terça-feira, 31 de dezembro de 2013

FISIONOMIAS BURGUESAS, de Honoré de Balzac







Em certas cidades da província existem casas cujo aspecto inspira melancolia igual à provocada por claustros sombrios, charnecas desoladas ou ruínas tristonhas. Em tais casas talvez  haja ao mesmo tempo o silêncio do claustro, a aridez das charnecas e os esqueletos das ruínas. Nelas, a vida e o movimento são tão tranquilos que um estrangeiro as acreditaria desabitadas, caso não deparasse de súbito com o olhar mortiço e frio de alguma pessoa imóvel, vulto quase monástico, a apontar na janela, sempre que ecoe o ruído de passos desconhecidos. Esses traços de melancolia existem na fisionomia de uma casa situada em Saumur, no fim da rua montuosa que leva ao castelo, na parte alta da cidade. Aquela rua, agora pouco frequentada, quente no verão, fria no inverno, escura em alguns pontos, é notável pela sonoridade do empedrado miúdo do calçamento, sempre limpo e seco, pela estreiteza do leito tortuoso, pela paz das casas pertencentes à cidade antiga, dominada por muralhas. 

Habitações de três séculos lá estão ainda sólidas, embora feitas de madeira, e a diversidade dos seus aspectos contribui para a originalidade que torna aquela parte de Saumur digna da atenção de arqueólogos e artistas. É difícil passar pela frente daquelas casas sem admirar as enormes vigas de madeira com estranhas figuras talhadas nas extremidades a coroarem com um baixo-relevo negro o pavimento térreo da maioria delas. Aqui, travessas de madeira são cobertas de ardósia e desenham linhas azuis por sobre os frágeis muros de alguma casa arrematada por um teto de madeirame aparente, empenado pelos anos, com tábuas apodrecidas e entortadas pela alternância de chuva e sol. Acolá se veem sacadas desgastadas, enegrecidas, com delicadas esculturas que mal se enxergam, parecendo leves demais para o vaso de argila castanha do qual se projetam os cravos e as rosas de alguma operária pobre. Mais adiante, portas guarnecidas de tachões enormes, onde o gênio de nossos ancestrais traçou hieróglifos domésticos cujo sentido nunca se conhecerá. Nesta, algum protestante deixou a marca de sua fé; naquela, algum partidário da Santa Liga amaldiçoou Henrique IV[1]. Em outra, algum burguês gravou as insígnias de sua nobreza de campanário[2], a glória de esquecida almotaçaria. A história da França está lá, inteira. Ao lado da casa precária de alvenaria grosseira, onde o artesão divinizou sua plaina, eleva-se o palacete de algum fidalgo, e sobre o arco de pedra de sua porta ainda se veem vestígios de brasões avariados pelas muitas revoluções que agitaram o país a partir de 1789. Naquela rua, o comércio do andar térreo não é composto de lojas ou armazéns: ali, os amantes da Idade Média encontrariam a oficina de nossos ancestrais em toda a sua cândida simplicidade. Aquelas salas baixas, sem fachada, vitrina ou vidraça, são fundas, escuras e sem ornamentos externos ou internos. A porta se abre em duas partes, guarnecidas de ferros grosseiros; a parte superior se dobra para dentro, enquanto a inferior, munida de uma sineta com mola, vai e vem  constantemente. O ar e a luz entram naquela espécie de antro úmido por cima da porta ou pelo espaço que fica entre a abóbada, o teto e a mureta de meia altura na qual se encaixam janelas sólidas, retiradas pela manhã e recolocadas à noite, com chapas de ferro atarraxadas. A mureta serve para que o negociante exponha as mercadorias. E nada de charlatanismo. De acordo com a natureza do comércio, as amostras consistem em duas ou três tinas de sal e bacalhau, alguns rolos de lona, cordas, latões pendentes dos caibros do teto, aros encostados às paredes, ou algumas peças de tecido em prateleiras.

Entremos. Uma moça asseada, irradiando juventude, de xale branco e braços rosados, larga o tricô e chama o pai ou a mãe, que vêm e nos vendem o que quisermos, com fleuma, complacência ou arrogância, conforme seu caráter, quer se trate de dois soldos, quer de mil francos de mercadoria. Veremos um comerciante de tábuas de carvalho sentado à porta, a girar os polegaresenquanto conversa com um vizinho: aparentemente, só possui tábuas ruins para garrafeiras ou duas ou três braçadas de ripas, mas, no porto, o seu entreposto abarrotado abastece todos os toneleiros de Anjou; sem errar uma aduela, ele sabe quantos tonéis vai dar[3], se a colheita for boa; uma estiada o enriquece, uma pancada de chuva o arruína numa única manhã, e os barris podem valer onze francos ou cair para seis libras. Naquela terra, tal como em Touraine, as vicissitudes da atmosfera dominam a vida comercial. Vinhateiros, proprietários, comerciantes de madeira, toneleiros, hospedeiros, barqueiros, todos estão à espreita de um raio de sol; à noite, quando se deitam, tremem ao pensar que, na manhã seguinte, poderão ficar sabendo que à noite geou; temem a chuva, o vento e a seca; querem água, calor e nuvens a gosto. Há um duelo constante entre o céu e os interesses terrenos. O barômetro ora entristece, ora sossega, ora alegra as fisionomias. De uma ponta à outra da rua, da antiga rua principal de Saumur, as palavras “Viva o tempo de ouro!” são o código que corre de porta em porta. E cada um responde ao vizinho: “Chovem luíses”, sabendo o que um raio de sol, o que uma chuva oportuna lhes trazem. Nos sábados de primavera, mais ou menos ao meio-dia, ninguém consegue nem mesmo um soldo de mercadoria daquela gente industriosa. Cada um tem sua vinha, sua granja, e vai passar dois dias no campo. Ali, como tudo está previsto – compra, venda, lucro –, os comerciantes empregam dez das doze horas do dia em passatempos, observações, comentários, espionagens contínuas. Nenhuma dona de casa compra uma perdiz sem que os vizinhos perguntem ao marido se ela estava no ponto. Nenhuma moça põe a cabeça para fora da janela sem ser vista por todos os grupos de ociosos. Ali, pois, as consciências estão às claras, assim como aquelas casas impenetráveis, negras e silenciosas não têm mistérios.

A vida quase sempre se passa ao ar livre: cada família se senta à porta para almoçar, jantar, brigar. Ninguém que passe pela rua deixa de ser estudado. Por isso, antigamente, quando um estrangeiro chegava a uma cidade da província, era ridicularizado de porta em porta. Essa é a origem das boas histórias, do apelido de remendadores dado aos habitantes de Angers, que se esmeravam nessas pilhérias urbanas. Os antigos palacetes da cidade velha situam-se no alto daquela rua outrora habitada pelos fidalgos da terra. A casa melancólica onde se deram os acontecimentos aqui narrados era precisamente um daqueles edifícios, restos veneráveis de um século no qual as coisas e os homens tinham a simplicidade que os costumes franceses vão perdendo dia a dia. Depois de seguirmos as curvas daquele caminho pitoresco, em que cada pequeno acidente desperta lembranças, em que a impressão geral tem o efeito de fazer mergulhar numa espécie de devaneio maquinal, distinguimos uma reentrância escura, em cujo centro se esconde a porta da casa do senhor Grandet. É impossível entender o valor dessa expressão provincial sem apresentar a biografia do senhor Grandet.

Em Saumur, o senhor Grandet gozava de uma reputação cujos motivos e efeitos não serão inteiramente entendidos por quem não tenha vivido na província, mesmo que por pouco tempo. O senhor Grandet, também chamado de tio Grandet por algumas pessoas – mas o número desses velhos diminuía sensivelmente –, em 1789 era um mestre toneleiro bastante remediado, que sabia ler, escrever e contar. Assim que a República Francesa pôs à venda os bens do clero na circunscrição de Saumur, o toneleiro, que então tinha quarenta anos, acabava de se casar com a filha de um rico comerciante de aduelas. Munido de sua fortuna líquida e do dote, munido de dois mil luíses de ouro, Grandet foi então ao distrito, onde, graças aos duzentos luíses dobrados oferecidos pelo sogro ao feroz republicano que supervisionava a venda dos domínios nacionais, recebeu por um naco de pão, legalmente, se não legitimamente, as mais belas vinhas dos arredores, uma velha abadia e algumas quintas. Os habitantes de Saumur eram pouco revolucionários, e o tio Grandet foi visto como um homem audacioso, um republicano, um patriota, um espírito dado às novas ideias, embora na verdade o toneleiro fosse dado mesmo às suas vinhas. Foi nomeado membro da administração do distrito de Saumur, e sua influência incontestável se fez sentir em termos políticos e comerciais. Politicamente, protegeu os nobres depostos e impediu com todas as forças a venda dos bens dos emigrados; comercialmente, forneceu aos exércitos republicanos mil ou dois mil barris de vinho branco, pelo que recebeu soberbos prados pertencentes a uma comunidade de religiosas, reservada como um último lote. 

Durante o Consulado, o bom Grandet tornou-se prefeito, administrou bem, vindimou melhor ainda; durante o Império, tornou-se senhor Grandet. Napoleão não gostava de republicanos: substituiu o senhor  Grandet, que diziam ter usado o barrete vermelho, por um grande proprietário, por um homem que tinha um de[4] no nome, um futuro barão do Império. O senhor Grandet abandonou as honras municipais sem lamentar. Construíra, no interesse da cidade, excelentes estradas que levavam às suas propriedades. Sobre sua casa e seus bens, cadastrados de modo muito vantajoso, incidiam impostos moderados. Depois da classificação de suas diferentes propriedades rurais, suas vinhas, graças aos cuidados constantes, passaram a ser cabeça da região, termo técnico em uso para indicar as vinhas que produzem vinho de primeira qualidade. Poderia ter pleiteado a cruz da Legião de Honra. Tais acontecimentos ocorrem em 1806. O senhor Grandet tinha então 57, e a mulher, cerca de 36. Uma filha única, fruto do legítimo amor dos dois, estava com dez anos. O senhor Grandet – que a Providência provavelmente quis confortar da desgraça administrativa – recebeu naquele ano, sucessivamente, heranças da senhora La Gaudinière[5], nascida La Bertellière[6], mãe da senhora Grandet, e depois do velho senhor La Bertellière, pai da finada; também recebeu herança da senhora Gentillet[7], sua avó materna: três sucessões cujo valor ninguém conheceu. A avareza daqueles três velhos era tão apaixonada que, havia muito, juntavam dinheiro para poder contemplá-lo secretamente. O velho senhor La Bertellière chamava aplicação de prodigalidade, lucrando mais com o aspecto do ouro do que com os juros da usura. A cidade de Saumur, portanto, presumiu o valor das economias pelos rendimentos que vieram à luz. O senhor Grandet recebeu então o novo título de nobreza que nossa mania de igualdade nunca extinguirá: tornou-se o maior contribuinte[8] da região. Explorava cem jeiras de vinhas, que nos anos férteis lhe davam de setecentos a oitocentos barris de vinho. Possuía treze quintas e uma velha abadia, onde, por economia, murou os vãos das janelas, as ogivas e os vitrais[9], o que as conservou; possuía também 127 jeiras de prados, onde cresciam e engrossavam três mil choupos plantados em 1793.

Por fim, a casa onde moravam lhe pertencia. Assim, era possível calcular sua fortuna exterior. No que se refere aos capitais, apenas duas pessoas podiam presumir vagamente seuvalor: uma delas era o senhor Cruchot[10], notário encarregado das aplicações usurárias do senhor Grandet; a outra era o senhor Des Grassins, o banqueiro mais rico de Saumur, de cujos lucros o vinhadeiro participava conveniente e secretamente. Embora dotados da profunda discrição que na província engendra confiança e fortuna, o velho Cruchot e o senhor Des Grassins demonstravam publicamente tanto respeito pelo senhor Grandet que os observadores podiam aquilatar o tamanho dos capitais do ex-prefeito pela dimensão da obsequiosa consideração de que era alvo. Em Saumur não havia quem não estivesse convencido de que o senhor Grandet tinha um tesouro particular, um esconderijo cheio de luíses, de que na calada da noite se entregava aos inefáveis gozos que a visão de tão grande massa de ouro propicia. Os avarentos tinham uma espécie de certeza quando viam os olhos do bom Grandet, aos quais o metal amarelo parecia ter transmitido seus reflexos. O olhar de um homem acostumado a extrair altos juros de seus capitais, tal como o olhar do voluptuoso, do jogador ou do cortesão, adquire, necessariamente, certos hábitos indefiníveis, movimentos furtivos, ávidos, misteriosos, que não escapam a seus correligionários. Essa linguagem secreta constitui, de alguma maneira, a francomaçonaria das paixões. O senhor Grandet, portanto, inspirava a estima respeitosa à qual tinha direito como homem que nunca devia nada a ninguém, como velho toneleiro, velho vinhateiro que adivinhava com precisão de astrônomo quando era preciso fabricar mil barris ou apenas quinhentos para a colheita; que não perdia uma única especulação, sempre tinha tonéis para vender quando um tonel custava mais que a mercadoria que devia conter, podia guardar a vindima nos celeiros e esperar o momento de oferecer um barril por duzentos francos, quando os pequenos proprietários davam o seu por cinco luíses. Sua famosa colheita de 1811, sabiamente armazenada e lentamente vendida, rendera-lhe mais de 240 mil libras. Do ponto de vista financeiro, o senhor Grandet tinha algo de tigre e de jiboia: sabia agachar-se, encolher-se, estudar a presa por muito tempo, dar o bote, para depois abrir a goela da bolsa, engolir uma carga de escudos e deitar-se tranquilamente, como cobra digerindo, impassível, frio, metódico.

Ninguém que o visse passar deixava de sentir um misto de admiração, respeito e terror. Quem em Saumur não havia sentido a laceração polida de suas garras de aço? Para um, Cruchot arranjara o dinheiro necessário à compra de uma propriedade, mas com juros de onze por cento; para outro, Des Grassins descontara umas letras, mas com a subtração de juros tremendos. Não se passavam muitos dias sem que o nome do senhor Grandet fosse pronunciado no mercado ou nas conversas noturnas da cidade. Para algumas pessoas, a fortuna do velho vinhateiro era motivo de orgulho patriótico. Por isso, não eram poucos os negociantes, os hospedeiros que diziam aos estrangeiros, com certa satisfação:

– Cavalheiro, temos aqui duas ou três casas milionárias; mas, quanto ao senhor Grandet, nem ele mesmo conhece a riqueza que tem.

Em 1816, os calculadores mais hábeis de Saumur avaliavam os bens territoriais do bom Grandet em cerca de quatro milhões; mas como, em média, devia ter extraído de suas propriedades cem mil francos por ano, de 1793 a 1817, era de se presumir que possuía em dinheiro uma soma quase igual à de seus imóveis. Por isso, quando, depois de uma partida de bóston ou de alguma conversa sobre vinhas, alguém falava do senhor Grandet, os entendidos diziam:

– O tio Grandet?... O tio Grandet deve ter coisa de cinco a seis milhões.

– O senhor é mais esperto que eu, pois nunca consegui saber o total – respondiam Cruchot ou Des Grassins, quando ouviam a conversa.

E, se algum parisiense falasse de Rothschild ou de Laffite, a gente de Saumur perguntava se eles eram ricos como Grandet. Se o parisiense proferisse, a sorrir, um sim desdenhoso, eles se entreolhavam balançando a cabeça com ar de incredulidade. Tamanha fortuna cobria com um manto de ouro todas as ações daquele homem. Se, de início, alguns pormenores de sua vida haviam dado ensejo ao ridículo e à zombaria, zombaria e ridículo eram coisas do passado. Em seus mínimos atos, Grandet tinha a seu favor a autoridade da coisa julgada. Palavras, roupas, gestos, um piscar de olhos daquele homem eram lei na terra, onde cada um, depois de estudá-lo como um naturalista estuda os efeitos do instinto nos animais, pudera reconhecer a profunda e muda sabedoria de seus mais leves movimentos.

– O inverno vai ser rigoroso – dizia-se –, o tio Grandet vestiu luvas forradas: é bom fazer a vindima.

– O tio Grandet está comprando muitas aduelas; haverá vinho este ano.

Grandet nunca comprava carne e pão. Seus rendeiros lhe levavam todas as semanas provisão suficiente de capões, frangos, ovos, manteiga e trigo. Ele tinha um moinho cujo locatário, além de lhe pagar o aluguel, devia vir retirar certa quantidade de grãos e devolvê-los em forma de farelo e farinha. A Grande Nanon[11], sua única criada, embora já não fosse jovem, amassava o pão da casa pessoalmente todos os sábados. Grandet acertara com seus locatários hortelões que lhe fornecessem verduras. Quanto às frutas, colhia tal quantidade, que vendia boa parte no mercado. A lenha que aquecia sua casa era cortada de suas sebes ou retirada de velhos tocos meio apodrecidos que lhe demarcavam os campos; seus rendeiros a transportavam para a cidade já pronta para o uso, arrumavam-na por cortesia na lareira e recebiam seus agradecimentos. Suas únicas despesas conhecidas eram o pão bento, as roupas da mulher e da filha e o pagamento de assento para as duas na igreja; a luz, o salário de Nanon, a estanhagem das caçarolas; a quitação dos impostos, a manutenção de seus prédios e os custos de exploração de suas plantações. Tinha seiscentas jeiras de bosques recentemente compradas, de cuja vigilância incumbia o guarda de um vizinho, a quem prometia compensação. Feita essa aquisição, começou a comer carne de caça. Os costumes daquele homem eram muito simples. Falava pouco. Geralmente exprimia as ideias com frases curtas, sentenciosas e ditas a meia-voz. Depois da Revolução – período durante o qual atraiu as atenções –, o bom Grandet gaguejava de maneira exasperadora sempre que precisava discorrer por muito tempo ou manter alguma discussão. Essa tartamudez, a incoerência de suas palavras, o fluxo de palavras em que ele afogava seu pensamento, sua aparente falta de lógica, atribuídos à falta de instrução, eram afetados e serão explicados a contento por alguns acontecimentos desta história. Aliás, quatro frases exatas, como se fossem fórmulas algébricas, serviam-lhe para abarcar e resolver todas as dificuldades da vida e do comércio: “não sei, não posso, não quero, vamos ver”. Ele nunca dizia sim nem não, e nunca escrevia. Se alguém lhe falasse, ele ouvia com frieza, sustentando o queixo com a mão direita e apoiando o cotovelo direito no dorso da mão esquerda; em todos os assuntos tinha opiniões das quais não abria mão. Meditava demoradamente os mínimos negócios. Quando, depois de uma conversa séria, algum adversário lhe revelava o segredo de suas pretensões, acreditando que eleestava em suas mãos, ele respondia:

– Não posso fazer nada antes de consultar minha mulher.

Mulher que, reduzida por ele ao hilotismo absoluto, era seu anteparo mais cômodo em negócios. Ele nunca visitava ninguém, não convidava ninguém nem oferecia jantares; nunca fazia barulho e parecia economizar tudo, até movimentos. Não estragava nada em casa alheia por uma questão de respeito à propriedade. No entanto, apesar da voz baixa, apesar do comportamento circunspecto, a linguagem e os hábitos do toneleiro transpareciam mais em casa, quando se continha menos do que em outros lugares. Fisicamente, Grandet media cinco pés[12] , era atarracado, quadrado, com doze polegadas[13] de circunferência nas batatas das pernas, rótulas nodosas e ombros largos; seu rosto era redondo, bronzeado, marcado pela varíola; o queixo era reto, os lábios não tinham sinuosidades, e os dentes eram brancos; seus olhos tinham a expressão calma e devoradora que o povo atribui ao basilisco; à testa, cheia de rugas transversais, não faltavam protuberâncias significativas; os cabelos amarelados e grisalhos eram prata e ouro, como diziam alguns jovens que não sabiam da gravidade de uma brincadeira a respeito do senhor Grandet. O nariz, grosso na ponta, suportava um lobinho que o vulgo – não sem razão – achava bem-malicioso. Era uma figura que anunciava uma fineza perigosa, uma probidade sem calor, o egoísmo de um homem habituado a concentrar os sentimentos no gozo da avareza e no único ser que significava realmente alguma coisa para ele: a filha Eugénie, única herdeira. Atitude, modos, maneiras, tudo nele, aliás, demonstrava a autoconfiança de quem está acostumado a sempre se sair bem no que empreende. Por isso, apesar do jeito aparentemente acessível e solto, o senhor Grandet tinha um caráter de bronze. 

Sempre vestido da mesma maneira, quem o visse hoje o veria tal como fora desde 1791. Usava sapatos reforçados, amarrados com cordões de couro; estava sempre de meias de lã, culote curto de pano grosso marrom com fivelas de prata, colete de veludo com listras amarelas e marrons, bem-abotoado, casaca marrom, larga, de amplas faldas, gravata preta e chapéu de quaker. As luvas, sólidas como as dos gendarmes, duravam vinte meses e, para mantê-las limpas, ele as punha na aba do chapéu, sempre no mesmo lugar, com um gesto metódico. Saumur não sabia nada mais sobre essa personagem.



Notas:

[1]. Henrique IV (1553-1610): protestante, venceu os partidários da Santa Liga católica, em
1589-1590. Morreu assassinado. (N.T.)
[2]. Trata-se da nobreza municipal. (N.T.)
[3]. Aqui Balzac se aproveita de um uso intransitivo do verbo pouvoir, que parece típico da
região. Traduzi por dar porque mais adiante esse mesmo verbo é usado com sentido mais
explícito. Também está indicado com itálico.
[4]. Sinal de nobreza. (N.T.)
[5]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[6]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[7]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[8]. Segundo P.-G. Castex, a administração publicava listas de contribuintes, hierarquicamente classificados em ordem decrescente, segundo o montante dos impostos pagos. Era uma honra estar nos primeiros lugares. Fonte: Sacy, S, Eugénie Grandet. Gallimard Folio Classique, 1972, nota da p. 26. (N.T.)
[9]. Na época, pagava-se imposto sobre o número de janelas e portas. (N.T.)
[10]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[11]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[12]. 1,62 m. (N.T.)
[13]. Cerca de 30 cm. (N.T.)


(Eugenie Grandet; tradução de Yvonne C. Benedetti)


(Ilustração: Le Père Grandet - autor desconhecido)



sábado, 28 de dezembro de 2013

CANÇÃO DO MESTIÇO, de Francisco José Tenreiro





Mestiço

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
– mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei...
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é... 


(Poeta de São Tomé e Príncipe)



(Ilustração: Irma Stern - young madieran wearing a hat)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

CANTIGA DA FAMÍLIA, de John Steinbeck








"Contam na vila a história da grande pérola — encontrada e depois perdida. Falam de Kino, o pescador, de Juana, mulher dele, e do garoto Coyotito. E, tantas vezes foi contada esta história que se gravou na cabeça de todos. E como acontece com todas as histórias repetidas que ficam no coração dos homens, há coisas boas e más, coisas pretas e brancas, bens e males sem nada no meio.”Se esta história é uma parábola, talvez cada um possa tirar dela um sentido pessoal e ver nela a sua vida. De qualquer modo, contam na vila que..."


Kino acordou quase com escuro. As estrelas ainda brilhavam e o dia tinha apenas desenhado uma leve mancha de claridade bem embaixo no céu para os lados do nascente. Os galos já haviam começado a cantar desde algum tempo e os porcos madrugadores já andavam no seu incessante fuçar de galhos e pedaços de pau para ver se alguém havia esquecido alguma coisa de comer. Do lado de fora da cabana de varas entre os cactos, um bando de passarinhos chilreava e batia as asas.

Os olhos de Kino se abriram e ele olhou primeiro para o quadrado que ia clareando e era a porta e, depois, para o berço suspenso onde Coyotito dormia. Por último, voltou acabeça para Juana, sua mulher, que estava deitada ao lado dele na esteira, com o nariz, o peito e as costas cobertos pelo xale azul. Os olhos de Juana também estavam abertos. Kino não se lembrava de uma só vez em que estivessem fechados quando ele acordava. Os olhos negros dela pareciam estrelinhas refletidas. Olhava para ele como sempre olhava quando ele acordava.

Kino ouviu a leve batida das ondas da manhã na praia. Como era bom... Tornou a fechar os olhos para escutar a música dentro dele. Talvez só ele fizesse isso, talvez todos os homens da sua raça também fizessem. Tinham sido em outros tempos grandes fazedores de cantigas, de modo que tudo o que viam, pensavam, faziam ou ouviam virava cantiga. Era assim havia muito, muito tempo. As cantigas haviam ficado e Kino as conhecia, mas não havia cantigas novas. Não era que não houvesse cantigas pessoais. Naquele momento mesmo, havia na cabeça de Kino uma cantiga clara e terna e, se ele pudesse dar voz aos seus pensamentos, iria chamar-lhe a Cantiga da Família.


Tinha o cobertor passado pelo nariz para proteger-se do ar úmido. Voltou os olhos a um farfalhar ao lado dele. Era Juana que se levantava, quase sem fazer barulho. Com os pés fortes descalços, foi até à caixa pendurada onde Coyotito dormia, inclinou-se sobre ele e disse uma palavra tranquilizadora. Coyotito levantou a cabeça um instante, depois fechou os olhos e dormiu de novo. 

Juana foi até ao buraco do fogo, descobriu uma brasa e abanou-a para avivá-la, enquanto quebrava gravetos sobre ela.

Kino então levantou-se e passou a manta pela cabeça, nariz e ombros. Calçou os pés com as sandálias e saiu para ver o dia nascer.

Acocorou-se do lado de fora da porta e juntou as pontas da manta nos joelhos. Viu osfarrapos de nuvens do Golfo que chamejavam no alto. Uma cabra chegou perto, cheirou-o e ficou olhando com os frios olhos amarelos. Atrás dele, o fogo que Juana acendia pegou e a chama dardejou luz através das gretas das paredes de varas, lançando um trêmulo quadrado de luz pela porta a fora. Uma mariposa retardatária entrou agitadamente à procura do fogo. A Cantiga da Família vinha agora de trás de Kino. E o ritmo da cantiga era a pedra de moer onde Juana preparava o milho para o café da manhã.

A manhã já se apressava na claridade, no clarão, na luz e depois numa explosão de fogo quando o sol se levantou do Golfo. Kino baixou os olhos para protegê-los da claridade. Ouvia a batida das broas de milho dentro de casa e o delicioso cheiro que tinham na frigideira. As formigas andavam de um lado para outro pelo chão, umas, grandes e pretas de corpo lustroso, outras, pequenas, pardas e rápidas. Kino viu com o alheamento de um deus uma formiguinha que tentava desesperadamente fugir à armadilha de areia de uma formiga-leão. Um cachorro magro e tímido apareceu e, ao ouvir uma palavra mansa de Kino, se enroscou todo, arrumou a cauda sobre as patas e ali pousou delicadamente a cabeça. Era um cachorro preto com manchas de um amarelo-dourado no lugar onde devia ter as sobrancelhas. Era uma manhã como as outras e ainda assim perfeita entre as manhãs. 

Kino ouviu o ranger da corda quando Juana tirou Coyotito da caixa, lavou-o e colocou-o como numa rede numa dobra do xale que o aconchegava ao seio. Kino podia ver essas coisas sem olhá-las. Juana cantava uma velha cantiga que tinha apenas três notas, mas uma interminável variedade de intervalos. E isso também fazia parte da Cantiga daFamília. Tudo fazia parte. Elevava-se às vezes num emocionante acorde que apertava a garganta, dizendo que ali havia segurança, ali havia calor, ali havia o Todo.

Além da cerca de varas, havia outras cabanas como a sua e delas também a fumaça subia com os barulhos do café, mas essas eram outras cantigas, os porcos eram outros porcos e as mulheres não eram Juana. Kino era moço e forte e os cabelos pretos lhe caíam sobre a testa morena. Os olhos eram quentes, firmes e vivos e o bigode era ralo e áspero. Tirou a manta de cima do nariz, porque o ar negro maligno já havia desaparecido e a luz amarela do sol caía sobre a casa. Perto da cerca, dois galos esticavam o bico um contra o outro e se esquivavam, com as asas abertas e as penas do pescoço arrepiadas. Seria uma luta sem graça. Não eram galos de briga. Kino olhou-os um momento e então voltou os olhos para um bando de pombas do mato que voavam rápidas rumo às montanhas. O mundo já havia acordado e Kino se levantou e entrou em casa.

Quando passou pela porta, Juana estava de pé afastada do braseiro aceso. Tornou a deitar Coyotito na caixa e, depois, penteou os cabelos, negros, dividindo-os em duas trancas, amarrando as pontas com uma fita verde estreita. Kino se agachou perto do braseiro, pegou uma broa quente, enrolou-a, passou-a no molho e comeu. Bebeu depois um pouco de pulque e isso foi o café. Era esse o café que sempre tivera, menos nos dias de festa e num incrível banquete de bolinhos, que quase dera cabo dele. Quando Kino acabou, Juana voltou para junto do fogo e comeu. Tinha falado em outros tempos, mas não há necessidade de falar quando isso não passa de um hábito. Kino deu um suspiro de satisfação — e isso foi a conversa.

O sol estava esquentando a cabana, entrando pelas gretas em longos raios. Um deles caiu sobre a caixa onde Coyotito estava deitado e sobre as cordas que a sustentavam. 

Foi um leve movimento que atraiu os olhos de ambos para a caixa. Kino e Juana ficaram como que paralisados. Pela corda de que o berço do menino estava pendurado do teto descia vagarosamente um escorpião. A cauda com o ferrão estava esticada atrás, mas o bicho era capaz de chicoteá-la num instante.

A respiração de Kino assobiava pelo nariz e ele abriu a boca para acabar com isso. Depois disso, desapareceu-lhe o olhar de espanto e rigidez do corpo. Uma nova música lhe chegava à cabeça, a Cantiga do Mal, a música do inimigo, de qualquer inimigo da família, melodia selvagem, secreta e perigosa no fundo da qual gemia queixosamente a Cantiga da Família.

O escorpião descia lentamente pela corda para o berço. Juana murmurou para dentro um antigo sortilégio para proteger de males daquela espécie e ainda rezou uma ave-maria por entre os dentes cerrados. Mas Kino estava em ação. Moveu o corpo emsilêncio pela casa, suave e quietamente. Tinha as mãos estendidas para a frente com as palmas para baixo e os olhos fixos no escorpião. Embaixo dele, no berço, Coyotito ria e estendia a mão para o bicho. Este pressentiu o perigo quando Kino já estava para alcançá-lo. Parou e levantou a cauda em pequenos arrancos, ao mesmo tempo que o ferrão na ponta da cauda brilhava.

Kino ficou absolutamente imóvel. Ouvia Juana murmurar de novo o velho sortilégio e ouvia a música odiosa do inimigo. Não podia mover-se enquanto o escorpião não se movesse e sentisse a fonte de morte que se aproximava dele. Kino estendeu a mão para a frente lentamente, cuidadosamente. A cauda do ferrão se levantou. E nesse momento Coyotito riu, sacudindo a corda e o escorpião caiu.

A mão de Kino deu um salto para agarrá-lo, mas o bicho lhe passou por entre os dedos,foi cair no ombro do menino, bateu e atacou. Com um rugido, Kino agarrou-o e o reduziu a uma massa nas mãos. Jogou-o no chão de terra e ali bateu-o com os punhos, enquanto Coyotito gritava de dor no berço. Kino bateu e pisou o inimigo até que ele não foi mais do que um fragmento e um ponto molhado na terra. Tinha os dentes arreganhados, os olhos cheios de fúria e nos ouvidos o clamor da Cantiga do Inimigo.

Mas Juana já estava com o menino nos braços. Encontrou o ponto atingido de onde avermelhidão já começava a espalhar-se. Colou os lábios no lugar e sugou com toda a força. Cuspiu e tornou a sugar enquanto Coyotito gritava.

Kino ficou por ali parado. Nada podia fazer e atrapalhava.

Os gritos do menino fizeram aparecer os vizinhos. Derramaram-se das suas cabanas —o irmão de Kino, Juan Tomás, e sua gorda mulher Apolonia com os quatro filhos ficaram na porta obstruindo a entrada, enquanto os outros tentavam olhar e umgarotinho passou por entre as pernas para espiar. E os que estavam na frente deram a notícia aos que estavam atrás...

— Escorpião. O menino foi picado.

Juana parou por um momento de chupar o ferimento. O pequeno orifício estava umpouco alargado e com as bordas brancas de ter sido sugado, mas a inflamação vermelha se estendia ainda mais num duro montículo linfático. Todos ali sabiam do escorpião. Um adulto podia passar mal da ferroada, mas uma criança morria com facilidade do veneno. Sabiam que, primeiro, haveria inchação e febre e um aperto na garganta, depois cólicas no estômago e Coyotito podia morrer se tivesse recebido muito veneno. Mas a dor lancinante da picada estava passando. Os gritos de Coyotito tinham virado gemidos.

Kino costumava espantar-se da energia que havia em sua paciente e frágil mulher. Ela, que era obediente, respeitosa, bem disposta e paciente, sabia dobrar o corpo na hora do parto sem um gemido. Aguentava o cansaço e a fome quase melhor do que o próprio Kino. Na canoa, era como se fosse um homem forte. E fez então uma coisasurpreendente.

— O médico — disse ela. — Vá chamar o médico.

A palavra correu entre os vizinhos amontoados no pequeno quintal dentro da cerca. E repetiam entre si:

— Juana quer o médico.

Era admirável, memorável querer o médico. Consegui-lo seria notável. O médico nunca aparecia naquele punhado de cabanas. Não podia mesmo aparecer pois o tempo dele era pouco para atender os ricos que moravam nas casas de pedra e cal da vila.

— Não virá — disseram os que estavam no quintal.

— Não virá — disseram os que estavam à porta, e o pensamento chegou a Kino.

— O médico não virá — disse ele a Juana.

Ela o encarou, com olhos frios como os de uma leoa. Era o primeiro filho de Juana e quase tudo o que havia no mundo de Juana. Kino viu então a determinação dela e a Música da Família lhe ressoou na cabeça com um acento forte.

— Temos então de ir até ele — disse Juana, e com uma mão arrumou o xale azul na cabeça, fazendo de uma ponta dele uma tipoia para carregar o menino que gemia, enquanto a outra ponta foi estendida sobre a cabeça a fim de proteger-lhe os olhos, daluz. A gente que estava à porta empurrou os que estavam atrás para deixá-la passar. Kino seguiu-a. Saíram do portão para o caminho esburacado e os vizinhos os seguiram.

O caso se tornara um assunto do bairro. Fizeram um cortejo de passos rápidos e macios em direção ao centro da vila. Na frente, iamJuana e Kino e, atrás deles, Juan Tomás e Apolonia, com o grande estômago abalançar-se com a marcha rápida, vindo depois todos os vizinhos com os filhos correndo ao lado. O sol amarelo lhes projetava as sombras escuras à frente, de modo que caminhavam sobre as suas sombras.

Chegaram ao ponto onde as cabanas terminavam e começava a vila de pedra e cal, a vila de muros externos fechados e frescos jardins interiores onde um fio de água cantava e as buganvílias cobriam as paredes de roxo, vermelho e branco. Ouvia-se de dentro dos jardins secretos o canto dos pássaros nas gaiolas e o murmúrio da água fresca nas pedras ardentes. O cortejo atravessou a praça cheia de sol, e passou por diante da igreja. Já havia engrossado e nas franjas os recém-chegados apressados eram informados em voz baixa de que o menino tinha sido picado por um escorpião e que o pai e a mãe o estavam levando para o médico.

E os recém-chegados, especialmente os mendigos do adro da igreja que eram peritos em análises financeiras, olharam rapidamente para a velha saia azul de Juana, viramos rasgões do xale, avaliaram a fita verde das tranças, calcularam a idade do cobertor de Kino e as mil lavagens das suas roupas e os classificaram como gente de pobreza mas foram também para ver que espécie de drama ia acontecer. Os quatro mendigos do adro da igreja sabiam de tudo o que se passava na cidade. Estudavam as expressões das moças quando chegavam para a confissão, olhavam-nas quando saíam e percebiam a natureza do pecado. Estavam a par de todos os pequenos escândalos e de alguns crimes bem grandes. Dormiam nos seus pontos à sombra da igreja, de modo que ninguém chegava ali em busca de consolo sem que eles soubessem. E conheciam o médico. Sabiam da sua ignorância, da sua crueldade, da sua avareza, dos seus apetites, dos seus pecados. Sabiam dos abortos desajeitados que fazia e das pequenas moedas de cobre que dava somiticamente de esmola.Tinham visto os corpos das suas vítimas chegarem à igreja. E como já fora rezada a primeira missa e o movimento estava fraco, seguiram o cortejo, porque eram lutadores incansáveis por um conhecimento perfeito dos seus semelhantes e queriam ver o que era que o médico gordo e preguiçoso ia fazer com um menino indigente picado por um escorpião.

O apressado cortejo chegou afinal ao grande portão no muro da casa do médico. Podia-se ouvir o murmúrio da água, o canto dos pássaros nas gaiolas e o sussurro dasgrandes vassouras sobre as lajes. Podia-se ainda sentir o cheiro do bom toucinho que se fritava na casa do médico.

Kino hesitou um momento. Aquele médico não era da sua raça. Era de uma raça que havia quase quatrocentos anos batia, esfomeava, roubava e desprezava a raça deKino, apavorando-o também de tal modo que era humildemente que o indígena chegava àquela porta. E, como sempre que se aproximava de alguém daquela raça, Kino sentia ao mesmo tempo fraqueza, medo e cólera. A cólera e o terror se juntavam. Podia com mais facilidade matar o médico do que falar com ele, porque todos os homens da raça do médico falavam com todos os homens da raça de Kino como se fossem simples animais. E, quando Kino levantou a mão direita para bater com a argola de ferro no portão, a raiva cresceu dentro dele, a música violenta do inimigo lhe martelou os ouvidos e os lábios se apertaram contra os dentes — mas com a mão esquerda tirou o chapéu. A argola de ferro da aldrava bateu no portão. Kino tirou o chapéu e ficou esperando. Coyotito gemeu um pouco nos braços de Juana e ela falou suavemente com ele. A gente do cortejo chegou mais perto para melhor ver e ouvir.

Um momento depois, o grande portão se abriu alguns centímetros. Kino pôde ver a verde frescura do jardim e a água que caía de uma fonte através do portão entreaberto.O homem que olhava para ele era da sua raça. Kino falou com ele na língua antiga.

— O menino — o primeiro filho — foi envenenado pelo escorpião — disse Kino. 

— Precisa do saber do curador.

O portão se fechou um pouco e o criado não quis falar na velha língua.

— Um momento — disse ele. — Vou falar pessoalmente.

Em seguida, fechou o portão e passou o ferrolho. O sol ofuscante lançava sobre o muro branco as compactas sombras pretas do povo. 

O médico estava sentado na grande cama do seu quarto. Estava vestido com o seu robe de seda vermelho-clara que tinha vindo de Paris e que agora já estava um pouco apertado sobre o peito quando era fechado. Tinha no colo uma bandeja de prata com um bule de prata com chocolate e uma pequena xícara de porcelana fina, tão delicada que era um pouco ridículo levantá-la com a mão grande, pegando na asa com aspontas do polegar e do indicador e esticando para o lado os outros três dedos para não atrapalharem. Os olhos descansavam em bolsas gordas de carne e a boca estava descaída de descontentamento. Estava engordando muito e a voz era rouca da gordura que lhe fazia pressão sobre a garganta. Ao lado dele, na mesinha, havia um pequeno gongo oriental e um vaso com cigarros. A mobília do quarto era pesada, escura e triste.Os quadros eram religiosos, até o grande retrato de sua defunta mulher que, se missas determinadas em testamento e pagas com o dinheiro que ela deixara bastassem para isso, já estava no céu. Em outros tempos, o médico fizera brevemente parte do grande mundo e toda a sua vida posterior se cifrava em recordações e saudades da França. "Aquilo é que era vida civilizada. ..", dizia ele, querendo dizer com isso que com pouco dinheiro conseguira manter uma amante e comer em restaurantes. Serviu outra xícara de chocolate e partiu nos dedos um biscoito. O criado chegou do portão e ficou à porta,esperando que ele o visse.

— Que é? — perguntou o médico.

— É um indiozinho com um menino. Diz que foi picado por um escorpião. 

O médico pousou cuidadosamente a xícara antes de dar vazão à sua raiva.

— Será que eu não tenho mais nada o que fazer senão curar indiozinhos de picadas de insetos? Sou médico e não veterinário!

— Sim, patrão — disse o criado.

— O homem tem dinheiro? — perguntou o médico. — Não, essa gente nunca tem dinheiro. Só eu, só eu no mundo é que tenho de trabalhar de graça... e estou cansado disso. Vá ver se ele tem algum dinheiro!

O criado abriu um pouquinho o portão e olhou para a gente que esperava. Falou dessa vez na antiga língua.

— Tem dinheiro para pagar o tratamento?

Kino estendeu a mão para um lugar secreto debaixo da manta. Tirou um papel dobrado muitas vezes. Abriu o papel dobra a dobra, até que afinal apareceram oito pequenas pérolas defeituosas, feias e cinzentas como pequenas úlceras, chatas e quase sem valor. O criado pegou o papel e tornou a fechar o portão, mas dessa vez não demorou. Abriu o portão apenas o suficiente para devolver o papel.

— O doutor não está — disse ele. — Foi chamado para um caso urgente.

E, com vergonha, fechou rapidamente o portão.Uma onda de vergonha se espalhou então por todo o cortejo. Dispersaram-se todos. Os mendigos voltaram para a escadaria da igreja, os curiosos seguiram o seu caminho e os vizinhos partiram para que a humilhação pública de Kino não lhes ficasse nos olhos. 

Durante muito tempo, Kino ficou parado diante do portão, ao lado de Juana. Colocou lentamente na cabeça o seu chapéu suplicante. De repente, deu um soco arrasador no portão. Ficou muito admirado olhando os nós dos dedos esfolados e o sangue que lhe corria vagarosamente por entre os dedos.




(A Pérola, tradução de Pinheiro de Lemos)



(Ilustração: Peter Fendi - the sad massage)



domingo, 22 de dezembro de 2013

SE ME PERGUNTARES, de Armando Guebuza







Se me perguntares

Quem sou eu

Cavada de bexiga de maldade

Com um sorriso sinistro

Nada te direi

Nada te direi

Mostrar-te-ei as cicatrizes de séculos

Que sulcam as minhas costas negras

Olhar-te-ei com olhos de ódio

Vermelhos de sangue vertido durante séculos

Mostrar-te-ei minha palhota de capim

A cair sem reparação

Levar-te-ei às plantações

Onde sol a sol

Me encontro dobrado sobre o solo

Enquanto trabalho árduo

Mastiga meu tempo

Levar-te-ei aos campos cheios de gente

Onde gente respira miséria em toda a hora

Nada te direi

Mostrar-te-ei somente isto

E depois

Mostrar-te-ei os corpos do meu Povo

Tombados por metralhadoras traiçoeiras,

Palhotas queimadas por gente tua

Nada te direi

E saberá porque luto.



Moçambique, 1977


(Revista HORA DE POESIA, n. 19-20, Barcelona)



(Ilustração: Simon Mungai - favorite-out)



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

OS OLHOS DE CADA UM, de Branquinho da Fonseca









1

Era uma vez um conde
e ia atravessar uma ponte...
Queres que te conte?...


Olha, não há ninguém igual. Cada um tem os seus olhos e, quando se vê uma coisa, cada qual a vê conforme o tamanho e a cor dos seus olhos... Tu sabes lá!... Nem eu ... E a vida também nunca é igual, porque as horas vêm umas atrás das outras. E a terra dá uma volta completa todos os dias.

— Pois dá...

-  Desculpa. . . Já estava a desviar-me. Não era isto que eu queria dizer-te. Queria só contar-te um conto.

...Ouve: — Um dia saiu duma aldeia da Beira Alta um rapaz com tanta certeza no futuro que se meteu num paquete e foi para a África. A África é uma terra desconhecida, com florestas sem fim, cheias de leões, tigres, elefantes e milhões e milhões de outros animais mais pequenos: macacos, aves de cores encarnadas e amarelas; e tudo anda por baixo e por cima das árvores das florestas, como se fosse maravilhoso. Debaixo da terra há minas de ouro, de diamantes, de esmeraldas... A África, por dentro, é feita de pedras preciosas. Quando se faz um buraco, a certa hora e com certa inclinação, vê-se que por baixo é branca e cintilante e por cima os homens são pretos. Ora esse rapaz, que partiu com tanta certeza e tanta força e que se chamava Rodrigo, sabia tudo por uma carta que lhe tinha deixado um tio padre que fora expulso da Igreja, porque acreditava na pedra filosofal e na igualdade de poderes de Deus e do Diabo. Esse velho vivia sempre fechado num quarto, em trabalhos misteriosos, e tinha muitos livros, alguns dos quais eram tão grandes e tão velhos que, quando ele os abria, saíam de dentro deles cobras e pássaros a voar, muito bonitos, vermelhos, azuis e amarelos...

Aquele velho já recebera uma carta quando era pequenino. Depois disso passara toda a vida a estudar e agora escrevera ele uma, quase definitiva. Tinha 100 anos, era magro, alto de olhos brancos, e barbas como Deus nas pinturas. Costumava passear de noite pelos montes, e sentava-se em cima das pedras, a pensar. Era considerado um santo e um louco. Toda a gente tinha medo dele e certeza nas suas palavras, porque nunca tinha dito nada que não viesse a ser verdade.

Um dia, chamou o sobrinho e disse-lhe:

- Meu filho. Nunca te dei conselhos nem nunca te disse: segue este caminho ou segue aquele. Porque é melhor que os conheças todos, e escolhas. Como num dicionário tens todas as palavras, aqui tens todas as forças. (E mostrava um rolo de manuscritos amarelecidos, que estava no fundo duma pequena caixa de ferro.) Abre e escolhe. E tens as explicações. Nada pode falhar; tens a vida que quiseres; tens aqui tudo.

E fechou a caixa com a chave que pôs na mão do sobrinho.

Rodrigo tinha pelo tio uma espécie de terror e de fé inexplicáveis. Saiu com o cofre a tremer-lhe nas mãos, foi fechar-se no quarto e sentiu-se esmagado por uma grande responsabilidade. Acendeu o candeeiro, sentou-se diante da mesa, abriu o cofre, desembrulhou o rolo de papéis e começou a ler. Eram duzentas folhas amarelecidas, escritas numa letra que parecia antiga... Chamava-se: “Carta Verdadeira, como as tábuas de Moisés verdadeira e quebrável, etc...”.
E começou a ler. Ainda teve uma hesitação. Mas continuou. Sentia uma angústia serena.

No silêncio da noite só se ouviam os ratos a roer as arcas, a roer, a rebolarem as batatas pelo sótão da casa. . . De vez em quando pesava um grande silêncio e então parecia que aquele casebre rangia. Depois os ratos começavam outra vez a roer, a roer, e as batatas rebolavam pelo sótão, rebolavam. . . Até que, de repente, Rodrigo levantou-se, e ficou imóvel diante da mesa, com os olhos ainda presos às últimas palavras da carta. Depois olhou a janela: Tinha amanhecido! Em volta dos vidros havia uma leve camada de gelo e sobre o peitoril estava uma pequena ave morta.

Rodrigo foi abrir a vidraça e pegou no pássaro, que parecia de pedra. Saiu do quarto com ele na palma da mão; e as penas, derretendo-se, queimavam-no. Foi ao quintal, abriu uma cova na terra e enterrou-o ali. Voltou para casa, dirigindo-se ao quarto do tio. Abriu a porta e viu-o sentado na cadeira, com a cabeça deitada sobre a mesa, entre os livros. Aproximou-se, com um passo seguro, e tocou-lhe no ombro:

- Já amanheceu.

Mas o tio não acordou. Então abanou-o com mais força e sentiu-lhe o corpo rígido. Estava morto.


2


Arcelo, arcelo
deita o teu cabelo
cá abaixo de repente
quero subir imediatamente


Rodrigo voltou para o quarto e tornou a ler a carta. E nesse dia não comeu nem bebeu, nem falou com ninguém, nem ouvia, quando lhe falavam.

Tinha ordenado as coisas para que o enterro do tio fosse ainda nessa tarde e quase ao pôr-do-sol saiu o funeral. Como muita gente devia favores ao sobrinho, levou um grande acompanhamento. Rodrigo voltou à pressa para casa, meteu a roupa toda na mala, deitou-se sobre a cama, cerrou os olhos para rever os sonhos e no dia seguinte, logo de manhã, partiu a caminho da estação. Atrás ia a criada velha com a mala à cabeça e a enxugar as lágrimas. Rodrigo comprou um bilhete para Lisboa e disse:

- Senhora Marta: todos os bens que meu tio me deixou, deixo-lhos eu agora a si. Aqui, neste papel, está a minha declaração, para não ficar com dúvidas. Chame seus filhos e eles que leiam. Eu vou por esse mundo correr a fortuna. Mande todos os domingos pôr flores brancas na campa de meu tio. É a única coisa que exijo. Veja bem! Flores brancas. Querem dizer: — Nada. Todos os domingos. E os seus filhos e os seus netos ficam com a mesma obrigação. Se não o  fizerem acontece-lhes uma desgraça e eu, se o souber, tiro-lhes as casas e as terras.

A velha ficou pasmada, sem compreender, com a folha de papel na mão, a olhar para Rodrigo, com uma expressão assustada e estúpida. Neste momento chegou o comboio. Rodrigo ia para a África ajuntar uma grande fortuna, porque tinha sido sempre essa a sua ambição e agora sabia como podia fazê-lo e sabia tudo o mais. Naquela carta, que levava no fundo da mala, ensinava-se toda a Verdade do Mundo e da Vida, com mapas, números, pinturas e demonstrações verdadeiras. Ora com toda a Verdade na mão e com toda a ciência de a adaptar à Vida, cada um a aproveita como só sua — e de mais ninguém...

Rodrigo foi para a África, fez um buraco no chão e tirou de lá o que quis. Depois comprou um navio e um palácio em cada cidade do mundo. Mas como a ida a África tinha sido só para disfarçar, porque a carta ensinava a triunfar em qualquer sítio, Rodrigo abandonou o tal buraco da África e começou a viajar como um Imperador, sem ninguém se admirar: porque ele era o homem mais rico do mundo, o tal que tinha ido a África e encontrara uma mina de ouro, diamantes, esmeraldas, safiras. Uma mina sem fim!... (Porém, quando um dia souberam que tinha abandonado a mina, foram muitas pessoas procurá-la; e quando a encontraram não viram senão um buraco pequeno donde saiu um leão, que comeu toda a gente menos um, o qual depois ainda foi ver o buraco e viu que era só de terra e lama do leão fazer xixi. Esse pobre homem não lera a carta dum tio filósofo. Não tinha a chave... também tinha só idéias atingíveis, como Rodrigo, mas andava no mundo ao acaso, sem a chave, e com uma verdade que era de toda a gente.)


3


Sol forte:
-prá eira é vida,
- prá horta é morte.


Um dia, no reino de Inglaterra, Rodrigo viu a mulher mais bela do mundo. Desejou-a e logo ela se apaixonou por ele e lhe pertenceu. Rodrigo trouxe-a para Portugal e viveram muito felizes.

Da sua união com a mulher mais bela do mundo nasceu um filho que se chamou Pedro, e era belo como um príncipe do tempo em que os animais falavam. Pedro cresceu e era, cada vez mais, a maior vaidade de seu Pai e de sua Mãe. Passava os dias a cantar e a tocar viola, ou deitado nos braços de todas as amantes que queria ter. Era um poeta... Quando se cansava da beleza das amantes, ou da música das cantigas, ia para os montes caçar ou para a biblioteca ler, e lá passava todo o dia. Até que o pai começou a notar que ele se dedicava muito ao estudo, que tinha uma inteligência sutil, idéias como os grandes gênios, enfim, que havia de ser um homem extraordinário. Então, vendo que já chegara o dia do filho poder triunfar sem parecer sobrenatural, foi a uma caixa de ferro onde tinha guardado a carta e, chamando-o disse-lhe:

— Pedro. Esta carta te ensinará a Verdade da Vida, com todas as suas Forças postas ao teu alcance. Tudo bem simples. . . Podes conseguir tudo e seres tudo o que quiseres.

Pedro ficou a olhar para o pai, com uma expressão sorridente e irônica.
Ao sair desembrulhou a carta e começou a ler enquanto caminhava pelo corredor abaixo. E parou. E voltou para trás. Foi para o quarto de dormir, fechou a porta à chave, e começou, serenamente, a ler tudo desde o princípio. Pela janela entrava uma noite muito calma, com estrelas e luar. Ouviam-se as rãs a coaxar e a água a cair no tanque do jardim. Pedro, imóvel, sentado diante daqueles papéis amarelos, com o olhar parado, lia.

Durante toda a noite leu, e tornou a ler.

E leu ainda mais uma vez...

Por fim deixou cair a cabeça sobre os papéis. E não quis nada, nem morrer. Morreu.


A certidão está em Tondela
Quem quiser vá lá por ela.


(Ilustração: Cézanne - Jeune Homme à Tete De Mort)