segunda-feira, 9 de março de 2020
ERCÍLIA NOGUEIRA COBRA E O CORPO FEMININO, de Ana Júlia Poletto e Cecil Jeanine Albert Zinani
Ercília Nogueira Cobra
publicou em 1932 o romance/ensaio “Virgindade inútil e anti-higiênica”, texto
que não tem pretensões artísticas, mas uma crítica à sociedade da época, com
seus corpos femininos silenciados e mantidos sob uma ditadura de pretensa
docilidade e submissão. Seu público leitor são as próprias mulheres, a quem
parece ser endereçado o texto.
Escritora paulista da década
de 20, escreveu apenas dois livros: Virgindade Anti-Hygiênica e Virgindade
inútil, livros que foram publicados em Paris, e o tema principal é a liberdade
sexual das mulheres. A relação é direta com a prostituição, que a autora
combatia, mas que fez parte de sua vida por bastante tempo. Em Caxias do Sul,
segundo dados da pesquisadora Maria Lúcia de Barros Mott (pesquisa financiada
pela Fundação Ford), no período de 1934, já com 43 anos, seu nome era Suzana
Germano, e pelo que consta, dona de um cabaré chamado Royal, era conhecida como
Suzy do Royal. Pouco se sabe da época em que Ercília viveu em Caxias do Sul, e
a escassa documentação é de correspondências familiares.
Há dados sobre o nascimento
de Ercília, em Mococa, no ano de 1891, mas não se tem o registro de óbito da
escritora. Talvez devido às mudanças de nomes, de endereço, de país. A
escritora viajou para Argentina, França, e frequentou rodas literárias cariocas
e pela sua correspondência, era leitora de escritores e pensadores da época.
Ercília Nogueira especifica
muito bem que a sua obra tem a finalidade de dizer verdades. O principal
enfoque dos seus escritos é sobre o corpo feminino e a realidade da mulher
brasileira no período de 1920-40. Em 1932 publicou os textos reunidos, e em
Paris, quando da sua edição, intitulou-os Virgindade inútil e Anti-higienica
[1].
No romance, Claudia, a
personagem principal, é uma menina que vive no interior, nos padrões esperados
para o sexo feminino da época: com fama de ser rica, espera casar-se, cuidar do
lar, do marido e dos filhos. Após alguns problemas familiares a personagem
acaba sem pretendentes e vive da prostituição. Antes do início do romance, a
narradora situa a história na geografia da República da Bocolândia (COBRA,
1996, p. 45): solo rico, Flumen é a capital, a população em número de
20.000.000 “de bocós”[2]:
País
fértil, cortado de rios, banhado pelo Atlântico numa extensão de 7.000km, mais
ou menos. Isto quer dizer que é um país de costas largas... Solo riquíssimo
capaz de produzir os mais variados produtos agrícolas, mas, os bocós preferem
cultivar o analfabetismo, o amarelão e o jogo do bicho (...). A religião
seguida é interessante, porque consiste em fazer exatamente o contrário do que
manda o Evangelho em que se baseia (...) O analfabetismo é mantido de propósito
a fim de que o povo se conserve em permanente estado de estupidez, e na
cegueira de um medievalismo inconcebível no século XX. Os leitores já
adivinharam que a Bocolândia não é pseudônimo nem da Argentina, nem dos Estados
Unidos (COBRA, 1996, p. 45)
O interessante da personagem
Claudia é que ela dispõe do seu corpo, conscientemente, é ela quem decide
“tornar-se mulher”:
Claudia,
a quem a ideia fixa da sua virgindade empolgava o pensamento, arquitetou um
plano. Não queria que homem algum a possuísse virgem, com pleno conhecimento de
causa, pois desejava fazer uma experiência: saber de fonte segura se o homem
seria capaz de reconhecer uma mulher intata (sic), sem estar prevenido disso.
(...) O jovem, apesar de não ser feio, não era o seu tipo, e por isso mesmo
estava a calhar, porque não havia perigo de apaixonamento (sic). (COBRA, 1996,
p.55)
A atitude da personagem é
arrojada até para os dias de hoje, quanto mais para um texto do início do
século XX e escrito do ponto de vista feminino. O outro texto da autora, o
ensaio Virgindade anti-hygienica, continua (ou embasa) o processo de crítica e
questionamento a respeito das mulheres, como é explicado na capa: “a autora continua
neste livro o seu libelo contra o egoísmo dos homens e revolta-se contra a
educação errada que se vem ministrando à mulher” (COBRA, 1996, p. 103) e numa
breve introdução “Ao leitor”, a autora lança seu manifesto:
Mulheres,
despertai!
Tende
piedade das vossas irmãs que se vendem para comer. Um olhar para elas! Se não é
possível impedir a desgraça das que já caíram, educai as mulheres de amanhã.
Reclamemos nosso 13 de Maio. É tempo! (COBRA, 1996, p. 108)
O ensaio parece ser o
rascunho do romance, no qual a autora esboça sua filosofia, dados colhidos em
outros países [3], com diversas citações em francês, demonstrando ser leitora
de diversos autores da época, criticando a educação da mulher, principalmente
em solo brasileiro. Transita da biologia à filosofia, questionando as leis
vigentes, os preconceitos instaurados e mesmo consciente destes, resolve
publicar os textos sem pseudônimo, concluindo:
Mas
os assassinatos de mulheres se reproduzem com frequência desoladora; a navalha,
o punhal, o revólver têm trabalhado de tal forma contra a liberdade e segurança
das suas colegas de sexo, nestes últimos tempos, que quem se cala, numa ocasião
destas dá provas de covardia, e egoísmo. Demais, sendo mulher, é muito natural
que receie que um belo dia uma dessas feras que andam soltas pela cidade e
respondem pelo nome de homens possam também atentar contra sua pessoa física.
(COBRA, 1996, p. 139)
A autora não tem pretensões
artísticas, mas antes revoltar-se contra uma sociedade que dispõe do corpo das
mulheres sem questionar seus reais desejos e necessidades. Ela não quer ser
mais uma voz silenciada e silenciosa: ela deseja relatar as atrocidades feitas
ao seu sexo, e utiliza-se da ficção para mostrar uma realidade deixada de lado,
assim como o ensaio, para dialogar com seus pares, pois em todo o texto deixa
claro que seu discurso é endereçado às mulheres, a quem se deve mostrar a
realidade nua e crua, para que estas possam mudar seus destinos, e não os
homens[4], que estão comodamente em seus papéis.
Textos, assim como corpos,
são deixados de lado pela história corrente.
A
história do corpo feminino é também a história de uma dominação na qual os
simples critérios da estética já são reveladores: a exigência tradicional por
uma beleza sempre ‘pudica’, virginal e vigiada, impôs-se por muito tempo, antes
que se afirmassem libertações decisivas repercutidas nas formas e nos perfis,
movimentos mais aceitos, sorrisos mais expansivos, corpos mais desnudos. A
história do corpo, em outras palavras, não poderia escapar à história dos
modelos de gênero e das identidades (CORBIN, 2012, p. 13)
O século XIX trouxe homens e
mulheres emoldurados em suas sexualidades definidas e solidificadas, e “as
mulheres haviam perdido sua libido agressiva, sendo doravante definidas como
esposas e mães desprovidas de paixões”[5] (MATTHEWS-GRIECO, 2012, p. 301). A
sexualidade ficou restrita a um grupo reduzido, entre eles, as prostitutas,
personagens principais do texto de Ercília. Cada corpo-espaço narrando suas
próprias experiências, suas histórias, sua literatura de um ponto de
observação: o ser mulher. E o corpo é o espaço em que novas configurações podem
ser pensadas. Como Butler questiona: de que serve esse espaço material chamado
corpo?
A própria pensadora nos dá a
resposta: “o corpo em si é um ultrapassamento. O corpo não é um fenômeno
estático ou idêntico a si mesmo, mas um modo de intencionalidade, uma força
direcional e modo de desejar” (BUTLER, 1987, p. 141). E como tal, sempre aberto
a ressignificações, espaço que se constrói e é construído. O corpo é a forma
que utilizamos para habitar o mundo, e o gênero pode ser entendido como um ato
de fingir estarmos vinculados a esta (mulher) ou àquela forma (homem).
Ou, ainda, como a pensadora
francesa Cixous, nos lembra em relação ao ato da escrita:
Escrever
é precisamente a real possibilidade de
mudança. O espaço que pode servir de trampolim para o pensamento
subversivo, o movimento precursor da transformação das estruturas sociais e
culturais... As mulheres apoderando-se
da oportunidade de falar e, em consequência, sua revolucionaria entrada na história. (CIXOUS apud
DALLERY, 1997, p. 71, grifos da autora)
Ercília Nogueira Cobra, faz
uso da escrita, para questionar e dar voz aos corpos silenciados e dominados
das mulheres.
Notas:
[1] Paris, Societé
D´Editions Oeuvres des Maitres Célèbres, s.d.
[2] A edição que nos
utilizamos é uma edição crítica publicada em 1996, com o título “Visões do
passado, previsões do futuro – Duas modernistas esquecidas”, pela editora da
Universidade Federal de Goiás. A obra reúne os textos de Ercília Nogueira Cobra
e o romance de Adalzira Bittencourt intitulado “A sua Excia: A Presidente da
República no ano 2500”. A introdução e as notas couberam a Susan C. Quinlan e
Peggy Sharpe.
[3] Ercília Nogueira Cobra
viajou para Argentina e França na década de 20 do século XX.
[4] Em seu ensaio ela se
revolta contra as feministas, pregando que os homens devem ser deixados em paz
e que “o que é preciso é acabar com o ridículo costume de vendar os olhos das
moças, atirando-as indefesas a um mundo que só conhecem através de romances
lamechas, imbecis e piegas” (COBRA, 1996, p. 127)
[5] Sara F. Matthews-Grieco
no texto “Corpo e Sexualidade na Europa do Antigo Regime” faz um apanhado das
práticas sexuais, e constata que até o século XVIII havia uma certa
permissibilidade de homens e mulheres transitarem “livremente” de uma
masculinidade efeminada ou de uma feminilidade masculinizada. In: CORBIN et al.
História do Corpo: Da Renascença às Luzes, vol. 1.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Variações
sobre sexo e gênero: Beavouir, Wittig e Foucault. In: ______; BENHABIB, Seyla;
DRUCILLA, Cornell (Org.). Feminismo como crítica da modernidade. Releitura dos
pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher. Trad. Nathanael da Costa
Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.
COBRA, Ercília Nogueira.
Virgindade anti-hygiênica. In:______. Visões do passado, previsões do futuro.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Goiânia: Ed. Da UFG, 1996.
CORBIN, Alain, et al.
História do corpo. Vol.1Trad. Lúcia M.E. Orth. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012.
DALLERY, Arleen B. “A
política da escrita do corpo: écriture féminine”. In: BORDO, Susan R.; JAGGAR,
Alison M. (Org.). Gênero, corpo, conhecimento. Trad. Britto Lemos de Freitas.
Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1997.
MATTHEWS-GRIECO, Sara F.
Corpo e sexualidade na Europa do Antigo Regime. In: _____. CORBIN, Alain, et
al. História do corpo. Vol.1Trad. Lúcia M.E. Orth. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012.
(Ilustração: Toulouse Lautrec - salon de la rue des moulins -1894)
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