terça-feira, 12 de novembro de 2019

CANTO IV DA CANÇÃO “VOZES EM DISSONÂNCIA OU APENAS VOZES”, de António de Névada (*)




Fui navegador e dobrei o mundo para lá do Adamastor.

Nem os versos de Camões me valeram nem as líricas

E as rimas em redondilhas, labutei o inelutável e contra Zeus

Perdura a luta e o luto, Confúcio está coxo e prostrado

Na sua poltrona, Picasso já não pinta máscaras africanas

E pouco me importa a orelha de Van Gogh!


Cristo, sem a varinha e o condão, já só faz milagres por encomenda,

E esqueceu-se da partilha do vinho e do pão! Ainda assim, há

Quem crê que a essência do homem nasce da sua vocação do amor,

Que o segredo da vida seja o mel que colhemos do melhor favo,

Que nada faça mais sentido que a simplicidade de nos recolhermos ao aconchego da lua.


Vimos o albatroz debalde fulminado em pleno voo

E o arcanjo tocando a lira e o banjo cair do céu abaixo

E estatelar-se no chão! Ó homem chega a ser

O que és – diria Píndaro, indelével e assaz…

A memória é a ínfima parte da alma que recolhe a pedra do tempo!


Entre o vazio e os escombros restamos nós, e não há terra firme

Nos sonhos que nos assombram! No lugar da perenidade os braços

E o cansaço, a cadência longa e a louca insinuando-se à morna e ao tango,

O flamengo dedilhando a voz rugosa e o fado e a milonga desapaixonada,

O peito pulsando esta dança e a música em crescendo pelo caminho da solidão.


Sobre a alma do nómada a contemporaneidade e a coetaneidade

Baralham-se numa orgia caótica! Certamente, não será o mundo

Que doaremos ao mundo! Que a morte nos não doa e a vida doendo

Se encarregue da dor que permanece na usura e no âmago das coisas!

O latido distante da cadela em cio fere os ouvidos do violinista! (atrás dela seguem cães famintos…)


No limiar da banalidade, as pontas cintilantes da constelação,

Os gritos e a alegria das crianças devolvem ao quotidiano

O barro lamacento e as casas caiadas! E desfiando o novelo

Das palavras o eco labiríntico prevalece na dramaturgia coeva.

Não se trata de histórias ou factos, dos lugarejos de Roma quando visitei Fellini!


Não encontrei em viagem alguma a ponta ao fio.

Vou desfazendo os membros e os dedos num arabesco,

As teias e os bordados que deflagram em formas barrocas,

A mente e o ser, a meada completa e o novelo à alma.

As palavras ocas, doravante, o fio sem ponta que lhe pegue!


Eis a cidade e o caos que habito, Basquiat não me indicou o caminho

Nem as portas da via latina, decompus os cacos que soçobram da composição

E escrevo a toada e o canto onde a vida deposita o seu peso incontestável!


Que amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza…




(*) Pertencente ao poema Cânone Silábico ou uma Canção de Amor, inédito da autoria do poeta cabo-verdiano António de Névada.



(Cabo Verde: Antologia de poesia contemporânea)




(Ilustração: Archibald Motley)







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