sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A CASINHA DE CROIX ROUGE, de Georges Simenon






Eu nunca vira Joseph Leborgne em ação. Sofri alguma coisa parecida com um choque quando entrei no seu gabinete naquele dia. 

A sua cabeleira loura, usualmente bem penteada, estava em completa desordem. Os cabelos, levantados pela brilhantina, erguiam-se individualmente por toda a cabeça. Tinha o rosto pálido e cansado. Crispações nervosas alteravam-lhe as feições. 

Fulminou-se com um olhar belicoso, o que esteve a ponto de me fazer recuar. Mas como o visse fascinado por um diagrama, a minha curiosidade foi mais forte do que a prudência. Avancei pela sala dentro e tirei o casaco e o chapéu. 

- Que hora escolheu! – resmungou ele. 

Isto não era de encorajar. Gaguejei: 

- Um caso complicado! 

- Isso é descrevê-lo eufemisticamente. Olhe para este papel. 

- A planta de uma casa? Uma casinha? 

- A sutileza de sua inteligência. Uma criança de quatro anos chegaria a essa conclusão. Conhece o distrito de Croix-Rousse, em Lyon? 

- Passei por lá. 

- Bom! A casinha está situada num dos cantos mais ermos do distrito. Não é um distrito, devo acrescentar, que se distinga por uma vida intensa. 

- Que significam estas cruzes preta, no jardim e na rua? 

- Polícias. 

- Bah! E as cruzes assinalam os lugares onde foram assassinados? 

- Quem falou em polícias mortos? As cruzes indicam polícias que estavam postados nesses vários pontos, na noite de oito para nove. A cruz maior que as outras corresponde ao cabo Manchard. 

Não ousei articular uma palavra nem mover um músculo. Pareceu-me mais inteligente não interromper Leborgne, que fulminava a planta com o mesmo olhar furioso que me dedicara. 

- E então? Não me pergunta por que havia polícias destacados nestes pontos, sei pelo menos, na noite de oito para nove? Ou talvez pretenda dizer que já chegou a uma conclusão a esse respeito? 

Fiquei calado. 

- Eles estavam aí porque a polícia de Lyon recebera na véspera, a seguinte carta: 

“O Dr. Luigi Ceccioni será assassinado, na sua residência, na noite de oito para nove do corrente”. 

- E o médico foi avisado? – perguntei, finalmente. 

- Não! Como Ceccioni era um exilado italiano e parecia mais do que provável que o negócio tinha aspectos políticos, a polícia preferiu tomar precauções sem avisar a parte interessada. 

- E mesmo assim foi assassinado? 

- Paciência! O Dr. Ceccioni, com cinquenta anos de idade, morava sozinho nesta maldita casinhota. Ele mesmo cuidada da casa e jantava diariamente num restaurante italiano da vizinhança. No dia oito saiu de casa às sete horas, como de costume, e foi para o restaurante. E o cabo Manchard, um dos melhores polícias franceses, discípulo, além disso, do grande criminalista Dr. Eugène Locard, de Lyon, deu uma busca na casa desde a cava até ao sótão. Provou, diante de si mesmo, que não havia ninguém escondido e que era impossível entrar por outro meio que não fossem as portas e janelas comuns, visíveis de fora. Nada de passagens subterrâneas nem truques de teatro. Nada parecido com o que se encontra em romances. Compreende? 

Tive o cuidado de nada dizer, mas o tom cáustico de Leborgne parecia acusar-me de pensar em truques de teatro. 

- Nada de truques, ouviu? Nada a cuidar além de duas portas e três janelas! Um homem, que não fosse o cabo Manchard, ter-se-ia contentado em montar o serviço de vigilância apenas com ele próprio e mais um polícia. Manchard, porém, requisitou cinco, um para cada entrada, ficando ele próprio para vigiar os outros cinco homens. Às nove da noite, a sombra do médico apareceu na rua. Entrou na sua casa absolutamente só. O seu quarto ficava no andar superior; uma luz brilhou prontamente lá no alto. E começou a vigilância da polícia. Nenhum dos guardas cochilou! Nenhum deles abandonou o posto! Nenhum deles perdeu de vista o ponto preciso cuja vigilância lhe fora confiada! De quinze em quinze minutos, Manchard fazia a ronda do grupo. Por volta das três da madrugada, a lâmpada de petróleo do sobrado apagou-se lentamente, como se isto acontecesse por falta de combustível. O cabo vacilou. Finalmente resolveu usar a sua gazua e entrar. No andar superior, no quarto de dormir, estava sentado (ou melhor, meio deitado), na beira da cama, o Dr. Luigi Ceccioni. Tinha as mãos contra o peito e estava morto. Completamente vestido, conservava mesmo a capa, que ainda lhe pendia dos ombros. O chapéu caíra no chão. O seu fato estava saturado de sangue, e as suas mãos haviam como que mergulhado nele. Uma bala de 6 milímetros, de revólver Browning, penetra-lhe menos de centímetro acima do coração. 

Encarei, apavorado, Joseph Leborgne. Vi um tremor nos seus lábios. 

- Ninguém entrou na casa! Ninguém saiu! – gemeu ele. – Juro-o, como se eu mesmo houvesse montado a guarda: conheço o meu cabo Manchard. E não vá pensar que encontraram revólver algum! Nem à vista nem escondido. Nem na lareira, nem mesmo nas calhas do telhado. Nem no jardim nem em parte alguma! Por outras palavras, foi dado um tiro, num lugar onde não havia ninguém a não ser a própria vítima, e onde não havia armas de fogo! Quanto às janelas, estavam fechadas e sem sinal de violação: uma bala vinda de fora teria rebentado as almofadas. Para mais, o alcance de um tiro de revólver não bastaria, caso fosse disparado de fora do cordão dos polícias. Olhe para a planta! Devore-a com os olhos! É possível que possa restituir alguma esperança ao pobre cabo Manchard, que perdeu o sono e se considera um assassino virtual. 

- Que sabe de Ceccioni? – arrisquei timidamente. 

- Que fora um homem rico. Que não exercia a medicina, mas preferia dedicar-se à política, o que o levou a abandonar a Itália, por amor à pele. 

- Casado? Solteiro? 

- Viúvo. Um filho varão, presentemente a estudar na Argentina. 

- De que vivia em Lyon? 

- Um pouco daqui, outro pouco dali. Auxílios indefinidos de correligionários políticos. Consultas ocasionais, mas essas em geral grátis, para os pobres da colônia italiana. 

- Roubaram alguma coisa da casa? 

- Nenhum traço de roubo. 

Não sei por que foi: mas, neste momento, tive vontade de rir. Parecera-me de repente que um mestre em mistificação divertir-se-ia apresentando a Joseph Leborgne um problema inteiramente inverossímil, simplesmente para dar-lhe uma lição de modéstia, de que tanto necessitava. 

Ele notou o afrouxamento dos meus lábios. Apanhou a planta, atravessou a sala e mergulhou, irritado, numa poltrona. 

- Comunique-me quando tiver resolvido o problema! – disse incisivo. 

- Não posso, certamente, resolver nada antes de você – disse eu, com tato. 

- Obrigado – respondeu-me. 

Comecei a encher o cachimbo, acendi-o, desprezando a raiva do meu companheiro, a qual tocava a ponta do paroxismo. 

- Tudo o que lhe peço é que se sente e fique sossegado – declarou ele. – E não respire assim tão alto – acrescentou. 

Decorreram dez minutos, tão desagradáveis quanto era possível. Contra minha vontade, evoquei a imagem da planta, com as seis cruzes pretas assinalando os polícias. 

E a inverossimilhança da história, que a princípio me divertira, começou a parecer-me curiosamente inquietante. 

Afinal de contas, isto não era uma questão de psicologia ou de faro policial, mas de pura geometria. 

- Esse Manchard! – perguntei, de repente. – Ele nunca foi paciente de um hipnotizador? 

Joseph Leborgne nem mesmo se dignou responder a essa pergunta. 

- Ceccioni não tinha muitos inimigos políticos em Lyon? 

Ele encolheu os ombros. 

- E provou-se que o filho está a estudar na Argentina? 

Desta vez, ele, simplesmente, retirou o cachimbo da minha boca e atirou-o para cima do mármore da lareira. 

- Sabe os nomes de todos os polícias? 

Passou-me uma folha de papel. 

Jerôme Pallois, 28 anos, casado. 

Jean-Joseph Stockman, 31 anos, solteiro. 

Armand Dubois, 26 anos, casado. 

Hubert Trajanu, 43 anos, divorciado. 

Germain Garros, 32 anos, casado. 

Reli três vezes estas linhas. Os nomes estavam na ordem em que os homens haviam sido postados em redor da casa, a partir da esquerda. 

Eu estava pronto a aceitar as ideias mais doidas. Desesperado, exclamei, afinal: 

- É impossível! 

E olhei para Joseph Leborgne. Um momento antes, o seu rosto estivera pálido, os olhos com uma sombra a cerca-los, nos lábios um toque de amargura. Agora, com espanto, verifiquei que ele, sorridente, se dirigia para um pote de geleia. 

Quando passou diante de um espelho, notou a sua própria figura e pareceu escandalizar-se ante as incongruentes contorções de seus cabelos. Penteou-se meticulosamente. Ajustou o nó da gravata. 

Mais uma vez, Joseph Leborgne voltava ao seu habitual. Enquanto procurava uma colher com que consumir a sua horrível geleia de folhas de não de quê, favoreceu-me com um sorriso sarcástico. 

- Quão simples se tornaria sempre alcançar a verdade, se ideias preconcebidas não falsificassem o nosso julgamento! – suspirou. – Você acaba de dizer: É impossível! Logo... 

Esperei que me contradissesse. Estava acostumado. 

- Logo – prosseguiu – impossível. Isso mesmo. E tudo o que tínhamos de fazer, desde o começo, era simplesmente admitir esse fato. Não havia revólver na casa, não estava escondido lá nenhum assassino. Muito bem: não foi, portanto, dado nenhum tiro. 

- Mas, então... 

- Então, muito simplesmente, Luigi Ceccioni chegou lá com a bala no peito. Tenho todas as razões para acreditar que ele próprio deu o tiro. Era um médico: sabia precisamente onde alvejar (“menos de um centímetro acima do coração”, você há de lembrar-se deste detalhe) de modo que o ferimento não seria instantaneamente fatal, mas permitir-lhe-ia andar durante um curto período. 

Joseph Leborgne fechou os olhos. 

- Imagine este pobre desesperado. Tem apenas um filho. O rapaz esta a estudar no estrangeiro, mas o pai não tem mais dinheiro para remeter-lhe. Ceccioni faz um seguro de vida a favor do rapaz. O seu passo seguinte é morrer; mas morrer de modo que não levante suspeitas de suicídio, a fim de que a companhia não se recuse a pagar a apólice. 

“Por meio de uma carta anônima, chama a própria polícia como testemunha. A polícia vê-o entrar em sua casa, onde não há arma e encontra-o morto várias horas depois. 

“Era suficiente, uma vez sentado na sua cama, fazer uma massagem no peito, e assim forçar a bala a penetrar mais profundamente, atingindo finalmente o coração...” 

Deixei escapar, involuntariamente, um grito de dor. Mas Leborgne não se mexeu. Não estava já interessado na minha pessoa. 

Só uma semana mais tarde é que me mostrou um telegrama do cabo Manchard: 

“Autópsia revela equimoses redor ferimento e traços pressão depois stop legista e eu confusos causa possível stop necessário seu parecer imediatamente.”

- Respondeu? 

Leborgne olhou-me com ar de censura. 

- É preciso que um homem tenha muita coragem e muita imaginação para fazer uma massagem a si próprio até morrer. Por que haveria de fazê-lo em vão? A companhia de seguros tem um capital de quatrocentos milhões... 



(26 grandes mestres da literatura policial; org. e trad. de Ross Pynn) 



(Ilustração: Edouard Manet - Le Suicide, 1877)





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