencia nenhuma. 

A natureza faz tudo muito bem. O homem estragou tudo com o seu egoismo. 

Sinão, vejamos: 

A natureza fez o macho muito mais bello que a femea. O fim que ella tinha em vista era conservar a belleza da raça. Assim, vemos o leão, o pavão, o peru e outros, muito mais attrahentes que as femeas respectivas. 

As femeas dos animaes têm horror aos machos que não apresentem garbo especial.. Um gallo de pennas já um tanto duvidosas é tratado com o maximo desprezo pelas galinhas. 

Tanto assim que a selecção é rigorosa por parte dos criadores. Como a major parte dos animaes machos vae para o açougue, o que é escolhido para dar a raça é o mais forte, o mais sadio possivel. 

Em caso contrario as femeas negam-se a se lhes submetter. 

Mas o homem achou que o bello devia ser apanagio da femea e qualificou as mulheres de bello sexo, sexo fragil. 

Interessantes, os homens! Gritam por ahi em todos os tons que a mulher é o sexo fragil e não póde submetter-se ás duras lutas da vida. Depois, fallando da propriedade gestadora da mulher, propriedade que a faz, quasi só, arcar com o mister de povoar o solo, desdizem-se de tudo e affirmam que sendo o parto o suprasummo das dôres supportaveis pela humanidade, a mulher é uma heroina, uma santa e um ente fórte. E' o caso de se lhes perguntar, em vista do conhecimento com que fallam da causa, si algum dia já pariram. 

Por fallar de força e de luta pela vida é bom observar que entre os animaes a femea se desencarrega perfeitamente bem da missão de sustentar seus rebentos. As carnivoras vão á caça. A leôa é tão feroz como o leão e a tigre como o tigre. 

A gata ensina seus pimpolhos a caçar. Mas não lhes ergue o rabo para ver a que sexo pertencem e fazer com que a femea fique em casa. A gallinha cria seus pintos sózinha. Só entre os homens é que se estabeleceu graças a mil convenções estupidas, a supremacia do macho. 

Estou citando os animaes como exemplo, para chamar a attenção de certos beocios que gostam de fallar das cousas mais materiaes, de naris para o ar, fitando as estrellas e inventando os maiores disparates. Mas aqui deixo escripto e bem alto o proclamo, que si de facto a mulher fosse physicamente inferior ao homem, e tivesse egual a elle apenas o cerebro, eu não esmoreceria, e prégaria a sua independencia do mesmo modo, com o mesmo enthusiasmo, com o mesmo ardor. 

Nao é a força que governa o mundo; É a intelligencia. E neste ponto ninguem poderâ erguer a voz contra a mulher. Apezar, dos constrangimentos e da inferioridade da educação que durante seculos ella vem recebendo, não faltam nomes de mulheres illustres no campo das artes, campo unico onde ellas têm podido competir com os homens, e assim mesmo só em tempos relativamente modernos, pois que em outras éras nem educação artistica llhes era dada. 

Si fosse a força que governasse o mundo, o poder estaria no casco das bestas. 

David matando Golias é um symbolo. 




[*] Manteve-se a ortografia original. 




(Virgindade anti-hygienica - preconceitos e convenções hypocritas; edição da autora; data manuscrita: 1924) 




(Ilutração: Di Cavalcanti - Cinco moças de Guaratinguetá) 



quinta-feira, 12 de março de 2020

SI LES POÈTES ÉTAIENT MOINS BÊTES / SE OS POETAS FOSSEM MENOS BESTAS, de Boris Vian


Si les poétes étaient moins bêtes

Et s’ils étaient moins paresseux

Ils rendraient tout le monde heureux

Pour pouvoir s’occuper en paix

De leurs souffrances littéraires

Ils construiraient des maisons jaunes

Avec des grands jardins devant

Et des arbres pleins de zoizeaux

De mirliflûtes et de lizeaux

Des mésongres et des feuvertes

Des plumuches, des picassiettes

Et des petits corbeaux tout rouges

Qui diraient la bonne aventure

Il y aurait de grands jets d’eau

Avec des lumières dedans

Il y aurait deux cents poissons

Depuis le croûsque au ramusson

De la libelle au pépamule

De l’orphie au rara curule

Et de l’avoile au canisson

Il y aurait de l’air tout neuf

Parfumé de l’odeur des feuilles

On mangerait quand on voudrait

Et l’on travaillerait sans hâte

A construire des escaliers

De formes encor jamais vues

Avec des bois veinés de mauve

Lisses comme elle sous les doigts

Mais les poètes sont très bêtes

Ils écrivent pour commencer

Au lieu de s’mettre à travailler

Et ça leur donne des remords

Qu’ils conservent jusqu’à la mort

Ravis d’avoir tellement souffert

On leur donne des grands discours

Et on les oublie en un jour

Mais s’ils étaient moins paresseux

On ne les oublierait qu’en deux



Tradução de Ruy Proença:


Se os poetas fossem menos bestas

E se fossem menos preguiçosos

Fariam todo o mundo feliz

Para poderem tratar em paz

Dos seus sofrimentos literários

Levantariam casas douradas

Cercadas por enormes jardins

E árvores cheias de colibris

De rustiflautas e de aqualises

De pardongros e de luziverdes

De plumuchas e de picapratos

E de pequenos corvos vermelhos

Que soubessem tirar nossa sorte

Haveria grandes chafarizes

Jorrando luzes de zil matizes

Não faltariam duzentos peixes

Do crocantusco ao empedraqueixo

Do trilibelo ao falamumula

Da suazmina ao rara quirila

E do guardavela ao canifeixe

Provaríamos de um ar fresquíssimo

Perfumado pelo odor das folhas

Comeríamos quando quiséssemos

E trabalharíamos sem pressa

A arquitetar escadarias

De formas nunca dantes sonhadas

Com tábuas raiadas de lilás

Lisas como só ela sob os dedos

Mas os poetas são muito bestas

Para começar, eles escrevem

Ao invés de pôr a mão na massa

Isso lhes traz profundos remorsos

Que levam consigo até a morte

Radiantes por sofrerem tanto

O mundo os aclama com requinte

E os esquece no dia seguinte

Se a preguiça não fosse mania

Teriam fama por mais um dia.



(Ilustração: Carl Spitzweg- Le poète)





segunda-feira, 9 de março de 2020

ERCÍLIA NOGUEIRA COBRA E O CORPO FEMININO, de Ana Júlia Poletto e Cecil Jeanine Albert Zinani






Ercília Nogueira Cobra publicou em 1932 o romance/ensaio “Virgindade inútil e anti-higiênica”, texto que não tem pretensões artísticas, mas uma crítica à sociedade da época, com seus corpos femininos silenciados e mantidos sob uma ditadura de pretensa docilidade e submissão. Seu público leitor são as próprias mulheres, a quem parece ser endereçado o texto.

Escritora paulista da década de 20, escreveu apenas dois livros: Virgindade Anti-Hygiênica e Virgindade inútil, livros que foram publicados em Paris, e o tema principal é a liberdade sexual das mulheres. A relação é direta com a prostituição, que a autora combatia, mas que fez parte de sua vida por bastante tempo. Em Caxias do Sul, segundo dados da pesquisadora Maria Lúcia de Barros Mott (pesquisa financiada pela Fundação Ford), no período de 1934, já com 43 anos, seu nome era Suzana Germano, e pelo que consta, dona de um cabaré chamado Royal, era conhecida como Suzy do Royal. Pouco se sabe da época em que Ercília viveu em Caxias do Sul, e a escassa documentação é de correspondências familiares.

Há dados sobre o nascimento de Ercília, em Mococa, no ano de 1891, mas não se tem o registro de óbito da escritora. Talvez devido às mudanças de nomes, de endereço, de país. A escritora viajou para Argentina, França, e frequentou rodas literárias cariocas e pela sua correspondência, era leitora de escritores e pensadores da época.

Ercília Nogueira especifica muito bem que a sua obra tem a finalidade de dizer verdades. O principal enfoque dos seus escritos é sobre o corpo feminino e a realidade da mulher brasileira no período de 1920-40. Em 1932 publicou os textos reunidos, e em Paris, quando da sua edição, intitulou-os Virgindade inútil e Anti-higienica [1].

No romance, Claudia, a personagem principal, é uma menina que vive no interior, nos padrões esperados para o sexo feminino da época: com fama de ser rica, espera casar-se, cuidar do lar, do marido e dos filhos. Após alguns problemas familiares a personagem acaba sem pretendentes e vive da prostituição. Antes do início do romance, a narradora situa a história na geografia da República da Bocolândia (COBRA, 1996, p. 45): solo rico, Flumen é a capital, a população em número de 20.000.000 “de bocós”[2]:

País fértil, cortado de rios, banhado pelo Atlântico numa extensão de 7.000km, mais ou menos. Isto quer dizer que é um país de costas largas... Solo riquíssimo capaz de produzir os mais variados produtos agrícolas, mas, os bocós preferem cultivar o analfabetismo, o amarelão e o jogo do bicho (...). A religião seguida é interessante, porque consiste em fazer exatamente o contrário do que manda o Evangelho em que se baseia (...) O analfabetismo é mantido de propósito a fim de que o povo se conserve em permanente estado de estupidez, e na cegueira de um medievalismo inconcebível no século XX. Os leitores já adivinharam que a Bocolândia não é pseudônimo nem da Argentina, nem dos Estados Unidos (COBRA, 1996, p. 45)

O interessante da personagem Claudia é que ela dispõe do seu corpo, conscientemente, é ela quem decide “tornar-se mulher”:

Claudia, a quem a ideia fixa da sua virgindade empolgava o pensamento, arquitetou um plano. Não queria que homem algum a possuísse virgem, com pleno conhecimento de causa, pois desejava fazer uma experiência: saber de fonte segura se o homem seria capaz de reconhecer uma mulher intata (sic), sem estar prevenido disso. (...) O jovem, apesar de não ser feio, não era o seu tipo, e por isso mesmo estava a calhar, porque não havia perigo de apaixonamento (sic). (COBRA, 1996, p.55)

A atitude da personagem é arrojada até para os dias de hoje, quanto mais para um texto do início do século XX e escrito do ponto de vista feminino. O outro texto da autora, o ensaio Virgindade anti-hygienica, continua (ou embasa) o processo de crítica e questionamento a respeito das mulheres, como é explicado na capa: “a autora continua neste livro o seu libelo contra o egoísmo dos homens e revolta-se contra a educação errada que se vem ministrando à mulher” (COBRA, 1996, p. 103) e numa breve introdução “Ao leitor”, a autora lança seu manifesto:

Mulheres, despertai!
Tende piedade das vossas irmãs que se vendem para comer. Um olhar para elas! Se não é possível impedir a desgraça das que já caíram, educai as mulheres de amanhã. Reclamemos nosso 13 de Maio. É tempo! (COBRA, 1996, p. 108)

O ensaio parece ser o rascunho do romance, no qual a autora esboça sua filosofia, dados colhidos em outros países [3], com diversas citações em francês, demonstrando ser leitora de diversos autores da época, criticando a educação da mulher, principalmente em solo brasileiro. Transita da biologia à filosofia, questionando as leis vigentes, os preconceitos instaurados e mesmo consciente destes, resolve publicar os textos sem pseudônimo, concluindo:

Mas os assassinatos de mulheres se reproduzem com frequência desoladora; a navalha, o punhal, o revólver têm trabalhado de tal forma contra a liberdade e segurança das suas colegas de sexo, nestes últimos tempos, que quem se cala, numa ocasião destas dá provas de covardia, e egoísmo. Demais, sendo mulher, é muito natural que receie que um belo dia uma dessas feras que andam soltas pela cidade e respondem pelo nome de homens possam também atentar contra sua pessoa física. (COBRA, 1996, p. 139)

A autora não tem pretensões artísticas, mas antes revoltar-se contra uma sociedade que dispõe do corpo das mulheres sem questionar seus reais desejos e necessidades. Ela não quer ser mais uma voz silenciada e silenciosa: ela deseja relatar as atrocidades feitas ao seu sexo, e utiliza-se da ficção para mostrar uma realidade deixada de lado, assim como o ensaio, para dialogar com seus pares, pois em todo o texto deixa claro que seu discurso é endereçado às mulheres, a quem se deve mostrar a realidade nua e crua, para que estas possam mudar seus destinos, e não os homens[4], que estão comodamente em seus papéis.

Textos, assim como corpos, são deixados de lado pela história corrente.

A história do corpo feminino é também a história de uma dominação na qual os simples critérios da estética já são reveladores: a exigência tradicional por uma beleza sempre ‘pudica’, virginal e vigiada, impôs-se por muito tempo, antes que se afirmassem libertações decisivas repercutidas nas formas e nos perfis, movimentos mais aceitos, sorrisos mais expansivos, corpos mais desnudos. A história do corpo, em outras palavras, não poderia escapar à história dos modelos de gênero e das identidades (CORBIN, 2012, p. 13)

O século XIX trouxe homens e mulheres emoldurados em suas sexualidades definidas e solidificadas, e “as mulheres haviam perdido sua libido agressiva, sendo doravante definidas como esposas e mães desprovidas de paixões”[5] (MATTHEWS-GRIECO, 2012, p. 301). A sexualidade ficou restrita a um grupo reduzido, entre eles, as prostitutas, personagens principais do texto de Ercília. Cada corpo-espaço narrando suas próprias experiências, suas histórias, sua literatura de um ponto de observação: o ser mulher. E o corpo é o espaço em que novas configurações podem ser pensadas. Como Butler questiona: de que serve esse espaço material chamado corpo?

A própria pensadora nos dá a resposta: “o corpo em si é um ultrapassamento. O corpo não é um fenômeno estático ou idêntico a si mesmo, mas um modo de intencionalidade, uma força direcional e modo de desejar” (BUTLER, 1987, p. 141). E como tal, sempre aberto a ressignificações, espaço que se constrói e é construído. O corpo é a forma que utilizamos para habitar o mundo, e o gênero pode ser entendido como um ato de fingir estarmos vinculados a esta (mulher) ou àquela forma (homem).

Ou, ainda, como a pensadora francesa Cixous, nos lembra em relação ao ato da escrita:

Escrever é precisamente a real possibilidade de mudança. O espaço que pode servir de trampolim para o pensamento subversivo, o movimento precursor da transformação das estruturas sociais e culturais... As mulheres apoderando-se da oportunidade de falar e, em consequência, sua revolucionaria entrada na história. (CIXOUS apud DALLERY, 1997, p. 71, grifos da autora)

Ercília Nogueira Cobra, faz uso da escrita, para questionar e dar voz aos corpos silenciados e dominados das mulheres.


Notas:


[1] Paris, Societé D´Editions Oeuvres des Maitres Célèbres, s.d.

[2] A edição que nos utilizamos é uma edição crítica publicada em 1996, com o título “Visões do passado, previsões do futuro – Duas modernistas esquecidas”, pela editora da Universidade Federal de Goiás. A obra reúne os textos de Ercília Nogueira Cobra e o romance de Adalzira Bittencourt intitulado “A sua Excia: A Presidente da República no ano 2500”. A introdução e as notas couberam a Susan C. Quinlan e Peggy Sharpe.

[3] Ercília Nogueira Cobra viajou para Argentina e França na década de 20 do século XX.

[4] Em seu ensaio ela se revolta contra as feministas, pregando que os homens devem ser deixados em paz e que “o que é preciso é acabar com o ridículo costume de vendar os olhos das moças, atirando-as indefesas a um mundo que só conhecem através de romances lamechas, imbecis e piegas” (COBRA, 1996, p. 127)

[5] Sara F. Matthews-Grieco no texto “Corpo e Sexualidade na Europa do Antigo Regime” faz um apanhado das práticas sexuais, e constata que até o século XVIII havia uma certa permissibilidade de homens e mulheres transitarem “livremente” de uma masculinidade efeminada ou de uma feminilidade masculinizada. In: CORBIN et al. História do Corpo: Da Renascença às Luzes, vol. 1.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero: Beavouir, Wittig e Foucault. In: ______; BENHABIB, Seyla; DRUCILLA, Cornell (Org.). Feminismo como crítica da modernidade. Releitura dos pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher. Trad. Nathanael da Costa Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.

COBRA, Ercília Nogueira. Virgindade anti-hygiênica. In:______. Visões do passado, previsões do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Goiânia: Ed. Da UFG, 1996.
CORBIN, Alain, et al. História do corpo. Vol.1Trad. Lúcia M.E. Orth. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

DALLERY, Arleen B. “A política da escrita do corpo: écriture féminine”. In: BORDO, Susan R.; JAGGAR, Alison M. (Org.). Gênero, corpo, conhecimento. Trad. Britto Lemos de Freitas. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1997.

MATTHEWS-GRIECO, Sara F. Corpo e sexualidade na Europa do Antigo Regime. In: _____. CORBIN, Alain, et al. História do corpo. Vol.1Trad. Lúcia M.E. Orth. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.


(Ilustração: Toulouse Lautrec - salon de la rue des moulins -1894)




sexta-feira, 6 de março de 2020

GATA, de Emiliano Perneta



Na brancura da pele e no gesto macio,

A carícia tu tens e a moleza de gata:

O teu andar sutil é doce como a pata

Desse animal pisando um tapete sombrio...



Tens uma morbidez lânguida de sonata,

Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio...

Se as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio,

Sinto uma sensação esquisita, que mata.



Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro,

E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,

Como te torces, pois, minha serpente de ouro!



O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso,

E o teu beijo me aquece e vibra como um hino,

Animal de voz rouca e gesto silencioso!




(Ilustração: Balthus - jeune fille a la mandoline)



terça-feira, 3 de março de 2020

CURSO BÁSICO DE RACISMO, de Eduardo Galeano



Desde os tempos da conquista e da escravidão, aos índios e aos negros foram roubados os braços e as terras, a força de trabalho e a riqueza; e também a palavra e a memória. No Rio da Prata, quilombo significa bordel, caos, desordem, degradação, mas esta expressão africana, no idioma banto, quer dizer campo de iniciação. No Brasil, quilombos foram os espaços de liberdade fundados selva adentro pelos escravos fugitivos. Alguns desses santuários resistiram durante muito tempo. Um século inteiro durou o reino livre de Palmares, no interior de Alagoas, que resistiu a mais de trinta expedições militares dos exércitos da Holanda e de Portugal. A história real da conquista e da colonização das Américas é uma história da dignidade incessante. Não houve nenhum dia sem rebelião em todos os anos daqueles séculos, mas a história oficial apagou quase todas essas revoltas, com o desprezo que merecem os atos de má conduta da mão de obra. Afinal, quando os negros e os índios se negavam a aceitar a escravidão e o trabalho forçado como destino, estavam cometendo delitos de subversão contra a organização do universo. Entre a ameba e Deus, a ordem universal se organiza numa longa cadeia de subordinações sucessivas. Assim como os planetas giram em torno do sol, devem girar os servos ao redor dos senhores. A desigualdade social e a discriminação racial integram a harmonia do cosmo desde os tempos coloniais. E assim continua sendo, e não só nas Américas. Em 1995, Pietro Ingrao fazia tal constatação na Itália: “Tenho uma empregada filipina em casa. Que estranho. É difícil aceitar a ideia de que uma família filipina tenha em sua casa uma empregada branca.” 

Nunca faltaram pensadores capazes de elevar a categoria científica os preconceitos da classe dominante, mas o século XIX foi pródigo na Europa. O filósofo Auguste Comte, um dos fundadores da sociologia moderna, acreditava na superioridade da raça branca e na perpétua infância da mulher. Como quase todos os seus colegas, Comte não tinha dúvidas sobre este princípio universal: são brancos os homens aptos a exercer o mando sobre os condenados às posições subalternas. 

Cesare Lombroso tornou o racismo uma questão policial. Este professor italiano, que era judeu, quis demonstrar a periculosidade dos selvagens primitivos através de um método muito semelhante ao que Hitler utilizou, meio século depois, para justificar o antissemitismo. Segundo Lombroso, os delinquentes nasciam delinquentes, e os sinais de animalidade que os denunciavam eram os mesmos sinais peculiares aos negros africanos e aos índios americanos descendentes da raça mongoloide. Os homicidas tinham pômulos largos, cabelo crespo e escuro, pouca barba, grandes caninos; os ladrões tinham nariz achatado; os violadores, pálpebras e lábios grossos. Como os selvagens, os criminosos não ruborizavam, o que lhes permitia mentir descaradamente. As mulheres, sim, ruborizavam, mas Lombroso descobriu que “até as mulheres consideradas normais têm sinais criminaloides”. Também os revolucionários: “Nunca vi um anarquista de rosto simétrico”. 

Herbert Spencer situava no império da razão as desigualdades que, hoje em dia, são leis do mercado. Embora passado mais de um século, algumas de suas certezas parecem atuais em nossa era neoliberal. Segundo Spencer, o Estado devia colocar-se entre parênteses, para não interferir nos processos de seleção natural que dão o poder aos homens mais fortes e mais bem dotados. A proteção social só servia para aumentar o enxame de desocupados e a escola pública procriava descontentes. O estado devia limitar-se a instruir as raças inferiores em ofícios manuais e a mantê-las longe do álcool. 

Como costuma ocorrer com a polícia em suas batidas, o racismo encontra o 

que ele mesmo põe. Até os primeiros anos do século XX ainda estava na moda pesar cérebros para medir a inteligência. Esse método científico, sobre proporcionar obscena exibição de massas encefálicas, demonstrou que os índios, os negros e as mulheres tinham cérebros bem menos pesadinhos. Gabriel René Moreno, a grande figura intelectual do século passado na Bolívia, já havia constatado, balança na mão, que o cérebro indígena e o cérebro mestiço pesavam entre cinco, sete e dez onças menos do que o cérebro de raça branca. Na relação com a inteligência, o peso do cérebro tem a mesma importância que o tamanho do pênis na relação com o desempenho sexual, ou seja: nenhuma. Mas os homens da ciência andavam à caça de crânios famosos e não se abatiam, apesar dos resultados desconcertantes de suas operações. O cérebro de Anatole France, por exemplo, pesou a metade do que pesou o de Ivan Turgueniev, embora os mérito literários de ambos fossem considerados parelhos... 

Há um século, Alfred Binet inventou em Paris o primeiro teste de coeficiente intelectual, com o saudável propósito de identificar as crianças que, nas escolas, precisassem de maior auxílio do professor. O próprio inventor foi o primeiro a advertir que tal instrumento não servia para medir a inteligência, que não pode ser medida, e que não devia ser usado para desqualificar ninguém. Mas, já em 1913, as autoridades norte-americanas impuseram o teste de Binet às portas de Nova York, bem perto da Estátua da Liberdade, aos recém-chegados imigrantes judeus, húngaros, italianos e russos, concluindo que, em cada dez imigrantes, oito tinham uma mente infantil. Três anos depois, as autoridades bolivianas aplicaram o mesmo teste nas escolas públicas de Potosí: oito de cada dez crianças eram anormais. E desde então, até nossos dias, o desprezo racial e social continua invocando o valor científico das aferições do coeficiente intelectual, que tratam as pessoas como se fossem números. Em 1994, o livro The bell curve teve um espetacular sucesso de vendas nos Estados Unidos. A obra, escrita por dois professores universitários, proclamava sem papas na língua o que muitos pensam mas não se atrevem a dizer, ou dizem em voz baixa: os negros e os pobres tem um coeficiente intelectual inevitavelmente menor do que os brancos e os ricos, por herança genética, e portanto o dinheiro empregado em sua educação e em assistência social é dinheiro jogado pela janela. Os pobres, e sobretudo os pobres de pele negra, são burros, e não são burros porque são pobres, mas pobres porque são burros. 

O racismo só reconhece a força de evidência de seus próprios preconceitos. Está provado que, para os pintores e escultores mais famosos do século XX, a arte africana foi fonte primordial de inspiração e muitas vezes objeto de plágio descarado. Também parece indubitável que os ritmos de origem africana estão salvando o mundo de morrer de tristeza ou de tédio. O que seria de nós sem a música que veio da África e gerou novas magias no Brasil, nos Estados Unidos e nas costas do Mar do Caribe? No entanto, para Jorge Luis Borges, para Arnold Toynbee e para muitos outros importantes intelectuais contemporâneos, era evidente a esterilidade cultural dos negros. 

Nas Américas, a cultura real é filha de várias mães. Nossa identidade, que é múltipla, realiza sua vitalidade criadora a partir da fecunda contradição das partes que a integram. Mas temos sido adestrados para não nos enxergarmos. O racismo, que é mutilador, impede que a condição humana resplandeça plenamente com todas as suas cores. A América continua doente de racismo: de norte a sul, continua cega de si mesma. Nós, os latino-americanos da minha geração, fomos educados por Hollywood. Os índios eram uns tipos de catadura amargurada, emplumados e pintados, mareados de tanto dar voltas ao redor das diligências. Da África, só sabemos o que nos ensinou o professor Tarzan, inventado por um romancista que nunca esteve lá. 

As culturas de origem não europeia não são culturas, mas ignorâncias, úteis, no melhor dos casos, para comprovar a impotência das raças inferiores, atrair turistas e dar a nota típica nas festas de fim de curso ou nas datas pátrias. Na verdade, a raiz indígena ou a raiz africana, e em alguns países as duas ao mesmo tempo, florescem com tanta força como a raiz europeia nos jardins da cultura mestiça. São evidentes seus frutos prodigiosos, nas artes de alto prestígio e também nas artes que o desprezo chama de artesanato, nas culturas reduzidas ao folclore e nas religiões depreciadas como superstição. Essas raízes, ignoradas mas não ignorantes, nutrem a vida cotidiana de gente de carne e osso, embora muitas vezes as pessoas não saibam ou prefiram não saber, e estão vivas nas linguagens que a cada dia revelam o que somos através do que falamos e do que calamos, em nossas maneiras de comer e de cozinhar o que comemos, nas músicas que dançamos, nos jogos que jogamos e nos mil e um rituais, secretos ou compartilhados, que nos ajudam a viver. 



(De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso; tradução de José Guadalupe Posada) 



(Ilustração: Diego Rivera)