segunda-feira, 30 de maio de 2016

THE CHARGE OF THE LIGHT BRIGADE / A CARGA DA BRIGADA LIGEIRA, de Alfred Tennyson








HALF a league, half a league,

Half a league onward,

All in the valley of Death

Rode the six hundred.

‘Forward, the Light Brigade!

Charge for the guns!’ he said;

Into the valley of Death

Rode the six hundred.




‘Forward, the Light Brigade!’

Was there a man dismay’d?

Not tho’ the soldier knew

Some one had blunder’d:

Their’s not to make reply,

Their’s not to reason why,

Their’s but to do and die:

Into the valley of Death

Rode the six hundred.




Cannon to right of them,

Cannon to left of them,

Cannon in front of them

Volley’d and thunder’d;

Storm’d at with shot and shell,

Boldly they rode and well,

Into the jaws of Death,

Into the mouth of Hell

Rode the six hundred.




Flash’d all their sabres bare,

Flash’d as they turn’d in air,

Sabring the gunners there,

Charging an army, while

All the world wonder‘d:

Plunged in the battery-smoke

Right thro’ the line they broke;

Cossack and Russian

Reel’d from the sabre-stroke

Shatter’d and sunder’d.

Then they rode back, but not,

Not the six hundred.




Cannon to right of them,

Cannon to left of them,

Cannon behind them

Volley’d and thunder’d;

Storm’d at with shot and shell,

While horse and hero fell,

They that had fought so well

Came thro’ the jaws of Hell,

All that was left of them,

Left of six hundred.




When can their glory fade?

O the wild charge they made!

All the world wonder’d.

Honour the charge they made!

Honour the Light Brigade,

Noble six hundred!




Tradução de Wagner Mourão Brasil:




I


Meia légua, meia légua

Meia légua sempre adiante,

Todos, no vale da Morte

Os seiscentos cavalgaram.

"Brigada Ligeira, avante!

Contra as armas, carga à frente!".

Adentrando o vale da Morte

Os seiscentos cavalgaram.


II


"Brigada Ligeira, avante!"

Algum homem esmoreceu?

Não, pois sabendo o soldado

Que alguém em erro incorreu:

A eles não cabe contradizer,

A eles não cabe querer saber,

A eles só cabe agir e morrer.

Adentrando o vale da Morte

Os seiscentos cavalgaram.


III


À sua destra, canhões,

À sua esquerda, canhões,

À sua frente, canhões

Disparavam e troavam;

Por tiros e bombas afligidos,

Cavalgaram destemidos,

Rumo aos caninos da Morte,

Rumo à boca do Inferno

Os seiscentos cavalgaram.


IV


Luziram nus os seus sabres,

Luziram cortando os ares

Retalhando os artilheiros,

Batendo o inimigo, enquanto

Ao mundo todo assombravam:

Por entre a fumaça adentraram

Pela linha que romperam;

Aos cossacos e aos russos

Com seus sabres retalharam,

Massacraram e partiram.

E recuaram, mas não,

Não os seiscentos.


V


À sua destra, canhões,

À sua esquerda, canhões,

Às suas costas, canhões

Disparavam e troavam;

Tiros e bombas os afligiram,

Enquanto herói e corcel caíam,

Eles que tão bem renhiam,

Pelos caninos da Morte

Das bocas do Inferno saíam,

Todos os que restaram,

Restaram dos seiscentos.


VI


Será sua glória olvidada?

Oh, a brava carga lançada!

O mundo todo assombrado.

Honrai a carga lançada!

Honrai a Brigada Ligeira,

Nobres seiscentos.




Tradução de Octávio Santos:



Meia légua, meia légua,

meia légua em frente,

todos no Vale da Morte

cavalgaram com os seis centos.

“Para a frente a Brigada Ligeira!

Carreguem contra as armas!”, disse ele.

Para o Vale da Morte

cavalgaram os seis centos.




Para a frente a Brigada Ligeira!

Havia algum homem desanimado?

Todavia, o soldado não sabia

De algum que tivesse disparatado.

Eles não têm de responder,

eles não têm de se perguntar,

eles só têm de fazer e de morrer.

Para o Vale da Morte

cavalgaram os seis centos.




Canhão à direita deles,

canhão à esquerda deles,

canhão à frente deles

saraivaram e trovejaram;

atingidos por balas e obuses,

com audácia eles cavalgaram e bem,

para as mandíbulas da Morte,

para a boca do inferno

cavalgaram os seis centos.




Reluziram todos os seus sabres despidos,

reluziram ao rodopiarem no ar

sabrando os artilheiros lá

carregando contra um exército, enquanto

todo o Mundo se maravilhava.

Mergulhados no fumo das baterias

através da linha deles romperam a direito;

cossacos e russos

cambaleantes das sabradas

estilhaçaram-se e fenderam-se.

Então eles cavalgaram para trás, mas não,

não os seis centos.




Canhão à direita deles,

canhão à esquerda deles,

canhão à frente deles

saraivaram e trovejaram;

atingidos por balas e obuses,

enquanto cavalos e heróis caíam,

eles que haviam lutado tão bem

vieram através da mandíbulas da Morte,

de volta da boca do inferno,

tudo o que restava deles,

o que restava dos seis centos.




Quando irá a sua glória desvanecer-se?

Oh, a carga bravia que eles fizeram!

Todo o Mundo se maravilhou.

Honrem a carga que eles fizeram!

Honrem a Brigada Ligeira,

Nobres seis centos.




Tradução de Alexei Bueno:



Uma légua, e uma outra légua

E ainda outra, em frente,

Todos no Vale da Morte

Vão os seiscentos.

"Adiante, adiante, Brigada!

Contra as armas" é a ordem dada:

Dentro do Vale da Morte

Vão os seiscentos.




"Além, Brigada Ligeira!"

Qual de tal ordem se esgueira?

Soldado algum se desvia

Dos feitos cruentos:

Não têm o que responder,

Nada têm para dizer,

Eles só têm que morrer:

Dentro do Vale da Morte

Vão os seiscentos.




Canhões à direita deles,

Canhões à esquerda deles,

Canhões bem defronte a eles

Cuspindo, odientos;

Balas e bombas tragando,

Foram além, galopando,

Direto aos dentes da Morte,

Na boca infernal entrando

Vão os seiscentos.




Brilharam seus sabres no ar,

Luzindo a revolutear,

Já a artilharia a golpear,

Todo um exército, proeza

Que voou nos ventos:

Mergulhados na fumaça

Dos canhões, rompem sem jaça

Os russos e os cossacos

Que cada sabrada espaça

Tontos, sangrentos.

Então eles fogem, mas

Não os seiscentos.




Canhões à direita deles,

Canhões à esquerda deles,

Canhões bem nas costas deles

Cuspindo, odientos;

A bomba e bala crivados,

Cavalo e herói derrubados,

Eles, na luta exaltados,

Vieram da boca da Morte,

Do Inferno cruel resgatados,

Os restos que havia deles,

Deles, seiscentos.




Quem de sua glória se abeira?

Que ato o seu! A terra inteira

Espalha-o aos ventos.

Honra à sua carga altaneira!

Honra à Brigada Ligeira,

Nobres seiscentos!




(Poemas de Alfred Tennyson)



(Ilustração: Caton Woodville - Carga da Brigada Ligeira)



sexta-feira, 27 de maio de 2016

CARTA DE UM DOENTE DE ALZHEIMER PARA A SUA MULHER, de Raul Minh'Alma







“Leninha, meu amor.

Escrevo-te esta carta, mas a única viagem que ela fará será da minha mão para a tua. Escrevo-ta porque vais precisar de a ler muitas vezes, e eu também vou precisar que a leias. Não é à toa que me esqueço constantemente das coisas, não é à toa que de um momento para o outro a minha personalidade muda, não é à toa que por vezes o meu discurso não faz sentido. Mas que Deus me ajude a terminar esta carta, pelo menos esta carta, sem que a memória se vá embora e me deixe perdido a olhar para esta folha. Hoje sei que em breve não saberei quem sou, disseram-me os médicos. Tenho alzheimer.

Deixarei de viver antes do dia da minha morte, a vida escolheu-me para ter este fim, mas antes disso, escolheu-me para ser o marido mais feliz do mundo, o pai mais feliz do mundo, e por isso não consigo ficar desiludido com ela. Aceito, só posso aceitar.

Não fiques triste por mim, meu amor, pois eu não irei sofrer, não me irei lembrar sequer da dor. Os nossos filhos estão bem e tu és forte o suficiente para superares isto, não sintas pena de mim, por favor, sente amor, só, e toma conta de mim se puderes. Mas eu não quero atrapalhar a tua vida, não te quero prender em casa para não me deixares fazer asneiras, não te quero prender ao lado da cama para saberes se está tudo bem comigo, nem te quero prender a mim quando já não for mais a pessoa que amaste tantos anos. Não quero nada disto mas também sei que, por menos que queira ou por mais que te peça, tu nunca me irias abandonar, nunca irias desistir de mim. Tantas vezes me perguntaste porque é que eu te tinha escolhido para viver ao meu lado, porque é que eu te amava se tu não eras bonita nem tinhas nada de especial. Nunca desistirias de mim, nunca me abandonarias, queres maior beleza que isto? Queres maior motivo para te amar e querer viver contigo para sempre? Sei que nunca os pequenos-almoços que te levei à cama poderão compensar os dias a fio em que me darás o comer à boca, sei que nunca os momentos em que te confortei poderão compensar as preocupações que terás comigo, mas lembra-te, já que eu não irei conseguir, que eu serei o homem mais sortudo do mundo por te ter a tomar conta de mim.

Só eu posso sentir tristeza por não me lembrar de tantas coisas bonitas que vivemos, só eu posso sentir tristeza por não reconhecer mais o teu lindo sorriso, só eu posso sentir tristeza por não poder sentir mais nada. Lembra-te de tudo isto por mim, sorri por mim, sê feliz por mim, por favor! E lá no fundo, mesmo sem saber, eu também serei, prometo.

Estou-me a ir embora mas ainda aqui estou, perco-me lentamente numa memória que o tempo desvanece, caio no vazio do esquecimento e não posso fazer nada, dói amor, claro que dói, mas enquanto me dói, sei que vivo, e sei que deixarei de o saber.

Esta doença levar-me-á daqui e deixará apenas o meu corpo a estorvar e a dar trabalho. É triste, muito triste. Por isso peço-te que me perdoes Leninha. Perdoa-me quando não te reconhecer a ti e aos nossos filhos, perdoa-me quando estiveres mal e eu ficar indiferente, perdoa-me quando disseres que me amas e eu não retribuir, perdoa-me quando não sentir mais a tua falta, perdoa-me quando me olhares nos olhos e não vires nada, perdoa-me quando eu me for embora e não disser adeus.

Mas prometo-te, meu amor, que vou amar-te para sempre, vou amar-te sem fim, vou amar-te para sempre num cantinho de mim. Vou amar-te para sempre, prometo… só não me vou lembrar.”




(Ilustração: Fritz Aigner)





terça-feira, 24 de maio de 2016

LUNARIUM, de Regina Tieko







   
É lua cheia,
Meu amor não voltou
Será que virou lobisomem
Ou criou asas e voou?

Lua minguante
corre solta a madrugada
solitária e sussurrante
vem o bardo pela estrada.

É lua nova
via láctea, luz no escuro
céu de inverno denso e frio
gesta a flor noutro futuro.

Lua crescente
Bruxuleia a arandela
Onde brincam mariposas
E entra o amor pela janela.

É lua cheia...



(Ilustração: lunário de J. Felkl & Sohn - 1870)


sábado, 21 de maio de 2016

DAS CORRESPONDÊNCIAS, de Nina Rizzi






e fiquei. a esperar teus postais do sri lanka. me deitei no chão da cozinha e fiquei. a escutar o motor da geladeira e o remelexo das escovas de dentes (você não sabia, mas eu tenho várias. de mania, sei lá porquê. como tantas coisas, simplesmente é, sem que ter ou saber porquê.), da merda da prednisolona que me incha e o liquidificador de leites que não bebo e o álcool que não me move e os porta-retratos de imagens que nada me dizem e a tinta lilás de dias mais generosos. e a comida do gato. tudo motorizando.

e em noites ainda mais quentes e úmidas eu me sentava lá em cima da tremitante-geladeira de pernas abertas e as suas eram de pau. assim te cria, louca. louco. turbilhão do motor-nos.

e fiquei. a olhar pro telhado barato-lodoso feito nas coxas. umas grossas outras nem isso. a fiação que me mete medo, elétrica que sou. chocada de teias de aranhas que afasta visitas e teus postais que não me chegam do sri lanka.

você queria minha calma. pronto, taê. me construiu pr’além platonismo. sou matéria calma. MENTIRA, porra! eu continuo (n)a mesma. espalhada entre modernismos, pensamentos complexos, marxismos, blues, choro, o empreguinho de vilanias e a carne fremitante-tanto de te esperar.

eu tentei te ligar. eu queria tão-desesperadamente falar com você que meus dedos tremiam teus números. fumei os vinte cigarros com o telefone na boca. com os dedos arrancados dentes. mas eu não sei nada dos teus números.

e não tem esse negócio de sapatão-decadente, não. não tem nada de nada, porque é um tudo indissociável. miscigenar calar correr deitar beber me jogar ao mar. e começar tudo de novo os cabelos presos a tez branca a polidez o amarelo riso. o infindo meio-ser. quiçá a meio-coisa.

eu iria ver as magrelas. e me inspirar nelas. você disse. disse que cuidaria disso. de nos querer erguidos-juntos com toda fé em porra nenhuma. se abraçou de vez às mulatas que não são hipotéticas. desencantou da minha falsa branquidez patética. de novo. eu penso que elas são lindas. nossa cabeça é tão cheia que não podemos simplesmente fazer caber as merdas da teletela. é muita cultura pra dois serezinhos, macho. isso pode acabar com a gente. de brocha mesmo. de distopia. então elas são lindas e há também as brancas e rijas e eu até gozava de te ter assim livre, desde que você existisse em si de algum modo. em si e não dos meus tijolos. de mim só a tua carne materialista.

mas eu não vi nada disso. que teus postais não me chegaram do sri lanka. a minha bagagem, imaterial, vazia. e fiquei.




(Escritoras Suicidas)




(Ilustração: Antoine Helbert)










quarta-feira, 18 de maio de 2016

GEWEIHARCHIV / ARQUIVO DE CHIFRE, de Ron Winkler








meine Eltern schlugen häufig das Buch

der leisen Streite auf. meist ging ich

in einem solchen Fall mit einem

der drei Hunde meiner Kindheit spazieren.

sie jaulten ganze Idyllen zusammen.

die Schwester spielte Großmutter und hörte

schlecht. die Großmutter selbst hörte gut,

galt aber praktisch als ständig verreist in die Welt

der Walzer. Großvater war bereits

sein eigenes stilles Buch. man las es

aus Fotoalben zusammen. das waren Nachmittage

schwer und verraucht wie die Brokatvorhänge

der guten Stube. grünkohlgrün mit goldener Borte:

jeder Gast lobte die Wahl, dann den Likör.

Besuche waren Friedensfahrten*, man übte

Philanthropie und Freiheit: hier spielten Geweihe

die Rolle der Großen Vorsitzenden an der Wand.

nach der Schule begann das Bewusstsein

als Testbild (zweites Programm), es beruhigte,

wenn die Schwester einen ihrer Pickeltode starb

oder Großmutter den Plattenspieler

auf Tango beschleunigte. ich erntete Kleingeld

von ihr, für meine Geduld, und Pralinen.

erst verabscheute ich sie, später waren sie mir

die süßen Zweigstellen des Stammbaums.

sie ließen die Zunge fliehen.




Tradução de Viviane de Santana Paulo:


meus pais muitas vezes folhearam o livro

das silenciosas brigas. em casos assim

eu geralmente ia passear com um dos

três cães da minha infância.

juntos uivavam contra todo um idílio.

minha irmã brincava de avó e ouvia mal. minha avó mesmo

ouvia bem, mas era praticamente considerada muito viajada pelo mundo

da valsa. meu avô era o seu próprio livro

de silêncio. liamos juntos nos álbuns de fotografias.

eram tardes pesadas e enfumaçadas como as cortinas de brocados

de uma sala de estar. cor verde de repolho verde com as barras douradas:

cada convidado elogiava a escolha. depois o licor.

visitantes eram como ciclistas da paz*. praticávamos

filantropia e liberdade: brincávamos que o chifre pendurado na parede

possuía o papel do grande presidente.

depois da escola surgia a consciência

como um teste de imagem (a televisão), era tranquilizante

quando minha irmã morria uma de suas mortes de acne

ou minha avó acelerava o disco

tocando tango. eu colhia dela os trocados

para a minha paciência e chocolates.

primeiro eu as odiava, depois elas eram

os ramos doces da árvore genealógica

derretiam na língua




* Friedensfahrt, “Course de la Paix“, “Peace Race”, corrida de ciclismo em prol da paz muito comum na antiga Alemanha Oriental, foi realizada pela última vez em 2006.

(Ilustração: Nataly Abramovich)



domingo, 15 de maio de 2016

A NOVA CALIFÓRNIA, de Lima Barreto






I

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do correio pudera
 apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim
 era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o
 desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...


Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo
 habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.

– Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.


Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar!

E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como
 os da farmácia - um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.


O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante
de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte
 com o tinhoso.


Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do
 homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz 
baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.


Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário
 Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.


Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também,
 porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.


De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se
 aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante
 da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.


Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de
 Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas,
de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.

Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin
 de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se
 dos escravos que os cercavam...


Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e, não o era,
 unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos
 do novo habitante.
 Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão
 local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão
 de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez 
um ladrão fugido do Rio."


A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto
 despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que
 Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém
 escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo
 quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de
 dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de
 resto ...' E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.


Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino,
 que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...


Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes e de ter passado mais uma vez a tintura nos
 cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado
 no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a
 dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino
 avaro de palavras, limitando-se tão somente a ouvir. Quando, porém, dos
 lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e
 emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o 
mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro',
 Senhor Bernardes; em português é 'garanto'.
 E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por
 uma outra.

Por essas e outras, houve muitos palestradores que 
se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava
 o
 seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco
 da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele 
rival, que surgia tão inopinadamente.
 Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel
 pagava em dia as suas contas, como era generoso - pai da pobreza - e o 
farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico
de valor.


II


Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela 
manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico
 foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse, e, certo
 dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.

Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:


– Doutor, seja bem-vindo.

O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de
 respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente
 olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:


– Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.


O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao
 homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão
 acendrado respeito. Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das
 rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob
 o olhar espantado do aprendiz, que, por um momento, deixou a "mão"
 descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.


Por fim, achou aos fundos, bem no fundo, o quartinho que lhe servia
 para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque
 Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:


– Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um
 nome respeitado no mundo sábio...


– Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos
 meus amigos.


– Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...


Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois 
continuou:


– Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao 
mundo sábio, compreende?


– Perfeitamente.


– Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para 
resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos
 imprevistos e...


– Certamente! Não há dúvida!


– Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...


Como? O quê? fez Bastos arregalando os olhos.


– Sim! Ouro! disse com firmeza Flamel.


– Como?


– O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento
 são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?


– Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados,
 porquanto...


– Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas o Senhor
 Bastos fará o favor de indicar-me.


O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus
conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:


– O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?

– Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.


– Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.


– É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque 
temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...


– Qual! É quase ateu...


– Bem! aceito. E o outro?


Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim falou:


– Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?


– Como já lhe disse...

– É verdade. É homem de confiança, sério, mas...

– Que é que tem?


– É maçom.


– Melhor.

– E quando é?


– Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e
 espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.


 Está tratado.


Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígio ou explicação para o seu desaparecimento.


III


Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes,
muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a
 honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As
 portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.


O último crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por
 ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do
 partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou
 os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas
 casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.


Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a
 verificar nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não
 se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma 
família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos
de todas as religiões e consciências; violavam-se as sepulturas do "Sossego",
 do seu cemitério, do seu campo-santo.


Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia
 seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um
 carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis
 mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia 
espalhou-se pela cidade.


A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades.
 A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas
 consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar
 - os bíblias, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensor Nicolau,
 antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major 
Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel
 Abudala, negociante de armarinho, e o céptico Belmiro, antigo estudante,
que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas.

A própria filha do
 engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele
 lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre
 esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la - a linda e
 desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror
que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de
 antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos 
olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles
 perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos
 e do seu busto nas calçadas do Rio?
 Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de
 quem ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua
 linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos
 sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne antro e prazer dos vermes...


O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de
 fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'."

E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... parecia que os mortos pediam vingança...

O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas 
abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir
 em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada,
 já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.

Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.


Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira;
 mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram
 e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada 
nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.


A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã se tratou
 de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população 
inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o coronel Bentes,
 rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro 
e o companheiro que fugira era o farmacêutico.


Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de
 ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!


Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse
 fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!


O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios
 de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado
 conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques,
 que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, passou logo o
 prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...


As necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro, viriam 
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.


A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça à espera do homem, que tinha o segredo de todo
 um Potosí.

Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão
 uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo", gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita,
 indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho longo que só poderia
 ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.

Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada
 qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento:
 arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.


O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro.
 Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda
 sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa
 morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de 
cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora
 aproveitou o caso para rir-se da crueldade daqueles botocudos;
 mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a cousa era possível.
 À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a
 janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas
 nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a
 encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e
 lá foi também.

E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada
 ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas,
 os criados - toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao 
satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor
 Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os
 seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava
 as
 carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu
 regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam
 em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos
 apodrecidos em lama fedorenta...


A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não
 bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações.
 Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias
 questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram
 juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de
 onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai, vamos onde está mamãe; ela era tão gorda..."

De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera 
em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara
 nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.


Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém,
 enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem
 do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito
 de granito - ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, ao que viam,
mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel
 eterno das estrelas.



(Ilustração: Remedios Varo)










quinta-feira, 12 de maio de 2016

MÃOS DADAS, de Carlos Drummond de Andrade









Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida

presente.




(Ilustração: Kandinsky)







segunda-feira, 9 de maio de 2016

SE OS TUBARÕES FOSSEM HOMENS, de Bertold Brecht






“Se os tubarões fossem homens”, perguntou ao Sr. K. a filha da sua senhoria, “eles seriam mais amáveis com os peixinhos?” “Certamente”, disse ele. “Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal como vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca, e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, então lhe fariam imediatamente um curativo, para que ele não lhes morresse antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres têm melhor sabor do que os tristes. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas, os peixinhos aprenderiam como nadar para as goelas dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.

O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que esse futuro só estaria assegurado se estudadassem docilmente... Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões... Os peixinhos, eles iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de sargaço e receberia o título de herói. Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardins onde se brinca deliciosamente. 

Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões... Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões. Além disso, se os tubarões fossem homens também acabaria a ideia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os menores. Isto seria agradável para os tubarões, pois eles teriam, com maior frequência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores, detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc. Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens.”




(Histórias do Senhor Keuner; tradução de Paulo César de Souza)




(Ilustração: Sir Edward John Poynter - Israel in Egypt)