sexta-feira, 31 de agosto de 2018

VEGLIA / VIGÍLIA, de Giuseppe Ungaretti






Un’intera nottata

buttato vicino

a un compagno

massacrato

con la sua bocca

digrignata

volta al plenilunio

con la congestione

delle sue mani

penetrata

nel mio silenzio

ho scritto

lettere piene d’amore



Non sono mai stato

tanto

attaccato alla vita



Tradução de J.T.Parreira:





Uma noite inteira

próximo

de um companheiro

massacrado

com a sua boca

a ranger à lua cheia

com o sangue hirto

das suas mãos

cravado

em meu silêncio

escrevi

cartas cheias de amor



Nunca estive assim

tão

encostado à vida





(Ilustração: Roberto Ferri - study by wagame)



sábado, 25 de agosto de 2018

O TRADUTOR CLEPTOMANÍACO, de Dezsö Kosztolányi









Falávamos de escritores e poetas, de velhos amigos, com que começamos a jornada, mas que depois se distanciaram e desapareceram. De quando em quando lançávamos um nome ao ar. Quem se lembra dele? Balançávamos a cabeça e um pálido sorriso se esboçava em nossos lábios. No espelho de nossos olhos surgia um rosto esquecido, uma carreira e uma vida perdidas. Quem sabe algo sobre ele? Viverá ainda? O silêncio respondia à pergunta. Neste silêncio, a coroa de flores de sua glória farfalhava, como farfalhavam as folhas no cemitério. Calávamo-nos. 

Ficamos assim durante minutos, até que alguém evocou o nome de Gallus. — Pobre sujeito — disse Kornél Esti—, encontrei-o anos atrás —, mas já faz sete ou oito anos, sob condições muito tristes. Foi quando lhe aconteceu algo relacionado com uma novela policial, algo que também havia sido uma história policial, a mais emocionante e mais dolorosa que já vivi. Porque vocês o conheciam, um pouco, ao menos. Era um garoto talentoso, eletrizante, intuitivo, consciencioso e culto também. Falava várias línguas. Sabia inglês tão bem, que dizem que o príncipe de Gales tomara aulas particulares com ele. Havia morado quatro anos em Cambridge. 

Mas tinha um defeito fatal. Não, não bebia. Mas surrupiava tudo que estava ao alcance de sua mão. Roubava como uma ave de rapina. Tanto lhe fazia se se tratava de um relógio de bolso, chinelos ou um enorme duto para chaminé. E não se preocupava também com o valor dos artigos roubados, nem com o seu volume e dimensões. Geralmente não se importava com a sua utilidade. Seu prazer consistia simplesmente em fazer aquilo que queria: roubar. Nós, os seus amigos mais próximos, nos esforçávamos para trazê-lo à razão. Falávamos à sua alma, carinhosamente. Repreendíamos e ameaçávamos. Ele concordava conosco. Prometia sempre lutar contra sua natureza. Mas a razão não vencia, sua natureza era mais forte. Sempre recaía. 

Quantas vezes desconhecidos não o repreenderam, e não o humilharam em lugares públicos, quantas vezes não o flagraram, e, nessas ocasiões, tínhamos de tomar atitudes inacreditáveis para minimizar as consequências de seus atos. Certa vez, porém, no expresso para Viena, foi surpreendido por um comerciante morávio ao aliviá-lo de sua carteira, e entregue à polícia na estação mais próxima. Trouxeram-no algemado para Budapeste. 

Tentamos salvá-lo de novo. Vocês, que escrevem, sabem que tudo é decidido pelas palavras: tanto o valor de um poema como o destino de um homem. Tentamos provar que ele era um cleptomaníaco e não um ladrão. Aquele que conhecemos geralmente é cleptomaníaco. Aquele que não conhecemos geralmente é ladrão. O tribunal não o conhecia; assim foi qualificado — ladrão, e condenado a dois anos de prisão. 

Depois de libertado, numa sombria manhã de dezembro, próximo ao Natal, apareceu-me, esfomeado, esfarrapado. Jogou-se a meus pés. Implorou que eu não o abandonasse, que o ajudasse, que lhe arrumasse trabalho. Escrever sob seu próprio nome estava fora de qualquer cogitação. Nada sabia fazer, porém, senão escrever. Procurei então um editor honesto e humano, recomendei-o, e no dia seguinte o editor incumbiu-o da tradução de uma novela inglesa de detetives. Era um daqueles lixos com os quais nós não queremos sujar as mãos. Não o lemos. No máximo o traduzimos, usando luvas. Seu título — até hoje me lembro —, “O misterioso castelo do conde Vitsislav”. Mas que importava? Fiquei feliz por ajudá-lo, ele feliz por poder comer e assim começou o trabalho. Trabalhou com tanto afinco que em duas semanas — muito antes do prazo — entregou o manuscrito. 

Fiquei extremamente surpreso quando, passados alguns dias, o editor me comunicou que a tradução do meu protegido era totalmente inutilizável, e por isso não estava disposto a pagar nenhum vintém. Não entendi bem. Fui até lá de táxi. 

O editor, sem nada dizer, entregou-me o manuscrito. Nosso amigo o datilografara com capricho, numerara as páginas, até as prendera com uma fita com as cores nacionais. Isso era muito dele, pois — acho que já disse —, em questões de literatura, era preciso e escrupulosamente meticuloso. Comecei a ler o texto. Soltei um grito de admiração. Frases claras, mudanças engenhosas, montagens linguísticas espirituosas se sucediam, muito mais digna que o original. Espantado, perguntei ao editor que defeito tinha encontrado. Ele me entregou original inglês, de forma tão silenciosa quanto fez com o manuscrito, e pediu-me para comparar os dois textos. Por meia hora, mergulhei alternadamente no original e no manuscrito. Ao final, levantei-me consternado. Declarei que ele estava com toda a razão. 

Por quê? Nem tentem adivinhar. Estão enganados. Não tentou contrabandear o texto de um outro original. Era realmente “O misterioso castelo do conde Vitsislav”, numa tradução fluente, artística, e por vezes poética. Estão novamente enganados. O texto não continha nenhum escorregão. Afinal, ele sabia inglês e húngaro perfeitamente. Parem de tentar. Disso vocês nunca ouviram falar. A mancada foi outra. Totalmente outra. 

Eu também descobri aos poucos, gradualmente. Prestem atenção. A primeira frase do original inglês dizia assim: “As trinta e seis janelas do velho castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, no salão de baile, quatro lustres de cristal iluminavam luxuosamente.” Na tradução húngara estava: “As dezessete janelas do castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, dois lustres de cristal iluminavam luxuosamente.” Arregalei meus olhos e continuei a leitura. Na terceira página, o escritor inglês dizia: “Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira recheada e atirou a quantia pedida, mil e quinhentas libras...” Isso foi interpretado da seguinte forma pelo tradutor húngaro: “Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira e atirou a quantia pedida, cento e cinquenta libras...” 

Tive uma péssima premonição, que — felizmente se tornou uma certeza nos minutos seguintes. Mais abaixo, no fim da terceira página, li na edição inglesa: “A condessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salão de baile, vestida para a noite, usando as velhas joias da família: tiara de diamantes, herdada da sua tataravó, esposa de um príncipe alemão; sobre seu colo de cisne, pérolas verdadeiras de brilho opaco; seus dedos quase se enrijeciam com os anéis de brilhante, safira, esmeralda.” 

O manuscrito húngaro, para minha grande surpresa, assim trazia: “A condessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salão de baile, vestida para a noite...” Sem mais. A tiara de diamantes, o colar de pérolas, os anéis de brilhante, safira e esmeralda haviam desaparecido. Compreendem o que fizera esse infeliz escritor, merecedor de um futuro melhor? Simplesmente roubou as joias de família da condessa Eleonora, e, com a mesma imperdoável leviandade, roubou até o simpático conde Vitsislav, deixando das suas mil e quinhentas libras apenas cento e cinquenta, da mesma forma surrupiou dois dos quatro lustres de cristal, e desviou vinte e quatro das trinta e seis janelas do velho castelo desgastado pelo vento. Tudo começou a girar ao meu redor. Minha surpresa só aumentou quando constatei, sem nenhuma dúvida, que essa determinação percorria todo o seu trabalho. Por onde sua pena de tradutor passasse, sempre causava prejuízo aos personagens, mesmo que só se apresentassem naquele capítulo, e, sem respeitar móvel ou imóvel, atropelava a quase indiscutível sacralidade da propriedade privada. Trabalhava de várias maneiras. Na maioria das vezes, os objetos desapareciam sem mais nem menos. Aqueles cofres, talheres de prata, cuja missão era enobrecer o original inglês, não os encontrei em nenhum lugar no manuscrito húngaro. Em outros casos só tirava uma parte, a metade ou dois terços. Se alguém mandava o criado levar cinco malas para a cabine do trem, ele só mencionava duas; sobre as outras três silenciava sorrateiramente. De todos os casos, para mim, o pior — porque isso decididamente mostrava má intenção e falta de hombridade — era que com frequência trocava as pedras e metais preciosos por outros sem nobreza e sem valor; a platina por lata, o ouro por latão, o diamante por zircotina ou vidro. 

Despedi-me do editor, cabisbaixo. Por curiosidade, pedi emprestado o manuscrito e o original inglês. Como estava intrigado pelo verdadeiro enigma dessa novela policial, continuei em casa minha investigação, e fiz um balanço completo dos artigos roubados. Trabalhei sem parar da uma e meia da tarde até seis e meia da manhã. Descobri, finalmente, que nosso desvirtuoso colega escritor apropriou do original inglês, durante a tradução, ilegal e indecentemente, 1.579.251 libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérola, 181 relógios de bolso, 309 brincos, 435 malas, sem falar das propriedades, florestas e pastos, castelos de príncipes e barões, e outros objetos menores, lenços, palitos de dente, campainhas, cuja listagem seria muito comprida e talvez inútil. Onde colocou todos esses móveis e imóveis que afinal só existiam no papel, no reino da imaginação; qual era a razão do seu furto; a investigação iria muito longe e assim melhor nem especular. Mas tudo isso me convenceu de que ele ainda era escravo de seu vício criminoso, ou da doença, e não existia nenhuma esperança de cura, e não merecia ser amparado pela sociedade honesta. Retirei minha proteção devido à minha indignação moral. Entreguei-o ao destino. Depois, nunca mais ouvi falar dele. 




(Tradução do original húngaro: Ladislao Szabo) 



(Ilustração: museum artes xfig Théodore Géricault - Portrait of a Kleptomaniac)




sexta-feira, 24 de agosto de 2018

HOMBRES NECIOS QUE ACUSÁIS / HOMENS NÉSCIOS QUE ACUSAIS, de Sor Juana Inés de La Cruz




 




Hombres necios que acusáis

a la mujer sin razón,

sin ver que sois la ocasión

de lo mismo que culpáis:



si con ansia sin igual

solicitáis su desdén,

¿por qué queréis que obren bien

si las incitáis al mal?



Combatís su resistencia

y luego, con gravedad,

decís que liviandad

lo que hizo la diligencia.



Parecer quiere el denuedo

de vuestro parecer loco,

al niño que pone el coco

y luego le tiene miedo.



Queréis, con presunción necia,

hallar a la que buscáis,

para pretendida, Thais,

y en la posesión, Lucrecia.



¿Qué humor puede ser más raro

que el que, falto de consejo,

él mismo empaña el espejo,

y siente que no esté claro?



Con el favor y el desdén

tenéis condición igual,

quejándoos, si os tratan mal,

burlándoos, si os quieren bien.



Opinión, ninguna gana;

pues la que más se recata,

si no os admite, es ingrata,

y si os admite, es liviana.



Siempre tan necios andáis

Que, con desigual nivel,

A una culpáis por cruel

y a otra por fácil culpáis.



¿Pues cómo ha de estar templada

la que vuestro amor pretende,

si la que es ingrata, ofende,

y la que es fácil, enfada?



Mas, entre el enfado y pena

que vuestro gusto refiere,

bien haya la que no os quiere

y quejaos en hora buena.



Dan vuestras amantes penas,

a sus libertades alas,

y después de hacerlas malas

las queréis hallar muy buenas.



¿Cuál mayor culpa ha tenido

en una pasión errada:

la que cae de rogada,

o el que ruega de caído?



¿O cuál es más de culpar,

Aunque cualquiera mal haga:

la que peca por la paga,

o el que paga por pecar?



Pues ¿para qué os espantáis

de la culpa que tenéis?

Queredlas cual las hacéis

o hacedlas cual las buscáis.



Dejad de solicitar,

y después, con más razón,

acusaréis la afición

de la que os fuere a rogar.



Bien con muchas armas fundo

que lidia vuestra arrogancia,

pues en promesa e instancia

juntáis diablo, carne y mundo.



Tradução de Aílton de Souza e Jorge Luis Gutiérrez:




Homens néscios que acusais

a mulher sem razão,

sem ver que sois a causa

do mesmo que culpais:



se com ânsia sem igual

solicitais seu desdém,

por que quereis que procedam bem

se as incitais ao mal?



Combateis sua resistência

e logo, com gravidade,

dizeis que é leviandade

o que fez a diligência.



Assemelhar-se quer a ousadia

de vosso parecer louco,

ao menino que faz uma mostro

e logo lhe tem medo.



Quereis, com presunção néscia,

encontrar à que procurais,

para prometida, Thais,

e para possuir, Lucrecia.



Que humor pode ser mais estranho

que aquele que, sem conselho,

ele próprio embaça o espelho,

e reclama que não está claro?



Com o favor e o desdém,

estás em igual condição,

queixando-se, se lhes tratam mal,

zombando, se lhes querem bem.



Opinião, nenhuma ganha,

pois a que mais se recata,

se não vos admite, é ingrata,

e se vos admite, é leviana.



Sempre tão néscios andais

que, com desigual cota,

a uma culpais por cruel

e a outra por fácil culpais.



Pois como há de ser moderada

a que vosso amor pretende,

se a que é ingrata, ofende,

e a que é fácil, entedia?



Mas, entre o tédio e a aflição

que vosso gosto insinua,

bem haja a que não vos queira

e lamentai-vos em hora idônea.



Dão vossas queridas tristezas,

a suas liberdades asas,

e depois de torná-las más

quereis achá-las virtuosas.



Qual maior culpa tem tido

em uma paixão errada:

a que cai pelos rogos

ou quem roga por caído?



Ou quem tem maior culpa,

independente do mal que faça:

a que peca por salario,

ou quem para pecar paga?



Pois, para que vos espantais

da culpa que tens?

quereis elas como as fazeis

ou fazei elas como as procurais.



Deixais de solicitar,

e depois, com mais razão,

acusareis a afeição

da que vos for a suplicar.



Bem com muitas armas fundo

que luta vossa arrogância,

pois em promessa e instancia

juntais diabo, carne e mundo.




(Ilustração: Rene Magritte - The sage's carnival, 1947)





quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O PEIXE DE OURO, de Haroldo Maranhão






De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita cavada na carne. E são deletérias as pernas do peixe de ouro, que se locomove como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico, o andar do peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso lisíssimo, tapando a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os passos, vejo-lhe as ancas, de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue, todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor. Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de ouro, e quero ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas já a cabeleira foi roubada à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus dentes na nuca do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma fruta, meus lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na pedra, minha camisa ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato que trepida a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, fiava pele há pouco distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe de ouro perde aos poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam, interligados por tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo um nervo longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d'amore. Desloco, e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se serve de um doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal calcificada. A meu lado, alguém empunha uma das tíbias como dava, e é milagre a sobrevida do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não sei por que espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros tendões, nenhuma carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei. Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos, o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de ouro.


(Ilustração: Fadwa Angela - golden fish) 





domingo, 19 de agosto de 2018

SOMOS TODOS LOS CUADROS DE GUSTAV KLIMT / SOMOS TODOS OS QUADROS DE GUSTAV KLIMT, de Karina Varcácell









donde las personas que se abrazan

parecieran condenadas a quererse



Momificados

acalambrados

nuestro amor se debate entre

acupuntura o quiropraccia

sin descartar totalmente la lucha libre.



Somos Danae enroscada

con los ojos cerrados

pero despiertos

un solo cuerpo que nos resume

la soledad de la carne.



Crecen a nuestro entorno/se multiplican

células

o es quizá caspa desprendida de nuestras pieles

o es quizá que la mortalidad nos está afectando.



Somos la página sesenta de un libro que ya

nadie abre en la biblioteca

estamos ahí

pegados al papel

impresos/impresionados/presionados



nunca

hemos

dejado

de

abrazarnos.





Tradução de Diana de Hollanda:




nos quais as pessoas que se abraçam

pareceriam condenadas a se querer



Mumificados

contraídos

nosso amor se debate entre

acupuntura ou quiropraxia

sem descartar totalmente a luta livre.



Somos Danae enroscada

com os olhos fechados

mas despertos

um só corpo que nos resume

a solidão da carne.



Crescem ao nosso redor/se multiplicam

células

ou é talvez caspa solta de nossas peles

ou é talvez a mortalidade nos afetando.



Somos a página sessenta de um livro que já

ninguém abre na biblioteca

estamos ali

colados no papel

impressos/ impressionados/ pressionados



nunca

deixamos

de

nos

abraçar.




(Ilustração: Gustav Klimt- The kiss)





quinta-feira, 16 de agosto de 2018

GRINGUINHO, de Samuel Rawet







Chorava. Não propriamente o medo da surra em perspectiva, apesar de roto o uniforme. Nem para isso teria tempo a mãe. Quando muito uns berros em meio à rotina. Tiraria a roupa; a outra, suja, encontraria no fundo do armário, para a vadiagem. Ao dobrar a esquina tinha a certeza de que nada faria hoje. Os pés, como facas alternadas, cortavam o barro de pós-chuva. A mangueira do terreno baldio onde caçavam gafanhotos, ou jogavam bola, tinha pendente a corda do balanço improvisado. Reconheceu-a. Fora sua e restara da forte embalagem que os seus trouxeram. Ninguém na rua. Os outros decerto não voltaram da escola ou já almoçavam. Ninguém percebeu-lhe o choro. A vizinha sorriu ao espantar o gato enlameado da poltrona da varanda. Conteve o soluço ao empurrar o portão. Com a manga esfregava o rosto marcando faixas de lama na face. Brilhavam ainda da chuva as folhas do fícus. Olhou a trepadeira. Novinha, mas já quase passando a janela. Na sala hesitou entre a cozinha e o quarto. A mãe de lenço à cabeça estaria descascando batatas ou moendo carne. Despertara-lhe a atenção ao lançar os livros sobre a cômoda. Que trocasse a roupa e fosse buscar cebolas no armazém. Nada mais. Nem o rosto enfiara para ver-lhe o ar de pranto e a roupa em desalinho. À entrada do quarto surpreendeu o blá-blá do caçula que, olhos no teto, tocava uma harpa invisível. Era-lhe estranha a sala, quase estranhos, apesar dos meses, os companheiros. Os olhos no quadro-negro espremiam-se como se auxiliassem a audição perturbada pela língua. Autômato copiava nomes e algarismos (a estes, compreendia), procurando intuir as frases da professora. Às vezes perdia-se em fitá-la. Dentes incisivos salientes, os cabelos lembrando chapéus de velhas múmias, os lábios grossos. Outras, rodeava os olhos pelas paredes carregadas de mapas e figurões. A janela lembrava-lhe a rua onde se sentia melhor. Podia falar pouco. Ouvir. Nem provas nem arguições: o apelido. Amolava-o a insistência dos moleques. Esfregou ante o espelho os olhos empapuçados. Ontem rolara na vala com Caetano, após discussão. Atrapalhou o jogo. O negrinho cresceu em sua frente no ímpeto de derrubá-lo. Gringuinho burro! Ajeitou sobre a cama o uniforme. A lição não a faria. Voltar à mesma escola, sabia impossível também. Por vontade, a nenhuma. Antigamente, antes do navio, tinha seu grupo. Verão, encontravam-se na praça e atravessando o campo alcançavam o riacho, onde nus podiam mergulhar sem medo. À chatura das lições do velho barbudo (de mão farta e pesada nos tapas e beliscões) havia o bosque como recompensa. Castanheiros de frutos espinhentos e larga sombra, colinas onde o corpo podia rolar até a beira do caminho. Framboesas que se colhiam à farta. Cenoura roubada da plantação vizinha. A voz da mãe repetia o pedido de cebolas. Coçar de cabeça sem vontade. No inverno havia o trenó que se carregava para montante, o rio gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa a sopa quente de beterrabas, ou o fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do avô recém-chegado das orações e repetia com entusiasmo o que aprendera. Onde o avô? Gostava do roçar da barba na nuca que lhe fazia cócegas, e dos contos que lhe contava ao dormir. Sempre milagres de homens santos. Sonhava satisfeito com a eternidade. A voz do avô era rouca, mas boa de se ouvir. Mais quando cantava. Os olhos no teto de tábuas, ou acompanhando a chaminé do fogão, a melodia atravessava-lhe o sono. Hoje entrara tarde na sala. Não gostava de chamar a atenção sobre si, mas teve que ir à mesa explicar o atraso. Cinquenta pares de olhos fixos em seus pés que tremiam. O pedido de cebolas veio mais forte. Gargalhada maciça em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mãos. A custo conteve as lágrimas quando tomou o lugar. Chorara assim quando no primeiro sábado saiu de boné com o pai em direção à sinagoga. Caetano, Raul, Zé Paulo, Betinho, fizeram coro ao fim da rua repetindo em estribilho, o gringuinho. Suspenso o chocalho deparou com os olhos do irmão nos seus. Blá-blá. Sorriso mole. Sentara-se. Abrira o livro na página indicada, tenteando, como cego, para entrar no compasso da leitura. Nem às figuras se acostumara, nem às histórias estranhas para ele, que lia aos saltos. Fala gringuinho. Viera de trás a voz, grossa, de alguém mais velho. Fala gringuinho. Insistia. Ao girar o pescoço na descoberta da fonte fora surpreendido pela ordem de leitura. Olhou os dentes aguçados insinuando-se no lábio inferior como para escapar. Explicar-lhe? Como? Mudo curvou a cabeça como gato envergonhado por diabrura. Era-lhe fácil a lágrima. Lembrou um domingo. Enfiou-se pelo pátio com Raul que o chamara à sua casa. No fundo do quintal cimentado, sob coberta, dispusera os dois times de botões. Da copa o barulho, ainda, de talheres, fim do ajantarado. Chamaram. A mãe cortou o melão e separou duas fatias. Raul agradeceu pelos dois. "Ah! é o gringuinho!" Expelida pelo nariz a fumaça do cigarro, o pai soltara a exclamação. Quase o sufoca a fruta na boca. Os tios concentraram nele a atenção. Parecia um bicho encolhido, jururu, paralisado, as duas mãos prendendo nos lábios a fatia. "Fala gringuinho!" Coro. Fala gringuinho. Solo. Fala gringuinho. Coro. Fala gringuinho. Novamente as vozes atrás da carteira. Da outra vez correra como acuado em meio a risos. Recolhido no quarto desabafou no regaço da mãe. Blá-blá. Agitar do chocalho. Um cheiro de urina despertara-o da modorra. Um fio escorria da fralda no lençol de borracha. Fala gringuinho. Sentiu-se crescer e tombar para trás a cadeira. Em meio à gritaria a garra da velha suspendeu-o amarrotando a camisa. Cercado, alguns de pé sobre as mesas, recolheu-se à mudez expressiva. Da vingança intentada restara a frustração que se não explica por sabê-la impossível. Blá-blá! A poça de urina principiava a irritá-lo e após esperneios o irmão arrematou em choro arrastado. Agitou o chocalho novamente, com indiferença, olho na rua. O matraqueado aumentara o choro. Não percebeu a entrada da mãe. Sem olhá-lo recolheu o irmão no embalo. Tirou da gaveta a fralda seca, e entre o ninar e o gesto de troca passou-lhe a descompostura. Insistiu no pedido do armazém. Ele tentou surpreender-lhe o olhar, conquistar a inocência a que tinha direito. Depois gostaria de cair-lhe ao colo, beijá-la e contar tudo, na certeza de que lhe seria dada a razão. Mas nada disso. Recolhendo os níqueis procurou a porta. Traria as cebolas. E não contaria que ao ser repreendido na escola, na impotência de dar razões, quando a velha principiou a amassar-lhe a palma da mão com a régua negra e elástica, não se conteve e esmurrou-lhe o peito rasgando o vestido. Quando atravessou o portão acelerou a marcha impelido pelo desejo de ser homem já. Julgava que correndo apressaria o tempo. Seus pés saltitavam no cimento molhado, como outrora deslizavam, com as botinhas ferradas, pelo rio gelado no inverno. 



(Ilustração: Norman Rockwell - Paintings in Song - Golden Rule)



segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CARTOGRAFIES / CARTOGRAFIAS, de Mireia Calafell











Només qui vola sap quant pesa un cos 

Clarice Lispector, A cidade sitiada 







Al cos hi tens traçats camins de cel,

volo amb els dits.

Des d'aquí dalt, cada piga és un llac,

bec el desig.

Agafa el sol que es fa de nit,

mulla'm així.





Tradução de Jussara Salazar:






Somente quem voa sabe quanto pesa um corpo 

Clarice Lispector, A cidade sitiada 







No corpo tens traçados caminhos de céu,

voo com os dedos.

Daqui do alto, cada sarda é um lago,

bebo o desejo.

Apanha o sol que anoitece,

banha-me assim.





(Costures; 2010)



(Ilustração: Mickelina Mancini - voyage des sens)




sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A CASINHA DE CROIX ROUGE, de Georges Simenon






Eu nunca vira Joseph Leborgne em ação. Sofri alguma coisa parecida com um choque quando entrei no seu gabinete naquele dia. 

A sua cabeleira loura, usualmente bem penteada, estava em completa desordem. Os cabelos, levantados pela brilhantina, erguiam-se individualmente por toda a cabeça. Tinha o rosto pálido e cansado. Crispações nervosas alteravam-lhe as feições. 

Fulminou-se com um olhar belicoso, o que esteve a ponto de me fazer recuar. Mas como o visse fascinado por um diagrama, a minha curiosidade foi mais forte do que a prudência. Avancei pela sala dentro e tirei o casaco e o chapéu. 

- Que hora escolheu! – resmungou ele. 

Isto não era de encorajar. Gaguejei: 

- Um caso complicado! 

- Isso é descrevê-lo eufemisticamente. Olhe para este papel. 

- A planta de uma casa? Uma casinha? 

- A sutileza de sua inteligência. Uma criança de quatro anos chegaria a essa conclusão. Conhece o distrito de Croix-Rousse, em Lyon? 

- Passei por lá. 

- Bom! A casinha está situada num dos cantos mais ermos do distrito. Não é um distrito, devo acrescentar, que se distinga por uma vida intensa. 

- Que significam estas cruzes preta, no jardim e na rua? 

- Polícias. 

- Bah! E as cruzes assinalam os lugares onde foram assassinados? 

- Quem falou em polícias mortos? As cruzes indicam polícias que estavam postados nesses vários pontos, na noite de oito para nove. A cruz maior que as outras corresponde ao cabo Manchard. 

Não ousei articular uma palavra nem mover um músculo. Pareceu-me mais inteligente não interromper Leborgne, que fulminava a planta com o mesmo olhar furioso que me dedicara. 

- E então? Não me pergunta por que havia polícias destacados nestes pontos, sei pelo menos, na noite de oito para nove? Ou talvez pretenda dizer que já chegou a uma conclusão a esse respeito? 

Fiquei calado. 

- Eles estavam aí porque a polícia de Lyon recebera na véspera, a seguinte carta: 

“O Dr. Luigi Ceccioni será assassinado, na sua residência, na noite de oito para nove do corrente”. 

- E o médico foi avisado? – perguntei, finalmente. 

- Não! Como Ceccioni era um exilado italiano e parecia mais do que provável que o negócio tinha aspectos políticos, a polícia preferiu tomar precauções sem avisar a parte interessada. 

- E mesmo assim foi assassinado? 

- Paciência! O Dr. Ceccioni, com cinquenta anos de idade, morava sozinho nesta maldita casinhota. Ele mesmo cuidada da casa e jantava diariamente num restaurante italiano da vizinhança. No dia oito saiu de casa às sete horas, como de costume, e foi para o restaurante. E o cabo Manchard, um dos melhores polícias franceses, discípulo, além disso, do grande criminalista Dr. Eugène Locard, de Lyon, deu uma busca na casa desde a cava até ao sótão. Provou, diante de si mesmo, que não havia ninguém escondido e que era impossível entrar por outro meio que não fossem as portas e janelas comuns, visíveis de fora. Nada de passagens subterrâneas nem truques de teatro. Nada parecido com o que se encontra em romances. Compreende? 

Tive o cuidado de nada dizer, mas o tom cáustico de Leborgne parecia acusar-me de pensar em truques de teatro. 

- Nada de truques, ouviu? Nada a cuidar além de duas portas e três janelas! Um homem, que não fosse o cabo Manchard, ter-se-ia contentado em montar o serviço de vigilância apenas com ele próprio e mais um polícia. Manchard, porém, requisitou cinco, um para cada entrada, ficando ele próprio para vigiar os outros cinco homens. Às nove da noite, a sombra do médico apareceu na rua. Entrou na sua casa absolutamente só. O seu quarto ficava no andar superior; uma luz brilhou prontamente lá no alto. E começou a vigilância da polícia. Nenhum dos guardas cochilou! Nenhum deles abandonou o posto! Nenhum deles perdeu de vista o ponto preciso cuja vigilância lhe fora confiada! De quinze em quinze minutos, Manchard fazia a ronda do grupo. Por volta das três da madrugada, a lâmpada de petróleo do sobrado apagou-se lentamente, como se isto acontecesse por falta de combustível. O cabo vacilou. Finalmente resolveu usar a sua gazua e entrar. No andar superior, no quarto de dormir, estava sentado (ou melhor, meio deitado), na beira da cama, o Dr. Luigi Ceccioni. Tinha as mãos contra o peito e estava morto. Completamente vestido, conservava mesmo a capa, que ainda lhe pendia dos ombros. O chapéu caíra no chão. O seu fato estava saturado de sangue, e as suas mãos haviam como que mergulhado nele. Uma bala de 6 milímetros, de revólver Browning, penetra-lhe menos de centímetro acima do coração. 

Encarei, apavorado, Joseph Leborgne. Vi um tremor nos seus lábios. 

- Ninguém entrou na casa! Ninguém saiu! – gemeu ele. – Juro-o, como se eu mesmo houvesse montado a guarda: conheço o meu cabo Manchard. E não vá pensar que encontraram revólver algum! Nem à vista nem escondido. Nem na lareira, nem mesmo nas calhas do telhado. Nem no jardim nem em parte alguma! Por outras palavras, foi dado um tiro, num lugar onde não havia ninguém a não ser a própria vítima, e onde não havia armas de fogo! Quanto às janelas, estavam fechadas e sem sinal de violação: uma bala vinda de fora teria rebentado as almofadas. Para mais, o alcance de um tiro de revólver não bastaria, caso fosse disparado de fora do cordão dos polícias. Olhe para a planta! Devore-a com os olhos! É possível que possa restituir alguma esperança ao pobre cabo Manchard, que perdeu o sono e se considera um assassino virtual. 

- Que sabe de Ceccioni? – arrisquei timidamente. 

- Que fora um homem rico. Que não exercia a medicina, mas preferia dedicar-se à política, o que o levou a abandonar a Itália, por amor à pele. 

- Casado? Solteiro? 

- Viúvo. Um filho varão, presentemente a estudar na Argentina. 

- De que vivia em Lyon? 

- Um pouco daqui, outro pouco dali. Auxílios indefinidos de correligionários políticos. Consultas ocasionais, mas essas em geral grátis, para os pobres da colônia italiana. 

- Roubaram alguma coisa da casa? 

- Nenhum traço de roubo. 

Não sei por que foi: mas, neste momento, tive vontade de rir. Parecera-me de repente que um mestre em mistificação divertir-se-ia apresentando a Joseph Leborgne um problema inteiramente inverossímil, simplesmente para dar-lhe uma lição de modéstia, de que tanto necessitava. 

Ele notou o afrouxamento dos meus lábios. Apanhou a planta, atravessou a sala e mergulhou, irritado, numa poltrona. 

- Comunique-me quando tiver resolvido o problema! – disse incisivo. 

- Não posso, certamente, resolver nada antes de você – disse eu, com tato. 

- Obrigado – respondeu-me. 

Comecei a encher o cachimbo, acendi-o, desprezando a raiva do meu companheiro, a qual tocava a ponta do paroxismo. 

- Tudo o que lhe peço é que se sente e fique sossegado – declarou ele. – E não respire assim tão alto – acrescentou. 

Decorreram dez minutos, tão desagradáveis quanto era possível. Contra minha vontade, evoquei a imagem da planta, com as seis cruzes pretas assinalando os polícias. 

E a inverossimilhança da história, que a princípio me divertira, começou a parecer-me curiosamente inquietante. 

Afinal de contas, isto não era uma questão de psicologia ou de faro policial, mas de pura geometria. 

- Esse Manchard! – perguntei, de repente. – Ele nunca foi paciente de um hipnotizador? 

Joseph Leborgne nem mesmo se dignou responder a essa pergunta. 

- Ceccioni não tinha muitos inimigos políticos em Lyon? 

Ele encolheu os ombros. 

- E provou-se que o filho está a estudar na Argentina? 

Desta vez, ele, simplesmente, retirou o cachimbo da minha boca e atirou-o para cima do mármore da lareira. 

- Sabe os nomes de todos os polícias? 

Passou-me uma folha de papel. 

Jerôme Pallois, 28 anos, casado. 

Jean-Joseph Stockman, 31 anos, solteiro. 

Armand Dubois, 26 anos, casado. 

Hubert Trajanu, 43 anos, divorciado. 

Germain Garros, 32 anos, casado. 

Reli três vezes estas linhas. Os nomes estavam na ordem em que os homens haviam sido postados em redor da casa, a partir da esquerda. 

Eu estava pronto a aceitar as ideias mais doidas. Desesperado, exclamei, afinal: 

- É impossível! 

E olhei para Joseph Leborgne. Um momento antes, o seu rosto estivera pálido, os olhos com uma sombra a cerca-los, nos lábios um toque de amargura. Agora, com espanto, verifiquei que ele, sorridente, se dirigia para um pote de geleia. 

Quando passou diante de um espelho, notou a sua própria figura e pareceu escandalizar-se ante as incongruentes contorções de seus cabelos. Penteou-se meticulosamente. Ajustou o nó da gravata. 

Mais uma vez, Joseph Leborgne voltava ao seu habitual. Enquanto procurava uma colher com que consumir a sua horrível geleia de folhas de não de quê, favoreceu-me com um sorriso sarcástico. 

- Quão simples se tornaria sempre alcançar a verdade, se ideias preconcebidas não falsificassem o nosso julgamento! – suspirou. – Você acaba de dizer: É impossível! Logo... 

Esperei que me contradissesse. Estava acostumado. 

- Logo – prosseguiu – impossível. Isso mesmo. E tudo o que tínhamos de fazer, desde o começo, era simplesmente admitir esse fato. Não havia revólver na casa, não estava escondido lá nenhum assassino. Muito bem: não foi, portanto, dado nenhum tiro. 

- Mas, então... 

- Então, muito simplesmente, Luigi Ceccioni chegou lá com a bala no peito. Tenho todas as razões para acreditar que ele próprio deu o tiro. Era um médico: sabia precisamente onde alvejar (“menos de um centímetro acima do coração”, você há de lembrar-se deste detalhe) de modo que o ferimento não seria instantaneamente fatal, mas permitir-lhe-ia andar durante um curto período. 

Joseph Leborgne fechou os olhos. 

- Imagine este pobre desesperado. Tem apenas um filho. O rapaz esta a estudar no estrangeiro, mas o pai não tem mais dinheiro para remeter-lhe. Ceccioni faz um seguro de vida a favor do rapaz. O seu passo seguinte é morrer; mas morrer de modo que não levante suspeitas de suicídio, a fim de que a companhia não se recuse a pagar a apólice. 

“Por meio de uma carta anônima, chama a própria polícia como testemunha. A polícia vê-o entrar em sua casa, onde não há arma e encontra-o morto várias horas depois. 

“Era suficiente, uma vez sentado na sua cama, fazer uma massagem no peito, e assim forçar a bala a penetrar mais profundamente, atingindo finalmente o coração...” 

Deixei escapar, involuntariamente, um grito de dor. Mas Leborgne não se mexeu. Não estava já interessado na minha pessoa. 

Só uma semana mais tarde é que me mostrou um telegrama do cabo Manchard: 

“Autópsia revela equimoses redor ferimento e traços pressão depois stop legista e eu confusos causa possível stop necessário seu parecer imediatamente.”

- Respondeu? 

Leborgne olhou-me com ar de censura. 

- É preciso que um homem tenha muita coragem e muita imaginação para fazer uma massagem a si próprio até morrer. Por que haveria de fazê-lo em vão? A companhia de seguros tem um capital de quatrocentos milhões... 



(26 grandes mestres da literatura policial; org. e trad. de Ross Pynn) 



(Ilustração: Edouard Manet - Le Suicide, 1877)





terça-feira, 7 de agosto de 2018

TERRA FERMA / TERRA FIRME, de Carlos Vicent Siscar








Ets just al meu costat.

Perquè tot es desperta.

I creixen atzars i resplendors

a la punta de l’arbre del temps.

Amb tu,

tot lluu per la boca oberta.

Tot pren cos i vida remorosa.

Com un sonall de signes, s’agita, respira,

i s’acobla, carn endins.





Tradução de Lígia Dabul:



Estás justamente ao meu lado.

Porque tudo se desperta.

E crescem acasos e resplendores

na ponta da árvore do tempo.

Contigo,

tudo brilha pela boca aberta.

Tudo toma corpo e vida rumorosa.

Como um chocalho de signos, se agita, respira,

e se acopla, carne adentro.





(Carn endins;2011)



(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia - amantes)



sábado, 4 de agosto de 2018

O SACRISTÃO, de Somerset Maugham





Houvera um batizado aquela tarde, na igreja de São Pedro, e Albert Edward Foreman ainda estava com sua batina de sacristão. Ele reservava sua melhor indumentária do cargo para casamentos e funerais, e a que usava naquele momento era a segunda melhor. Gostava de usar a batina, por ser um digno símbolo das suas funções, e se sentia insuficientemente vestido sem ela. Cuidava do traje com todo carinho, e durante os dezesseis anos no cargo tivera uma série delas, mas nunca fora capaz de jogá-las fora quando desgastadas pelo uso, guardando-as embrulhadas em papel marrom nas gavetas inferiores do guarda-roupa. 

Estava esperando apenas o vigário sair, para poder arrumar tudo, trancar a igreja e ir para casa. O vigário passou para o presbitério, fez uma genuflexão diante do altar e começou a caminhar numa das alas de bancos. 

— “Que será que ele está procurando? — pensou. — Ele devia perceber que eu tenho de ir para casa tomar o meu chá”. 

O vigário era um homem de seus quarenta anos, rosto corado e enérgico, que assumira o cargo recentemente. Albert ainda lamentava a perda do antecessor, um sacerdote da velha escola que pregava seus sermões monotonamente, com voz argêntea, e frequentemente jantava com seus paroquianos mais aristocráticos. Gostava das coisas assim, não como esse novo vigário, que queria dar palpite em tudo. Mas Albert era tolerante, e nunca se agastava. 

A Igreja de São Pedro era muito bem localizada, com paroquianos muito distintos. O novo vigário estivera antes junto a paroquianos de outro nível social, e era natural que demorasse um pouco a se adaptar aos novos. 

— “Mudanças assim contundem as pessoas — pensava Albert, — mas ele acabará aprendendo”. 

Quando o vigário se aproximou de Albert a ponto de poder falar-lhe no tom de voz baixo adequado ao lugar sagrado, parou e o chamou. 

— Foreman, venha comigo à sacristia, que eu preciso conversar um pouco com você. 

— Pois não, senhor. 

Enquanto caminhavam juntos, Albert comentou: 

— Bonito batizado, senhor. E foi muito interessante como a criança parou de chorar exatamente quando o senhor a tomou nos braços. 

— Já notei que isso acontece com frequência. De fato eu consegui boa prática em lidar com bebês. 

Albert ficou um tanto surpreso ao encontrar na sacristia os dois conselheiros da paróquia, que ele não vira entrar. Cumprimentou-os cortesmente. Eles ocupavam o conselho há muito tempo, quase tanto quanto o dele como sacristão. Estavam sentados atrás de uma grande mesa, e o vigário ocupou a cadeira vaga entre os dois. Albert sentou-se do outro lado da mesa, enquanto procurava, com certa intranquilidade, descobrir o que podia ter acontecido. Lembrava-se de quando o organista criou uma encrenca, e dos aborrecimentos que os três tiveram para acertar as coisas. Numa igreja como a de São Pedro não se podiam admitir escândalos. O vigário tinha um ar de benevolência, mas os outros estavam um tanto a contragosto. 

— “Ele os deve ter repreendido — pensou o sacristão. — Parece que ele os convenceu a fazer alguma coisa, mas não estão gostando nem um pouco”. 

— Foreman — começou abruptamente o vigário, — temos algo bem desagradável a comunicar-lhe. Você está aqui há bastante tempo, e estamos de acordo em que vem desempenhando a contento as suas funções — os outros dois assentiram, com uma inclinação da cabeça. — Mas uma informação surpreendente chegou ao meu conhecimento: você não sabe ler nem escrever. 

— O vigário anterior sabia disso — replicou Albert sem nenhum embaraço. — Ele me disse que isso não tinha importância, e que para o gosto dele já havia educação em excesso no mundo. 

— Isto é a coisa mais espantosa que eu já ouvi — replicou um dos conselheiros. — Quer dizer que você foi sacristão desta igreja dezesseis anos, sem saber ler nem escrever? 

— Eu comecei a trabalhar aos doze anos, senhor. O cozinheiro do meu primeiro emprego tentou ensinar-me, mas parece que eu não tinha embocadura para o negócio. E daí para diante, sempre mexendo com uma coisa e outra, não me sobrava tempo. De fato eu nem queria, pois estou cansado de ver essa gente perdendo tempo em ler, quando podia estar fazendo alguma coisa útil. 

— Mas você não se interessa em ler os jornais? Nunca quis escrever uma carta? 

— Não, senhor. Vivo muito bem sem isso. De uns tempos para cá os jornais trazem fotografias, e assim eu fico sabendo o que acontece por aí. Além disso, a minha mulher é instruída, e escreve todas as cartas de que eu preciso. Não sou nenhum imprestável por isso. 

Os dois conselheiros olhavam para o vigário, um tanto perturbados, e depois baixaram os olhos para a mesa. 

— Bem, Foreman. Eu discuti o assunto com os conselheiros, e eles concordaram em que numa igreja do porte da nossa não é admissível um sacristão analfabeto. Quero que você compreenda, Foreman, que não tenho nenhuma reclamação contra você, pois tenho em alto conceito o seu caráter e a sua capacidade, além disso você desempenha bem suas funções. Mas não temos o direito de arriscar-nos a que algum acidente possa ocorrer devido à sua lamentável ignorância. É por motivo de prudência, e também por princípio. 

— Você não conseguiria aprender, Foreman? — perguntou um dos conselheiros. 

— Não, senhor. É muito tarde para isso. Se eu não consegui quando era criança, acho pouco provável que consiga enfiar as letras na cabeça agora. 

— Não queremos agir com brutalidade, Foreman, mas os conselheiros e eu já decidimos dar-lhe três meses de prazo. Se até lá você não conseguir, teremos de dispensá-lo. 

— Lamento, senhor, mas isso será perda de tempo. Burro velho não pega marcha. Vivi muitos anos sem saber ler e escrever, e modéstia à parte desempenhei bem o meu papel sem isso. Mesmo que eu tivesse condições para aprender agora, não me interessaria nem um pouco. 

— Neste caso, Foreman, lamento dizer-lhe que o dispensamos. 

— Sim, senhor. Com prazer eu entregarei meu cargo tão logo o senhor contrate um substituto. 

Depois que se despediu dos três e fechou atrás de si a porta da sacristia, Albert relaxou o ar de serena dignidade com que suportara o golpe, e seus lábios se contraíram. Pendurou a batina no armário, vestiu o sobretudo e saiu da igreja pensativo. Não tomou o caminho de casa, onde o esperava o seu chá. De coração oprimido, caminhou lentamente, sem saber de momento o que fazer da vida. Não lhe passava pela cabeça voltar à função de mordomo, depois de ser o dono de si mesmo por tanto tempo, pois quem de fato administrava aquela igreja era ele. Tinha economizado bastante, mas não o suficiente para viver sem trabalhar, e além disso a vida estava cada dia mais cara. 

Nunca pensara que viria a enfrentar esse problema. Afinal de contas, os sacristães da Igreja de São Pedro eram vitalícios, tanto quanto os Papas. Pensara até nas elogiosas referências que o vigário faria, no sermão seguinte à sua morte, sobre a dedicação e o caráter exemplar do falecido sacristão Albert Edward Foreman. E suspirou profundamente. 

Albert não fumava nem bebia. Ou melhor, não em termos tão absolutos. Tomava uma cerveja no jantar, algumas vezes, e fumava um cigarro quando se sentia preocupado ou cansado. Era bem o caso, naquele momento, e como não costumava trazê-los consigo, começou a olhar de um lado e outro daquela rua movimentada, à procura de uma tabacaria. Havia por ali lojas de todos os tipos, mas nenhuma tabacaria. Foi até o fim da rua, e nada. 

— “Que coisa estranha!” — pensou. 

Para não haver dúvidas, voltou ao início da rua: nenhuma tabacaria. 

— “Não é possível que eu seja o único homem, em toda esta rua, que de vez em quando quer dar uma tragada. E acho que um comerciante poderia ter bom lucro com uma loja dessas aqui”. 

Albert tomou o caminho de casa, e ia pensando: 

— “Estranho, como as ideias ocorrem quando a gente menos espera”. 

Em casa, enquanto tomava o chá, a mulher comentou: 

— Você está silencioso hoje, Albert. 

— Estou pensando. 

Examinou os vários aspectos do assunto, e no dia seguinte voltou àquela rua. Encontrou facilmente uma loja adequada, alugou-a, e um mês depois despedia-se do emprego na igreja, iniciando suas novas atividades de comerciante de tabaco e jornaleiro. A mulher o censurou pela queda de status, mas ele argumentou que se deve dançar conforme a música, e que agora ele ia dar a César o que é de César. 

Albert saiu-se muito bem. Tão bem que depois de um ano resolveu montar outra loja, a ser confiada a um gerente. Procurou uma rua nas mesmas condições, que também não tivesse tabacaria, e a abasteceu convenientemente. Novo sucesso. 

Ocorreu-lhe então que, se podia administrar duas, podia administrar meia-dúzia. E começou a andar pela cidade, à procura de ruas movimentadas desprovidas de tabacarias. Em dez anos, as lojas dele já eram nada menos que dez. Toda segunda-feira ele as percorria, recolhia a renda e depositava num banco. 

Um dia, quando fazia esses depósitos habituais, o funcionário do banco o avisou de que o gerente queria conversar com ele. Foi conduzido a uma sala, onde o gerente o recebeu sorridente: 

— Sr. Foreman, gostaria de conversar sobre o seu saldo conosco. O senhor sabe exatamente o montante? 

— Não em todos os centavos, mas tenho uma ideia bastante aproximada. 

— Sem contar o que o senhor depositou hoje, é um pouco mais de trinta mil libras. É uma quantia muito alta para ficar simplesmente depositada, e eu acho que o senhor poderia lucrar bastante investindo-a. 

— Não quero correr riscos, senhor, e prefiro tê-la garantida no banco. 

— O senhor não precisa preocupar-se. Forneceremos para sua escolha uma lista de investimentos seguros, com lastro em ouro, que lhe trarão rendimento maior do que o banco pode oferecer. 

— Nunca entendi de ações e títulos, e terei de deixar as aplicações para o senhor decidir. 

— Não há problema. Tomaremos todas as providências necessárias. Basta o senhor assinar os papéis quando voltar ao banco. 

— Está bem, mas como é que eu vou saber o que é que estarei assinando? 

— Basta ler o texto dos próprios documentos. 

— Acontece, senhor, que isso eu não posso fazer. Pode parecer estranho, mas não sei ler nem escrever, só sei assinar meu nome. E mesmo isso, só porque fui obrigado, quando entrei no ramo de negócios. 

O gerente levou um susto tão grande, que saltou da cadeira. 

— Isto é a coisa mais extraordinária que eu já ouvi! 

— Mas é como eu lhe estou dizendo. Só tive a oportunidade de aprender quando já era bem idoso, e aí eu decidi não tentar. Uma espécie de obstinação. 

O gerente olhava-o fixamente, como se fosse um monstro pré-histórico. 

— Quer dizer que o senhor montou todo esse seu negócio e juntou uma fortuna de trinta mil libras sem saber ler nem escrever? Santo Deus! Imagino então o que o senhor teria conseguido, se soubesse. 

Foreman deu uma gargalhada, e respondeu: 

— Isso eu posso lhe dizer, direitinho: seria sacristão na igreja de São Pedro. 





(Collected short stories





(Ilustração: Samuel E. Gideon - 1875-1945)