terça-feira, 31 de dezembro de 2013

FISIONOMIAS BURGUESAS, de Honoré de Balzac







Em certas cidades da província existem casas cujo aspecto inspira melancolia igual à provocada por claustros sombrios, charnecas desoladas ou ruínas tristonhas. Em tais casas talvez  haja ao mesmo tempo o silêncio do claustro, a aridez das charnecas e os esqueletos das ruínas. Nelas, a vida e o movimento são tão tranquilos que um estrangeiro as acreditaria desabitadas, caso não deparasse de súbito com o olhar mortiço e frio de alguma pessoa imóvel, vulto quase monástico, a apontar na janela, sempre que ecoe o ruído de passos desconhecidos. Esses traços de melancolia existem na fisionomia de uma casa situada em Saumur, no fim da rua montuosa que leva ao castelo, na parte alta da cidade. Aquela rua, agora pouco frequentada, quente no verão, fria no inverno, escura em alguns pontos, é notável pela sonoridade do empedrado miúdo do calçamento, sempre limpo e seco, pela estreiteza do leito tortuoso, pela paz das casas pertencentes à cidade antiga, dominada por muralhas. 

Habitações de três séculos lá estão ainda sólidas, embora feitas de madeira, e a diversidade dos seus aspectos contribui para a originalidade que torna aquela parte de Saumur digna da atenção de arqueólogos e artistas. É difícil passar pela frente daquelas casas sem admirar as enormes vigas de madeira com estranhas figuras talhadas nas extremidades a coroarem com um baixo-relevo negro o pavimento térreo da maioria delas. Aqui, travessas de madeira são cobertas de ardósia e desenham linhas azuis por sobre os frágeis muros de alguma casa arrematada por um teto de madeirame aparente, empenado pelos anos, com tábuas apodrecidas e entortadas pela alternância de chuva e sol. Acolá se veem sacadas desgastadas, enegrecidas, com delicadas esculturas que mal se enxergam, parecendo leves demais para o vaso de argila castanha do qual se projetam os cravos e as rosas de alguma operária pobre. Mais adiante, portas guarnecidas de tachões enormes, onde o gênio de nossos ancestrais traçou hieróglifos domésticos cujo sentido nunca se conhecerá. Nesta, algum protestante deixou a marca de sua fé; naquela, algum partidário da Santa Liga amaldiçoou Henrique IV[1]. Em outra, algum burguês gravou as insígnias de sua nobreza de campanário[2], a glória de esquecida almotaçaria. A história da França está lá, inteira. Ao lado da casa precária de alvenaria grosseira, onde o artesão divinizou sua plaina, eleva-se o palacete de algum fidalgo, e sobre o arco de pedra de sua porta ainda se veem vestígios de brasões avariados pelas muitas revoluções que agitaram o país a partir de 1789. Naquela rua, o comércio do andar térreo não é composto de lojas ou armazéns: ali, os amantes da Idade Média encontrariam a oficina de nossos ancestrais em toda a sua cândida simplicidade. Aquelas salas baixas, sem fachada, vitrina ou vidraça, são fundas, escuras e sem ornamentos externos ou internos. A porta se abre em duas partes, guarnecidas de ferros grosseiros; a parte superior se dobra para dentro, enquanto a inferior, munida de uma sineta com mola, vai e vem  constantemente. O ar e a luz entram naquela espécie de antro úmido por cima da porta ou pelo espaço que fica entre a abóbada, o teto e a mureta de meia altura na qual se encaixam janelas sólidas, retiradas pela manhã e recolocadas à noite, com chapas de ferro atarraxadas. A mureta serve para que o negociante exponha as mercadorias. E nada de charlatanismo. De acordo com a natureza do comércio, as amostras consistem em duas ou três tinas de sal e bacalhau, alguns rolos de lona, cordas, latões pendentes dos caibros do teto, aros encostados às paredes, ou algumas peças de tecido em prateleiras.

Entremos. Uma moça asseada, irradiando juventude, de xale branco e braços rosados, larga o tricô e chama o pai ou a mãe, que vêm e nos vendem o que quisermos, com fleuma, complacência ou arrogância, conforme seu caráter, quer se trate de dois soldos, quer de mil francos de mercadoria. Veremos um comerciante de tábuas de carvalho sentado à porta, a girar os polegaresenquanto conversa com um vizinho: aparentemente, só possui tábuas ruins para garrafeiras ou duas ou três braçadas de ripas, mas, no porto, o seu entreposto abarrotado abastece todos os toneleiros de Anjou; sem errar uma aduela, ele sabe quantos tonéis vai dar[3], se a colheita for boa; uma estiada o enriquece, uma pancada de chuva o arruína numa única manhã, e os barris podem valer onze francos ou cair para seis libras. Naquela terra, tal como em Touraine, as vicissitudes da atmosfera dominam a vida comercial. Vinhateiros, proprietários, comerciantes de madeira, toneleiros, hospedeiros, barqueiros, todos estão à espreita de um raio de sol; à noite, quando se deitam, tremem ao pensar que, na manhã seguinte, poderão ficar sabendo que à noite geou; temem a chuva, o vento e a seca; querem água, calor e nuvens a gosto. Há um duelo constante entre o céu e os interesses terrenos. O barômetro ora entristece, ora sossega, ora alegra as fisionomias. De uma ponta à outra da rua, da antiga rua principal de Saumur, as palavras “Viva o tempo de ouro!” são o código que corre de porta em porta. E cada um responde ao vizinho: “Chovem luíses”, sabendo o que um raio de sol, o que uma chuva oportuna lhes trazem. Nos sábados de primavera, mais ou menos ao meio-dia, ninguém consegue nem mesmo um soldo de mercadoria daquela gente industriosa. Cada um tem sua vinha, sua granja, e vai passar dois dias no campo. Ali, como tudo está previsto – compra, venda, lucro –, os comerciantes empregam dez das doze horas do dia em passatempos, observações, comentários, espionagens contínuas. Nenhuma dona de casa compra uma perdiz sem que os vizinhos perguntem ao marido se ela estava no ponto. Nenhuma moça põe a cabeça para fora da janela sem ser vista por todos os grupos de ociosos. Ali, pois, as consciências estão às claras, assim como aquelas casas impenetráveis, negras e silenciosas não têm mistérios.

A vida quase sempre se passa ao ar livre: cada família se senta à porta para almoçar, jantar, brigar. Ninguém que passe pela rua deixa de ser estudado. Por isso, antigamente, quando um estrangeiro chegava a uma cidade da província, era ridicularizado de porta em porta. Essa é a origem das boas histórias, do apelido de remendadores dado aos habitantes de Angers, que se esmeravam nessas pilhérias urbanas. Os antigos palacetes da cidade velha situam-se no alto daquela rua outrora habitada pelos fidalgos da terra. A casa melancólica onde se deram os acontecimentos aqui narrados era precisamente um daqueles edifícios, restos veneráveis de um século no qual as coisas e os homens tinham a simplicidade que os costumes franceses vão perdendo dia a dia. Depois de seguirmos as curvas daquele caminho pitoresco, em que cada pequeno acidente desperta lembranças, em que a impressão geral tem o efeito de fazer mergulhar numa espécie de devaneio maquinal, distinguimos uma reentrância escura, em cujo centro se esconde a porta da casa do senhor Grandet. É impossível entender o valor dessa expressão provincial sem apresentar a biografia do senhor Grandet.

Em Saumur, o senhor Grandet gozava de uma reputação cujos motivos e efeitos não serão inteiramente entendidos por quem não tenha vivido na província, mesmo que por pouco tempo. O senhor Grandet, também chamado de tio Grandet por algumas pessoas – mas o número desses velhos diminuía sensivelmente –, em 1789 era um mestre toneleiro bastante remediado, que sabia ler, escrever e contar. Assim que a República Francesa pôs à venda os bens do clero na circunscrição de Saumur, o toneleiro, que então tinha quarenta anos, acabava de se casar com a filha de um rico comerciante de aduelas. Munido de sua fortuna líquida e do dote, munido de dois mil luíses de ouro, Grandet foi então ao distrito, onde, graças aos duzentos luíses dobrados oferecidos pelo sogro ao feroz republicano que supervisionava a venda dos domínios nacionais, recebeu por um naco de pão, legalmente, se não legitimamente, as mais belas vinhas dos arredores, uma velha abadia e algumas quintas. Os habitantes de Saumur eram pouco revolucionários, e o tio Grandet foi visto como um homem audacioso, um republicano, um patriota, um espírito dado às novas ideias, embora na verdade o toneleiro fosse dado mesmo às suas vinhas. Foi nomeado membro da administração do distrito de Saumur, e sua influência incontestável se fez sentir em termos políticos e comerciais. Politicamente, protegeu os nobres depostos e impediu com todas as forças a venda dos bens dos emigrados; comercialmente, forneceu aos exércitos republicanos mil ou dois mil barris de vinho branco, pelo que recebeu soberbos prados pertencentes a uma comunidade de religiosas, reservada como um último lote. 

Durante o Consulado, o bom Grandet tornou-se prefeito, administrou bem, vindimou melhor ainda; durante o Império, tornou-se senhor Grandet. Napoleão não gostava de republicanos: substituiu o senhor  Grandet, que diziam ter usado o barrete vermelho, por um grande proprietário, por um homem que tinha um de[4] no nome, um futuro barão do Império. O senhor Grandet abandonou as honras municipais sem lamentar. Construíra, no interesse da cidade, excelentes estradas que levavam às suas propriedades. Sobre sua casa e seus bens, cadastrados de modo muito vantajoso, incidiam impostos moderados. Depois da classificação de suas diferentes propriedades rurais, suas vinhas, graças aos cuidados constantes, passaram a ser cabeça da região, termo técnico em uso para indicar as vinhas que produzem vinho de primeira qualidade. Poderia ter pleiteado a cruz da Legião de Honra. Tais acontecimentos ocorrem em 1806. O senhor Grandet tinha então 57, e a mulher, cerca de 36. Uma filha única, fruto do legítimo amor dos dois, estava com dez anos. O senhor Grandet – que a Providência provavelmente quis confortar da desgraça administrativa – recebeu naquele ano, sucessivamente, heranças da senhora La Gaudinière[5], nascida La Bertellière[6], mãe da senhora Grandet, e depois do velho senhor La Bertellière, pai da finada; também recebeu herança da senhora Gentillet[7], sua avó materna: três sucessões cujo valor ninguém conheceu. A avareza daqueles três velhos era tão apaixonada que, havia muito, juntavam dinheiro para poder contemplá-lo secretamente. O velho senhor La Bertellière chamava aplicação de prodigalidade, lucrando mais com o aspecto do ouro do que com os juros da usura. A cidade de Saumur, portanto, presumiu o valor das economias pelos rendimentos que vieram à luz. O senhor Grandet recebeu então o novo título de nobreza que nossa mania de igualdade nunca extinguirá: tornou-se o maior contribuinte[8] da região. Explorava cem jeiras de vinhas, que nos anos férteis lhe davam de setecentos a oitocentos barris de vinho. Possuía treze quintas e uma velha abadia, onde, por economia, murou os vãos das janelas, as ogivas e os vitrais[9], o que as conservou; possuía também 127 jeiras de prados, onde cresciam e engrossavam três mil choupos plantados em 1793.

Por fim, a casa onde moravam lhe pertencia. Assim, era possível calcular sua fortuna exterior. No que se refere aos capitais, apenas duas pessoas podiam presumir vagamente seuvalor: uma delas era o senhor Cruchot[10], notário encarregado das aplicações usurárias do senhor Grandet; a outra era o senhor Des Grassins, o banqueiro mais rico de Saumur, de cujos lucros o vinhadeiro participava conveniente e secretamente. Embora dotados da profunda discrição que na província engendra confiança e fortuna, o velho Cruchot e o senhor Des Grassins demonstravam publicamente tanto respeito pelo senhor Grandet que os observadores podiam aquilatar o tamanho dos capitais do ex-prefeito pela dimensão da obsequiosa consideração de que era alvo. Em Saumur não havia quem não estivesse convencido de que o senhor Grandet tinha um tesouro particular, um esconderijo cheio de luíses, de que na calada da noite se entregava aos inefáveis gozos que a visão de tão grande massa de ouro propicia. Os avarentos tinham uma espécie de certeza quando viam os olhos do bom Grandet, aos quais o metal amarelo parecia ter transmitido seus reflexos. O olhar de um homem acostumado a extrair altos juros de seus capitais, tal como o olhar do voluptuoso, do jogador ou do cortesão, adquire, necessariamente, certos hábitos indefiníveis, movimentos furtivos, ávidos, misteriosos, que não escapam a seus correligionários. Essa linguagem secreta constitui, de alguma maneira, a francomaçonaria das paixões. O senhor Grandet, portanto, inspirava a estima respeitosa à qual tinha direito como homem que nunca devia nada a ninguém, como velho toneleiro, velho vinhateiro que adivinhava com precisão de astrônomo quando era preciso fabricar mil barris ou apenas quinhentos para a colheita; que não perdia uma única especulação, sempre tinha tonéis para vender quando um tonel custava mais que a mercadoria que devia conter, podia guardar a vindima nos celeiros e esperar o momento de oferecer um barril por duzentos francos, quando os pequenos proprietários davam o seu por cinco luíses. Sua famosa colheita de 1811, sabiamente armazenada e lentamente vendida, rendera-lhe mais de 240 mil libras. Do ponto de vista financeiro, o senhor Grandet tinha algo de tigre e de jiboia: sabia agachar-se, encolher-se, estudar a presa por muito tempo, dar o bote, para depois abrir a goela da bolsa, engolir uma carga de escudos e deitar-se tranquilamente, como cobra digerindo, impassível, frio, metódico.

Ninguém que o visse passar deixava de sentir um misto de admiração, respeito e terror. Quem em Saumur não havia sentido a laceração polida de suas garras de aço? Para um, Cruchot arranjara o dinheiro necessário à compra de uma propriedade, mas com juros de onze por cento; para outro, Des Grassins descontara umas letras, mas com a subtração de juros tremendos. Não se passavam muitos dias sem que o nome do senhor Grandet fosse pronunciado no mercado ou nas conversas noturnas da cidade. Para algumas pessoas, a fortuna do velho vinhateiro era motivo de orgulho patriótico. Por isso, não eram poucos os negociantes, os hospedeiros que diziam aos estrangeiros, com certa satisfação:

– Cavalheiro, temos aqui duas ou três casas milionárias; mas, quanto ao senhor Grandet, nem ele mesmo conhece a riqueza que tem.

Em 1816, os calculadores mais hábeis de Saumur avaliavam os bens territoriais do bom Grandet em cerca de quatro milhões; mas como, em média, devia ter extraído de suas propriedades cem mil francos por ano, de 1793 a 1817, era de se presumir que possuía em dinheiro uma soma quase igual à de seus imóveis. Por isso, quando, depois de uma partida de bóston ou de alguma conversa sobre vinhas, alguém falava do senhor Grandet, os entendidos diziam:

– O tio Grandet?... O tio Grandet deve ter coisa de cinco a seis milhões.

– O senhor é mais esperto que eu, pois nunca consegui saber o total – respondiam Cruchot ou Des Grassins, quando ouviam a conversa.

E, se algum parisiense falasse de Rothschild ou de Laffite, a gente de Saumur perguntava se eles eram ricos como Grandet. Se o parisiense proferisse, a sorrir, um sim desdenhoso, eles se entreolhavam balançando a cabeça com ar de incredulidade. Tamanha fortuna cobria com um manto de ouro todas as ações daquele homem. Se, de início, alguns pormenores de sua vida haviam dado ensejo ao ridículo e à zombaria, zombaria e ridículo eram coisas do passado. Em seus mínimos atos, Grandet tinha a seu favor a autoridade da coisa julgada. Palavras, roupas, gestos, um piscar de olhos daquele homem eram lei na terra, onde cada um, depois de estudá-lo como um naturalista estuda os efeitos do instinto nos animais, pudera reconhecer a profunda e muda sabedoria de seus mais leves movimentos.

– O inverno vai ser rigoroso – dizia-se –, o tio Grandet vestiu luvas forradas: é bom fazer a vindima.

– O tio Grandet está comprando muitas aduelas; haverá vinho este ano.

Grandet nunca comprava carne e pão. Seus rendeiros lhe levavam todas as semanas provisão suficiente de capões, frangos, ovos, manteiga e trigo. Ele tinha um moinho cujo locatário, além de lhe pagar o aluguel, devia vir retirar certa quantidade de grãos e devolvê-los em forma de farelo e farinha. A Grande Nanon[11], sua única criada, embora já não fosse jovem, amassava o pão da casa pessoalmente todos os sábados. Grandet acertara com seus locatários hortelões que lhe fornecessem verduras. Quanto às frutas, colhia tal quantidade, que vendia boa parte no mercado. A lenha que aquecia sua casa era cortada de suas sebes ou retirada de velhos tocos meio apodrecidos que lhe demarcavam os campos; seus rendeiros a transportavam para a cidade já pronta para o uso, arrumavam-na por cortesia na lareira e recebiam seus agradecimentos. Suas únicas despesas conhecidas eram o pão bento, as roupas da mulher e da filha e o pagamento de assento para as duas na igreja; a luz, o salário de Nanon, a estanhagem das caçarolas; a quitação dos impostos, a manutenção de seus prédios e os custos de exploração de suas plantações. Tinha seiscentas jeiras de bosques recentemente compradas, de cuja vigilância incumbia o guarda de um vizinho, a quem prometia compensação. Feita essa aquisição, começou a comer carne de caça. Os costumes daquele homem eram muito simples. Falava pouco. Geralmente exprimia as ideias com frases curtas, sentenciosas e ditas a meia-voz. Depois da Revolução – período durante o qual atraiu as atenções –, o bom Grandet gaguejava de maneira exasperadora sempre que precisava discorrer por muito tempo ou manter alguma discussão. Essa tartamudez, a incoerência de suas palavras, o fluxo de palavras em que ele afogava seu pensamento, sua aparente falta de lógica, atribuídos à falta de instrução, eram afetados e serão explicados a contento por alguns acontecimentos desta história. Aliás, quatro frases exatas, como se fossem fórmulas algébricas, serviam-lhe para abarcar e resolver todas as dificuldades da vida e do comércio: “não sei, não posso, não quero, vamos ver”. Ele nunca dizia sim nem não, e nunca escrevia. Se alguém lhe falasse, ele ouvia com frieza, sustentando o queixo com a mão direita e apoiando o cotovelo direito no dorso da mão esquerda; em todos os assuntos tinha opiniões das quais não abria mão. Meditava demoradamente os mínimos negócios. Quando, depois de uma conversa séria, algum adversário lhe revelava o segredo de suas pretensões, acreditando que eleestava em suas mãos, ele respondia:

– Não posso fazer nada antes de consultar minha mulher.

Mulher que, reduzida por ele ao hilotismo absoluto, era seu anteparo mais cômodo em negócios. Ele nunca visitava ninguém, não convidava ninguém nem oferecia jantares; nunca fazia barulho e parecia economizar tudo, até movimentos. Não estragava nada em casa alheia por uma questão de respeito à propriedade. No entanto, apesar da voz baixa, apesar do comportamento circunspecto, a linguagem e os hábitos do toneleiro transpareciam mais em casa, quando se continha menos do que em outros lugares. Fisicamente, Grandet media cinco pés[12] , era atarracado, quadrado, com doze polegadas[13] de circunferência nas batatas das pernas, rótulas nodosas e ombros largos; seu rosto era redondo, bronzeado, marcado pela varíola; o queixo era reto, os lábios não tinham sinuosidades, e os dentes eram brancos; seus olhos tinham a expressão calma e devoradora que o povo atribui ao basilisco; à testa, cheia de rugas transversais, não faltavam protuberâncias significativas; os cabelos amarelados e grisalhos eram prata e ouro, como diziam alguns jovens que não sabiam da gravidade de uma brincadeira a respeito do senhor Grandet. O nariz, grosso na ponta, suportava um lobinho que o vulgo – não sem razão – achava bem-malicioso. Era uma figura que anunciava uma fineza perigosa, uma probidade sem calor, o egoísmo de um homem habituado a concentrar os sentimentos no gozo da avareza e no único ser que significava realmente alguma coisa para ele: a filha Eugénie, única herdeira. Atitude, modos, maneiras, tudo nele, aliás, demonstrava a autoconfiança de quem está acostumado a sempre se sair bem no que empreende. Por isso, apesar do jeito aparentemente acessível e solto, o senhor Grandet tinha um caráter de bronze. 

Sempre vestido da mesma maneira, quem o visse hoje o veria tal como fora desde 1791. Usava sapatos reforçados, amarrados com cordões de couro; estava sempre de meias de lã, culote curto de pano grosso marrom com fivelas de prata, colete de veludo com listras amarelas e marrons, bem-abotoado, casaca marrom, larga, de amplas faldas, gravata preta e chapéu de quaker. As luvas, sólidas como as dos gendarmes, duravam vinte meses e, para mantê-las limpas, ele as punha na aba do chapéu, sempre no mesmo lugar, com um gesto metódico. Saumur não sabia nada mais sobre essa personagem.



Notas:

[1]. Henrique IV (1553-1610): protestante, venceu os partidários da Santa Liga católica, em
1589-1590. Morreu assassinado. (N.T.)
[2]. Trata-se da nobreza municipal. (N.T.)
[3]. Aqui Balzac se aproveita de um uso intransitivo do verbo pouvoir, que parece típico da
região. Traduzi por dar porque mais adiante esse mesmo verbo é usado com sentido mais
explícito. Também está indicado com itálico.
[4]. Sinal de nobreza. (N.T.)
[5]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[6]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[7]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[8]. Segundo P.-G. Castex, a administração publicava listas de contribuintes, hierarquicamente classificados em ordem decrescente, segundo o montante dos impostos pagos. Era uma honra estar nos primeiros lugares. Fonte: Sacy, S, Eugénie Grandet. Gallimard Folio Classique, 1972, nota da p. 26. (N.T.)
[9]. Na época, pagava-se imposto sobre o número de janelas e portas. (N.T.)
[10]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[11]. Personagem fictícia de A comédia humana. (N.E.)
[12]. 1,62 m. (N.T.)
[13]. Cerca de 30 cm. (N.T.)


(Eugenie Grandet; tradução de Yvonne C. Benedetti)


(Ilustração: Le Père Grandet - autor desconhecido)



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