quinta-feira, 21 de novembro de 2019
SÓ MAIS UMA VEZ, de John Cheever
Não há razão para procurar encrenca, mas, em qualquer retrato abrangente e verdadeiro da cidade em que vivemos, sem dúvida haverá lugar para mais um comentário acerca dessas pessoas obstinadas que nunca desistem ou fogem do jogo, os insaciáveis que já encontramos em algum momento de nossas vidas. Refiro-me em especial aos aristocratas empobrecidos que moram no Upper East Side — os homens elegantes, charmosos e dilapidados que trabalham para corretoras e suas pretensiosas esposas, com casacos de marta comprados em brechós e peles puídas, com sapatos de couro de crocodilo e modos arrogantes ao lidar com porteiros e caixas de supermercados, com suas joias de ouro e restinhos de Je Reviens ou Chanel. Penso sobretudo nos Beer — Alfreda e Bob —, que moram no edifício do East Side que pertenceu ao pai dele, cercados de troféus de iatismo, fotografias autografadas do presidente Hoover, móveis espanhóis e outras relíquias da época das vacas gordas. Na verdade, não se tratava de um apartamento espetacular, apenas grande e escuro, porém acima da capacidade financeira do casal, o que se podia notar pela cara dos porteiros e ascensoristas quando você dizia a quem ia visitar. Acredito que estivessem sempre atrasados dois ou três meses no pagamento do aluguel, não tendo sobras para oferecer gorjetas. Naturalmente, Alfreda estudara em Fiesole. Seu pai, como o de Bob, havia perdido milhões e milhões de dólares. Todas as suas memórias eram ricamente incrustadas com pátinas de ouro reluzente, apostas astronômicas nos jogos de bridge, a dificuldade de ligar o motor do Daimler nos dias de chuva e piqueniques na margem do Brandywine com as filhas dos Du Pont.
Ela era uma mulher bem-apanhada — com um rosto comprido e aquela compleição delicada dos nascidos na Nova Inglaterra que parece lhes conferir, por natureza, uma posição social privilegiada. Dava a impressão de ser imperturbável. Quando estavam por cima, ela trabalhava — primeiro na loja de cristais Steuben, na Quinta Avenida, e depois na Jensen, onde criou um problema ao insistir no direito de fumar. De lá foi para a Bonwit e, mais tarde, para a Bendel. Contratada pela Schwarz durante um Natal, estava na seção de luvas do térreo da Saks na Páscoa seguinte. Nos intervalos dos empregos teve dois filhos e costumava deixá-los aos cuidados de uma velha escocesa que servia a família desde os tempos áureos e, tanto quanto os Beer, parecia incapaz de se adaptar de forma positiva às mudanças.
Eles eram o tipo de gente que você sempre encontra em estações ferroviárias ou em coquetéis. Mais precisamente, em estações ferroviárias nas noites de domingo; nos fins de semana ou nos fins de temporada, em lugares como Hyannis ou Flemington; no início da primavera, em Lake George, Aiken ou Greenville; em Westhampton, Stonington, Bar Harbor e no barco a vapor de Nantucket; ou, indo mais longe, na estação Paddington, em Roma e no barco noturno que sai de Antuérpia. “Olá! Olá!”, diziam em meio à multidão de passageiros, e lá estava ele, envergando uma capa de chuva branca, de bengala e chapéu de feltro, e lá estava ela, usando um casaco de marta ou alguma pele. E, de certo modo, os coquetéis em que eles eram vistos não se diferenciavam tanto, em última análise, das gares e dos barcos. Naquelas recepções, o número de convidados nunca era muito grande e a bebida, nunca muito boa. Enquanto todos bebiam e falavam, dava para sentir que a compreensível animação social era aos poucos substituída por uma letargia palpável, como se os laços de família, grupo social, escola e origem geográfica que mantinham o grupo coeso se dissolvessem como o gelo em seus copos. Não que houvesse uma atmosfera de dissolução social, mas sim de transformação social, de realinhamento — na verdade, a atmosfera das viagens. Os convidados pareciam estar reunidos num terminal ferroviário ou marítimo, esperando que partisse o trem ou o navio. Mais além do empregado que recolhia os casacos de pele, mais além do saguão e da porta de incêndio, se abria uma vastidão de águas escuras, às vezes borrascosas — o guinchar do vento, o ranger das tabuletas de ferro, as luzes, as vozes dos tripulantes, o apito lancinante de um barco que terminava a travessia do Canal.
Uma razão pela qual você via com tanta frequência os Beer nos coquetéis e nas estações ferroviárias era que eles estavam sempre procurando por alguém. Não por alguém como você ou eu — procuravam pela marquesa de Bath —, mas, num aperto, qualquer um servia. O modo como costumavam chegar a uma festa e passar em revista os presentes é compreensível — todos nós fazemos isso —, porém o jeito como examinavam os outros passageiros numa estação de trem era algo bem diverso. Em qualquer lugar onde precisassem esperar ao menos por quinze minutos, eles viravam as pessoas pelo avesso, esquadrinhando sob as abas dos chapéus e detrás dos jornais para ver se encontravam alguém conhecido.
Estou falando das décadas de 30 e 40, antes e depois da Grande Guerra — anos em que os problemas financeiros dos Beer devem ter se complicado ainda mais porque seus filhos já estavam na idade de frequentar colégios caros. Eles andaram fazendo algumas coisas indecorosas; por exemplo, passaram cheques sem fundos e, tendo tomado emprestado um carro para o fim de semana, caíram numa vala e abandonaram a cena do acidente como se nada tivessem a ver com aquilo. Esses golpes tornaram algo precário o status social e econômico de ambos, mas eles continuaram a operar com o que lhes restava em matéria de charme e expectativa — pois havia a tia Margaret na Filadélfia e a tia Laura em Boston —, porém, para dizer a verdade, eles eram mesmo encantadores. As pessoas sempre se alegravam ao vê-los porque, embora não passassem de patéticos gafanhotos sobreviventes de um glorioso verão econômico, eles tinham o poder de relembrar aos circundantes coisas boas — bons lugares, jogos, comida e companhia. Além disso, o ardor com que procuravam por amigos nas plataformas das estações ferroviárias talvez pudesse ser explicado pelo fato de que estavam simplesmente em busca de um mundo que compreendiam.
Então tia Margaret morreu, como vim a saber por acaso na primavera. Meu chefe e sua esposa iam de navio para a Inglaterra, e fui me despedir deles certa manhã levando uma caixa de charutos e um romance histórico. Se bem me lembro, o transatlântico era novo, com muitíssimos curiosos examinando os livros de Edna Ferber trancados nas estantes da biblioteca ou admirando as piscinas e bares ainda secos. Os corredores estavam entupidos de gente, cada cabine da primeira classe, cheia de flores e de amigos que se despediam e bebiam champanhe às onze da manhã de um dia lúgubre, enquanto a grossa sopa verde do porto de Nova York lançava seus eflúvios trágicos em direção às nuvens. Tendo dado os presentes a meu chefe e sua esposa, eu procurava o convés principal quando, ao passar por uma cabine, ouvi a risada de colegial de Alfreda. A sala estava apinhada, um garçom servia champanhe e, depois que cumprimentei o casal, Alfreda me puxou para o lado. “Tia Margaret foi desta para a melhor”, ela disse, “e estamos podres de ricos outra vez...” Bebi champanhe até soar o apito para que todos desembarcassem — um apito veemente, ensurdecedor, o rouco chamamento da própria vida e, de certo modo, assim como o cheiro da água do porto, também trágico. E isso porque, vendo a festa acabar, me perguntei por quanto tempo a fortuna de tia Margaret iria durar nas mãos daqueles dois. Como tinham dívidas enormes e hábitos perdulários, nem mesmo com cem mil dólares iriam muito longe.
A ideia deve ter ficado no fundo de minha mente, pois, no outono, durante uma luta de pesos-pesados no Yankee Stadium, pensei ver Bob andando de um lado para outro com uma bandeja de binóculos de aluguel. Chamei-o — tive de gritar — e não era ele, mas a semelhança era tão notável que senti como se de fato o tivesse visto ou, ao menos, entrevisto a amplitude dos vívidos contrastes sociais e econômicos que o casal poderia ter de enfrentar.
Quisera poder dizer que, saindo do teatro numa noite de nevada, vi Alfreda vendendo lápis na rua 46, e que ela voltaria para algum porão do West Side onde Bob morria num catre, porém isso apenas refletiria a pobreza de minha imaginação.
Ao dizer que os Beer eram o tipo de gente que você encontra nas estações ferroviárias e nos coquetéis, me esqueci das praias. Eles eram muito aquáticos. Você sabe como é. Nos meses de verão, a costa nordeste de Long Island até boa parte do Maine, incluindo todas as ilhas oceânicas, parece se transformar num vasto empório social e, sentado na areia enquanto o Atlântico Norte ruge à sua frente, você vê figuras que pertencem ao seu passado social surgirem da espuma, gordas como uvas passas em cima de um bolo. Uma onda se forma, acelera ao se aproximar da areia, entra em fervura e quebra, revelando Consuelo Roosevelt e o casal Dundas Vanderbilt, com os filhos dos dois casamentos. Outra onda vem da direita tal qual uma carga de cavalaria, empurrando Lathrope Macy e a segunda esposa de Emerson Crane em direção ao continente em cima do bote de borracha e trazendo para a praia o bispo de Pittsburgh boiando numa câmara de pneu. Pouco depois, uma onda quebra a seus pés, fazendo o barulho de uma tampa de baú ao ser fechada, e lá estão os Beer. “Mas que bom encontrá-lo, que satisfação revê-lo...”
Por isso, o verão e o mar constituirão o cenário para a última aparição deles — pelo menos, para os fins deste relato. Estamos numa cidadezinha do Maine, digamos assim, e decidimos levar a família para dar um passeio de barco e fazer um piquenique. O gerente da hospedaria nos diz onde se pode alugar um barco e, depois de pegar os sanduíches, seguimos as instruções para chegar ao cais. Encontramos um velho num casebre com um barquinho à vela para alugar. Fazemos o depósito e assinamos um papel todo sujo, reparando que o velho já está bêbado às dez da manhã. Ele nos leva num bote a remo até o barco, nos despedimos e, ao verificar o estado lamentável em que se encontra a embarcação, o chamamos, porém ele já vai longe rumo ao cais.
As tábuas do piso estão cobertas de água, o pino do leme, torto, um dos parafusos do leme, enferrujado. As polias estão quebradas e, quando conseguimos bombear para fora toda a água e içar a vela, verificamos que ela está rota e apodrecida. Finalmente, nos lançamos ao mar — atendendo aos apelos das crianças — e velejamos até uma ilha para fazer o piquenique. Na volta, o vento, agora mais intenso, nos empurra para o sudoeste. Ao nos afastarmos da ilha, o estai de bombordo se rompe e fica enroscado no mastro. Baixamos a vela e o remendamos com uma corda. Vemos então que, com a maré vazante, estamos sendo levados rapidamente para o mar alto. Consertado o estai de bombordo, velejamos por dez minutos até que se rompe o de estibordo. Agora a coisa está preta. Só o velho no casebre, bêbado como um gambá, sabe de nosso paradeiro. Tentamos remar com as tábuas do piso, porém não conseguimos vencer a força da maré. Quem nos salvará? Os Beer!
Ao anoitecer, eles surgem no horizonte num desses lanchões que ostentam um banco alto no passadiço, abajures e vasos de rosas na cabine. Um marinheiro segura o timão enquanto Bob nos joga uma corda. Esse não é um mero encontro casual de velhos amigos — nossas vidas foram salvas! Estamos em estado de graça. O marinheiro passa para o barquinho à vela e, dez minutos depois de sermos arrancados da mandíbula da Morte, estamos bebendo martínis no passadiço. Dizem que nos levarão para a casa deles e que podemos passar a noite lá. E, conquanto o cenário e os acessórios não estejam tão diferentes, a relação do casal com as coisas que os circundam se alterou de forma radical. A casa pertence a eles, a lancha pertence a eles. Ficamos perplexos, boquiabertos, mas Bob é suficientemente educado para nos dar uma explicação em voz baixa, quase balbuciando, como se os fatos pudessem ser postos entre parênteses. “Pegamos a maior parte do dinheiro da tia Margaret e todo o dinheiro da tia Laura, além de uma coisinha que o tio Ralph nos deixou, e investimos a bolada inteira no mercado e, você sabe, mais do que triplicou nos últimos dois anos. Comprei de volta tudo que papai perdeu — quer dizer, tudo que eu queria. Aquele lá é meu veleiro. Naturalmente, a casa é nova. Aquelas luzes são nossas.” O fim de tarde e o oceano, que pareciam tão ameaçadores no barquinho, naquele momento se estendiam a nosso redor com uma tranquilidade milagrosa. Relaxamos a fim de poder aproveitar melhor a companhia deles, pois os Beer são encantadores — sempre foram — e agora se revelam também inteligentes: pensando bem, eles foram ou não inteligentes o bastante para saber que o verão iria retornar?
(28 contos de John Cheever; “Just one more time”, Trad. Jorio Dauster)
(Ilustração: Jean Béraud - une soirée)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário