sexta-feira, 30 de abril de 2010

UM CÃO DE LATA AO RABO, de Machado de Assis






Era uma vez um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; idéia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.


— Meus rapazes, disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e mostrar que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.



— Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas de alegria.



— Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar, mas profundamente filosófico.



— Diga, diga.



— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de idéia. Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.



O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo, mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram — neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo, — naquele a pureza da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica, — tudo novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:



1º Estilo antitético e asmático.



2º Estilo ab ovo.



3º Estilo largo e clássico.



Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.





CAPÍTULO PRIMEIRO: 

ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO




O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma locomotiva.



Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino: duas idéias e uma só raiz.



A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.


O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento, como a idéia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrimachristi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.

O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.

Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e misteriosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu tumulto, a terra calou a sua orquestra. O furacão vinha retorcendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri, que é o condor das rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o máximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita; poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.


O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo, não com medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria extática, absorta, atônita.


Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.
As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das grandes cóleras. Tinha a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.


De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo. A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.





CAPÍTULO II: 

ESTILO AB OVO




Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.



O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênesis, cap. I, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.



Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, donde se pode inferir que já se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.



Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênesis, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.



Agora: — donde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis, cap. V, v. 16) entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu, ficou fazendo má idéia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos Heveus.



Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é contemporâneo do município, porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.


O município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas, se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades correlatas.


Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúcio. Num hino à Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente impossível ligar esse texto ao uso moderno.



Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes objetos com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no livro de Plutarco?



Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto que... (Não houvera tempo para concluir).





CAPÍTULO III: 

ESTILO LARGO E CLÁSSICO




Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.



Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antigüidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.



Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.



Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um mancebo apascoava o seu gado.



Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele, de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa donzela. Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropinquando-se o cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu logo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.



O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois que a malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou para si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.



Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.



Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do nosso digno mestre, e que desafiarão a foice da morte colhendo vasta seara de louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.



Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranquilo com a minha consciência; revelei três escritores.





(Publicado originalmente em O Cruzeiro, 2 de abril de 1878.)






(Ilustração: Marjorie Weiss – Joe’s black dog)







quarta-feira, 28 de abril de 2010

A FLOR E A FONTE, de Vicente de Carvalho







"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!...

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr do sol;

"Carícia das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!..."

As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...





(Ilustração: Monet – nenúfares)


segunda-feira, 26 de abril de 2010

ISADORA, de Eduardo Galeano







Descalça, despida, envolvida apenas pela bandeira argentina, Isadora Duncan dança o hino nacional.

Comete esta ousadia numa noite de 1916, num café de estudantes de Buenos Aires, e na manhã seguinte todo mundo sabe: o empresário rompe o contrato, as boas famílias devolvem suas entradas ao Teatro Colón e a imprensa exige a expulsão imediata desta pecadora norte-americana que veio à Argentina para macular os símbolos pátrios.

Isadora não entende nada. Nenhum francês protestou quando ela dançou a Marselhesa com um xale vermelho como traje completo. Se é possível dançar uma emoção, se é possível dançar uma idéia, por que não se pode dançar um hino?

A liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimônio, da dança clássica e de tudo aquilo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce de seu corpo.


(Mulheres)



(Ilustração: Isadora Duncan de Johon Sloan)



sábado, 24 de abril de 2010

EXPANSIONS/EXPANSÕES, de Paul Géraldy







Ah! Je vous aime! Je vous aime!

Vous entendez? Je suis fou de vous. Je suis fou...

Je dis des moi, toujours lês mêmes...

Mais je vous aime! Je vous aime! …

Je vous aime, comprenez-vous?

Vous riez? J’ai l’air stupide?

Mais comment faire alors pour que tu saches bien,

Pour que tu sentes bien? Ce qu’on dit, c’est si vide!

Je cherche, je cherche un moyen...

Ce n’est pas vrai que les baisers peuvent suffire.

Quelque chose m’étouffe, ici, comme un sanglot.

J’ai besoin d’exprimer, d’expliquer, de traduire.

On ne sent tout à fait que ce qu’on a su dire.

On vit plus ou moins à travers des mots.

J’ai besoin de mots, d’analyses.

Il faut, il faut que je te dise...

Il faut que tu saches... Mais quoi!

Si je savais trouver des choses de poète,

en dirais-je plus – résponds-moi –

que lorsque je te tiens ainsi, petite tête,

et que cent fois et mille fois

je te répète éperdument et te répète:

Toi! Toi! Toi! Toi!...




Tradução de Guilherme de Almeida:


Eu gosto, eu gosto de você.

Compreende?

Eu tenho por você uma doidice...

Falo, falo, nem sei o que

Mas gosto, gosto de você

Você ouviu bem isso que eu disse? ...

Você ri? Eu pareço um louco?

Mas, que fazer para explicar isso direito,

Para que você sinta? ...

O que eu digo é tão oco!

Eu procuro, procuro um jeito...

Não é exato que o beijo só pode bastar.

Qualquer cousa que me afoga, entre soluço e ais.

É preciso exprimir, traduzir, explicar...

Ninguém sente senão o que soube falar.

Vive-se de palavras, nada mais.

Mas é preciso que eu consiga

Essas palavras e que eu diga,

E você saiba... Mas, o que?


Se eu soubesse falar

Como um poeta que sente,

Diria eu mais do que

Quando tomo entre as mãos

Essa cabeça linda

E cem mil vezes, loucamente,

Digo e repito

E torno a repetir ainda:

Você! Você! Você! Você!




(Eu e você)




(Ilustração: Sandro Chia - el beso)


quinta-feira, 22 de abril de 2010

GREGUERIAS, de Ramon Gomez de la Serna






O ARCO do violino cose, como a agulha com a linha,
notas e almas, almas e notas.


A ESPINHA dorsal é o bastão que engolimos ao nascer.


QUANDO a mulher pede salada de frutas para dois,
aperfeicoa o pecado original.


O POETA se alimenta com bolachas da lua.


A LUA dos arranha-céus nao é a mesma lua dos
horizontes.


DANTE ia todos os sabados ao cabeleireiro, a fim de
aparar a coroa de louros.


AS ESPIGAS fazem cócegas no vento.


A GALINHA e a única cozinheira que sabe fazer, com
milho sem ovo, um ovo sem milho.


SÓ O POETA tem um relógio de lua.


OS HAICAIS sao telegramas poéticos.


NOSTALGIA: nevralgia das recordacões.


CAMOES e Cervantes sao como dois companheiros de
asilo, um caolho e o outro manco.


DOIS num carro: idílio. Três: adulterio. Quatro: sequestro.
Cinco: crime. Seis: tiroteio com a Polícia.


O APITO do trem só serve para semear a melancolia
pelos campos.


O SONHO é um depósito de objetos extraviados.




(Greguerias, traducao de Sérgio Alcides)


(Ilustração: Juan Miró – carnaval de arlequin)



terça-feira, 20 de abril de 2010

A MORTE DE ARQUIMEDES DE SIRACUSA, de Antônio Cícero






Os equilíbrios dos planos, as quadraturas

das parábolas, os cálculos da areia,

das esferas, dos cilindros e das estrelas:

nada do que realizei se encontra à altura

do que há por fazer. A matemática é longa,

a vida breve; e logo agora Siracusa,

sitiada, quer alavancas, catapultas,

dispositivos catóptricos, cuja obra

suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,

hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago

intuições por formular: áspero e amargo

pássaro engasgado. Nas paredes não cabe

mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo,

na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos!



(Ilustração: Archimedes death – mosaico antigo)




domingo, 18 de abril de 2010

POR QUE ENVELHECEMOS, de Roberto Goldkorn






À medida em que certas partes do mundo se civilizam de verdade, a expectativa de vida de seus afortunados moradores aumenta. Hoje temos muitos velhos vivendo melhor do que seus avós ou até mesmo do que seus pais.


Olhado como "mercado" é um filão apetitoso. Se eu estivesse iniciando a minha vida, escolheria a geriatria ou a gerontologia como carreira. Juntando a esse "mercado" à crença hedonista de que a juventude é única idade que presta, (o que leva pessoas de trinta anos a procurarem "preventivamente" o geriatra, a cirurgia plástica, a cosmetologia etc), temos aí, um verdadeiro banquete, para os profissionais da eterna juventude.


Assim começam a brotar especialistas em métodos antienvelhecimento ou como eles mesmos se definem, em deter o relógio biológico. Apesar disso, não há convergência de opiniões e de teorias sobre por que envelhecemos.


Alguns acham que envelhecemos porque estamos geneticamente programados para tal. Outros acham que não - o envelhecimento é um acidente da evolução biológica e pode ser evitado, ou pelo menos ter os efeitos relacionados a ele evitados.


No momento, existem cerca de doze teorias de envelhecimento consideradas sérias pela comunidade científica e cada uma tem seus fãs, que se debruçam sobre os dados estudando-os com afinco afim de comprová-los.


Como não sou cientista, pelo menos não dessa ciência oficial, não tenho compromisso com essa ou aquela teoria, mas não posso negar que o assunto me fascina. Sinto que essa fascinação foi aumentando gradualmente nos últimos vinte anos, e se transformou em (pre)ocupação depois que cruzei a barreira dos cinqüenta, não sei por que, talvez seja uma simples coincidência.


Para falar a verdade, apesar do tom irônico das linhas acima, também acho a velhice um saco, principalmente quando ela é conceitual, ou seja quando temos um sujeito de trinta anos "velho"!

Acho que ser velho na nossa sociedade é terrível, porque assim como em certas sociedades primitivas os velhos, que não podiam mais guerrear, nem procriar, eram levados para os confins da floresta para morrerem longe da tribo, nós também abandonamos os nossos velhos.


Mas na maioria dos casos eles se abandonaram primeiro.Mas vamos voltar a pergunta lá de cima? Por que envelhecemos?
Não, não vale recorrer as teorias dos cientistas, até porque elas não foram comprovadas (cientista adora comprovar coisas). Então vamos arriscar uns palpites:


1º) Envelhecemos porque há uma "cultura" da velhice, e à medida em que vamos apagando velinhas, vamos "vestindo" essa cultura. Quando as minhas filhas dizem para a mãe: "Você não vai ter coragem de comprar essa roupa de jovem, vai? Vai ficar ridícula!" Mesmo tendo uma mãe jovial e inteirona, estão sendo agentes dessa cultura...e quando a minha mulher se curva diante desse argumento, está sendo paciente dessa cultura e ...envelhece sociopsiquicamente.


2º) Envelhecemos por que não conseguimos estabelecer rotinas prazerosas, e a cada instante vemos desmoronar diante de nossos olhos os símbolos da estabilidade. Quando estabelecemos rotinas elas são aprisionantes, são altamente defensivas, são labirintos que criamos para nos proteger não se sabe bem de quê.


3º) Envelhecemos, porque não conseguimos romper com as rotinas, vamos perdendo a coragem (se é que um dia tivemos, mas o jovem esconde-se atrás da cultura do jovem e engana bem) de peitar a rotina, e criar outra. Romper com os roteiros fixos, é um dos métodos mais antienvelhecimento que conheço. Um dia, sem aviso, resolvi jogar para o alto todos os compromissos que tinha, e fui para a praia no meio da semana. Enquanto tomava água de coco, sentia que remoçava 10 anos.


4º) Envelhecemos porque somos egoístas e burros, e não pensamos nos outros eus, que irão herdar o corpo que agora estamos usando.


5º) Envelhecemos porque não nos esforçamos para aprender. Parece que ficamos tão traumatizados com os anos passados nos bancos escolares, que negamos a busca continuada de conhecimento, e mais que isso, riscamos do nosso vocabulário, a palavra sabedoria. Velho é ignorante, velho é chucro, é demais. É a mesma coisa que dizer criança sábia, bebê com grande conhecimento.


6º) Envelhecemos porque (lembram daquela cultura da velhice?) acabamos sendo convencidos que passamos da idade de amar, que amar dá muito trabalho, é coisa de jovem, arroubos da juventude etc, etc...


7º) Envelhecemos porque não conseguimos largar o nosso passado na primeira esquina, e assim, ficamos impedidos de olhar para o futuro. E aí ficamos repetindo: " aconteceu comigo em 1927 quando eu servia no tiro de guerra..."


8º) Envelhecemos porque ajudamos a construir uma sociedade belicista e hedonista e quando não podemos mais guerrear, ou desfilar corpos perfeitos, as regras que criamos e alimentamos, nos mandam para a cristaleira mofada e cheia de teias de aranha.


9º) Envelhecemos por causa do medo. Isso mesmo, nos refugiamos na velhice como se isso pudesse nos preservar de perigos, e sobressaltos da vida, mas é uma bobagem. Eu mesmo rezei tanto para chegarem os cabelos brancos... eu dizia: "só vão me levar a sério quando tiver cabelos brancos", hoje tenho e todos os dias os ameaço com um xampu tonalizante.


10º) Envelhecemos porque desistimos, arriamos os braços depois do enterro de um amigo, ou diante de um filme antigo cujos atores conhecemos na juventude, e dizemos: "agora estão todos mortos." Não falamos mas pensamos "logo, logo vou eu." E assim adiamos o viver, e envelhecemos mesmo.


Um famoso empresário da noite falou numa entrevista, "morrer é uma grande sacanagem quando se vive tão bem." Esse medo, esse fantasma também faz envelhecer, também carcome a nossa vitalidade, e nos rouba o tesão. Um dia e esse dia não está longe, vamos viver bem até os 150 anos ou mais, vamos poder fazer sexo aos 110, passear no parque de bike sem artrite, aos 115 mas ... se não mudarmos por dentro vamos continuar irreversivelmente envelhecendo. E vamos envelhecer sem savoir faire, sem sabedoria, e não é preciso ser nenhum Shakespeare para saber, que isso sim é o verdadeiro desastre.



(Ilustração: Velázquez – São Jerônimo)




sexta-feira, 16 de abril de 2010

THE FALL OF ROME / A QUEDA DE ROMA, de W. H. Auden







for Cyril Connolly


The piers are pummelled by the waves;
In a lonely field the rain
Lashes an abandoned train;
Outlaws fill the mountain caves.

Fantastic grow the evening gowns;
Agents of the Fisc pursue
Absconding tax-defaulters through
The sewers of provincial towns.

Private rites of magic send
The temple prostitutes to sleep;
All the literati keep
An imaginary friend.

Cerebrotonic Cato may
Extol the Ancient Disciplines,
But the muscle-bound Marines
Mutiny for food and pay.

Caesar’s double-bed is warm
As an unimportant clerk
Writes I DO NOT LIKE MY WORK
On a pink official form.

Unendowed with wealth or pity,
Little birds with scarlet legs,
Sitting on their speckled eggs,
Eye each flu-infected city.

Altogether elsewhere, vast
Herds of reindeer move across
Miles and miles of golden moss,
Silently and very fast.




Tradução de Pedro Sette-Câmara:



As ondas batem contra o cais;
a chuva sobre o descampado
açoita um trem abandonado;
nos montes há ladrões demais.

As vestes cada vez mais belas;
o Fisco busca sem pudores
abscônditos sonegadores
nos esgotos das cidadelas.

Faz-se dormir, com ritos mágicos,
no templo as sacras prostitutas;
e os literatos já recrutam
um amiguinho imaginário.

Catão, o cérebro perfeito,
louva os saberes do passado;
fuzileiros amotinados,
porém, exigem seus direitos.

Esfria o leito imperial
enquanto um reles funcionário
em seu rosado formulário
diz: MEU TRABALHO PAGA MAL.

Sem riqueza e sem piedade,
passarinhos de rubras pernas
aquecem seus ovos e observam
a gripe entrando nas cidades.

Num lugar distante, entrementes,
imensos bandos de veados
correm por milhas de dourado
musgo, silenciosamente.



(Ilustração: Caravaggio – Baco)


quarta-feira, 14 de abril de 2010

UMA RESOLUÇÃO, de Lima Barreto






A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de modo curioso: deram‑me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou‑me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou‑se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei‑me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram‑me eternamente. Um grande homem!...

O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.

Pareceu‑me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê‑las constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um titulo para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente.

Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados... Se minha mãe me parecia triste e humilde — pensava eu naquele tempo — era porque não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva...

Foi com estes sentimentos que entrei para o curso primário. Dediquei‑me açodadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram‑se desdobrando as minhas primitivas noções sobre o saber.

Acentuaram‑se‑me tendências; pus‑me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir...

Ouvia uma tentadora sibila falar‑me, a toda a hora e a todo o instante, na minha glória futura. Agia desordenadamente e sentia a incoerência dos meus atos, mas esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse cabalmente. Veio‑me a pose, a necessidade de ser diferente. Relaxei‑me no vestuário e era preciso que minha mãe me repreendesse para que eu fosse mais zeloso. Fugia aos brinquedos, evitava os grandes grupos, punha‑me só com um ou dois, à parte, no recreio do colégio; lá vinha um dia, porém, que brincava doidamente, apaixonadamente. Causava com isso espanto aos camaradas: Oh! O Isaías brincando! Vai chover...

A minha energia no estudo não diminuiu com os anos, como era de esperar; cresceu sempre progressivamente. A professora admirou‑me e começou a simpatizar comigo. De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio. Correspondi‑lhe à afeição com tanta força d'alma, que tive ciúmes dela, dos seus olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou. Tinha eu então dois anos de escola e doze de idade. Daí a um ano, sai do colégio, dando‑me ela, como recordação, um exemplar do Poder da Vontade, luxuosamente encadernado, com uma dedicatória afetuosa e lisonjeira. Foi o meu livro de cabeceira. Li‑o sempre com mão diurna e noturna, durante o meu curso secundário, de cujos professores, poucas recordações importantes conservo hoje. Eram banais! Nenhum deles tinha os olhos azuis de Dona Ester, tão meigos e transcendentes que pareciam ler o meu destino, beijando as páginas em que estava escrito!...

Quando acabei o curso do liceu, tinha uma boa reputação de estudante, quatro aprovações plenas, uma distinção e muitas sabatinas ótimas. Demorei‑me na minha cidade natal ainda dois anos, dois anos que passei fora de mim, excitado pelas notas ótimas e pelos prognósticos da minha professora, a quem sempre visitava e ouvia. Todas as manhãs, ao acordar-me, ainda com o espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: Vai, Isaías! vai!... Isto aqui não te basta... Vai para o Rio!

Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas, punha‑me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudessem valer...

Que faria lá, só, a contar com as minhas próprias forças? Nada... Havia de ser como uma palha no rodamoinho da vida — levado daqui, tocado para ali, afinal engolido no sorvedouro... ladrão... bêbado... tísico e quem sabe mais? Hesitava. De manhã, a minha resolução era quase inabalável, mas, já à tarde, eu me acobardava diante dos perigos que antevia.

Um dia, porém, li no Diário de *** que o Felício, meu antigo condiscípulo, se formara em Farmácia, tendo recebido por isso uma estrondosa, dizia o Diário, manifestação dos seus colegas.

Ora o Felício! pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também — eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!?

Li essa notícia na sexta‑feira. Durante o sábado tudo enfileirei no meu espírito, as vantagens e as desvantagens de uma partida. Hoje, já não me recordo bem das fases dessa batalha; porém uma circunstância me ocorre das que me demoveram a partir. Na tarde de sábado, sai pela estrada fora. Fazia mau tempo. Uma chuva intermitente caia desde dois dias.

Sai sem destino, a esmo, melancolicamente aproveitando a estiada.

Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha aproximava‑se e, pouco a pouco, via‑a subdividir‑se, multiplicar‑se; por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um V. Era a inicial de “Vai”. Tomei isso como sinal animador, como bom augúrio do meu propósito audacioso. No domingo, de manhã, disse de um só jato à minha mãe:

— Amanhã, mamãe, vou para o Rio.





(Recordações do Escrivão Isaías Caminha)




(Ilustração: Leandro Joaquim - Outeiro da Glória)



segunda-feira, 12 de abril de 2010

O HOMEM-ÁRVORE, de Antonin Artaud








(Carta a Pierre Loeb)






O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,


mas de vontade


e árvore de vontade que anda,voltará.


Existiu, e voltará.


Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,


ingestão, assimilação,incubação, excreção,


o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam


ao domínio da vontade decisora,


a vontade que em cada instante decide de si;


porque assim era a árvore humana que anda,


uma vontade que decide a cada instante de si,


sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.


Do que somos e queremos na verdade pouco resta,


um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?


Um organismo de engolir, pesado na sua carne,


e que defeca e em cujo campo,


como um irisado distante,


um arco-íris de reconciliação com deus,


sobrenadam,


nadam os átomos perdidos,


as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.


Quem foi Baudelaire?


Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?


Corpos que comeram, digeriram, dormiram,


ressonaram uma vez por noite,


cagaram entre 25 e 30 000 vezes,


e em face de 30 ou 40 000 refeições,


40 mil sonos, 40 mil roncos,


40 mil bocas acres e azedas ao despertar,


tem cada qual de apresentar 50 poemas,


o que realmente não é de mais,


e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática


está muito longe de ser mantido,


está todo ele desfeito,


mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.


Nós somos os 50 poemas,


o resto não somos nós,


mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.


Um organismo de engolir vive de nós a seguir.


Ora, este nada nada é,


não é qualquer coisa mas alguns.


Quero dizer alguns homens.


Animais sem vontade nem pensamento próprio,


ou seja, sem dor própria,


que em si não aceitam vontade de uma dor própria


e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.


E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,


fizeram este alambique de merda,


esta barrica de destilação fecal,


causa de peste e de todas as doenças


e deste lado de híbrida fraqueza,


de tara congênita, que caracteriza o homem nato.


Um dia o homem era virulento,


só era nervos elétricos,


chamas de um fósforo perpetuamente aceso,


mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,


os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,


essa cova de oco entre dois foles de força


que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,


e a vida mágica do homem caiu,


caiu do seu rochedo com ímã


e a inspiração que era o fundo


passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,


talvez excelência


mas à frente de um tal acervo de horrores,


que mais valia nunca ter nascido.


Não era o estado de paraíso,


era o estado-manobra, - operário,


o trabalho sem rebarbas, sem perdas,


numa indescritível raridade.


Mas esse estado por que não continuou?


Pelas razões que levam o organismo de animal,


que foi feito para e por animais


e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.


Exatamente pelas mesmas razões.


Mais fatais umas do que outras.


Mais fatal a explosão do organismo dos animais


que a do trabalho único


no esforço dessa vontade única


e muito impossível de encontrar.


Porque realmente o homem-árvore,


o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,


esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,


a capa ilusória do outro,


prosseguiu na sua vontade mas oculta,


sem compromissos nem contacto com o outro.


E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo


mas logo depois com muita força,


estilo bomba,


irá revelar a sua inanidade.


Porque devia criar-se um crivo


entre o primeiro dos homens-árvores


e os outros,


mas aos outros foi preciso o tempo,


séculos de tempo


para os homens que tinham começado


ganharem o seu corpo


como aquele que não começou


e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,


e não havia lá ninguém,


e lá não havia começo.


E então?


Então.


Então as deficiências nasceram


entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.


Em breve esse trabalho será concluído.


E a carapaça terá de ceder.


A carapaça do mundo presente.


Levantada sobre as mutilações digestivas


de um corpo esquartelado em dez mil guerras


e pela dor, e a doença, e a miséria,


e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.


Os que sustentam a ordem do lucro


das instituições sociais e burguesas,


que nunca trabalharam


mas grão a grão amealharam o bem roubado


desde há bilhões de anos


e conservado em certas cavernas de forças


defendidas pela humanidade inteira,


com algumas tantas exceções


vão ver-se obrigados a gastar as energias


nessa coisa que é combater,


vão lá poder deixar de combater,


pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica,


que há-de vir,


está a sua cremação eterna.


Por isto mesmo eu julgo


que o conflito entre a América e a Rússia,


reforçado ele seja a bombas atômicas,


pouco vai ser


ao lado e em face do outro conflito


que vai repentinamente estalar


entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,


e por outro o homem de vontade pura


e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.



(Eu, Antonin Artaud - tradução de Aníbal Fernandes)




(Ilustração: Pierre Loeb – musiciens afghans II)