sexta-feira, 27 de maio de 2016

CARTA DE UM DOENTE DE ALZHEIMER PARA A SUA MULHER, de Raul Minh'Alma







“Leninha, meu amor.

Escrevo-te esta carta, mas a única viagem que ela fará será da minha mão para a tua. Escrevo-ta porque vais precisar de a ler muitas vezes, e eu também vou precisar que a leias. Não é à toa que me esqueço constantemente das coisas, não é à toa que de um momento para o outro a minha personalidade muda, não é à toa que por vezes o meu discurso não faz sentido. Mas que Deus me ajude a terminar esta carta, pelo menos esta carta, sem que a memória se vá embora e me deixe perdido a olhar para esta folha. Hoje sei que em breve não saberei quem sou, disseram-me os médicos. Tenho alzheimer.

Deixarei de viver antes do dia da minha morte, a vida escolheu-me para ter este fim, mas antes disso, escolheu-me para ser o marido mais feliz do mundo, o pai mais feliz do mundo, e por isso não consigo ficar desiludido com ela. Aceito, só posso aceitar.

Não fiques triste por mim, meu amor, pois eu não irei sofrer, não me irei lembrar sequer da dor. Os nossos filhos estão bem e tu és forte o suficiente para superares isto, não sintas pena de mim, por favor, sente amor, só, e toma conta de mim se puderes. Mas eu não quero atrapalhar a tua vida, não te quero prender em casa para não me deixares fazer asneiras, não te quero prender ao lado da cama para saberes se está tudo bem comigo, nem te quero prender a mim quando já não for mais a pessoa que amaste tantos anos. Não quero nada disto mas também sei que, por menos que queira ou por mais que te peça, tu nunca me irias abandonar, nunca irias desistir de mim. Tantas vezes me perguntaste porque é que eu te tinha escolhido para viver ao meu lado, porque é que eu te amava se tu não eras bonita nem tinhas nada de especial. Nunca desistirias de mim, nunca me abandonarias, queres maior beleza que isto? Queres maior motivo para te amar e querer viver contigo para sempre? Sei que nunca os pequenos-almoços que te levei à cama poderão compensar os dias a fio em que me darás o comer à boca, sei que nunca os momentos em que te confortei poderão compensar as preocupações que terás comigo, mas lembra-te, já que eu não irei conseguir, que eu serei o homem mais sortudo do mundo por te ter a tomar conta de mim.

Só eu posso sentir tristeza por não me lembrar de tantas coisas bonitas que vivemos, só eu posso sentir tristeza por não reconhecer mais o teu lindo sorriso, só eu posso sentir tristeza por não poder sentir mais nada. Lembra-te de tudo isto por mim, sorri por mim, sê feliz por mim, por favor! E lá no fundo, mesmo sem saber, eu também serei, prometo.

Estou-me a ir embora mas ainda aqui estou, perco-me lentamente numa memória que o tempo desvanece, caio no vazio do esquecimento e não posso fazer nada, dói amor, claro que dói, mas enquanto me dói, sei que vivo, e sei que deixarei de o saber.

Esta doença levar-me-á daqui e deixará apenas o meu corpo a estorvar e a dar trabalho. É triste, muito triste. Por isso peço-te que me perdoes Leninha. Perdoa-me quando não te reconhecer a ti e aos nossos filhos, perdoa-me quando estiveres mal e eu ficar indiferente, perdoa-me quando disseres que me amas e eu não retribuir, perdoa-me quando não sentir mais a tua falta, perdoa-me quando me olhares nos olhos e não vires nada, perdoa-me quando eu me for embora e não disser adeus.

Mas prometo-te, meu amor, que vou amar-te para sempre, vou amar-te sem fim, vou amar-te para sempre num cantinho de mim. Vou amar-te para sempre, prometo… só não me vou lembrar.”




(Ilustração: Fritz Aigner)





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