segunda-feira, 31 de outubro de 2022

DIE SCHLESISCHEN WEBER / OS TECELÕES DA SILÉSIA, de Heinrich Heine







Im düstern Auge keine Träne,

Sie sitzen am Webstuhl und fletschen die Zähne:

Altdeutschland, wir weben dein Leichentuch,

Wir weben hinein den dreifachen Fluch -

Wir weben, wir weben!

Ein Fluch dem Gotte, zu dem wir gebeten

In Winterskälte und Hungersnöten;

Wir haben vergebens gehofft und geharrt -

Er hat uns geäfft und gefoppt und genarrt -

Wir weben, wir weben!

Ein Fluch dem König, dem König der Reichen,

Den unser Elend nicht konnte erweichen,

Der den letzten Groschen von uns erpreßt

Und uns wie die Hunde erschießen läßt -

Wir weben, wir weben!

Ein Fluch dem falschen Vaterlande,

Wo nun gedeihen Schmach und Schande,

Wo jede Blume früh geknickt,

Wo Fäulnis und Moder den Wurm erquickt -

Wir weben, wir weben!

Das Schiffchen fliegt, der Webstuhl kracht,

Wir weben emsig Tag und Nacht -

Altdeutschland, wir weben dein Leichentuch,

Wir weben hinein den dreifachen Fluch,

Wir weben, wir weben!



Tradução de André Vallias:



Não há lágrimas em seus olhares;

Rangem dentes diante dos teares:

Alemanha, nós tecemos tua mortalha,

E tramamos nossa tripla maldição –

Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Deus a quem oramos,

Quando a fome e o frio nos maltratam;

Suplicamos de joelhos sua graça,

Ele tripudia e ri da nossa cara –

Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Rei, rei dos ricaços,

Da miséria faz tão pouco caso;

Nos roubou até o último centavo

Para nos lançar nos braços do carrasco –

Nós tecemos e tramamos!

Maldição à Pátria desamada,

Onde o escárnio e a humilhação se alastram;

Onde a flor que floresce é logo estraçalhada;

Onde a podridão seus vermes amealha –

Nós tecemos e tramamos!

Voa a lançadeira no tear,

Noite e dia, trabalhamos sem parar –

Alemanha, nós tecemos tua mortalha,

E tramamos nossa tripla maldição,

Nós tecemos e tramamos!



(Heine, hein? – Poeta dos contrários)



(Ilustração: Carl Wilhelm Hübner - The Silesian Weavers)

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

EXPLICAÇÃO DE UM POEMA RUSSO, de Otto Maria Carpeaux

 


As dificuldades da língua, a impossibilidade da tradução não são as únicas razões que nos afastam da poesia russa. Depois de Pushkin, o Goethe russo, a prosa tinha de tal maneira conquistado os russos, que eles mesmos ficaram perplexos diante do fenômeno da renovação poética russa do século XX. Acostumados às obras literárias que se prestavam a uma interpretação religiosa ou social, os críticos russos consideravam a poesia como um inútil passatempo ou um artigo de jornal em rimas. O primeiro grande poeta, Innokenti Annenski foi descrito como “professor de ginásio que fazia poesias nas horas vagas”. E o poema Les Douze, obra-prima de Aleksandr Blok, foi objeto dos mais penosos mal-entendidos políticos.

É de Aleksandr Blok que desejo falar. Ele foi um dos maiores poetas de todos os tempos, e seu poema, Les Douze, ocupa na poesia russa o mesmo lugar que o Cimetière Marin de Valèry, em França ou The Wasted Land de T. S. Eliot, na Inglaterra. Um crítico chamou esse poema “a maior manifestação do espírito russo desde Dostoiévski”. Mas o poema deve sua imensa popularidade — sabem-no de cor na Rússia e igualmente em toda imigração russa — às razões extra poéticas; essas mesmas razões extra poéticas que estragam em muitos homens bastante cultos a verdadeira compreensão da poesia. Na Rússia, a poesia havia sido esquecida desde Pushkin, por um século de grande prosa. O representante da “poesia”, nesse século, é o pobre Nekrássov, autor de artigos de fundo político mal rimados. Perto dele, o autêntico inspirado, Tiútchev, se perdia entre os “diletantes inúteis”. Assim, Annenski ficou inapercebido, e quando “enfin Blok vint”, foi considerado como um novo Nekrássov. É preciso explicar.

Aleksandr Blok nasceu em 1880. Foi precoce e admirado. Mas ele se cerceava. Não estava nunca à vontade em São Petersburgo, a cidade odiada por todos os poetas russos; seus olhos estavam cegos por uma visão interior. Sua fisionomia, que nos foi transmitida pelo pintor Somov, é de um asceta rigoroso, e o seu corpo de um sonâmbulo emagrecido. Furtivamente, ele passa como bêbedo pelas ruas de São Petersburgo, parecendo um navio embriagado, sob as brumas da capital fantasmagórica. Uns acreditam que esteja louco, outros o creem inspirado, destinado a ser um santo. Em 1905, sabe-se já que é o mestre da língua russa, mágico cujas palavras compõem paisagens da alma desconhecidas, infinitas como o céu estrelado.

Blok é um poeta raríssimo. E quanto mais se rarifica mais se purifica. Toda a poesia de sua juventude é dedicada a uma figura feminina misteriosa, irreal, como a Beatriz de Dante. Ele a chama de Bela Dama, Rainha da Pureza, Virgem do Mistério. O poeta ajoelha-se diante de um Ícone, um desses quadros duros da igreja russa, cujos santos bizantinos trazem coroas de Tzars. Às vezes o quadro vivifica-se e desce os degraus do altar; depois percebe-se que esta madona traz o lenço sobre a cabeça e a camisa bordada das jovens camponesas russas. Ela, a adorada, é a própria Rússia.

Aleksandr Blok dedicou à sua Bela Dama mais de oitocentos poemas. Julgavam-no inesgotável — e muito monótono. Interpretavam mal essa fecundidade que não era mais que um ensaio, que oitocentas vezes se havia empreendido para exprimir o inexprimível e oitocentas vezes havia fracassado. Pouco a pouco, o céu do poeta escureceu-se. Há pela primeira vez poemas em que a Bela Dama está ausente: “ela foi-se sem mais voltar” explica um verso. Visões torturantes aparecem, igrejas que se desmoronam, cadafalsos que se levantam. As ricas rimas simbolistas desaparecem, a língua se empobrece. Não é somente uma mudança de maneira poética, é uma crise do homem. Blok experimenta combater seu desespero por exercícios ascéticos; mas sucumbe, e deixa-se cair. O poeta mergulha-se na mais baixa classe social. Os campos floridos, as igrejas incensadas desaparecem dos poemas. É a cidade, agora, ou antes os subúrbios sujos, debochados, um ar cheio de bruma, cheirando a fumo e a perfumes baratos. Esses poemas lembram o estilo de Francisco Carco ou de Léon-Paul Fargue. É também pela forma, estranha prosa, de maravilhosos efeitos poéticos. Mas algumas vezes aparece no meio dos bêbedos “A desconhecida”, a jovem perdida velada, a última encarnação da Bela Dama.

Blok, que realmente viveu num inferno, sabe que seu mundo foi destruído. Espera a destruição do mundo dos outros. As profecias se acumulam. Fala de um “fim predestinado em guerra e incêndio”. Poemas curtos, rimas como golpes de martelo, vocabulário noturno, iluminado por revérberos tortos nas margens dos canais gelados: as repetições obstinadas das palavras dão a impressão de uma vida perdida sem finalidade. Enfim, a visão se condensa no poema Les Scythes. A imagem da Rússia não é mais a virgem do mistério, e sim o cavaleiro scytha que recua perfidamente nas estepes e mostra a Europa a máscara zombadora do asiático.

Les Scythe foram escritos na véspera da revolução de 1917. A profecia realizou-se. Sob o terror da guerra civil, Aleksandr Blok espera a última hora. Sua doença misteriosa encontrou tantos diagnósticos como sua poesia não achou interpretações. Seu corpo é devorado por tumores, seu espírito se perde em ataques cardíacos. Dessa agonia que suporta, silenciosamente, a morte o liberta, em 7 de agosto de 1921. A multidão aclama o cadáver desfigurado.

Porque Aleksandr Blok tornou-se o poeta da revolução. Deixou à Rússia o seu poema Les Douze.

É a soma poética da alma russa. Ainda uma vez o estilo mudou radicalmente. Ele tem a harmônica do operário e o órgão da Igreja, os tambores militares e a balalaika camponesa, os sons excitantes da Marselhesa e a simples canção popular, e, por fim, a música das esferas.

O poema se passa em Petersburgo, durante a agonia do inverno da revolução. “Negra a noite, branca, branca a neve”, diz a primeira linha, e é todo o cenário. “Todos os poderes aos soviéticos” diz o cartaz na rua. Uma senhora idosa, um intelectual de óculos, um padre, vergastados pela tempestade, retiram-se a um canto. A rua pertence às prostitutas e à revolução. A revolução marcha: doze homens, com os fuzis nas mãos, Benéts de ladra, “todos maduros para a cadeira”, atiram ao acaso, contra as casas, contra os que passam. Injetam coragem no sangue russo.

“La sainte Russie monte à cheval

Et la canaille a carnaval.”

Marchas revolucionárias, velhas cantigas, reminiscência da aldeia retinem pelas ruas vazias. O “burguês” as escuta, encostado a um canto.

Et derrière jul, como un chien galeaux,

Abandonné, reserrée la queue: le monde

[vieux.

Atirando, assassinando, vociferando, os Doze marcham pela Rússia, os doze assassinos, os doze apóstolos de uma nova fé. Atrás deles o cachorro leproso. Mas antes deles:

Sous le drapeau rouge, flottant:

Invisible, la tête neigée,

Il s’avance par l’ouragan,

De roses blanches couronné.

Comme um astre lumineux,

Jesus Crist, le file de Dieu.

É o fim enigmático do poema que excitou interpretações controvertidas. Viu-se a glorificação, a mais audaciosa da revolução bolchevista, o grito de alma cristã perdida, a blasfêmia horrível e a profecia apocalíptica. Mas a explicação crítica se faz esperar.

Porque a interpretação ideológica, seja da esquerda ou da direita, não é uma explicação crítica. Um poema não poderá nunca ser todo “poesia pura”, é verdade; terá sempre uma parte de “poesia articulada”, cujas palavras se parecem às palavras articuladas, às “opiniões” da vida extra poética. Aí existe a eterna tentação do incompreensível. O poeta, como homem, tem suas “opiniões” e suas “ideias”, como nós, mas a tradução dessas opiniões em língua poética terminará num artigo rimado. A língua poética recusa-se às opiniões do poeta, pois que essa língua já é uma opinião. Os ingleses conhecem o excelente termo “meaning” que significa, ao mesmo tempo, uma opinião, um sentido, uma significação. Deixemos o “meaning” do poeta. O que nos interessa é o “meaning” do poema.

O “meaning” de um poema se encontra inteiramente dentro de sua língua, pois não se deve esquecer: num poema o que é justamente secundário são as ideias, os pensamentos, os sentimentos. O que nos é primeiramente dado são as palavras, somente as palavras.

A sua composição é a tessitura da língua pessoal do poeta e a lei dessa tessitura é seu estilo. No estilo do poeta, é preciso procurar seu mistério.

Os poemas de Aleksandr Blok mostram sucessivamente três estilos. Nos poemas do primeiro período, dirigidos à Bela Dama, Blok parece simbolista moderado, artista de rimas ricas, de imagens preciosas, de versos quase regulares. Mas esse ponto de vista é muito europeu. A rima e as imagens aí são muito tradicionais, orientalizantes como a Rússia arcaica, enquanto que o ritmo, com o número irregular de sílabas, é uma inovação revolucionária. Os poemas do segundo período são escritos numa língua intencionalmente pobre, muitas vezes prosaica, interrompidas por imagens que caem como golpes. Os últimos poemas, enfim, vêm o ritmo da canção popular, mas também um certo sabor eclesiástico: uma mistura de marcha e de litania.

Esses três estilos são três maneiras de exprimir visões inteiramente individuais. Se o poeta se fecha no seu mundo interior, sua poesia seria, com efeito, incomunicável, inapreensível. Seria preciso abandonar a poesia, como Rimbaud. É preciso procurar uma língua compreensível, adotar um “idioma artístico”. Não um idioma como nós outros falamos na vida quotidiana, mas um idioma compreensível no mundo poético. O poeta inglês W. H. Auden chama essa adoção “a escolha de uma tradição”.

Para Blok, “a escolha de uma tradição” era extremamente difícil. Desde Pushkin que não havia mais poesia russa, não havia língua poética. Isso explica certas anomalias: a ambição de Konstantin Balmont de criar uma língua toda nova; a ambição de Briúsov de “poetizar” tudo quanto há entre o céu e a terra; a ambição de Blok de dizer o indizível. Fromentin disse que “a pintura é a arte de tornar visível o invisível”. É exatamente o processo de Blok. Seus três estilos correspondem a três visões de três mundos invisíveis que procuram a expressão em palavras.

O “estilo rico” do primeiro período é a expressão de uma visão tradicionalista, da identificação mística da Bela Dama-Rússia. Mas as irregularidades rítmicas traem uma outra síntese: a Bela Dama Rússia é, ao mesmo tempo, a “Sophia”, o ser feminino místico da gnose de Soloviev, de quem o jovem Blok era discípulo. Não sabemos por que choque a inteligência do poeta chega a fazer um “mito” dessa visão. Blok odeia mitos; chama-as de “visões diabólicas”; então acredita ter servido o diabo e ter ornado o inferno. “O ornamento” é outro grande ódio de Blok, asceta que queria sempre purificar a sua própria poesia. Depois exprime tão pobremente e tão nua quanto é possível a “realidade”. É seu segundo estilo. Até que ele reconheça que esse “mundo prosaico” é um “mito”, o mito da grande prosa russa. Assim o céu e a terra lhe parecem predestinados a perecer. A noite cai, ele não vê mais outra saída, e prediz a catástrofe. Mas, enfim, uma última esperança surge, uma esperança bem russa: o barulho da catástrofe será talvez o som da trombeta do juízo final e o dever do poeta consistirá em “articular” esse barulho e o transformar em música celeste. É o estilo dos Douze.

Tome o “meaning” desse estilo pelo “meaning” do homem, e as interpretações diversas e contravertidas se produzem. Por aí o poema torna-se uma parábola. Mas toda a poesia russa é cheia de parábolas, e a posição histórica de Blok vai esclarecer-se.

Embora devotado à “crítica pura”, não desdenho os detalhes históricos que a servem. Fui sempre de opinião que a censura tzarista era um fator decisivo na evolução da literatura russa, e agora leio com a maior satisfação que o eminente crítico americano, Edmond Wilson, confirma minha opinião: “A arte de Pushkin”, diz ele, “com sua força maravilhosa da expressão ficou criada, em parte, pela censura de Nicolau I, e Pushkin é o pai da literatura russa. Uma peça, um poema, um romance devia ser uma parábola para não ser confiscada pelo censor… até esses dias da censura marxista, a literatura russa apresenta o paradoxo duma arte tecnicamente objetiva, mais carregada de mensagens" (In: The Intent of the Critic, Nova York, 1941). Mas o que estava, no começo, como fuga da censura, transformava-se, enfim, em purificação da poesia, que por este “power of implication” da língua, satisfaz-se a ela mesma. Aleksandr Blok é o maior poeta dessa purificação, da eliminação do impuro pela magia da língua. O processo dessa purificação, simbolizado no começo, em trevas, neve e sujeira, e, no fim, em luz celeste; esse processo é o verdadeiro conteúdo do poema Les Douze.

Mas a “mensagem implicada”? A ideia de purificação do impuro é o verdadeiro conteúdo da mística russa: ela sempre acreditou no Apokatástasis, a redenção final do diabo. A mística russa glorifica sempre o pecador e o pecado, porque o pecado é o caminho do paraíso. Conhecemos de Dostoiévski, essa mística que, por mais esquisita que nos pareça, domina a alma russa. Les Douze são a expressão mais perfeita dessa mística “a maior manifestação do espírito russo desde Dostoiévski” como um crítico russo já disse. E o poema é tão grande porque, encarregado dessa mensagem, ficou uma peça de poesia pura.

O máximo atingido na poesia russa do século dezenove era a maldição rimada de Nekrássov.

A ta main la bouteille d’alcool,

Enchainés les pieds au pôle,

Sainte mère Russie,

Ainsi

Dors-tu patiemment ta vie.

Blok vê a Santa Rússia “montar a cavalo”. É o Cavalo Ruivo de Apocalipse. Mas Blok não glorifica o apocalipse revolucionário nem o maldiz. O apocalipse não significa a redenção, mas a precede. É uma fé, enfim, e Aleksandr Blok gostou de recitar os versos um pouco sem jeito, mas profundos, de seu predecessor Tiútchev:

Personne, la Russie, ne te comprendra;

Impossible tom immensité à mouvoir.

La raison froide y desesperera:

A toi, ma Russie, il faut croire.



(Correio da Manhã, Nº 14.454, Ano XLI, Rio de Janeiro, 25 de Janeiro de 1942)



(Ilustrção: Konstantin Somov - portrait of Aleksandr Blok – 1907)

terça-feira, 25 de outubro de 2022

ДВЕНАДЦАТЬ / OS DOZE, de Александр Блок / Aleksandr Blok

 




1

Черный вечер.

Белый снег.

Ветер, ветер!

На ногах не стоит человек.

Ветер, ветер -

На всем божьем свете!

Завивает ветер

Белый снежок.

Под снежком - ледок.

Скользко, тяжко,

Всякий ходок

Скользит - ах, бедняжка!

От здания к зданию

Протянут канат.

На канате - плакат:

"Вся власть Учредительному Собранию!"

Старушка убивается - плачет,

Никак не поймет, что значит,

На что такой плакат,

Такой огромный лоскут?

Сколько бы вышло портянок для ребят,

А всякий - раздет, разут...

Старушка, как курица,

Кой-как перемотнулась через сугроб.

- Ох, Матушка-Заступница!

- Ох, большевики загонят в гроб!

Ветер хлесткий!

Не отстает и мороз!

И буржуй на перекрестке

В воротник упрятал нос.

А это кто? - Длинные волосы

И говорит вполголоса:

- Предатели!

- Погибла Россия! -

Должно быть, писатель -

Вития...

А вон и долгополый -

Сторонкой - за сугроб...

Что' нынче невеселый,

Товарищ поп?

Помнишь, как бывало

Брюхом шел вперед,

И крестом сияло

Брюхо на народ?..

Вон барыня в каракуле

К другой подвернулась:

- Ужь мы плакали, плакали...

Поскользнулась

И - бац - растянулась!

Ай, ай!

Тяни, подымай!

Ветер веселый

И зол и рад.

Крутит подолы,

Прохожих косит,

Рвет, мнет и носит

Большой плакат:

"Вся власть Учредительному Собранию"...

И слова доносит:

...И у нас было собрание...

...Вот в этом здании...

...Обсудили -

Постановили:

На время - десять, на' ночь - двадцать пять...

...И меньше - ни с кого не брать...

...Пойдем спать...

Поздний вечер.

Пустеет улица.

Один бродяга

Сутулится,

Да свищет ветер...

Эй, бедняга!

Подходи -

Поцелуемся...

Хлеба!

Что впереди?

Проходи!

Черное, черное небо.

Злоба, грустная злоба

Кипит в груди...

Черная злоба, святая злоба...

Товарищ! Гляди

В оба!



2

Гуляет ветер, порхает снег.

Идут двенадцать человек.

Винтовок черные ремни,

Кругом - огни, огни, огни...

В зубах - цыгарка, примят картуз,

На спину б надо бубновый туз!

Свобода, свобода,

Эх, эх, без креста!

Тра-та-та!

Холодно, товарищ, холодно!

- А Ванька с Катькой - в кабаке...

- У ей керенки есть в чулке!

- Ванюшка сам теперь богат...

- Был Ванька наш, а стал солдат!

- Ну, Ванька, сукин сын, буржуй,

Мою, попробуй, поцелуй!

Свобода, свобода,

Эх, эх, без креста!

Катька с Ванькой занята -

Чем, чем занята?..

Тра-та-та!

Кругом - огни, огни, огни...

Оплечь - ружейные ремни...

Революционный держите шаг!

Неугомонный не дремлет враг!

Товарищ, винтовку держи, не трусь!

Пальнем-ка пулей в Святую Русь -

В кондовую,

В избяную,

В толстозадую!

Эх, эх, без креста!



3

Как пошли наши ребята

В красной гвардии служить -

В красной гвардии служить -

Буйну голову сложить!

Эх ты, горе-горькое,

Сладкое житье!

Рваное пальтишко,

Австрийское ружье!

Мы на горе всем буржуям

Мировой пожар раздуем,

Мировой пожар в крови -

Господи, благослови!



4

Снег крутит, лихач кричит,

Ванька с Катькою летит -

Елекстрический фонарик

На оглобельках...

Ах, ах, пади!..

Он в шинелишке солдатской

С физиономией дурацкой

Крутит, крутит черный ус,

Да покручивает,

Да пошучивает...

Вот так Ванька - он плечист!

Вот так Ванька - он речист!

Катьку-дуру обнимает,

Заговаривает...

Запрокинулась лицом,

Зубки блещут жемчугом...

Ах ты, Катя, моя Катя,

Толстоморденькая...



5

У тебя на шее, Катя,

Шрам не зажил от ножа.

У тебя под грудью, Катя,

Та царапина свежа!

Эх, эх, попляши!

Больно ножки хороши!

В кружевном белье ходила -

Походи-ка, походи!

С офицерами блудила -

Поблуди-ка, поблуди!

Эх, эх, поблуди!

Сердце ёкнуло в груди!

Помнишь, Катя, офицера -

Не ушел он от ножа...

Аль не вспомнила, холера?

Али память не свежа?

Эх, эх, освежи,

Спать с собою положи!

Гетры серые носила,

Шоколад Миньон жрала,

С юнкерьем гулять ходила -

С солдатьем теперь пошла?

Эх, эх, согреши!

Будет легче для души!



6

...Опять навстречу несется вскачь,

Летит, вопит, орет лихач...

Стой, стой! Андрюха, помогай!

Петруха, сзаду забегай!..

Трах-тарарах-тах-тах-тах-тах!

Вскрутился к небу снежный прах!..

Лихач - и с Ванькой - наутек...

Еще разок! Взводи курок!..

Трах-тарарах! Ты будешь знать,

. . . . . . . . . . .

Как с девочкой чужой гулять!..

Утек, подлец! Ужо, постой,

Расправлюсь завтра я с тобой!

А Катька где? - Мертва, мертва!

Простреленная голова!

Что', Катька, рада? - Ни гу-гу...

Лежи ты, падаль, на снегу!..

Революцьонный держите шаг!

Неугомонный не дремлет враг!



7

И опять идут двенадцать,

За плечами - ружьеца.

Лишь у бедного убийцы

Не видать совсем лица...

Всё быстрее и быстрее

Уторапливает шаг.

Замотал платок на шее -

Не оправиться никак...

- Что, товарищ, ты не весел?

- Что, дружок, оторопел?

- Что, Петруха, нос повесил,

Или Катьку пожалел?

- Ох, товарищ, родные,

Эту девку я любил...

Ночки черные, хмельные

С этой девкой проводил...

- Из-за удали бедовой

В огневых ее очах,

Из-за родники пунцовой

Возле правого плеча,

Загубил я, бестолковый,

Загубил я сгоряча... ах!

- Ишь, стервец, завел шарманку,

Что ты, Петька, баба, что ль?

- Верно, душу наизнанку

Вздумал вывернуть? Изволь!

- Поддержи свою осанку!

- Над собой держи контроль!

- Не такое нынче время,

Чтобы нянчиться с тобой!

Потяжеле будет бремя

Нам, товарищ дорогой!

- И Петруха замедляет

Торопливые шаги...

Он головку вскидавает,

Он опять повеселел...

Эх, эх!

Позабавиться не грех!

Запирайте етажи,

Нынче будут грабежи!

Отмыкайте погреба -

Гуляет нынче голытьба!



8

Ох ты, горе-горькое!

Скука скучная,

Смертная!

Ужь я времячко

Проведу, проведу...

Ужь я темячко

Почешу, почешу...

Ужь я семячки

Полущу, полущу...

Ужь я ножичком

Полосну, полосну!..

Ты лети, буржуй, воробышком!

Выпью кровушку

За зазнобушку,

Чернобровушку...

Упокой, господи, душу рабы твоея...

Скучно!



9

Не слышно шуму городского,

Над невской башней тишина,

И больше нет городового -

Гуляй, ребята, без вина!

Стоит буржуй на перекрестке

И в воротник упрятал нос.

А рядом жмется шерстью жесткой

Поджавший хвост паршивый пес.

Стоит буржуй, как пес голодный,

Стоит безмолвный, как вопрос.

И старый мир, как пес безродный,

Стоит за ним, поджавши хвост.



10

Разыгралась чтой-то вьюга,

Ой, вьюга', ой, вьюга'!

Не видать совсем друг друга

За четыре за шага!

Снег воронкой завился,

Снег столбушкой поднялся...

- Ох, пурга какая, спасе!

- Петька! Эй, не завирайся!

От чего тебя упас

Золотой иконостас?

Бессознательный ты, право,

Рассуди, подумай здраво -

Али руки не в крови

Из-за Катькиной любви?

- Шаг держи революцьонный!

Близок враг неугомонный!

Вперед, вперед, вперед,

Рабочий народ!



11

...И идут без имени святого

Все двенадцать - вдаль.

Ко всему готовы,

Ничего не жаль...

Их винтовочки стальные

На незримого врага...

В переулочки глухие,

Где одна пылит пурга...

Да в сугробы пуховые -

Не утянешь сапога...

В очи бьется

Красный флаг.

Раздается

Мерный шаг.

Вот - проснется

Лютый враг...

И вьюга' пылит им в очи

Дни и ночи

Напролет...

Вперед, вперед,

Рабочий народ!



12

...Вдаль идут державным шагом...

- Кто еще там? Выходи!

Это - ветер с красным флагом

Разыгрался впереди...

Впереди - сугроб холодный,

- Кто в сугробе - выходи!..

Только нищий пес голодный

Ковыляет позади...

- Отвяжись ты, шелудивый,

Я штыком пощекочу!

Старый мир, как пес паршивый,

Провались - поколочу!

...Скалит зубы - волк голодный -

Хвост поджал - не отстает -

Пес холодный - пес безродный...

- Эй, откликнись, кто идет?

- Кто там машет красным флагом?

- Приглядись-ка, эка тьма!

- Кто там ходит беглым шагом,

Хоронясь за все дома?

- Все равно, тебя добуду,

Лучше сдайся мне живьем!

- Эй, товарищ, будет худо,

Выходи, стрелять начнем!

Трах-тах-тах! - И только эхо

Откликается в домах...

Только вьюга долгим смехом

Заливается в снегах...

Трах-тах-тах!

Трах-тах-тах...

...Так идут державным шагом,

Позади - голодный пес,

Впереди - с кровавым флагом,

И за вьюгой невидим,

И от пули невредим,

Нежной поступью надвьюжной,

Снежной россыпью жемчужной,

В белом венчике из роз -

Впереди - Исус Христос.



ЯНВАРЬ 1918

Tradução de Augusto de Campos:



1

Noite negra.

Neve branca.

Vento, vento!

Gente vacila na treva.

Vento, vento –

Varrendo toda a terra!

O vento escreve

Na neve branca.

Gelo – embaixo da neve.

É liso, rente:

O pé que passa

Desliza – pobre gente!

De casa em casa

Uma corda pende.

Sobre a corda uma faixa:

"Todo o poder à Assembleia Constituinte!"

Uma velhinha chora em voz baixa

Sem perceber o que se passa:

"Para que essa imensa faixa?"

Tanto pano desperdiçado,

Quantas roupas para as crianças,

E todo mundo esfarrapado..."

Lá vai, galinha espavorida,

A velhinha e seus tremeliques:

– Ai, Mãe-do-Céu, os bolcheviques

Vão acabar com nossa vida!

O vento açoita, voraz.

O frio corta, feroz.

Na encruzilhada o burguês

De nariz no cache-nez.

E este, quem é? Longos bandós,

Murmureja a meia voz:

– Súcia!

– É o fim da Rússia! –

Por certo, um aristocrático

Literato...

E você, onde vai nesse trote,

Enrolado no seu saiote?

Para que essa cara escura,

Camarada cura?

Madame em seu astracã se

Encontra com outra dama:

– Ah, que doloroso transe...

Zás-trás, num relance

É madame que se esparrama!

Ai, ai!

Segura que ela cai!

Vento gaiato,

Vento espavento,

Levanta as saias,

Derruba a gente,

Rasga, rói, desfaz

O grande cartaz:

"Todo o poder à Assembleia Constituinte!"

E palavras traz:

... Também fizemos nossa conspiração...

... Essa é a casa...

... Revolução...

... Resolução:

10 rublos a hora, 25 a noitada...

... Por menos ninguém dá ...

... Dorme comigo, vá ...

É tarde.

Tudo turvo.

Na rua

Nua,

Um velho curvo.

E o vento arde...

Ei, carcaça!

Vem cá,

Me abraça ...

Pão!

De graça...

E o futuro?

Passa!

Escuro, céu escuro.

Ódio surdo, ódio

No peito oco.

Ódio escuro, São Ódio.

Camarada! Abre

O olho!



2

O vento vaga, a neve dança.

A coluna dos doze avança.

Nos fuzis, uma negra tira,

E o fogo, fogo, fogo gira...

Na boca um toco, à testa um gorro,

Falta somente um ás de ouros.

Liberdade, liberdade;

Sus, sus, sem cruz!

Tra-ta-tá!

Faz frio, frio atroz.

– Kátia e Vanka estão na taverna...

– Muita gaita entre a meia e a perna!

Vaniuchka está cheio da nota...

Já foi nosso, agora é da bota!

Ah! Vankanalha de uma figa,

Não ponha a mão na minha amiga!

Liberdade, liberdade,

Sus, sus, sem cruz!

Kátia e Vanka, braços dados,

Para que, para que abraçados?

Tra-ta-tá!

E o fogo, fogo, fogo gira...

Fuzil no ombro, negra tira...

Revolução, mantém o passo!

O inimigo arma o seu laço!

Ergue o fuzil, továrich, sem receio!

Mira na Santa Rússia, bem no meio

Da nauseabunda,

Gravebunda,

Moribunda,

Sus, sus, sem cruz!



3

Nossos moços largam casa

Pelo Exército Vermelho.

Pelo Exército Vermelho

Nossos moços largam brasa!

Ah, dor-dureza!

Vida de moleza!

Fuzil austríaco,

Trapo de casaco!

Burguês, treme de terror!

Poremos fogo na terra,

Fogo no sangue – é a guerra!

Dá-nos tua benção, Senhor!



4

Trenó arranca, a neve risca,

Kátia e Vanka lá se vão...

Lanterna elétrica faísca

Sobre o timão...

Isca! Isca!

Gala de capote e bota,

Ele, cara de idiota,

Torce e retorce o bigode

Todo janota,

e chuchota...

Vanka – com ele é galante!

Vanka – como é bem falante!

A Kátia ele abraça e beija

E corteja...

A nuca enfim ela dobra,

Dentes-pérolas desdobra...

Ah, Kátia, minha garota,

Minha gatinha marota...



5

Em teu colo, Kátia, fiz

Uma linda cicatriz.

Teu seio, Kátia querida,

Tem no meio uma ferida.

Dança, dança, bis!

Pernas roliças de atriz!

Punhas lingerie de renda –

Quebra, requebra!

Botavas teu corpo à venda –

Bola, rebola!

Rola, rola, meretriz!

Meu coração pede bis!

Lembras, Kátia, o oficial?

Só por causa de uma vaca

Passou pelo meu punhal.

Tua memória anda fraca?

A minha, bisca, te diz:

Vem, vaca, bis!

Papavas finos confeitos,

Passeavas de salto alto,

Andavas com os cadetes –

Agora vais com soldados?

Também quero ser feliz:

Bis, Kátia, bis!



6

... Lá vai em doida correria

O trenó – berra e bate o guia...

– Alto lá! Nem um passo mais!

– Ajuda, André! – Petruchka, atrás!

Trac-tararac-tac-tac-tac-tac!

Contra o céu a neve estilhaça.

– Lá se vai! Vanka escapuliu!

Um tiro ainda! Arma o fuzil!

Trac-tararac! Vais aprender

...................................................

A não roubar minha mulher!

Foge, poltrão! Passou por perto!

Mas cedo ou tarde ainda te acerto...

E Kátia? – Morta, lá, gelada,

Com a cabeça transpassada.

Contente, Kátia? Você ria...

Ri, cadáver, na neve fria!

Revolução, mantém o passo!

O inimigo arma o seu laço!



7

De novo avançam na neve

Os doze – fuzil no ombro.

Só um deles não se atreve

A erguer o rosto da sombra.

Depressa, anda mais depressa,

Lenço amarrado ao pescoço,

Desvairado vai o moço,

Sai do compasso, tropeça.

– Ei, camarada, onde vais?

– Que te deu? O que te dói?

– Ei, Pedro, não podes mais?

Ou é Kátia que te rói?

– Camaradas, meus irmãos,

Eu a amava, realmente.

Noites negras, de paixão,

Kátia não me sai da mente.

– Por esse olhar – estopim

Que incendiou o meu peito,

Por esse sinal carmim

Sobre o seu ombro direito,

Eu a perdi, ai de mim,

Eu mesmo fiz o malfeito!

– Ei, Pedro, que choro é esse?

Ouçam só essa vitrola...

– Para que virar do avesso

A alma? Deixa de ser mole!

– Rapaz, ergue essa cabeça!

Anda, mantém o controle!

– Este não é o momento

Para servirmos de ama-

Seca do teu sofrimento.

Uma ação maior nos chama!

E Petruchka acerta o passo,

Vai de novo no compasso...

Cabeça alta, pra frente,

Ele sorri novamente...

Eia, eia!

Enche a cara, saqueia!

Fecha o trinco, põe tranca,

Hoje, a entrada é franca!

Abra a adega, burguês,

Chegou a nossa vez!



8

Ah, dor-dureza!

Mortal

Tédio sem remédio!

Tempo, tempão

Mato, mato...

Fuzil na mão

Cato, cato...

Grãozinho, grão

Parto, parto ...

Faca, facão

Corto, corto ...

Burguês, foge como um rato!

Teu sangue barato

Bebo gota a gota

Por minha garota.

Senhor, acalma a alma de tua serva...

Tédio!



9

Tudo é silêncio na cidade.

Torre do Neva. Tudo jaz.

Não há mais guardas. Liberdade!

Viva! sem vinho, meu rapaz!

Eis o burguês na encruzilhada,

Nariz no cache-nez, ao vento.

A seu lado, transido, cauda

Entre as pernas, um cão sarnento.

Eis o burguês, um cão sem osso,

Taciturna interrogação,

E o mundo velho – frente ao moço –

Rabo entre as pernas, como um cão.



10

A neve investe no vento.

Ah, vento nevoento!

A gente nem vê a gente

Frente a frente.

Neve em funil se revira,

Neve em coluna regira...

– Ah, Senhor, que noite fria!

– Ei, chega de hipocrisia!

Que te adiantou, camarada,

Essa imagem redourada?

Procura ser consciente,

Deixa desse disparate. A

Tua mão ainda está quente

Do sangue da tua Kátia!

– Mantém, revolucionário,

O teu passo vigilante!

Avante, avante, avante,

Povo operário!



11

... Lá se vão sem santo e sem cruz

Os doze – pela estrada.

Prontos a tudo,

Presos a nada ...

A mira dos fuzis de aço

Caça inimigos pelo espaço ...

Até nos becos sem saída,

Lá onde a neve cai em maços

E a bota afunda, confundida,

Chega, implacável, o seu passo.

Vermelho-aberta,

A bandeira.

Todos alerta,

Em fileira.

Arma o seu guante

O adversário...

E a neve com seu cortante

Açoite

Dia e noite...

Avante, avante,

Povo operário!



12

... Eles se vão num passo onipotente...

– Quem vai aí! Fale ou atiro!

É o vento apenas a zurzir o

Pendão vermelho a sua frente...

Lá adiante, um monte de neve.

– Quem é? Quem está aí oculto?

Só um cachorro se atreve

A entremostrar o magro vulto...

– Some da vista, cão sarnento,

Ou eu te corto a baioneta!

Mundo velho, cão lazarento,

Desaparece na sarjeta!

Mostrando os dentes, como um lobo,

Rabo entre as pernas, segue atrás

O cão com fome, cão sem dono.

– Ei, responde, há alguém mais?

– Quem é que agita a bandeira?

– Olha bem, que noite escura!

– Quem mais por aí se esgueira?

– Saia de trás da fechadura!

–Továrich, te entrega logo!

É inútil. Não há saída.

– Melhor ser pego com vida,

Te entrega ou eu passo fogo!

Trac-tac-tac! – Só o eco

Responde de beco em beco.

Só o vento, com voz rouca,

Gargalha na neve louca ...

Trac-tac-tac!

Trac-tac-tac...

... Eles se vão num passo onipotente...

Atrás – o cão esfomeado.

À frente – pendão sangrento,

Às avalanches insensível,

Às balas duras invisível,

Em meio às ondas furiosas

Da neve, coroado de rosas

Brancas, irrompe imprevisto –

À frente – Jesus Cristo.



Janeiro 1918

(Poesia russa moderna)



(Ilustração: Sokolov-Skalia - Lenin declara a vitória da Revolução Socialista em 7 de novembro de 1917)

sábado, 22 de outubro de 2022

UM DIA RUIM, de Cristovão Tezza


Um dia ruim desde o começo, ela diria depois ao refazê-lo passo a passo ao policial gentil. Começou com uma falsa boa notícia — alguém lhe deixou na portaria uma dissertação de mestrado para ser revisada, e que ela desse um preço pelo serviço. Uma obra de engenharia, o texto e a correção, Beatriz diria azeda ao relembrar — tudo sobre concreto armado, e as frases eram vigas tortas e intermináveis. Para aproveitar o dia, tomou do lápis e começou a reescrever tudo, quebrando sentenças a golpes de pontos e vírgulas, colocando sujeitos onde não havia, ligando verbos a substantivos, plurais a plurais — ainda bem, lembrou, que aquilo estava impresso em espaço dois, com uma boa faixa de escape, a letra firme e redonda se espiralando miúda em colchetes aqui e ali, encaixes acolá, uma troca de adjetivo, uma concordância adiante, um adendo à margem. Já estava na página 27 quando ergueu o telefone para ouvir a voz do dono, um engenheiro apressado que foi direto ao assunto: Quanto custa? Ela deu o preço, o dobro que o normal, mas o texto exigia, frase a frase — o que talvez o engenheiro não percebesse é que ao fim de tudo ele seria Mestre, autor de um belo trabalho de cálculo sobre pedras, vergalhões, cimento e areia, mais a contrapartida do solo, tudo de modo que seres humanos letrados conseguiriam ler, mas Beatriz ficou inibida, como sempre, para proclamar as próprias qualidades, que afinal ele já devia saber pelos outros ou não teria deixado aquilo com ela. Não, é muito caro. Talvez sentindo que estava sendo rude, um homem tenso esmagado pela pós-graduação, de saco cheio do orientador e em pânico diante da banca que se aproximava, ele refez a frase: Eu não posso pagar esse preço, uma frase subitamente engraçada, como um filme dublado. Mas não quis conversa, aliás nem ela — eu passo aí e pego de volta na portaria.

— Tudo bem — e ela bateu o fone. As pessoas mal-amadas vão se tornando irremediavelmente mesquinhas, Beatriz pensou, rancorosa, entregando-se com algum prazer ao preconceito, sujeitinho pão-duro, idiota, o filho da mãe é engenheiro, essa revisão não tem preço; e restava-lhe agora um problema ético: já havia corrigido por conta própria 27 páginas — não podia cobrar, porque o bilhete do homem deixava claro que ligaria antes para saber do orçamento. Devolver com a parte corrigida para aquele jegue ver o que perdeu? Sentir a diferença entre um texto estropiado e um texto bem escrito, nítido, conciso, luminoso? Ou apagar tudo com a borracha, para que aquilo voltasse ao seu lugar no mundo, a escuridão intocada do texto ruim e de seus sentidos secretos e inescrutáveis, lá no fundo da caverna do que ele quis dizer? — ela escreveu mentalmente, vingativa, gostando da imagem. Chegou a pegar a borracha, mas desistiu, cristã — ele que ficasse com as 27 páginas corrigidas, e as duas horas e meia, de graça, e mais a graça de se ver melhor no próprio texto. Um tapa de luvas.

Mas isso foi só o começo, como o senhor sabe, e o policial sorriu. Mal saiu do banho, outro telefonema, este promissor. Um velho senhor de sotaque carregado (polaco? alemão? holandês?) praticamente a convocava a revisar sua obra — A senhora tenha a certeza de que eu preciso muito!, insistia o homem, arrastando os erres, dramático. Ao fundo, dava para ouvir um cachorro latindo, e ela teve um mau pressentimento, a que não deu atenção, ainda o resíduo do engenheiro na cabeça. O homem respirava mal, ela percebeu, talvez asmático. É um trabalho de sociologia, história — aqui ele acrescentou algo como “etnografia”, “etografia”, não deu para entender — e antropologia. Um sábio, ela pensou, um velho sábio perdido em Curitiba com uma obra monumental que só precisa de uns retoques, como o homem disse, repetindo três vezes, uns retoques, eu não domino bem o vernáculo, ele dizia, e ela matutou se ele saberia exatamente o sentido dessa palavra, no caso de ele ser estrangeiro, mas talvez não — quem sabe filho de estrangeiros. Eu moro longe, mas eu pago o táxi para a senhora. Não estou bom de saúde. Eu pago tudo. Só preciso de uma boa leitura, e o quanto antes. A senhora está livre hoje? Eu pago o táxi, o homem repetia, era um cidadão agitado, doente mas correto, ela avaliou, vou lá antes que ele morra, e ela riu sozinha desligando o telefone e tentando entender o caminho da roça, verdadeiramente o caminho da roça que ela foi anotando, Sabe Almirante Tamandaré?, e assim ela teria de pegar a Mateus Leme e daí em diante havia uma sequência difícil de referências — o motorista de táxi conhece, não é complicado —, tudo terminando no beco da Torta, na verdade uma estradinha de terra, passa um haras, não é bem um haras, tem uns cavalinhos no campo, e a velha nostalgia rural de todo brasileiro (e ela riu da ideia) tocou fundo na sua alma. Embarcou no táxi como quem tira umas férias, o mapa à mão. O motorista não disse nem sim nem não quando ela perguntou se ele sabia o rumo a tomar, apenas foi avançando lacônico e Beatriz enfim se tranquilizou. Passar uma tarde no campo. Aos poucos foi se sentindo como alguém que se transporta a uma outra dimensão do espaço, súbito em uma cidade desconhecida, uma Curitiba que nunca viu e que estava ali ao lado, como eu sou ignorante, ela pensou, meu mundo começa na José de Alencar e termina na pracinha do Batel, e agora estou aqui, o asfalto roto sem calçadas, cheio de curvas, pessoas, burros, carroças, tudo meio que devagar se atravancando, oficinas, barracos, pobreza, aquela sujeira gráfica de placas, postes, fios atravessados, outdoors coloridos com mulheraças gigantescas mostrando pernas maravilhosas, e ali no poste a tabuleta inverossímil vende frango-se, a seta vermelha com a tinta escorrida, e ela olhou o taxímetro com o canto dos olhos, tudo vai bem, eu pago o táxi, ela ainda ouvia a voz metálica do velho asmático, os erres ríspidos, e súbito o motorista para numa esquina, o vidro abrindo-se a uma passante:

— A senhora sabe onde é o beco da Torta?

A mulher se aproximou. Ela tem cara de sortista, Beatriz pensou. Antes de falar, conferiu a passageira no banco de trás, tentando adivinhar uma biografia completa, imaginou Beatriz — quem é, de onde vem, para onde vai.

— É logo adiante. Vocês vão no velho Rodolfo? Cuidado com o cachorro.

Não era exatamente um tom cordial, e a menção ao cachorro deu-lhe um frio na barriga, mas não teve tempo de se preocupar — outras duas ou três curvas e chegavam a um fim de caminho, mato cerrado adiante, e ela se surpreendeu agora ao contrário, como é pequena essa cidade, acaba aqui. O táxi parou diante de uma velha casa de madeira de cor indefinível, lambrequins desdentados numa varanda em ruínas, o telhado agudo, como se nevasse em Curitiba. Ela saiu do carro e no mesmo instante um cachorro enlouquecido jogou-se latindo contra a cerca alta de metal trançado, encimada por uma faixa densa de arame farpado — um cão furioso, insaciável, de uma agressividade limítrofe, um desespero antes da morte (ela pensaria depois, numa ilação absurda). Mas quem abriu o portão?, perguntou o policial gentil, na boa viagem de volta. O latido irritante tinha o poder de uma serra elétrica para suspender a vida — ela pagou o taxista tentando organizar a cabeça, mas os latidos não deixavam; esqueceu do recibo e esqueceu também de pedir que ele esperasse um minuto até ela se certificar de que o homem estaria mesmo em casa, sabe-se lá. Bastou sair do carro e avaliar num segundo aquela casa esquecida no fim do mundo, iluminada por um sol forte de começo de tarde, para o táxi sumir; assim que se voltou, o carro já virava a curva adiante numa nuvem de poeira. Viu-se completamente só diante do portão do que teria sido um espaço de garagem e que agora era uma quadra de mato mal aparado. O cachorro, incansável, latia e pulava diante de Beatriz, arremetendo furioso contra o portão. Paralisada, lembrou súbito que esquecera o celular (ficou na mesa da sala, na hora em que fui pegar a bolsa, que desgraça, ela contou aflita ao policial, como se o detalhe fosse importante), ao surgir a ideia de que deveria telefonar ao homem para lembrá-lo de que ela já estava plantada em frente da casa dele; o velho, quem sabe surdo, estaria tranquilo lendo um tratado de sociologia na cozinha, enquanto ferve água para o café com que vai recepcionar a revisora, completamente distraído, sem saber que ela estava ali suando frio diante daquele Cérbero feio como o pecado. Em torno, nada, e Beatriz irritou-se com o peso de mais uma burrice cometida, o velho que levasse a ela o livro a revisar, e não o contrário, mas, como sempre, agora é tarde. Resolveu bater palmas, o que era ridiculamente inútil, mas atiçou ainda mais a fera que agora uivava de ódio em seus saltos homicidas contra o portão. Beatriz já começava a desistir, antevendo a longa caminhada de volta até achar um táxi ou um ponto de ônibus, quando uma cabeça pequena, uma face descarnada, um halo de cabelos brancos, uma efígie pálida enfim apareceu à janela dos fundos para desaparecer em seguida, como um cuco. Será que ele me viu? O animal parou por alguns segundos, abanando o toco do rabo, à espera talvez de um chamado, que não veio, o que foi o argumento para voltar a latir sempre furioso, e enfim a porta da varanda se abriu — Réss! Réss! — gritava agora o homem magro de bermudas, meias e chinelos, a velha camiseta, os braços brancos e secos, ainda sem olhar para a visitante, ocupado integralmente com o cão, indócil também com ele. Réss! — Será “Réss” mesmo o que ele diz? Ou Rex?, Beatriz especulava, um pouco mais tranquila, não perdi a viagem, sonhou, sem dúvida era o homem do telefonema que agora avançava resoluto para o animal agarrando-lhe a coleira com a mão esquerda e ossuda e suspendendo-o como quem enforca; o cachorro gania, sem se acalmar, debaixo de uma sequência ininteligível de ordens em que só o “Réss” se entendia. Em vez de levá-lo a algum lugar e prendê-lo, como Beatriz queria que ele fizesse, o homem tirou do bolso uma chave e avançou ao portão — a mão direita, trêmula, tentava encaixar a chave no cadeado, enquanto o cachorro, a duras penas controlado pelo outro braço, contorcia-se no esforço demoníaco de livrar-se do velho, e em meio a gritos e latidos o portão enfim se abriu, com o cadeado indo ao chão. Junta para mim, ganiu o homem, arrastando o bicho dois passos para trás, que agora voltava a desejar Beatriz, tão próxima — e ela entrou no terreno e obedeceu, recolocando o cadeado no portão e fechando-o com um clac! Do que se arrependeu no mesmo instante, como explicou ao policial; agora ela estava sem rota de fuga. O homem arrastava o monstro até a porta, seguido por uma Beatriz vacilante que tentava adivinhar o passo seguinte, do homem e de Rex, ou Réss. A mão livre do velho tremia fazendo sinais irritadiços para que ela entrasse em casa enquanto mantinha o bicho seguro ao seu lado, e Beatriz olhava hipnotizada para aquela velha coleira que talvez se rompesse, firme nos dedos brancos do velho, mas o que ele vai fazer, levar o cachorro para dentro de casa? Não, ele abriu um espaço para que ela passasse, enquanto mantinha o sempre indócil Réss, ou Rex, no cabresto, e ela afinal subiu os dois degraus de madeira podre da varanda e praticamente correu para dentro. O homem entrou em seguida — era uma verdadeira operação de guerra, ela relembrava depois, recontando cada detalhe, o coração na boca, quando o policial gentil disse que ela já podia ficar calma, tudo bem, está tudo bem, foi como nos filmes ela disse mais uma vez, agora rindo um riso nervoso — o velho não entrou em casa, ele foi se infiltrando no espaço mínimo que a porta mal aberta lhe dava, ainda bem que ele era magro, o braço estendido para manter o monstro do lado de fora, até que o soltou no mundo, batendo a porta, enfim em segurança, e ambos escutaram o choque do animal arremetendo contra eles, o ganido interminável. Agora seguros do lado de dentro, o homem ainda foi à janela e gritou mais algumas coisas ao Réss, um tipo de código secreto que parecia alemão, mas não era, ela calculou, mas também o Réss não entendia, porque continuava latindo. Enfim o senhor Rodolfo se voltou para Beatriz, ofegante — muito ofegante, ela explicou ao policial, ele tinha a boca aberta, dava para ver um dente de prata logo atrás do canino, mas isso ela não achou necessário dizer, ficou só a imagem fixa na memória, um dente de prata. — Você é muito nova, ele disse, e estendeu a mão ossuda que ela apertou com uma sensação ruim, também ela ofegante, não de cansaço, mas de terror. Tenho problema com cachorros, pânico de infância, eu devia ter avisado antes, e parecia que a sua vida inteira era uma sequência de devias que, se realizados, fariam dela outra pessoa, outro ser, outra existência; o fato é que não disse nada, corpo e alma mudos, e o homem, com uma sombra de desconfiança, perguntou se ela era italiana, ou alemã, o olhar escrutinador, e Beatriz meio que sorriu, eu sou brasileira, mas nem isso disse, porque mais uma vez o senhor Rodolfo não lhe deu tempo, puxando uma velha cadeira de palha e intimando-a a sentar diante daquela mesa surrada por onde teriam passado duas ou três gerações de almoços e jantas, Beatriz imaginou, fantasiando o momento para dele escapar, e olhou em torno, uma casa rústica que em algum momento do passado foi boa, agora à beira da ruína final, mas ainda sustentável, ou consertável, ela pensou, nas paredes algumas fotos antigas de família, uma meia dúzia de livros velhos e sem lombada, uma coleira velha pendurada num prego, uma antiga máquina de costura transformada em mesinha de canto, uma cristaleira de antiquário com taças e copos disparatados, tudo sob o fundo musical de Réss — acho que é Réss mesmo, talvez Hess, ela tentou adivinhar, sabe-se lá, e o velho desapareceu por um batente e de longe veio a voz, vou levar um café e então conversamos, o cão rosnando próximo, atrás da porta talvez, ela pressentiu, mas a voz do homem estava realmente esquisita, ele parece doente, e quando reapareceu segundos depois, sem o café, o rosto estava vermelho como a cabeça de um galo e a mão trêmula depositou um volume diante dela, fique lendo enquanto trago o café, acho que preciso de um comprimido, ele ainda disse. — Você viu ele tomar o comprimido?, o policial perguntou, e ela disse que não, o que era verdade. Apenas abriu a pasta ensebada onde jazia uma pilha de folhas amarradas com barbante nos dois furos da margem esquerda e viu o título de letras falhadas marteladas por uma velha máquina de escrever, ela imaginou, a fita preta e vermelha quase sem tinta: PORQUÊ HITLER PERDEU A GUERRA DA PROPAGANDA, e ela sentiu um frio no estômago enquanto os olhos acompanhavam o enorme subtítulo em espaço um, Estudo cientifico, moral, racial e sociológico dos acontecimentos mundiais da derrocada do “Terceiro Reich” que se seguiu no fim da SEGUNDA GRANDE GUERRA MUNDIAL onde o pôvo germânico perdeu o contrôle.

Beatriz fechou os olhos, o suor brotando no pescoço — é o efeito retardado do estresse do portão, ela interpretou. Só agora estou voltando ao normal. Abriu os olhos e releu: era isso mesmo. Talvez o homem seja apenas analfabeto, ou simplesmente alguém da velha ortografia; não é uma questão de ideias. Abriu a página seguinte. CAPÍTULO PRIMEIRO. Nuremberg: verdades e mentiras. Porquê o julgamento não refléte a verdade. O que aconteceu.

— Eu tenho o Réss — o homem disse de repente lá na entrada do que seria a cozinha e Beatriz fechou instintivamente o livro, como alguém pego em flagrante — por causa da vizinhança. Já me roubaram muito aqui. Não estou bem — ele disse, exatamente no mesmo tom e no mesmo volume de voz, o tempo passado e o tempo presente como partes da mesma frase, e desapareceu.

Ela abriu de novo o volume ao acaso e viu aquela mancha em espaço um, uma datilografia compacta e praticamente sem divisão de parágrafos o dinheiro judeu assossiado ao capital internacional e abriu outra página mais para o fim comandante das “SS” e abriu outra página raças misturadas no Brasil e outra PORQUÊ A VIOLÊNCIA SÓ TÊM SOLUÇÃO VIOLENTA — os motivos etológicos da decadência do Ocidente em dezasseis argumentos e outra O momento da solução — e a voz súbita do velho de novo na porta como que despertou Réss, que latiu furioso e mais uma vez se lançou contra a porta fechada.

— Eu deixo o Réss solto porque se eu prendo ele eles me roubam. Eles pensam que eu sou indefeso, que eu sou um velho gagá, é o que eles dizem, esses vagabundos dizem que eu sou um velho gagá, aquelas crianças vêm ali na cerca, ficam zombando, e o Réss fica nervoso — a voz estava anormalmente alta, e Beatriz de novo fechou o livro, tentando resistir ao terror que começava a escancarar as portas de sua alma. — Mas eu tenho um modo de assustar eles, além do Réss, eu tenho medo que eles envenenem ele, e então eu pego a minha luger, está aqui — e sempre gritando, pela surdez um homem sem noção de volume de voz, ela imaginou, o velho avançou até o armário, abriu uma porta e depois uma gaveta, já de joelhos no chão; o velho inteiro tremia.

Beatriz levantou-se — O senhor não precisa me mostrar, eu... — mas ele se virou, aquela magreza frágil teimando em se manter em pé, o rosto inteiro congestionado agora, e Beatriz sentiu o vazio do pânico, o homem estava tendo algum ataque, não de fúria, embora a impressão fosse exatamente essa.

— Ele se ergueu assim, com o revólver na mão, o braço meio estendido, e o corpo começou a dobrar — e ela imitava o gesto, ela também tremendo e ainda sem controlar totalmente o choro.

— O braço nessa direção? — perguntou o policial gentil, tocando a mão dela, refazendo o gesto, e olhando para a janela com o vidro estilhaçado.

Sim, ela disse, e relembrou o rosto do velho inteiro manchado de vermelho, o pescoço espichando-se para fora da camiseta, a boca aberta buscando um ar inexistente, sentindo o vácuo que haveria de derrubá-lo. Ele ainda estendeu o braço com a luger apontando não exatamente para ela, mas muito próximo, de modo que ela olhou para trás assustada como se um inimigo se aproximasse para matá-los e o velho apenas se defendesse, mas não havia ninguém, e ela ouviu o estampido pavoroso do revólver estilhaçando a vidraça da frente; deu um grito, e ao se voltar o velho já estava no chão, abatido — na verdade, morto, boca e olhos abertos, a luger ainda encaixada nos seus dedos. Pela brutalidade do susto, Beatriz chegou a pensar o contrário, que alguém de fora matara o velho através da janela, mas não: ali estava o homem imóvel, olhando idiotizado para ela. Ela chegou a se agachar para tocá-lo, mas por alguma repugnância instintiva não conseguia; enfim estendeu o braço vacilante e tocou o pescoço com a ponta dos dedos, sentindo a aspereza daquela pele enrugada e inerte; aproximou a cabeça da cabeça do homem, como quem quer ouvir alguma última mensagem antes da morte, um último sopro, mas também isso não havia mais. Um homem morto: o primeiro que ela via morrer, e num átimo se lembrou de seus pais mortos, sim, eles morreram de desastre, ela explicou ao policial gentil, na viagem de volta, já anoitecendo.

E outro pânico sobrevinha ao primeiro — Réss, talvez pressentindo a morte do dono, redobrava a fúria e ela podia vê-lo saltar diante da janela para em seguida raspar a porta como quem sabe exatamente o que quer. Ela ainda pensava no que fazer — massagem torácica, talvez, ressuscitar esse velho, respiração boca a boca, chegou a imaginar, mas a invencível repugnância voltava-lhe, o dente de prata brilhando na boca aberta, aquilo era um cadáver, ela tentava se justificar, temendo que o policial lhe perguntasse o que ela fez para salvá-lo, mas isso ele felizmente não perguntou. Beatriz ainda estendeu as mãos para pressionar o tórax do homem, mas ao tocá-lo como que foi demovida pelo gelo que sentiu, e retirou as mãos, ele já está morto. Pensou ainda em virá-lo, deixá-lo mais confortável, ela pensou sem atinar no absurdo da ideia, um homem desconfortável até na morte, mas ao estender mecanicamente os braços para a tarefa lembrou-se do seriado da televisão e recuou — jamais mexa na cena do crime, não toque em nada, mas que crime?, ela se perguntou, esse homem morreu sozinho, eu estava ali, a cinco passos, Beatriz imaginou-se contando mais tarde, o tom dramático para tornar o fato mais convincente ainda, como se o pressuposto de tudo na sua vida fosse sempre a mentira, e o tempo todo o cachorro latindo, o que criou outra onda de terror: afinal perceber que estava ilhada numa casa, sem celular, com um homem morto no chão, e guardada por um cachorro demoníaco que só deixaria ela sair dali quando morresse de fome; e o vizinho mais próximo estaria a uns quinhentos metros de distância, sendo que o beco da Torta é uma rua sem saída e que só chegará alguém aqui se —

E então Beatriz tateou o caminho de volta à cadeira de palha, onde sentou para pensar, mas não conseguiu — levantou-se em seguida e, enfim, surgiu uma ideia nítida: vou atrás de um telefone, deve haver um aqui, e avançando para os fundos com o maldito cão acompanhando seus passos aos urros e roncos pelo lado de fora, atravessou uma saleta vazia e chegou à cozinha, um degrau abaixo, de piso de pedra; no velho fogão a gás, ao lado de um fogão a lenha desativado que agora servia de balcão, um resto de água ainda fervia na chaleira e ela correu para desligar a boca, dessa vez sem susto, sentindo-se momentaneamente útil, quase como alguém que pelo simples gesto de desligar o fogo voltasse à normalidade cotidiana, vou fazer café; o animal agora rosnava atrás da porta dos fundos, raspando impaciente a pata na madeira, e ela conferiu a maçaneta e o trinco, de uma solidez antiga, com uma chave enorme: estou segura, ela pensou — eu posso sobreviver alguns dias aqui, fantasiou, olhando as prateleiras em torno, café, feijão, arroz, farinha, batatas. Voltou para a saleta e entrou num dos quartos, às escuras, e sentiu o cheiro e a aura da velhice, corpo e alma entranhados nas coisas; procurou inutilmente um interruptor (com medo de abrir a janela, o cão latindo) e pelo tato e pelas sombras foi descobrindo cômoda, cadeira, cama; estendendo o braço, chegou à mesinha do outro lado e enfim ao telefone, daqueles de filme, ela lembraria depois, negro, pesado, clássico, o cordão de tecido grosso em caracol; Beatriz ergueu o fone com dificuldade, derrubando frascos de remédio e um copo vazio que se espatifou. Percebeu agora a fraqueza que sentia, alguém esmagado pelo medo, os dedos tremendo para girar com dificuldade os três números que ela também adivinhava pelo tato, polícia, por favor, polícia!

— Era mesmo necessário matar o cachorro? — ela ainda perguntou ao policial, depois de alguns segundos em que ficaram em silêncio, a viatura parada num sinal vermelho.

— Bem, do modo como nos passaram a ocorrência, era uma questão de vida ou morte, e não tinha nenhum veterinário ali com uma rede para cuidar daquele bicho louco. Imagino o que você sofreu dentro daquela casa.

Ela ouviu dois ou três tiros e foi à janela — portão escancarado, quatro ou cinco homens avançaram em trajes civis, e só então ela viu o animal morto, a cabeça ensanguentada, o corpo inesperadamente pequeno quase oculto no mato. Sentiu a mão do homem tocando-lhe o braço, o mesmo policial que agora lhe dava a carona de volta.

— Você está bem?

— Um ataque fulminante do coração, sem dúvida — decretou um outro homem, talvez médico, agachado diante do antigo senhor Rodolfo.

— Digam pra esse povo ficar longe da casa — alguém ordenou, e Beatriz olhou para a rua onde uma pequena multidão vinda do nada começava a se aglomerar.

Você conhece ele?, alguém lhe perguntava, não, vim aqui fazer um trabalho de revisão, e mais uma camada de medo pousou na sua alma, e se eles imaginam que eu também sou nazista, o calhamaço ali em cima da mesa, eu nunca vi esse homem, ele telefonou, eu acho que ele era meio... assim, meio transtornado, ela evitou a palavra “louco”, que lhe pareceu inadequada. — Mas ele tentou matar você?! — e ela quase disse sim, o que não era exatamente uma mentira, não, não!, ele só quis me mostrar a arma, que tirou daquela gaveta. Alguém acabou fazendo finalmente o café, e uma xícara apareceu diante dela; Beatriz agradeceu. Cochichavam alguma coisa entre eles, ela ainda ouviu palavras avulsas, tiro acidental, uma demonstração, ela teve sorte. Uma outra voz disse Porra, essa luger é da primeira guerra, e está azeitada. Calibre sete meia cinco, cano 120. Conservadinha. Um deles abriu o calhamaço ao acaso e foi soltando as páginas como cartas de baralho, sem se deter em nada — O velho era escritor então, e largou o pacote na mesa sem comentários, um suspiro definitivo. Está cheio de remédio aqui, disse alguém do quarto, anota aí. E tem documento do homem na gaveta.

— Eu levo você em casa — ofereceu enfim o policial gentil, todos os trâmites aparentemente resolvidos. — Você garante que está bem mesmo?! — ele ainda perguntou. — Tome um calmante e durma bem essa noite, que você está precisando. Amanhã você faz o depoimento, se for o caso, não sei ainda, trocando em miúdos foi só um ataque do coração — e ela gostou de ouvir isso. Ao sair da casa, viu-se objeto de reverência da pequena multidão de crianças e adultos desocupados que abriram um caminho respeitoso para ela até a viatura fazendo um súbito silêncio — Mas ela não está algemada?, Beatriz ouviu nitidamente a criança e segurou um riso nervoso. Uma caminhonete do IML chegava naquele instante e dispersava a plateia sem muita paciência, aceleradas potentes, avançando para o portão aberto.

— Então você faz revisão de textos e dá aulas particulares?! — o homem perguntou, como recapitulação, já quase diante do prédio de Beatriz. — Isso é muito interessante — e balançava a cabeça. — Minha filha vai estudar agronomia — ele disse em seguida, como se as duas observações estivessem interligadas.

Belisário, o nome do policial gentil, ela releu no cartão; um nome vagamente conhecido, que por um segundo Beatriz tentou inutilmente lembrar. Se precisar de alguma coisa, é só dizer, ele insistiu, saindo do carro e abrindo a porta para ela. Uma face rústica e um começo de barriga, e o conjunto tinha uma aura de simpatia, ela avaliou. Policiais também podem ser boas pessoas, é claro. Entrou ainda trêmula no prédio; antes de chegar ao elevador, o porteiro lhe estendeu o envelope da manhã, a dissertação que ela deixara para devolver ao engenheiro.

— O homem escreveu um bilhete e disse para lhe entregar de volta.

Elevador subindo, conferiu: Prezada Beatriz, me desculpe por hoje de manhã, eu estava nervozo, pode fazer a revisão sim, obrigado pela comprensão, vamos praticar aquele preço que você falou mesmo, amanhã eu telefono na sua casa, Belisário.

Finalmente conseguiu rir, entrando em casa — um dia não tão ruim assim, calculou.

Coincidências são bons augúrios.



(Beatriz)


(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

CANTIGA DE MALDIZER, de Afonso Eanes de Coton (*)

 




Marinha, o teu folgar

tenho eu por desacertado,

e ando maravilhado

de te não ver rebentar;

pois tapo com esta minha

boca, a tua boca, Marinha;

e com este nariz meu,

tapo eu, Marinha, o teu;

com as mãos te tapo as orelhas,

os olhos e as sobrancelhas,

tapo-te ao primeiro sono;

com a minha piça o teu cono;

e como o não faz nenhum,

com os colhões te tapo o cu.

E não rebentas, Marinha?



(*) Segundo a hipótese de Rodrigues Lapa, trata-se de Marinha Sabugal que aparece mais de uma vez nos cantares de Coton.


(Ilustração: A Duquesa Feia - arquivo Quentin Matsys -c.1513)

domingo, 16 de outubro de 2022

O CIÚME DA PRIMEIRA ESPOSA, de Chinua Achebe

 




— Conta para a gente uma história — pediu Obiageli a sua mãe, Ugoye. Na realidade, fora Nwafo quem mandara a irmã dizer isso.

— Contar uma história para vocês, com todos esses utensílios sujos por aí?

Nwafo e Obiageli imediatamente puseram-se a trabalhar. Eles afastaram o pequeno pilão para esmagar pimenta, puseram-no emborcado e colocaram os recipientes menores na prateleira de bambu. A própria Ugoye mudou no candeeiro a mecha de luz já quase gasta por uma nova, tirada de um maço mergulhado em óleo de palma num caco de barro.

Ezeulu comera toda a ceia que Ugoye preparara para ele. Isso faria qualquer mulher muito feliz. Mas, num compound(*), havia sempre algo para estragar a felicidade da gente. No caso de Ugoye, esse algo era a esposa mais velha do marido, Matefi. Fosse o que fosse que Ugoye fizesse, o ciúme de Matefi jamais a deixava em paz. Se ela cozinhava uma refeição modesta na sua própria cabana, Matefi dizia que estava matando de fome seus filhos para comprar braceletes de marfim. Se matasse um galo, como fizera esta noite, Matefi dizia que ela estava procurando as boas graças do marido. Claro que ela nunca dizia nenhuma dessas coisas na cara de Ugoye, mas todos os seus fuxicos mais cedo ou mais tarde chegavam aos ouvidos da mulher mais nova. Esta noite, quando Oduche estava temperando o galo num fogo alto, Matefi andara para cima e para baixo, pigarreando.

Depois que o aposento fora todo limpo, Nwafo e Obiageli estenderam uma esteira e sentaram-se ao lado do banco baixinho da mãe.

— Qual história vocês querem ouvir?

— A história de Onwuero — respondeu Obiageli.

— Não — disse Nwafo —, essa não, nós já a ouvimos muitas vezes. Conte aquela do...

— Está bem — interrompeu Obiageli. — Conte a do Eneke Ntulukpa.

Ugoye a procurou em sua memória e, após alguns minutos, encontrou o que buscava.



Era uma vez um homem que tinha duas mulheres. A mais velha tinha muitos filhos, e a mais moça, apenas um. Mas a mulher mais velha era invejosa e traiçoeira. Certo dia, o homem e sua família foram trabalhar na roça. Essa roça ficava na fronteira entre a terra dos homens e a terra dos espíritos. Qualquer pessoa que fosse trabalhar naquela redondeza deveria apressar-se para sair ao pôr do sol, porque, assim que caísse a noite, os espíritos chegariam para trabalhar em seus próprios campos de inhame. (Obiageli chegou mais perto de sua mãe.) O homem e suas mulheres e filhos trabalharam até que o sol começou a se pôr. Rapidamente eles juntaram suas enxadas, facões e cestas e partiram para casa. Mas, ao chegar em casa, o filho da segunda mulher descobriu que havia deixado sua flauta na roça e disse que ia voltar para buscá-la. Sua mãe implorou para que não fosse, mas ele não lhe deu ouvidos. Seu pai avisou-o de que seria morte certa, mas ele não lhe deu atenção. Quando se cansaram de suplicar ao filho que não fosse, deixaram-no ir.

Ele passou por cima de sete rios e atravessou sete florestas antes de chegar à roça. Quando chegou perto, viu os espíritos inclinados sobre seus roçados, plantando inhames-fantasmas. (Obiageli aproximou-se ainda mais da mãe.) Todos eles ficaram de pé quando o menino se aproximou e o olharam, zangados.

— Ei, menino humano! — vociferou o líder dos espíritos. — O que você quer? — Ele falava pelo nariz. — Você nunca ouviu dizer que nós estamos circulando a essa hora?

— Eu vim buscar a flauta que esqueci embaixo daquela árvore morta.

— Flauta? Você a reconhecerá, se a vir?

O menino disse que sim. Então, o líder dos espíritos apresentou-lhe uma flauta que brilhava como um metal amarelo.

— É esta?

O menino respondeu que não. Então ele apresentou outra flauta, que brilhava, branca, como a “noz da água do céu”.

— É esta? — o espírito perguntou, e novamente o menino disse que não.

Finalmente ele apresentou a flauta de bambu do menino, e o menino sorriu e disse que sim.

— Pegue-a e toque para nós.

O menino pegou a flauta da mão do espírito e tocou esta canção:



Terrível espírito, incontestado Senhor da noite sobre estas terras!

Meu pai me avisou que a morte aguardava

Os homens que se aventuravam aqui muito tarde; Por favor, meu filho, por favor, espere até de manhã!

Chorava a minha mãe. Mas sua advertência

Perdeu-se. Pois como poderia eu

Ficar acordado e esperar pela madrugada

Enquanto minha flauta na umidade e no orvalho

Jazia esquecida e abandonada!



Os espíritos ficaram encantados com a canção e houve um ho-ho-ho geral pelos seus narizes. (Obiageli e Nwafo riram muito, pela maneira com que sua mãe fazia ho-ho-ho, mexendo a cabeça de um lado para outro.)

O líder dos espíritos trouxe duas panelas, uma grande e uma pequena. Ambas as panelas estavam completamente seladas.

— Escolha uma dessas — disse ele ao menino.

Este escolheu a pequena.

— Quando você chegar em casa, chame sua mãe e seu pai e quebre a panela na frente deles.

O menino agradeceu-lhes.

— No caminho de casa, se você ouvir “dum-dum”, corra para dentro do mato, e quando ouvir “jam-jam”, volte para a estrada.

No caminho, o menino ouviu “dum-dum” e correu para o mato. Depois, ele ouviu “jam-jam” e voltou para a estrada. Atravessou os sete rios e as sete florestas e finalmente chegou no compound de seu pai. Chamou o pai e a mãe e quebrou a panela na frente deles. Imediatamente o lugar ficou cheio de todas as coisas boas: metal amarelo, panos e veludos, comidas de todas as espécies, dinheiro, vacas, cabras e muitas outras coisas de valor.

A mãe do menino encheu uma cesta de presentes e mandou para a mulher mais velha do marido. Mas esta, cega de inveja, recusou o presente. Não entendia por que devia ser insultada com um reles presente, quando tudo que tinha a fazer era enviar um de seus filhos para conseguir a mesma coisa.

Na manhã seguinte, ela chamou o filho e lhe disse:

— Traga sua flauta, nós vamos até a roça.

Não havia trabalho para eles fazerem na roça, mas ficaram por ali até o cair do sol. Então ela disse para o filho:

— Vamos para casa.

O menino pegou a flauta, mas a mãe bateu-lhe na cabeça.

— Menino bobo — disse. — Você não sabe esquecer sua flauta? (Obiageli e

Nwafo riram novamente.)

Então o menino deixou ficar sua flauta. Eles atravessaram sete rios e sete florestas e finalmente chegaram em casa.

— Agora você vai voltar para buscar sua flauta!

O menino chorou e protestou, mas sua mãe empurrou-o para fora e disse-lhe que na cabana não caberiam os dois, até que ele voltasse da roça com o presente dos espíritos.

O menino passou pelos sete rios e pelas sete florestas e chegou ao local onde os espíritos estavam trabalhando.

— Hmm! Hmm! — fungou o menino com repugnância. — Eu engasgo com o fedor dos espíritos!

O rei dos espíritos perguntou-lhe o que ele tinha vindo fazer.

— Minha mãe me mandou buscar minha flauta. Hmm! Hmm!

— Você é capaz de reconhecer a flauta, se você a vir?

— Que raio de pergunta é essa? — perguntou o garoto. — Quem é que não vai reconhecer sua flauta quando a vir? Hmm! Hmm!

Então o espírito mostrou-lhe uma flauta brilhando como metal amarelo e o menino disse que era a dele.

— Pegue-a e toque-a para nós — pediu o espírito.

— Eu espero que você não tenha cuspido dentro dela — disse o garoto, secando a boca com as costas das mãos. Depois, ele tocou sua canção:



Rei dos espíritos ele fede

Hmm hmm

Velho espírito ele fede

Hmm hmm

Jovem espírito ele fede

Hmm hmm

Mãe espírito ela fede

Hmm hmm

Pai espírito ele fede

Hmm hmm



Quando terminou, os espíritos estavam silenciosos. Então, o líder deles trouxe duas panelas, uma grande e outra pequena. Antes que uma palavra saísse de sua boca, o menino tinha pulado em cima da grande.

— Quando você chegar em casa, chame sua mãe e seu pai e quebre esta panela diante deles. No caminho, se você ouvir “dum-dum”, corra para dentro do mato, e quando você ouvir “jam-jam”, saia de novo.

Sem parar para agradecer, o menino pegou a panela e foi embora. Num certo ponto do caminho, ao ouvir “dum-dum”, ficou na estrada olhando de um lado para outro, a fim de saber o que era. Depois, ouviu “jam-jam”, e entrou no mato.

Passou os sete rios e as sete florestas e finalmente chegou em casa. Sua mãe, que estivera esperando por ele do lado de fora da cabana, ficou feliz quando viu o tamanho da panela.

— Eles disseram que eu devia quebrá-la diante de você e de meu pai.

— O que tem o seu pai a ver com isto? Por acaso foi ele quem o mandou ir lá?

Ela levou a panela para dentro de sua cabana e fechou a porta. Depois, encheu cada buraquinho da parede, de modo que nada pudesse escapar para a mulher mais moça de seu marido. Quando tudo estava pronto, quebrou o pote. Lepra, varíola, bouba e moléstias piores sem nomes e toda a espécie de abominações encheram a cabana e mataram a mulher e todos os seus filhos.

Quando amanheceu, como não houvesse sinais de vida na cabana, o marido arrombou a porta e espiou lá dentro. Essa espiadela foi mais do que suficiente. Ele lutou com as coisas que forçavam para sair e acabou por conseguir fechar a porta de novo. Mas, nessa altura, algumas das doenças e abominações já haviam escapado e se disseminado pelo mundo. Felizmente, as piores — aquelas que não têm nome — ficaram trancadas dentro da cabana.


Nota:

(*) Compound: conjunto de habitações onde mora uma família, geralmente cercado ou murado.


(A Flecha de Deus; tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva)


(Ilustração: Darlington Ike - the sound of joy and gratitude)