sábado, 30 de novembro de 2019

DO TEMPO E DA MORTE EM PUNGO ANDONGO, de José Eduardo Agualusa





Às vezes penso naquele poente que eu não vi

em Pungo Andongo

E no tempo (esse estranho mito)

Que não fixou os corpos, nem os gritos

Nem o sangue do sol nesse preciso instante.

Às vezes penso em Pungo Andongo

E em quantas vezes se repetirá o rito

O ritual da morte (outro estranho mito)

Tão lúcido e tão breve nesse preciso instante.



(Anuário de Poesia – Autores não publicados)



(Ilustração: foto de Paulo César Santos - A Pedra Negra do Pungo Andongo, Malange, Angola, abril 2009)

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O VALOR DA INUTILIDADE, de Bertrand Russel






A filosofia, como os demais estudos, visa primeiramente o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é aquela espécie de conhecimento que confere unidade e organização sistemática a todo o corpo do saber científico, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos das nossas convicções, dos nossos preconceitos, e das nossas crenças. Mas não se pode dizer, no entanto, que a filosofia tenha tido algum grande êxito na sua tentativa de dar respostas definitivas à suas questões. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a um historiador, ou a qualquer outro homem de saber, que conjunto de verdades concretas foi estabelecido pela sua ciência, sua resposta durará tanto tempo quanto estivermos dispostos a lhe dar ouvidos. Mas se fizermos essa mesma pergunta a um filósofo, terá que confessar, se for sincero, que a filosofia não alcançou resultados positivos como os que foram alcançados por outras ciências. É verdade que isso se explica, em parte, pelo fato de que, assim que se torna possível um conhecimento preciso naquilo que diz respeito a determinado assunto, este assunto deixa de ser chamado de filosofia e torna-se uma ciência especial. Todo o estudo dos corpos celestes, que hoje pertence à astronomia, incluía-se outrora na filosofia; a grande obra de Newton tem por título: Princípios matemáticos da filosofia natural. De maneira semelhante, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, está hoje separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Deste modo, a incerteza da filosofia é, em grande medida, mais aparente que real: os problemas para os quais já se tem respostas positivas vão sendo colocados nas ciências, enquanto que aqueles para os quais não se encontrou até hoje nenhuma resposta exata, continuam a constituir esse resíduo que denominamos de filosofia. 

Esta é, no entanto, apenas uma parte da verdade sobre a incerteza da filosofia. Existem muitos problemas ainda - e entre estes os que são do mais profundo interesse para a nossa vida espiritual - que, na medida do que podemos ver, deverão permanecer insolúveis para o intelecto humano, a menos que seus poderes se tornem de uma ordem inteiramente diferente daquela que é atualmente. Tem o universo alguma unidade de plano ou de propósito, ou é um concurso fortuito de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando-nos esperança de um aumento indefinido da sabedoria, ou ela não passa de um acidente transitório num pequeno planeta no qual a vida acabará por se tornar impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou apenas para o homem? Estes são problemas colocados pela filosofia, e respondidos de diversas maneiras por vários filósofos. Mas parece que, quer seja, ou não seja possível, descobrir de algum modo respostas, nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia pode ser demonstrada como verdadeira. E, no entanto, por fraca que seja a esperança de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia continuar a examinar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar todas as suas abordagens, mantendo vivo o interesse especulativo pelo universo, que correríamos o risco de deixar morrer se nos limitássemos aos conhecimentos claramente verificáveis. 

É verdade que muitos filósofos sustentaram que a filosofia pode estabelecer a verdade de certas respostas a tais problemas fundamentais. Supuseram que o mais importante no campo das crenças religiosas pode ser provado como verdadeiro por meio de demonstrações rigorosas. Para julgar estas tentativas, é necessário fazer uma investigação sobre o conhecimento humano, e formar uma opinião quanto a seus métodos e às suas limitações. Sobre estes assuntos é insensato nos pronunciarmos dogmaticamente. Mas se as investigações [...] anteriores não nos induziram ao erro, seremos forçados a renunciar à esperança de descobrir provas filosóficas para as crenças religiosas. Não podemos incluir, portanto, como parte do valor da filosofia, uma série de respostas definidas a tais questões. Mais uma vez, portanto, o valor da filosofia não depende de um suposto corpo de conhecimentos definitivamente verificáveis, que possam ser adquiridos por aqueles que a estudam. 

O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem a menor noção da filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época e do seu país, e das convicções que cresceram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento deliberado de sua razão. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades estranhas são desdenhosamente rejeitadas. Ao contrário, quando começamos a filosofar imediatamente nos damos conta [...] de que mesmo as coisas mais vulgares levantam problemas para os quais só podemos dar respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira para as dúvidas que ela própria suscita, é capaz de sugerir diversas possibilidades que ampliam os nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua nosso sentimento de certeza sobre o que as coisas são, aumenta muito nosso conhecimento sobre o que as coisas podem ser; rejeita o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e mantém vivo nosso sentimento de admiração, mostrando as coisas familiares num determinado aspecto não familiar. 

Além de sua utilidade ao mostrar possibilidades insuspeitadas, a filosofia tem um valor - talvez seu principal valor - por causa da grandeza dos objetos que ela contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante de sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo de seus interesses particulares; a família e os amigos podem estar incluídos, mas o resto do mundo para ele não conta, exceto na medida em que possa ajudar ou impedir o que surge dentro do âmbito dos desejos instintivos. Numa tal vida existe algo de febril e limitado, em comparação com a qual a vida filosófica é serena e livre. Colocado no meio de um mundo vasto e poderoso que mais cedo ou mais tarde deverá reduzir nosso mundo privado em ruínas, o mundo privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A menos que ampliemos os nossos interesses de maneira a compreender todo o mundo exterior, estaremos na condição de uma guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de outra, se pretendemos uma vida grandiosa e livre, devemos evadir-nos desta prisão e desta luta. 

A contemplação filosófica é uma das formas de evasão. A contemplação filosófica, na sua visão mais ampla, não divide o universo em dois campos adversos: amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o restante do universo é semelhante ao homem. Toda a aquisição de conhecimento é um alargamento do nosso Eu, mas este alargamento é mais bem alcançado quando não é procurado diretamente. Este alargamento é alcançado, quando opera exclusivamente o desejo de conhecimento, por um estudo que não deseja antecipadamente que seus objetos tenham esta ou aquela característica, mas que adapta o Eu às características que encontra em seus objetos. Este alargamento do Eu não é obtido quando, tomando o Eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho. O desejo de provar isto é uma forma de autoafirmação, constitui um obstáculo ao alargamento que deseja do Eu, e do qual o Eu sabe que é capaz. A autoafirmação, na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para seus próprios fins; assim, faz menos caso do mundo do que do Eu, e o Eu coloca limites à grandeza de seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-Eu e, por meio de sua grandeza os limites do Eu são ampliados; através da infinidade do universo a mente que o contempla participa um pouco da infinidade. 

Por esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o não-Eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo a estar em conformidade com o que descobrimos em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação à visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é uma construção humana; que o espaço e o tempo, e o mundo dos universais são propriedades da mente, e que, se existe algo que não seja criado pela mente, é algo incognoscível e sem qualquer importância para nós. Esta visão, se nossas discussões anteriores estavam corretas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação ao Eu. O que tal visão chama de conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas uma série de preconceitos, hábitos e desejos, que constituem um impenetrável véu entre nós e o mundo para além de nós. O homem que se compraz numa tal teoria do conhecimento humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por receio de que fora dele sua palavra não seja lei. 

A verdadeira contemplação filosófica, ao contrário, encontra a sua satisfação na própria ampliação do não-Eu, em tudo o que engrandece os objetos contemplados e, desse modo, o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do interesse pessoal, ou do desejo, deforma o objeto e, por isso, prejudica a união que a inteligência busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objeto, as coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O intelecto livre deverá enxergar assim como Deus pode ver: sem um aqui e agora; sem esperança e sem medo; isento das crenças habituais e dos preconceitos tradicionais: de forma calma e desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de conhecimento - um conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo, quanto seja possível a um homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o conhecimento abstrato e universal no qual não entram os acidentes da história particular, do que o conhecimento trazido pelos sentidos, o qual depende - necessariamente - de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam. 

A mente que se habituou à liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica preservará alguma coisa dessa mesma liberdade e imparcialidade no mundo da ação e emoção. Encarará seus objetivos e desejos como partes do Todo, com o desprendimento que resulta de considerá-los como fragmentos ínfimos de um mundo em que todo o resto não é afetado pelas ações dos homens. A imparcialidade, que na contemplação é o desejo puro da verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que no âmbito da ação é a justiça, e que no âmbito da emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não apenas àqueles que são considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não apenas os objetos de nossos pensamentos, mas também os objetos das nossas ações e dos nossos sentimentos: ela nos torna cidadãos do universo, e não apenas de uma cidade cercada por muros, em estado de guerra com tudo o mais. A verdadeira liberdade humana, liberta da prisão das esperanças e temores mesquinhos, consiste nesta condição de cidadãos do mundo. 

Enfim, para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em virtude de quaisquer respostas definitivas às suas questões, uma vez que nenhuma resposta definitiva pode, via de regra, ser conhecida como verdadeira. Ela deve ser estudada por causa dos próprios problemas, porque estes problemas ampliam as concepções que temos acerca do que é possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual e diminuem a arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas sobretudo porque, graças à grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também engrandece e se torna capaz daquela união com o universo que constitui seu bem supremo. 





(Os Problemas da Filosofia; tradução de Jaimir Conte) 



(Ilustração: Rafael Sanzio - A escola de Atenas)




domingo, 24 de novembro de 2019

CONSELHO DE AMIGO / CONSEIL AMICAL, de Olegário Mariano




Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,

Gosto da tua frívola cantiga,

Mas vou dar-te um conselho, rapariga,

Trata de abastecer o teu celeiro!



Trabalha, segue o exemplo da formiga;

Aí vem o inverno, a chuva, o nevoeiro,

E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,

Pedirás... e é bem triste ser mendiga!



E ela ouvindo os conselhos que eu lhe dava,

(Quem dá conselhos sempre se consome...)

Continuava cantando... continuava...



Parece que no canto ela dizia:

— Se eu deixar de cantar morro de fome...

Que a cantiga é o meu pão de cada dia.



Tradução de Heitor P. Fróes:




Cigale, je t´entends le jour entier;

J´aime l´accente de ta chanson frivole...

Cependant, je t´assrue, sur parole,

Quíl vaudraiat mieux pourvoir à ton greneir!



Vois la fourmi, qui veille à son métier;

Pense au brouillard, pense à la bise folle...

Et toi, faute d´un gîte bénèvole,

Tu seras mendiante em ton quartier!



Sans régard au conseil qu´elle entendait

(Qui donne des conseils n´a pas de trève)

Elle chantait, elle chantait toujours...



Et dans son chant je crois qu´elle grondait:

— "Si je ne chant pas, alors je crève,

Car le chant est mon pain de chaque jour"!





(FRÓES, Heitor F. Meus poemas dos Outros. Traduções e versões. Bahia, 1952)



(Ilustração: Illustration de Grandville pour La Cigale et la Fourmi) 





quinta-feira, 21 de novembro de 2019

SÓ MAIS UMA VEZ, de John Cheever




Não há razão para procurar encrenca, mas, em qualquer retrato abrangente e verdadeiro da cidade em que vivemos, sem dúvida haverá lugar para mais um comentário acerca dessas pessoas obstinadas que nunca desistem ou fogem do jogo, os insaciáveis que já encontramos em algum momento de nossas vidas. Refiro-me em especial aos aristocratas empobrecidos que moram no Upper East Side — os homens elegantes, charmosos e dilapidados que trabalham para corretoras e suas pretensiosas esposas, com casacos de marta comprados em brechós e peles puídas, com sapatos de couro de crocodilo e modos arrogantes ao lidar com porteiros e caixas de supermercados, com suas joias de ouro e restinhos de Je Reviens ou Chanel. Penso sobretudo nos Beer — Alfreda e Bob —, que moram no edifício do East Side que pertenceu ao pai dele, cercados de troféus de iatismo, fotografias autografadas do presidente Hoover, móveis espanhóis e outras relíquias da época das vacas gordas. Na verdade, não se tratava de um apartamento espetacular, apenas grande e escuro, porém acima da capacidade financeira do casal, o que se podia notar pela cara dos porteiros e ascensoristas quando você dizia a quem ia visitar. Acredito que estivessem sempre atrasados dois ou três meses no pagamento do aluguel, não tendo sobras para oferecer gorjetas. Naturalmente, Alfreda estudara em Fiesole. Seu pai, como o de Bob, havia perdido milhões e milhões de dólares. Todas as suas memórias eram ricamente incrustadas com pátinas de ouro reluzente, apostas astronômicas nos jogos de bridge, a dificuldade de ligar o motor do Daimler nos dias de chuva e piqueniques na margem do Brandywine com as filhas dos Du Pont. 

Ela era uma mulher bem-apanhada — com um rosto comprido e aquela compleição delicada dos nascidos na Nova Inglaterra que parece lhes conferir, por natureza, uma posição social privilegiada. Dava a impressão de ser imperturbável. Quando estavam por cima, ela trabalhava — primeiro na loja de cristais Steuben, na Quinta Avenida, e depois na Jensen, onde criou um problema ao insistir no direito de fumar. De lá foi para a Bonwit e, mais tarde, para a Bendel. Contratada pela Schwarz durante um Natal, estava na seção de luvas do térreo da Saks na Páscoa seguinte. Nos intervalos dos empregos teve dois filhos e costumava deixá-los aos cuidados de uma velha escocesa que servia a família desde os tempos áureos e, tanto quanto os Beer, parecia incapaz de se adaptar de forma positiva às mudanças. 

Eles eram o tipo de gente que você sempre encontra em estações ferroviárias ou em coquetéis. Mais precisamente, em estações ferroviárias nas noites de domingo; nos fins de semana ou nos fins de temporada, em lugares como Hyannis ou Flemington; no início da primavera, em Lake George, Aiken ou Greenville; em Westhampton, Stonington, Bar Harbor e no barco a vapor de Nantucket; ou, indo mais longe, na estação Paddington, em Roma e no barco noturno que sai de Antuérpia. “Olá! Olá!”, diziam em meio à multidão de passageiros, e lá estava ele, envergando uma capa de chuva branca, de bengala e chapéu de feltro, e lá estava ela, usando um casaco de marta ou alguma pele. E, de certo modo, os coquetéis em que eles eram vistos não se diferenciavam tanto, em última análise, das gares e dos barcos. Naquelas recepções, o número de convidados nunca era muito grande e a bebida, nunca muito boa. Enquanto todos bebiam e falavam, dava para sentir que a compreensível animação social era aos poucos substituída por uma letargia palpável, como se os laços de família, grupo social, escola e origem geográfica que mantinham o grupo coeso se dissolvessem como o gelo em seus copos. Não que houvesse uma atmosfera de dissolução social, mas sim de transformação social, de realinhamento — na verdade, a atmosfera das viagens. Os convidados pareciam estar reunidos num terminal ferroviário ou marítimo, esperando que partisse o trem ou o navio. Mais além do empregado que recolhia os casacos de pele, mais além do saguão e da porta de incêndio, se abria uma vastidão de águas escuras, às vezes borrascosas — o guinchar do vento, o ranger das tabuletas de ferro, as luzes, as vozes dos tripulantes, o apito lancinante de um barco que terminava a travessia do Canal. 

Uma razão pela qual você via com tanta frequência os Beer nos coquetéis e nas estações ferroviárias era que eles estavam sempre procurando por alguém. Não por alguém como você ou eu — procuravam pela marquesa de Bath —, mas, num aperto, qualquer um servia. O modo como costumavam chegar a uma festa e passar em revista os presentes é compreensível — todos nós fazemos isso —, porém o jeito como examinavam os outros passageiros numa estação de trem era algo bem diverso. Em qualquer lugar onde precisassem esperar ao menos por quinze minutos, eles viravam as pessoas pelo avesso, esquadrinhando sob as abas dos chapéus e detrás dos jornais para ver se encontravam alguém conhecido. 

Estou falando das décadas de 30 e 40, antes e depois da Grande Guerra — anos em que os problemas financeiros dos Beer devem ter se complicado ainda mais porque seus filhos já estavam na idade de frequentar colégios caros. Eles andaram fazendo algumas coisas indecorosas; por exemplo, passaram cheques sem fundos e, tendo tomado emprestado um carro para o fim de semana, caíram numa vala e abandonaram a cena do acidente como se nada tivessem a ver com aquilo. Esses golpes tornaram algo precário o status social e econômico de ambos, mas eles continuaram a operar com o que lhes restava em matéria de charme e expectativa — pois havia a tia Margaret na Filadélfia e a tia Laura em Boston —, porém, para dizer a verdade, eles eram mesmo encantadores. As pessoas sempre se alegravam ao vê-los porque, embora não passassem de patéticos gafanhotos sobreviventes de um glorioso verão econômico, eles tinham o poder de relembrar aos circundantes coisas boas — bons lugares, jogos, comida e companhia. Além disso, o ardor com que procuravam por amigos nas plataformas das estações ferroviárias talvez pudesse ser explicado pelo fato de que estavam simplesmente em busca de um mundo que compreendiam. 

Então tia Margaret morreu, como vim a saber por acaso na primavera. Meu chefe e sua esposa iam de navio para a Inglaterra, e fui me despedir deles certa manhã levando uma caixa de charutos e um romance histórico. Se bem me lembro, o transatlântico era novo, com muitíssimos curiosos examinando os livros de Edna Ferber trancados nas estantes da biblioteca ou admirando as piscinas e bares ainda secos. Os corredores estavam entupidos de gente, cada cabine da primeira classe, cheia de flores e de amigos que se despediam e bebiam champanhe às onze da manhã de um dia lúgubre, enquanto a grossa sopa verde do porto de Nova York lançava seus eflúvios trágicos em direção às nuvens. Tendo dado os presentes a meu chefe e sua esposa, eu procurava o convés principal quando, ao passar por uma cabine, ouvi a risada de colegial de Alfreda. A sala estava apinhada, um garçom servia champanhe e, depois que cumprimentei o casal, Alfreda me puxou para o lado. “Tia Margaret foi desta para a melhor”, ela disse, “e estamos podres de ricos outra vez...” Bebi champanhe até soar o apito para que todos desembarcassem — um apito veemente, ensurdecedor, o rouco chamamento da própria vida e, de certo modo, assim como o cheiro da água do porto, também trágico. E isso porque, vendo a festa acabar, me perguntei por quanto tempo a fortuna de tia Margaret iria durar nas mãos daqueles dois. Como tinham dívidas enormes e hábitos perdulários, nem mesmo com cem mil dólares iriam muito longe. 

A ideia deve ter ficado no fundo de minha mente, pois, no outono, durante uma luta de pesos-pesados no Yankee Stadium, pensei ver Bob andando de um lado para outro com uma bandeja de binóculos de aluguel. Chamei-o — tive de gritar — e não era ele, mas a semelhança era tão notável que senti como se de fato o tivesse visto ou, ao menos, entrevisto a amplitude dos vívidos contrastes sociais e econômicos que o casal poderia ter de enfrentar. 

Quisera poder dizer que, saindo do teatro numa noite de nevada, vi Alfreda vendendo lápis na rua 46, e que ela voltaria para algum porão do West Side onde Bob morria num catre, porém isso apenas refletiria a pobreza de minha imaginação. 

Ao dizer que os Beer eram o tipo de gente que você encontra nas estações ferroviárias e nos coquetéis, me esqueci das praias. Eles eram muito aquáticos. Você sabe como é. Nos meses de verão, a costa nordeste de Long Island até boa parte do Maine, incluindo todas as ilhas oceânicas, parece se transformar num vasto empório social e, sentado na areia enquanto o Atlântico Norte ruge à sua frente, você vê figuras que pertencem ao seu passado social surgirem da espuma, gordas como uvas passas em cima de um bolo. Uma onda se forma, acelera ao se aproximar da areia, entra em fervura e quebra, revelando Consuelo Roosevelt e o casal Dundas Vanderbilt, com os filhos dos dois casamentos. Outra onda vem da direita tal qual uma carga de cavalaria, empurrando Lathrope Macy e a segunda esposa de Emerson Crane em direção ao continente em cima do bote de borracha e trazendo para a praia o bispo de Pittsburgh boiando numa câmara de pneu. Pouco depois, uma onda quebra a seus pés, fazendo o barulho de uma tampa de baú ao ser fechada, e lá estão os Beer. “Mas que bom encontrá-lo, que satisfação revê-lo...” 

Por isso, o verão e o mar constituirão o cenário para a última aparição deles — pelo menos, para os fins deste relato. Estamos numa cidadezinha do Maine, digamos assim, e decidimos levar a família para dar um passeio de barco e fazer um piquenique. O gerente da hospedaria nos diz onde se pode alugar um barco e, depois de pegar os sanduíches, seguimos as instruções para chegar ao cais. Encontramos um velho num casebre com um barquinho à vela para alugar. Fazemos o depósito e assinamos um papel todo sujo, reparando que o velho já está bêbado às dez da manhã. Ele nos leva num bote a remo até o barco, nos despedimos e, ao verificar o estado lamentável em que se encontra a embarcação, o chamamos, porém ele já vai longe rumo ao cais. 

As tábuas do piso estão cobertas de água, o pino do leme, torto, um dos parafusos do leme, enferrujado. As polias estão quebradas e, quando conseguimos bombear para fora toda a água e içar a vela, verificamos que ela está rota e apodrecida. Finalmente, nos lançamos ao mar — atendendo aos apelos das crianças — e velejamos até uma ilha para fazer o piquenique. Na volta, o vento, agora mais intenso, nos empurra para o sudoeste. Ao nos afastarmos da ilha, o estai de bombordo se rompe e fica enroscado no mastro. Baixamos a vela e o remendamos com uma corda. Vemos então que, com a maré vazante, estamos sendo levados rapidamente para o mar alto. Consertado o estai de bombordo, velejamos por dez minutos até que se rompe o de estibordo. Agora a coisa está preta. Só o velho no casebre, bêbado como um gambá, sabe de nosso paradeiro. Tentamos remar com as tábuas do piso, porém não conseguimos vencer a força da maré. Quem nos salvará? Os Beer! 

Ao anoitecer, eles surgem no horizonte num desses lanchões que ostentam um banco alto no passadiço, abajures e vasos de rosas na cabine. Um marinheiro segura o timão enquanto Bob nos joga uma corda. Esse não é um mero encontro casual de velhos amigos — nossas vidas foram salvas! Estamos em estado de graça. O marinheiro passa para o barquinho à vela e, dez minutos depois de sermos arrancados da mandíbula da Morte, estamos bebendo martínis no passadiço. Dizem que nos levarão para a casa deles e que podemos passar a noite lá. E, conquanto o cenário e os acessórios não estejam tão diferentes, a relação do casal com as coisas que os circundam se alterou de forma radical. A casa pertence a eles, a lancha pertence a eles. Ficamos perplexos, boquiabertos, mas Bob é suficientemente educado para nos dar uma explicação em voz baixa, quase balbuciando, como se os fatos pudessem ser postos entre parênteses. “Pegamos a maior parte do dinheiro da tia Margaret e todo o dinheiro da tia Laura, além de uma coisinha que o tio Ralph nos deixou, e investimos a bolada inteira no mercado e, você sabe, mais do que triplicou nos últimos dois anos. Comprei de volta tudo que papai perdeu — quer dizer, tudo que eu queria. Aquele lá é meu veleiro. Naturalmente, a casa é nova. Aquelas luzes são nossas.” O fim de tarde e o oceano, que pareciam tão ameaçadores no barquinho, naquele momento se estendiam a nosso redor com uma tranquilidade milagrosa. Relaxamos a fim de poder aproveitar melhor a companhia deles, pois os Beer são encantadores — sempre foram — e agora se revelam também inteligentes: pensando bem, eles foram ou não inteligentes o bastante para saber que o verão iria retornar? 




(28 contos de John Cheever; “Just one more time”, Trad. Jorio Dauster) 



(Ilustração: Jean Béraud - une soirée)






segunda-feira, 18 de novembro de 2019

PENSAR É ENCHER-SE DE TRISTEZA, de Ana Hatherly


   
To think is to be full of sorrow 

J. Keats, Ode to a nightgale 



Pensar é encher-se de tristeza

e quando penso

não em ti

mas em tudo

sofro



Dantes eu vivia só

agora vivo rodeada de palavras

que eu cultivo

no meu jardim de penas



Eu sigo-as

e elas seguem-me:

são o exigente cortejo

que me persegue



Em toda a parte

ouço seu imenso clamor 





(O pavão negro, 2003) 


(Ilustração: Aaron Coberly -  Caspian Reading, 2010)




sexta-feira, 15 de novembro de 2019

HOMENS, de Gertrude Stein





Às vezes os homens estão beijando. Os homens estão às vezes beijando e às vezes bebendo. Os homens estão às vezes beijando uns aos outros e às vezes então há três deles e um deles está falando e dois deles estão beijando e ambos, ambos os dois que estão beijando, têm seus olhos cheios então de lágrimas neles. 

Às vezes os homens estão bebendo e estão amando e um deles está falando e dois estão brigando e um dos dois está tão à frente que então eles estão se amando e estão dizendo todas as coisas um ao outro. Todos os três estão dizendo um ao outro qualquer coisa. Todos os três estão dizendo um ao outro qualquer coisa. Um deles está escutando um outro um. Um deles está escutando dois deles. Um não está escutando eles e ele tem lágrimas então lágrimas de torpor e eles estão todos os três bebendo e dizendo uns aos outros todas as coisas. 

Um deles está então cheio dessa coisa muito cheio de lágrimas nele. Ele está muito cheio então e está ganhando tendo o outro derrubado no chão. Ele está cheio então e beijando o outro então certo então de que o outro é um que ouve todas as coisas. Ele está cheio então e o terceiro deles então é um que ele então não chegaria perto. Ele era um cheio então e o terceiro então está ocupando alguma coisa. O um que então é um cheio é um que está precisando então que o terceiro não ocupe coisa alguma. O terceiro está ocupando alguma coisa. O cheio era um cheio e estava partindo quando nem um sabia coisa alguma sabia que ele estava partindo. 

Os três se amaram. Dois deles estavam amando. Um deles não estava amando e lembrava de todas as coisas e ocupava alguma coisa. Um deles estava amando e tinha derrubado um outro no chão e estava precisando de que o outro outro não ocupasse coisa alguma. O outro o que foi derrubado no chão estava então amando e estava então sabendo que o cheio estava então amando. Ele estava amando então e o cheio estava amando então e eles eram então os que estavam amando. Eles tinham estado se beijando e o que estava derrubado no chão era um que poderia ter derrubado o cheio no chão. 

Outra vez, bem mais tarde cada um deles encontrou um dos três. O um que era um cheio de lágrimas vindo dele enquanto ele estava amando e beijando não encontrou o um que estava então ocupando alguma coisa. Ele encontrou o outro e não o encontrou outra vez. Ele era um cheio então e estava assim por não querer encontrar o um que estava então ocupando alguma coisa. Ele era sempre um cheio de alguma coisa. Ele era agora um cheio por não querer encontrar o um que estava então ocupando alguma coisa. Ele não o encontrou. Ele ficou bem cheio por uma vez tê-lo quase encontrado. Ele era um bem cheio então. Ele não foi então encontrá-lo, àquele que estava então ocupando alguma coisa. 

Um dos três encontrou um deles e queria encontrá-lo de novo e estar amando de novo mesmo que eles não chegassem de novo a se beijar e a chorar. Ele encontrou o um que estava então cheio de ser o que não precisa estar amando qualquer um que ele tenha conhecido; o um que quis ser o que não gosta de beijar, que não gosta de qualquer um que tenha sido um. Ele não estava gostando daquele que era então um cheio de ser um a não gostar de qualquer um que tinha sido um. O um que estava encontrando com ele o um que era então um cheio não estava gostando dele, não estava gostando daquele cheio. Ele perdeu algo perdeu ser um gostando do outro ser um cheio de beijar e chorar. Ele perdeu algo, o um que encontrou o outro que então era um cheio perdeu gostar daquele, perdeu o outro sendo um cheio de amar e chorar. 

O um que era um cheio por ser então um que não quer encontrar o que estava então ocupando alguma coisa, era então um cheio por não querer conhecer qualquer um que tivesse sido. Ele não estava querendo então encontrar o que estava então ocupando alguma coisa. Ele era um cheio então por ter este sentimento então nele. Ele estava chorando um tanto então por estar cheio. 

Cada um dos três era um tal, tal eles eram então. Cada um deles, os três deles, queria dizer alguma coisa sendo um tal. Cada um dos três era um tal bebendo e amando e falando. Cada um deles, cada um dos três era um que bebia com o outro amava um dos três, amava dois dos três amava todos os três, beijava um deles, chorava um tanto então. Cada um dos três era um tal. Cada um dos três queria dizer alguma coisa sendo um tal. 

O um que estava ocupando alguma coisa era um tal sendo um a beber e a falar e a ouvir e a ocupar então alguma coisa, ocupar sendo um tal, um a beber e a ouvir e a falar, a ocupar completamente sendo um tal. 

Ele era um a ocupar alguma coisa. Ele era um a ocupar sendo um tal, um a beber e a amar por escutar e por falar. Ele era um a ocupar sendo um tal a ocupar completamente sendo um tal, a beber e a amar por estar escutando e por estar falando. 

Ele era um tencionando essa coisa por ser um tal tencionando ser um a ocupar completamente sendo um tal, amando por escutar, amando por falar, amando por beber. Ele estava ocupando plenamente sendo um tal e estava plenamente tencionando essa coisa por ser um tal, tencionando ser um a amar por ser um a escutar, por ser um a falar, por ser um a beber. 

Ele era um tal, ele estava ocupando completamente sendo um tal, ele estava plenamente tencionando ser um tal. Ele estava completamente ocupando um tal e ele estava então ocupando alguma coisa, ele estava então ocupando alguma coisa e ele era então para o cheio, o que então precisava não estar encontrando ele, ele era para aquele um a ocupar alguma coisa onde ele o então cheio precisava ter todas as coisas em volta dele para que pudesse ser um a deixá-las para trás. Ele estava então ocupando alguma coisa o que poderia estar encontrando o que era então o cheio por ser o que precisava não estar encontrando ele, ele estava então ocupando alguma coisa e sendo um então a amar por beber, a amar por escutar, a amar por falar. Ele poderia então estar ocupando alguma coisa e tendo então o que era o cheio por precisar não estar encontrando ele, tendo o cheio então ser o que ele era ao ter um como aquele com quem ele poderia estar se encontrando outra vez, sendo um tencionando ocupar alguma coisa. 

Ele era um completamente sendo um tal. Ele era um a tencionar completamente por ser um tal. Ele era um a ocupar alguma coisa por ser um amando por beber, amando por ouvir, amando por falar. Ele estava tencionando sendo um tal. Ele estava tencionando ao ser um tal. Ele era um tal. 

O que foi derrubado no chão por ser um que vem amando e beijando e bebendo poderia ter derrubado no chão o que tinha então derrubado ele no chão. Ele poderia ter derrubado no chão o que derrubou ele no chão, e então ele o amou e ele o beijou, e eles então disseram que ambos então sabiam todas as coisas. Ele poderia ter derrubado no chão o que derrubou ele no chão e ele então não estaria amando e beijando e sabendo então todas as coisas. Às vezes, ele era um a derrubar alguém no chão e sendo um então a deixar alguém cair e sendo um então a saber alguma coisa. Ele estava então quando foi derrubado no chão pelo que ele poderia ter derrubado no chão ele estava então amando e beijando e eles estavam então sabendo de todas as coisas. Ele era um tal e era um que estava tencionando ao ser um sendo um tal. Ele era um que vinha sendo um tal e sendo um tal e sendo um a lembrar que se tornou um tal, e sendo um tal, e estando bebendo e beijando e amando ao estar tencionando ao ser um tal e ser então um tal, e ser então um que poderia ter derrubado no chão o outro e ser então o que foi derrubado no chão pelo que ele estava beijando então e amando então e eles estavam então sabendo todas as coisas, ele estava se lembrando que ele era o que era um tal. Eles estavam então sabendo todas as coisas e ele estava então se lembrando de todas as coisas e o outro depois estava cheio então por ser o que não se lembra de coisa alguma por ser o que não precisa estar lembrando de qualquer um ao ser um que tenha sido. Ele era o que tinha derrubado no chão o outro e o outro poderia ter derrubado ele no chão. Ele tinha derrubado no chão o outro e eles estavam então se beijando e amando e sabendo de todas as coisas. 

Ele era um cheio e tinha derrubado no chão o outro. Ele era um cheio e era um tal. Ele era um tal e estava se lembrando de ter tencionado ao ser um tal. Ele não estava se lembrando de todas as coisas. 

Ele tinha sido um tal um tal a amar. Ele tinha estado beijando então e bebendo então com lágrimas então surgindo nele. Ele tinha lágrimas ocupando ele quando ele estava se lembrando, quando ele não estava se lembrando sendo um tal. Ele era um cheio por ser um com lágrimas transbordando dele. Ele era um cheio por estar se lembrando, ele era um cheio por não estar se lembrando de ser um tal. Ele era um cheio de lágrimas inchando ele. Ele era um cheio de lágrimas escapando dele. Ele era um cheio de lágrimas sobrando nele. Ele era um que poderia ser um cheio por querer ter derrubado alguém no chão e ser um a chorar então. Ele poderia se lembrar de alguma coisa. Ele se lembrou de alguma coisa. Ele não se lembraria de todas as coisas. Ele seria um tal e seria um cheio estando completo então por ser um tal. Ele era um cheio por ser um a derrubar no chão o outro e admirar então o que tinha sido derrubado por ele. Ele estava sendo um tal. Ele estava tencionando alguma coisa ao ser um tal. Intencionava-se ao ser um tal. 

Intencionava-se ao ser um tal e tantos se lembraram daquilo, se lembraram de que ele era um tal e de que se intencionava aquela coisa, intencionava-se ao ser um tal. 

Ele era um tal e tinha tencionado ao ser um tal, intencionado ser um tal ao ser um tal. Ele estava se lembrando dessa coisa se lembrando de que ele era um tal. Ele se lembrou dessa coisa, ele se lembrou de que ele tinha tencionado ao ser um tal. 

Ele estava tencionando outra vez ao ser um tal e estava se lembrando de que ele tinha mencionado outra vez que ele era um tal. Ele estava se lembrando outra vez de que ele era um tal e ele estava se lembrando outra vez de que ele estava tencionando. Ele era um tal. 

Ele era um tal e estava se lembrando daquela coisa sendo um cheio. Ele era um cheio sendo um tal. Ele era um cheio se lembrando de ser um tal. 

Ele era um cheio se lembrando de que ele não estava encontrando qualquer um que tenha sido. Ele era um cheio se lembrando de que ele poderia encontrar qualquer um que tenha ocupado alguma coisa. Ele era um cheio por estar chorando. Ele era um cheio. Ele estava se lembrando de alguma coisa ao ser um cheio. Ele estava se lembrando de ser um tal. 

Ele estava se lembrando de ser um tal. Ele estava se lembrando de alguma coisa. Ele estava se lembrando de ter tencionando ao ser um tal. Ele era um tal. Qualquer um era um não se esquecendo outra vez de que ele era um tal. Ele era um não se esquecendo outra vez de que ele era um tal. Ele era um não derrubando um outro no chão e sendo então o cheio por não se tornar um a jamais fazer uma tal coisa. Ele era um cheio sendo um outra vez então não encontrando qualquer um que ele não tenha derrubado no chão. Ele era um cheio sendo um então encontrando outra vez o um que ele não chegou a derrubar no chão e sendo um não encontrando aquele outra vez. Ele era um tal. Ele estava se lembrando de alguma coisa. 

Nem um dos três encontrou coisa algum de nem um outro deles. Qualquer um deles era um encontrando um outro. Qualquer um dos três era um tal. 

Qualquer um dos três estava tencionando ser um tal. Qualquer um dos três era um tencionando alguma coisa sendo um tal. Qualquer um dos três estava sendo um a ser um tal. Cada um dos três era um sendo um do seu jeito. Cada um dos três era de um jeito diferente dos outros três. Cada um dos três era um tal. 




(Tradução de Marília Garcia e Valeska de Aguirre) 


(Ilustração: Harry Holland - raft three)




terça-feira, 12 de novembro de 2019

CANTO IV DA CANÇÃO “VOZES EM DISSONÂNCIA OU APENAS VOZES”, de António de Névada (*)




Fui navegador e dobrei o mundo para lá do Adamastor.

Nem os versos de Camões me valeram nem as líricas

E as rimas em redondilhas, labutei o inelutável e contra Zeus

Perdura a luta e o luto, Confúcio está coxo e prostrado

Na sua poltrona, Picasso já não pinta máscaras africanas

E pouco me importa a orelha de Van Gogh!


Cristo, sem a varinha e o condão, já só faz milagres por encomenda,

E esqueceu-se da partilha do vinho e do pão! Ainda assim, há

Quem crê que a essência do homem nasce da sua vocação do amor,

Que o segredo da vida seja o mel que colhemos do melhor favo,

Que nada faça mais sentido que a simplicidade de nos recolhermos ao aconchego da lua.


Vimos o albatroz debalde fulminado em pleno voo

E o arcanjo tocando a lira e o banjo cair do céu abaixo

E estatelar-se no chão! Ó homem chega a ser

O que és – diria Píndaro, indelével e assaz…

A memória é a ínfima parte da alma que recolhe a pedra do tempo!


Entre o vazio e os escombros restamos nós, e não há terra firme

Nos sonhos que nos assombram! No lugar da perenidade os braços

E o cansaço, a cadência longa e a louca insinuando-se à morna e ao tango,

O flamengo dedilhando a voz rugosa e o fado e a milonga desapaixonada,

O peito pulsando esta dança e a música em crescendo pelo caminho da solidão.


Sobre a alma do nómada a contemporaneidade e a coetaneidade

Baralham-se numa orgia caótica! Certamente, não será o mundo

Que doaremos ao mundo! Que a morte nos não doa e a vida doendo

Se encarregue da dor que permanece na usura e no âmago das coisas!

O latido distante da cadela em cio fere os ouvidos do violinista! (atrás dela seguem cães famintos…)


No limiar da banalidade, as pontas cintilantes da constelação,

Os gritos e a alegria das crianças devolvem ao quotidiano

O barro lamacento e as casas caiadas! E desfiando o novelo

Das palavras o eco labiríntico prevalece na dramaturgia coeva.

Não se trata de histórias ou factos, dos lugarejos de Roma quando visitei Fellini!


Não encontrei em viagem alguma a ponta ao fio.

Vou desfazendo os membros e os dedos num arabesco,

As teias e os bordados que deflagram em formas barrocas,

A mente e o ser, a meada completa e o novelo à alma.

As palavras ocas, doravante, o fio sem ponta que lhe pegue!


Eis a cidade e o caos que habito, Basquiat não me indicou o caminho

Nem as portas da via latina, decompus os cacos que soçobram da composição

E escrevo a toada e o canto onde a vida deposita o seu peso incontestável!


Que amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza…




(*) Pertencente ao poema Cânone Silábico ou uma Canção de Amor, inédito da autoria do poeta cabo-verdiano António de Névada.



(Cabo Verde: Antologia de poesia contemporânea)




(Ilustração: Archibald Motley)







sábado, 9 de novembro de 2019

DISCURSO DE PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, de Ulysses Guimarães (*)






Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia. 

Dois de fevereiro de 1987: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.” São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. 

Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. 

A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. 

Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. 

Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. 

Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronunciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever. 

A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. 

A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. 

Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. 

A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. 

Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. 

Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação. 

A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. 

A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações. 

Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. 

O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final. 

A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões. 

Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. 

O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. 

Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado, só no art. 5º de 77 incisos e 104 dispositivos. 

Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção. 

Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”. 

Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram. 

No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado. 

É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha. 

A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas. 

Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca, mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente. 

Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração. 

A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão. 

É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil. 

As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. 

A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos Estados e dos Municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto. 

A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. 

Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios. 

Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo. 

O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos Parlamentos contemporâneos. 

É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a coparticipação e a corresponsabilidade. 

Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove bem. 

Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Não esqueçamos que, na ausência de lei complementar, os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção. 

A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinência, o slogan: “Vamos votar, vamos votar”, que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos. 

Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. 

O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento. 

A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. 

A moral é o cerne da Pátria. 

A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. 

Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. 

Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações dos órgãos públicos, da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização. 

A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora. 

Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos. 

Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. 

Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos. 

É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar. 

Sr. Presidente José Sarney: V.Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do saudoso, do grande Tancredo Neves, de V.Exa. e da Aliança Democrática ao convocar a Assembleia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional nº 26 teve origem em mensagem do Governo, de V.Exa., vinculando V.Exa. à efemeridade que hoje a Nação celebra. 

Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que representa. 

Sr. Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V.Exa. 

O imperativo de “Muda Brasil”, desafio de nossa geração, não se processará sem o consequente “Muda Justiça”, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do poder chefiado por V.Exa. Cumprimento o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, que, em histórica sessão, instalou em 1º de fevereiro de 1987 a Assembleia Nacional Constituinte. 

Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de minha Presidência. 

O Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública. 

Os Relatores Adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram colaboração unanimemente enaltecida. Nossa palavra de sincero e profundo louvor ao mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita redação do texto. 

O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações. 

Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembleias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica. 

Os Líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os Anais guardarão seus nomes e sua benemérita faina. 

Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática. 

Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País. 

Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. 

Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes. 

A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições. 

Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado – da Gráfica e do Prodasen. 

Agradeço aos Constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. 

Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos. 

Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída para lugares biologicamente exigíveis. 

Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados. 

Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles. 

Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno. 

Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa. 

Autoridades, Constituintes, senhoras e senhores, a sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. 

O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo. 

O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei”. 

O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros. 

O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. 

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. 

Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. 

Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. 

A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. 

Que a promulgação seja nosso grito: 

– Mudar para vencer! 

Muda, Brasil! 



(*) Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382. Foram eliminadas apenas as palavras iniciais e protocolares de referência às autoridades presentes, bem como as notações taquigráficas de manifestação dos ouvintes, como palmas etc.)




(Ilustração: Promulgação da Constituição Federal de 1988 - Arquivo Agência Brasil)