quinta-feira, 30 de novembro de 2017

ULRICA, de Jorge Luis Borges



  


"Hann tekr sverthit Gram okk / legger i methal theira bert"(*)




Völsunga Saga, 27



Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa.

Os fatos ocorreram faz muito pouco, porém sei que o hábito literário é assim mesmo, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar o meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez não venha a sabê-lo nunca) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às Cinco Irmãs de York, esses vitrais puros de toda imagem que os iconoclastas de Cromwell respeitaram, porém o fato é que nos conhecemos na salinha do Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma bebida e ela recusou.

- Sou feminista – disse. – Não quero arremedar os homens. Desagradam-me seu tabaco e seu álcool.

A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que a frase não era característica sua, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.

Referiu que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era norueguesa. 

Um dos presentes comentou: 

- Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.

- É verdade – disse ela. - A Inglaterra foi nossa e a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode ser perdido.

Foi então que a olhei. Um verso de William Blake fala de moças de suave prata ou de furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. 

Era leve e alta, de traços afilados e olhos cinzentos. Menos que seu rosto me impressionou seu ar de tranquilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia afastá-la. Vestia-se de negro, o que é raro em terras do Norte, que tratam de alegrar com cores o apagado do ambiente. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas descobri pouco a pouco. 

Apresentaram-nos. Disse-lhe que era professor na Universidade dos Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano.

Perguntou-me de um modo pensativo:

- O que é ser colombiano?

- Não sei - respondi. - É um ato de fé.

- Como ser norueguesa - assentiu.

Nada mais posso recordar do que se disse essa noite. No dia seguinte desci cedo para a sala de jantar. Pelos cristais vi que havia nevado; os páramos se perdiam na manhã. Não havia ninguém mais. Ulrica me convidou para sua mesa. Disse-me que gostava de sair a caminhar sozinha.

Lembrei um chiste de Schopenhauer e respondi: 

- A mim também. Podemos sair juntos os dois.

Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. Não havia uma alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não teria desejado a meu lado nenhuma outra pessoa. 

Ouvi subitamente o distante uivo de um lobo. 

Nunca ouvi um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Daí a pouco disse como se pensasse em voz alta: 

- As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo.

Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, essa tarde, prosseguiria a viagem em direção a Londres; eu, para Edimburgo.

- Em Oxford Street - me disse - repetirei os passos de De Quincey, que buscava a sua Ana perdida entre as multidões de Londres.

- De Quincey - respondi - deixou de buscá-la. Eu, ao longo do tempo, continuo a buscá-la.

- Talvez - disse em voz baixa - a tenhas encontrado.

Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e beijei-lhe a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e logo declarou:

- Serei tua na pousada de Thorgate. Peço-te, enquanto isto, que não me toques. É melhor que assim seja.

Para um celibatário entrado em anos o amor oferecido é um dom que já não se espera. O milagre tem direito a impor condições. Pensei em minha mocidade de Popayan e em uma moça do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.

Não incorri no erro de lhe perguntar se me queria. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, talvez a derradeira para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e resoluta discípula de Ibsen.

De mãos dadas seguimos. 

- Tudo isto é como um sonho - disse eu - e eu nunca sonho.

- Como aquele rei - replicou Ulrica - que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir em uma pocilga.

Acrescentou em seguida:

- Ouve bem. Um pássaro está por cantar.

Pouco depois ouvimos o canto.

- Nestas terras - disse - pensam que quem está para morrer prevê o futuro.

- E eu estou para morrer - disse ela.

Olhei-a atônito.

- Cortemos pelo bosque – instei-a. - Chegaremos mais rápido a Thorgate.

- O bosque é perigoso - replicou.

Seguimos pelos paramos.

- Eu queria que esse momento durasse para sempre - murmurei.

- Sempre é uma palavra que não é permitida aos homens - afirmou Ulrica e, para minorar a ênfase, pediu-me que lhe repetisse meu nome que não ouvira bem.

- Javier Otárola – disse-lhe.

- Quis repeti-lo e não pôde. Fracassei, igualmente, com o nome de Ulrikke.

- Vou te chamar Sigurd - declarou com um sorriso.

- Se sou Sigurd – repliquei - tu serás Brynhild.

Havia atrasado o passo. 

- Conheces a saga? – perguntei-lhe.

- Naturalmente - disse. - A trágica história que os alemães desperdiçaram com seus tardios Nibelungos.

Não quis discutir e respondi:

- Brynhild, caminhas como se quisesses que entre nós houvesse uma espada.

Estávamos de repente diante da pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn. 

Do alto da escada, Ulrica me gritou:

- Ouviste o lobo? Já não há lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Ao subir ao andar de cima, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, com um vermelho muito profundo, com pássaros e frutos entrelaçados. Ulrica entrou primeiro. O aposento obscuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava em um vago cristal e a caoba polida me recordou o espelho da Escritura. Ulrica já se havia despido. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não havia móveis nem espelhos. Não havia uma espada entre nós. Como a areia, se ia o tempo. Secular na sombra fluiu o amor e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.



(*) "Ele pegou sua espada, Gram, e colocou entre eles dois o aço nu."



(O livro de areia; tradução de Lígia Morrone Averbuck)




(Ilustração: foto - lápide do túmulo de Jorge Luis Borges)



segunda-feira, 27 de novembro de 2017

POEZJA NIE ZAWSZE... / A POESIA NEM SEMPRE…,de Tadeusz Różewicz








poezja nie zawsze

przybiera formę

wiersza



po pięćdziesięciu latach

pisania

poezja

może się objawić

poecie

w kształcie drzewa

odlatującego

ptaka

światła



przybiera kształt

ust

gnieździ się w milczeniu



albo żyje w poecie

pozbawiona formy i treści



Tradução de Jorge Sousa Braga:


a poesia nem sempre

adopta a forma

de um poema



depois de cinquenta anos

a escrever

a poesia

pode apresentar-se

ao poeta

na forma de uma árvore

de um pássaro

que voa

de luz



adopta a forma

de uma boca

refugia-se no silêncio



ou vive no poeta

livre de forma e de conteúdo





(Ilustração: Joan Snyder - Ah Sunflower, 1994-95)



sexta-feira, 24 de novembro de 2017

OZYMANDIAS, de Luis Fernando Veríssimo






No filme do Woody Allen “Para Roma, com amor”, dois personagens dizem estar sofrendo de Melancolia Ozymandias. O termo foi inventado pelo próprio Woody Allen para seu personagem num dos seus filmes mais subestimados, “Stardust memories”, sua versão do “8 e meio” do Fellini.

A referência é a um famoso poema de Percy Shelley, escrito no século dezenove, que fala da descoberta de uma estátua colossal com a seguinte inscrição na base: “Meu nome é Ozymandias, Rei dos Reis. Contemplem a minha obra, ó poderosos, e desesperem.” Mas em torno da estátua não há vestígio de obra alguma, há só um deserto até o horizonte.

O Ozymandias de Shelley adverte contra a vaidade e a soberba e lembra que tudo no mundo é transitório, incluindo o poder e a glória. A melancolia que leva seu nome vem da constatação da precariedade da vida, do amor e das nossas obras, que mesmo não sendo ozymândicas mereceriam — pelo menos na nossa opinião — resistir aos séculos. Tudo passa, nos diz o poema. No fim, de um jeito ou de outro, sempre vence o deserto.

Com sua preocupação constante com a morte, o Woody Allen não deve estar brincando quando se atribui a tal melancolia. Sua obra talvez dure mais do que a de Ozymandias, de cujo império nunca mais se ouviu falar — apesar da especulação de que “Ozymandias” seria o nome grego do faraó Ramsés II — principalmente agora que a estocagem digitalizada de filmes e fitas os tornou praticamente eternos.

Mas Allen não deve encontrar consolo na ideia de que daqui a mil anos sua obra ainda estará sendo vista. Ele preferiria estar lá para explicá-la. Ele mesmo já disse que não teme a própria morte, desde que não esteja presente na ocasião.

Mas é curiosa a evocação de Ozymandias no filme. Roma é o melhor exemplo mundial de uma civilização vivendo nas ruínas das muitas civilizações que a precederam. De certa maneira, Roma é um antídoto para a melancolia Ozymandias. Nela tudo que já passou continua lá, como paisagem, e a vida que continua entre as ruínas é bela e ensolarada — nos filmes, ao menos — e não dá o menor sinal de ceder ao deserto.




(Ilustração: Yves Cabon - Rome - Place Navona – 1974)



terça-feira, 21 de novembro de 2017

METEOROLÓGICA, de Odília Lopes






para o José Bernardino

Deus não me deu

um namorado

deu-me

o martírio branco

de não o ter



Vi namorados

possíveis

foram bois

foram porcos

e eu palácios

e pérolas



Não me queres

nunca me quiseste

(porquê, meu Deus?)



A vida

é livro

e o livro

não é livre



Choro

chove

mas isto é

Verlaine



Ou:

um dia

tão bonito

e eu

não fornico



(Ilustração: Georges Seurat)

sábado, 18 de novembro de 2017

MONTEIRO LOBATO E O MODERNISMO: UM EQUÍVOCO, de Alexandre Amorim






Em dezembro de 1917, no jornal O Estado de S. Paulo, Monteiro Lobato publicava o que seria o início de um mal-entendido entre o autor de Urupês e todo um movimento literário que estava deixando de ser embrionário, o Modernismo. No artigo, denominado "Paranoia ou mistificação?", Lobato dividia a arte de acordo com interpretações pessoais, citando duas espécies de artistas: "os que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura" e os que "veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes". Entre os seguidores dessa arte desclassificada, Lobato incluiu Anita Malfatti. Começavam então suas desavenças com um novo movimento artístico no Brasil. Sua concepção da arte se distanciava do Modernismo de tal modo que a "paranoia" usada no título vem da ideia de que a nova arte seria mais sincera em manicômios, já que só poderia ser fruto de uma lógica psicótica. Lobato não deixa de ver qualidades "latentes" nas obras de Malfatti, mas lamenta suas "tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias" de pintores modernos. Além disso, o autor da crítica ataca também os elogiosos insinceros, aumentando seu número de desafetos.


Se Monteiro Lobato demonstrou sua insatisfação em relação à pintura de Malfatti em um artigo infundado de crítica especializada e de percepção pictórica não adequada à dita exposição, a reação dos modernistas em relação a ele também se mostrou equivocada. No ano seguinte ao artigo, através de sua Revista do Brasil, o autor e empresário lançou Urupês, o livro que décadas mais tarde causaria o comentário do crítico Wilson Martins em A literatura brasileira: "poderia ter sido, deveria ter sido, o primeiro manifesto modernista". Mas já era tarde. A crítica de Lobato mostrou-se profunda e arraigada nos seguidores do Modernismo; em 1922, dois meses depois da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade prefaciou seu novo livro, A escrava que não é Isaura, com as seguintes palavras: "passadista é o que faz o papel de carro de boi numa estrada de asfalto. (...) O passadista procura na obra de arte a natureza e, como não a encontra, conclui: paranoia ou mistificação". Mário acabava de definir o lugar de Monteiro Lobato como diretamente oposto ao Modernismo; Lobato era classificado de "passadista". A desavença iniciava-se por equívocos de ambas as partes. Lobato, por ignorar as qualidades de um movimento nascedouro, Mário e os modernistas, por ignorar os elementos modernos na obra de Lobato.


A obra citada por Wilson Martins é mesmo o início literário do pensamento já modernista de Monteiro Lobato. Das suas observações como fazendeiro, Lobato aprendeu sobre a vida do caboclo brasileiro e forjou o termo "jeca" para criar um dos maiores representantes de nossa cultura multifacetada. O jeca aparece como natural do interior do Brasil, mas tem sua sabedoria ampliada por essa abstração denominada "cultura nacional": é o embrião da antropofagia modernista que se vislumbra nesse personagem também sem caráter, já que é uma mistura de várias personalidades brasileiras. O regionalismo não é mais respeitado, os limites do herói nacional ultrapassam os regionalismos fictícios criados por autores que desconhecem seus personagens.


Lilian Roeli cita uma carta de Monteiro Lobato: "a nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos por medo de carrapatos". Sua crítica de tom moderno também não poupa o herói romântico nacional: "o romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e, morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio, o caboclo". Lobato ofereceu o jeca aos olhos do público e da crítica, um novo caboclo, um herói multifacetado como a cultura brasileira e de costumes antropofágicos, filho de miscigenações e de portugueses degradados, mas o movimento Modernista não teve olhos para reconhecê-lo.


Seu nacionalismo sempre o manteve conectado aos que se interessavam pela questão cultural brasileira. Ainda em sua fazenda, Lobato enumerava admirações por alguns autores que mais tarde se consagrariam na famosa Semana de Arte Moderna. E, mais tarde, publicaria vários desses autores em sua revista. Se um equívoco o separou do movimento modernista, esse mesmo equívoco o deixou livre para contestar o que lhe parecia errado no movimento.


Enquanto em texto o autor analisava a identidade nacional (aproximando-se, assim, de umas das principais propostas modernistas), o homem Monteiro Lobato aventurou-se em projetos empresariais no mundo literário. Em 1918, ele comprou a já famosa Revista do Brasil, em que havia publicado contos e críticas. A revista teve vida longa – em termos editoriais brasileiros – e foi ilustrada por nomes importantes da literatura brasileira.


Seu empreendimento também poderia ser visto como modernizador das relações do artista com os negócios. O Estado, até então, era o novo mecenas das artes, e as negociações com editoras eram precárias. Monteiro Lobato fundou sua própria editora e inaugurou uma nova relação do artista com seu negócio. A literatura é vista, assim, como um produto próprio e pronto a ser negociado. Como afirma Silviano Santiago, "é através da caracterização do papel social e político do livro entre nós que se pode conhecer, com maior propriedade, o sucesso do projeto elitista e o fracasso do projeto populista dentro dos contornos da estética modernista". Começou, então, com Monteiro Lobato, a era moderna nas relações autores-editores no Brasil.


Se, em 1926, Mário de Andrade sentiu-se à vontade para publicar no jornal A Manhã o "necrológio" de Monteiro Lobato, foi porque o autor considerado passadista por Mário mostrava sua primeira derrota pública: a falência de sua editora. O necrológio, tal como a crítica de Lobato a Malfatti, foi um equívoco. Mas esteticamente vai além: é um exagero de mau gosto de críticas ao escritor. Mas, em 1942, também o próprio Mário expiou seus erros publicamente, incluindo Monteiro Lobato entre seus aliados e como um dos pilares do Modernismo: "quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela Revista do Brasil; é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato".


Pelas palavras dos próprios modernistas, Monteiro Lobato era, então, reconhecido como um deles.


Se existe uma crítica adequada ao modernismo de Monteiro Lobato, veio de Oswald de Andrade durante o conturbado período da Segunda Guerra Mundial. Se o mundo passava por uma transformação em sua ordem, o Brasil passava pela ameaça do Estado Novo e sua ditadura também artística: o Estado como mecenas detinha o poder financeiro nas mãos numa época em que a economia era carcomida pela guerra.


Monteiro Lobato não parecia apreciar o contentamento nacional em relação aos aliados, ou melhor, em relação ao modo como o Brasil se submeteu às forças aliadas. Ainda usando seu personagem Jeca Tatu, Lobato fez oposição à maneira com que os aliados tratavam nossos soldados: "dão-lhe armas, mas negam-lhe os mananciais do sangue que movimenta as máquinas, ergue os aviões e equipa as cavalarias mecanizadas". O Jeca foi usado para guerrear, mas o Brasil não se modernizou, não se preparou para a nova ordem mundial. Por essa crítica, Lobato fez oposição irrestrita ao cosmopolitismo que a guerra trouxe. "Trava-se uma luta entre Tarzan e a Emília", critica Oswald, ironizando o fato de o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo não aceitar as influências estrangeiras. Estava claro para Oswald que também essas novas influências deviam ser digeridas antropofagicamente, mas Lobato temia a invasão em massa que ele já via ocorrer. O nacionalismo lobatiano não permitia a dialética com os estrangeirismos, mesmo porque o cosmopolitismo pregado foi recebido com desconfiança pelo escritor. Ele já havia criticado as influências europeias na arte nacional quando Malfatti expôs suas obras, e agora reforçava sua ideologia, convencido de que a devastadora influência estrangeira vinha disfarçada de cosmopolita, mas acabaria por destruir a cultura nacional, ainda em formação.


Mesmo assim, Oswald compreende a importância de Lobato na modernização de nossa cultura e na participação de sua arte modernista. Ele se pronunciou numa carta aberta a Monteiro Lobato sobre a Semana de 22 e a então situação entre o nacionalismo e o cosmopolitismo: "Hoje, passados vinte e cinco anos, sua atitude aparece sob o ângulo legitimista da defesa da nacionalidade. Se Anita e nós tínhamos razão, sua luta significa a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha". Mais uma vez, os precursores do movimento modernista reconheciam em Monteiro Lobato uma referência e uma influência.


Monteiro Lobato provou-se um modernista através de seus textos. O nacionalismo, a preocupação com uma definição da cultura brasileira, o desenvolvimento do seu pensamento editorial e a resistência a uma sociedade consumidora de cultura estrangeira de massa o aproximou intelectualmente de um movimento que era, antes de tudo, favorável à dialética (o que seria a antropofagia proposta senão a dialética?).


Alguns equívocos afastaram autor e movimento. Graças a esses equívocos, jamais saberemos o que poderia propor Monteiro Lobato aliado a um movimento com a força do Modernismo brasileiro. Entretanto, também graças a esses equívocos, temos hoje a prova da capacidade crítica e intelectual de um dos autores mais genuinamente brasileiros da nossa literatura.



    (Ilustração:  Jeca Tatu; autoria não identificada)


Bibliografia

ANDRADE, Oswald de. Ponta de lança. São Paulo: Globo, 1991.

AZEVEDO, Carmen Lucia de; CAMARGOS, Marcia; SACHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato, Furacão na Botocúndia. Edição compacta. São Paulo: Editora Senac-SP, 2000.

PASSIANI, Enio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

SANTIAGO, Silviano. Calidoscópio de questões. In: TOLIPAN, Sérgio et alii.  Sete Ensaios Sobre o Modernismo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983. p. 25 - 28.

Publicado em 02/02/2010

http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/literatura/0095.html



quarta-feira, 15 de novembro de 2017

OZYMANDIAS / OZIMÂNDIAS, de Shelley

   




I met a traveller from an antique land

Who said:—Two vast and trunkless legs of stone

Stand in the desert. Near them on the sand,

Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown



And wrinkled lip and sneer of cold command

Tell that its sculptor well those passions read

Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,

The hand that mock'd them and the heart that fed.



And on the pedestal these words appear:

"My name is Ozymandias, king of kings:

Look on my works, ye mighty, and despair!"



Nothing beside remains: round the decay

Of that colossal wreck, boundless and bare,

The lone and level sands stretch far away.



Tradução de autor não identificado:


Eu encontrei um viajante de uma terra antiga

Que disse:—Duas gigantescas pernas de pedra sem torso

Erguem-se no deserto. Perto delas na areia,

Meio afundada, jaz um rosto partido, cuja expressão



E lábios franzidos e escárnio de frieza no comando

Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu

Que ainda sobrevivem, estampadas nessas partes sem vida,

A mão que os zombava e o coração que os alimentava.



E no pedestal estas palavras aparecem:

"Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:

Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!"



Nada resta: junto à decadência

Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas

As areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.



Tradução de Eugenio da Silva Ramos:



Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante

Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,

Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,

Afundando na areia, um rosto já quebrado,



de lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante

Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia

Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,

À mão que as imitava e ao peito que as nutria



No pedestal estas palavras notareis:

"Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis,

Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!"



Nada subsiste ali. Em torno à derrocada

Da ruína colossal, areia ilimitada

Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.



Tradução de Tomaz Amorim Izabel:




Conheci um viajante de antiga terra

que disse: – Duas pernas destroncadas, pétreas,

estão no deserto. Perto delas, soterra

a areia meia face despedaçada,



cujo lábio firme e poderio de olhar, frio,

diz que seu escultor bem lhe leu as paixões

que sobrevivem, nas meras coisas sem vida,

à mão que zombou e ao coração que nutriu.



E no pedestal tais palavras aparecem:

“Meu nome é Ozymandias, o rei dos reis:

Vejam minhas obras, ó fortes – desesperem-se!”



Nada resta: junto à ruína decadente

e colossal, de ilimitada aridez,

areias, lisas e sós, ao longe se estendem.



Tradução de Ivan Justen Santana:



Topei um viajante duma antiga aldeia

Que disse: Há duas pernas de pedra, sem corpo,

De pé no deserto. Perto delas, na areia,

Um rosto meio enterrado jaz, cujo torto



Lábio de escárnio e de frio orgulho alardeia

Que seu escultor tais paixões reconhecia,

As quais ainda vivem, e ali são as marcas

Que a mão tripudiava e o coração nutria.



No pedestal, palavras que sempre lembrei:

“Eu sou Ozymândias, monarca dos monarcas:

Olhai minhas obras, ó Fortes, e tremei!”



Nada mais restou: ao redor da corrosão

Do colossal destroço, nuas e sem lei,

As ermas areias se estendem na amplidão.



Tradução de Adriano Scandolara:



Ouvi um viajante de uma antiga terra

Dizer: “um par de pernas jaz truncado

No deserto. E, perto, a areia enterra

Os restos de um semblante estilhaçado



Que diz, com lábio e cenho frio de guerra,

Como à pedra sem vida se esculpiu

Tais paixões vivas na obra que se fez

Que a mão logrou e o coração nutriu.



E, ao pedestal, palavras há inscritas:

Meu nome é Ozimândias, rei dos reis,

Curva-te, Ó Grande, ao fausto que ora fitas!



Nada mais resta: sós, ao longe, à margem

Da imensa ruína, nuas e infinitas,

As areias compõem toda a paisagem”.



Tradução de John Milton e Alberto Marsicano:




Conheci um viajante de uma terra ancestral

Contou-me: Sem tronco, duas pernas enormes

Erguem-se no deserto… Perto delas no areal,

Semienterrada, a cabeça em partes disformes,



Franze o cenho, e o escárnio de um comando glacial,

Mostra-nos que o escultor captou bem o seu estado

Que ainda sobrevive estampado nessas pedras estéreis,

A mão que dele troçou e o coração que foi alimentado;



E no pedestal estão grafadas as seguintes palavras:

“Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:

Ó Poderosos, rendei-vos ao olhar minhas obras!”



Nada além permanece. Ao redor do desolamento

Da ruína colossal, infinitas e desertas

As areias planas e solitárias se estendem ao vento.




Tradução de Joedson Adriano:





Eu encontrei um viajante de uma terra antiga

Que disse: duas destroncadas e vastas pernas de pedra

Permanecem no deserto. Na areia a elas contígua,

Um tanto soterrada, fendida face queda,



De carranca e hirto lábio e escárnio de quem castiga

Que dizem que seu escultor tais paixões bem traduziu

Que ainda sobrevivem, impressa em coisas inúteis,

A mão que as macaqueou e o coração que as nutriu.



No pedestal em palavras aparece declarado:

“Meu nome é Ozymândias, eu sou o rei dos reis;

Olhai minhas obras, grandes, e ficai desesperados!”



Nada ali remanesce: ao redor da decadência

Daquela colossal ruína, desmedido e despido,

O páramo plano areoso se estende em longa distância.



Tradução de André Vallias:




Disse o viajante de uma antiga terra:

“Duas pernas de pedra, no deserto,

Despontam gigantescas, e bem perto

Há um rosto destroçado que descerra



Os lábios num sorriso de comando

Que atesta: o escultor leu com mestria

Paixões que na matéria inerte e fria

A mão que as entalhou vão perdurando.



‘Meu nome é Ozymândias, rei dos reis:

Desesperai perante as minhas obras!’

Alerta uma inscrição no pedestal.



Mas são ruínas tudo o que ali sobra,

E um mar de areia, em árida nudez,

Circunda a decadência colossal”.





Tradução de Pedro Mohallem:




Ouvi de um viajante de um antiga aldeia:

— Duas pernas de pedra vastas e sem tronco

Há no deserto, e, próximo a elas, jaz na areia

Um rosto espedaçado, cujo aspecto bronco,



Franzido o lábio e ufano o riso, delineia

O triunfo do escultor, que tais paixões bem lera,

Prevalecendo, assim, impressas na aridez,

Ao seio que as nutrira e à mão que escarnecera.



E sobre o pedestal pode-se ver gravado:

MEU NOME É OZIMÂNDIAS, REI DOS REIS:

CURVAI-VOS TODOS ANTE O MEU LEGADO!



Nada mais resta: em torno ao palco derradeiro

De escombros colossais, chão liso e ilimitado,

O deserto se estende ao horizonte inteiro.



Tradução de Henrique Hill:




Disse-me, de uma antiga terra, um viajante:

— Duas pernas de pedra, vastas, destroncadas

Erguem-se no deserto. Meio afundado ante

Elas, na areia, um rosto com as feições quebradas,



Que o lábio crespo e o escárnio de frio comandante

Dizem que o artista bem seus sentimentos leu,

Que vivem ainda, impressos em tal aridez,

O peito que os nutriu e a mão que escarneceu.



Do pedestal essas palavras o olho extrai:

“Meu nome, ó Grandes, é Ozymândias, rei dos reis,

As minhas obras vede e vos desesperai!”



Nada mais resta, só decadência se hasteia

Da colossal ruína que se sobressai

Naquele plano e solitário mar de areia.



Tradução de Luis Fernando Pinheiro:





Topei co’ um viajor de antiga aldeia

Que disse: — Um pétreo par de pernas jaz

Sem torso no deserto. E ali na areia

Um rosto semi-imerso e roto traz



Do lábio o esgar, do mando frio a veia,

Cujo escultor tão bem captara o esp’rito,

Que sobrevive, impresso na aridez,

À mão que o escarnecia, e à alma a nutri-lo.



E isto no pedestal se lê em laivos:

“Meu nome é Ozymândias, Rei dos reis,

Vede a minha obra, ó vós, e desperai-vos!”



Nada além resta: em volta da sucata

Da ruína imensa, sem contorno e calvos,

Estendem-se os sem-fins de areia chata.



Tradução de Guilherme Gontijo Flores:




Eu vi um viajante arcaico certo

dia dizer que perna pétrea e vasta

jaz destroncada no deserto. E perto,

fundo na areia, um rosto que desbasta



rugas no lábio e régio olhar aberto

diz que o escultor sabia o sentimento

que sobrevive no que hoje é “ex-”:

a mão entalha, o peito é alimento.



E sobre o pedestal letras dispostas:

“Meu nome é Ozimândias, rei dos reis:

olhem e chorem ante as minhas portas!”



Ao lado o nada; tudo é decadência

do colossal naufrágio e sobrepostas

areias nuas nadam sem clemência.





Tradução de Matheus Mavericco:




Alguém de antigas plagas me contara:

― Pernas de pedra sem um corpo estão

Na areia. Perto, quase imersa, a cara

De alguém, quebrada, jaz, cuja expressão,



Boca e escárnio bélico escancaram

O quão bem o escultor lera o intento,

Tanto que lá vivem, na estátua-túmulo,

A mão que riu, o seio que deu alento.



E no pedestal lê-se isto somente:

“Rei dos reis Ozymândias me intitulo;

Veja minha obra, ó grande, e se atormente!”



Nada mais resta: próximo ao resquício

Da colossal ruína, segue em frente

O deserto sem término ou início.







(Ilustração: Colossal bust of Ramesses II, o faraó que inspirou Shelley)




domingo, 12 de novembro de 2017

PARANOIA OU MISTIFICAÇÃO, A PROPÓSITO DA EXPOSIÇÃO MALFATTI, de Monteiro Lobato







Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.


Embora eles se deem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós "sentimos"; para que sintamos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em "pane" por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá "sentir" senão um gato, e é falsa a "interpretação" que o bichano fizer um "totó", um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes. Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um sem-número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de ouros tantos ramos da arte caricatural. É extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de que sai de uma destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denuncia as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de racionar, e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta. No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos. Arte moderna, eis o estudo, a suprema justificação. Na poesia também surgem, às vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira sempre a mesma: arte moderna. Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso "virtuose" do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas, e dos corpos femininos em botão. Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da dry point que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade. Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua escola o trabalho de um mestre americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em movimento. Está ali entre os trabalhos da Sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra-prima, julgue o público do resto tomando-me a mim como ponto de referência. Tenhamos coragem de não ser pedante: aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O Sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pés, fechou os olhos, e fê-lo passar na tela às pontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu tempo, visto como o resultado foi absolutamente o mesmo. Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-no traseiro voltado numa tela. Com os movimentos da cauda do animal a broxa ia borrando a tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclama pelos mistificadores como verdadeira obra-prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado. A pintura da Sra. Malfatti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou a sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o Sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insignes cavalgaduras, a coorte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a Steves, de Velásques a Corola, de Rembrandt a Whistler, ou... vice-versa. Porque é de todo impossível dar o nome da obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro, de Chabas, e o carvão cubista do Sr. Bolynson. Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o formoso talento da Sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis.


Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos "bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.



(Ilustração: Anita Malfatti - o homem amarelo)






quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A UMA AUSÊNCIA, de Francisco Rodrigues Lobo







Sinto-me, sem sentir todo abrasado

No rigoroso fogo que me alenta;

O mal que me consome me sustenta,

O bem que entretém me dá cuidado.



Ando sem me mover, falo calado,

O que mais perto vejo se me ausenta,

E o que estou sem ver mais me atormenta;

Alegro-me de ver atormentado.



Choro no mesmo ponto em que me rio,

No mor risco me anima a confiança,

Do que menos se espera estou certo.



Mas, se de confiado desconfio,

É porque, entre os receios da mudança,

Ando perdido em mim como em deserto.






(Ilustração: Edward Coley Burne Jones – Lamentation)




segunda-feira, 6 de novembro de 2017

UM SOM DE TROVÃO, de Ray Bradbury








O anúncio na parede parecia tremular sob uma película de água quente. Eckels sentiu suas pálpebras estremecerem sobre seu olhar, e o anúncio queimava, na momentânea escuridão:



SAFARIS NO TEMPO, INC.

SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO PASSADO

VOCÊ DIZ QUE ANIMAL.

NÓS O LEVAMOS LÁ.

VOCÊ O ABATE.



Uma flegma quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu e empurrou-a para baixo. Os músculos ao redor de sua boca forma­ram um sorriso enquanto ele estendeu sua mão lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se um cheque de dez mil dólares, para o ho­mem atrás da escrivaninha.

— Este safári garante que eu volte vivo?

— Não garantimos nada — falou o funcionário — exceto os dinos­sauros. — Voltou-se. — Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safári ao pas­sado. Ele vai dizer-lhe o que e aonde atirar. Se ele disser para não ati­rar, não se atira. Se desobedecer às instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares, mais um possível processo do governo, quando voltar.

Eckels olhou, através do amplo escritório, numa completa con­fusão disforme, de fios entrelaçados e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia laranja, então prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas empilhadas e incendiadas.

Um toque da mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente. Eckels lembrou-se literalmente das palavras da propagan­da. De carvões e cinzas, da poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os anos jovens, podem saltar; rosas sua­vizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se, rugas desaparecendo; tu­do ,voltando totalmente à origem, fugir à morte, precipitar-se para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e pondo-se glo­riosamente no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido oposto ao costumeiro, e tudo se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todos retornando à morte viva, a morte da se­mente, a morte verde, ao tempo de antes do começo. O toque da mão poderia fazê-lo, o mero toque da mão.

— Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino. — Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados Unidos.

— Sim — falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse ganho, teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista, um anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe, como que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse presidente, queriam vi­ver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir Fugas, mas orga­nizar Safáris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora. Tudo com que precisa preocupar-se agora é...

— Caçar meu dinossauro — Eckels acabou para ele.

— Um Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais ina­creditável de toda a história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos responsáveis. Esses dinossauros são muito vorazes.

Eckels animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me!

— Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro tiro. Seis lideres de safári foram mortos no ano passado, e uma dúzia de caçadores. Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade jamais almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior caça de to­dos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.

O Sr. Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se.

— Boa-sorte — falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Tra­vis, ele é todo seu.

Moveram-se silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles, em direção à Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes.

Primeiro, um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então era dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2 055 a. D., 2 019 a. D., 1 999! 1 957! Partida! A máquina rugia.

Puseram suas máscaras de oxigênio e testaram os intercomunica­dores.

Eckels inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido. Sentia o tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no novo rifle. Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safári, seu assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer. Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles.

— Estas armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca dizendo.

— Se os acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos longe destes. É abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se puder, e cegue-os, e volte a atirar no cérebro.

A Máquina bramia. O Tempo era um filme passado ao contrá­rio. Os sóis voavam e dez milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os caçadores que jamais viveram nos inveja­riam hoje. Isto faz a África parecer com o Illinois.

A Máquina desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Má­quina parou.

O sol parou no céu.

A névoa que envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito antigo mesmo, três caçadores e dois chefes de safári com suas armas metálicas sobre os joelhos.

— Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha, para falar com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem recortadas e montadas. Lembrem-se disso. Ale­xandre; César; Napoleão; Hitler; nenhum deles existe.

O homem fez que sim.

— Aquilo. — Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e cinqüenta e cinco anos antes do presidente Keith.

Mostrou o caminho de metal que cruzava o verde selvagem, so­bre um amplo pântano, por entre fetos e palmeiras.

E aquele — disse — é o Caminho, colocado por Safáris no Tem­po, para seu uso. Flutua a seis polegadas acima da terra. Não toca se­não no máximo uma grama, flor ou árvore. É um metal antigravitacional. Seu propósito é evitar que vocês toquem, de qualquer manei­ra que seja, este mundo do passado. Fiquem no Caminho. Não saiam dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se caírem, se­rão multados. E não disparem em nenhum animal que não aprove­mos.

— Por quê? — perguntou Eckels.

Sentaram-se, na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vie­ram com o vento, e o cheiro de alcatrão e de um velho oceano salga­do, grama úmida, e flores da cor de sangue.

— Não queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta de nós aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A Máquina do Tempo é um negócio ex­tremamente delicado. Sem saber, poderíamos matar um animal im­portante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor, assim destruindo um elo importante, numa espécie em evolução.

— Isso não fica muito claro, — falou Eckels.

– Está bem — continuou Travis, — suponhamos que acidental­mente matemos um rato, aqui. Isso quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em particular, serão destruídas, certo?

— Certo.

— E todas as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você aniquila primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilhão de ratos, possivelmente!

— Então estarão mortos; e daí?

— E daí? — Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que preci­sariam daqueles ratos para sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada dez raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insetos, abutres, infinitos bilhões de formas de vida são lançados ao caos e à destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinqüenta e nove milhões de anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável, não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto, cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afo­ra, até seus alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num rato e deixará sua mar­ca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, po­derá nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca pise fora!

— Percebo — comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama?

— Exato. Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesi­mais. Um erro mínimo seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente. Claro, talvez nossa teoria esteja errada. Tal­vez o Tempo não possa ser alterado por nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras sutis. Um rato morto aqui causa um desequilí­brio dos insetos ali, uma desproporção populacional mais tarde, uma colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e finalmente uma mudança no temperamento social em países remotos. Algo muito mais sutil, como isso. Talvez algo ainda muito mais sutil. Talvez ape­nas uma respiração, um sussurro, um cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha que se olhasse atentamente, não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que realmente sabe? Não sabemos. Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos certeza, se nossos passeios pelo Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho na História, seremos cuidadosos.. Esta Máquina, este Caminho, suas rou­pas e corpo, foram esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usa­mos estes capacetes de oxigênio de modo que não possamos introdu­zir bactérias nesta atmosfera primitiva.

— Como sabemos que animais abater?

— Estão marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Ho­je, antes da viagem, mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em particular e seguiu certos animais.

— Estudando-os?

— Isso — falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, obser­vando quais vivem mais. Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo que algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num poço de alcatrão, ano­to a hora, minuto, e segundos exatos. Disparo um revólver de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enga­nar. Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos cuidadosos?

— Mas se esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado conosco mesmos, nosso safári! Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos... vivos?

Travis e Lesperance entreolharam-se.

— Isso seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo de confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais situações, o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a Máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho do Futuro. Não vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve suces­so; se pegamos nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu vivo.

Eckels sorriu, palidamente.

— Parem com essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé!

Estavam prontos para deixar a Máquina.

A selva era alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, pa­ra sempre. Sons como música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos planando com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre noturna. Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle, bem-humorado.

— Pare! — falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brinca­deira, idiota! Se a arma dispara...

Eckels enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus?

Lesperance checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho dele em sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu mande. Fique no caminho. Fique no Caminho!

Moveram-se adiante, pelo vento da manhã.

Estranho — murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim das eleições. Keith presidente. Todos celebran­do. E aqui estamos, perdidos num milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por meses, por uma vida intei­ra, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda.

— Soltar as travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels, Billings o segundo, e Kramer o terceiro.

— Já cacei tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável — disse Eckels. — Estou tremendo como uma criança.

— Ah — fez Travis. Todos pararam.

Travis ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na ne­blina. Lá está ele. Ali está Sua Majestade Real, agora.

A selva era ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros.

Subitamente, tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta.

Silêncio.

Um som de trovão.

Da neblina, a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex.

— É ele — cochichou Eckels, — é ele... —Psss!

Ele veio sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés, acima da metade das árvores, um grande deus do mal, do­brando suas delicadas garras de relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior era um pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de músculos, revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um terrível guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E da grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços de­licados pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e exami­nar os homens como brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça mesmo, uma tonelada de pedra esculpida, ergui­da com facilidade contra o céu. Sua boca escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos rolavam, ovos de aves­truz, vazios de qualquer expressão, exceto fome. Fechava a boca num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra úmida, deixando marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu peso. Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado para suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos lindamente reptilianas tateando o ar.

— Ora, vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua.

— Pssst! — fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu.

— Não pode ser morto. — Eckels pronunciou seu veredito, quie­to, como se não pudesse haver discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada opinião. O rifle em sua mão parecia uma ar­ma de brinquedo. — Fomos loucos de ter vindo. Isto é impossível.

— Cale-se! — silvou Travis.

— Pesadelo.

— Dê meia volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos reembolsar-lhe metade da sua passagem.

— Não percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E agora, quero desistir.

— Ele nos viu!

Lá está a tinta vermelha em seu peito!

O Lagarto Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas verdes. As moedas, com uma crosta de lama, fer­viam. No lodo, pequenos insetos esperneavam, de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo enquanto o monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado pelos ermos.

— Deixe-me sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre estava certo de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safáris, e segurança. Desta vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É demais para eu enfrentar.

— Não corra — falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina.

— Sim, — Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando fazê-los mover-se. Deu um grunhido, incapaz.

— Eckels!

Deu alguns passos, piscando, hesitante,

— Não por aí!

O Monstro, ao primeiro movimento, impulsionou-se para a fren­te com um grito terrível. Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente e iluminaram-se, com o fogo. Um ven­daval da boca da besta engolfou-os na fedentina do lodo, e sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao sol.

Eckels, sem olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua arma carregada frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou, inadvertidamente, pela floresta. Seus pés afun­daram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se sentia só e afastado dos eventos lá atrás.

Os rifles dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no tro­vão do lagarto. O grande volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores explodiram em nuvens de folhas e ra­mos. O Monstro torceu suas mãos de joalheiro para acariciar os ho­mens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los, como frutinhas, para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus olhos, quais rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados. Dispararam nas pálpebras metálicas e na luminosa íris.

Como um ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu. Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos, brilhantes.

O trovão dissipou-se.

A selva estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do pesadelo, o amanhecer.

Billings e Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ain­da fumegando.

Na Máquina do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha con­seguido voltar ao caminho, e subira na Máquina.

Travis chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os outros, que estavam sentados sobre o Caminho.

— Limpem-se.

Limparam o sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro jazia ali como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e murmúrios, enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar, líquidos circulan do um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula, tudo des­ligando-se, parando para sempre. Era como ficar perto de uma loco­motiva acidentada, ou uma escavadeira a vapor, no momento de des­ligar, com todas as válvulas sendo desativadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne, desequilibrada, peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A carne se assentava aos tre­mores.

Outro estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada ancoragem, caiu. Golpeou certeiramente a fera morta.

— Pronto. — Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande árvore que deveria cair e matar este animal, origi­nalmente. — Olhou para os dois caçadores. — Querem tirar a foto de troféu?

— Quê?

— Não podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve fi­car aqui, aonde deveria originalmente morrer, de modo que os inse­tos, pássaros, e bactérias possam devorá-lo, como devem. Tudo equi­librado. O corpo fica. Mas podemos tirar uma fotografia de vocês a seu lado.

Os dois homens fizeram força para pensar, mas desistiram, aba­nando as cabeças.

Deixaram-se guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos assentos da Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em estagnação, aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam ocupados com a fumegante armadura.

Um som no chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá, tremendo.

— Lamento muitíssimo — disse.

— Levante-se! — gritou Travis. Eckels levantou-se.

— Vá para o Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai voltar para a Máquina. Vamos deixá-lo aqui!

Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere...

— Fique fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase matou-nos. Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapa­tos! Vejam! Ele saiu do Caminho. Isso nos arruína! Seremos multa­dos! Milhares de dólares de seguro! Garantimos que ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de informar o Governo

Poderão cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à História!

— Calma, tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira.

— Como saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!

Eckels mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dóla­res!

Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está perto do Caminho. Afunde os braços até os cotove­los na boca dele. Então poderá voltar conosco.

— Isto é irrazoável!

— O Monstro está morto, seu idiota. As balas! As balas não po­dem ser deixadas para trás. Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está a minha faca. Cave-as!

A selva estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do baru­lho dos pássaros. Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial, aquela montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um sonâmbulo, arrastou-se ao longo do Caminho.

Voltou, tremendo, cinco minutos depois, com seus braços enso­pados e vermelhos até os cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma se­gurava algumas balas de aço. Então caiu e ficou lá, imóvel.

— Você não precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance.

— Não? É cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da próxima vez não vai sair para caçar este tipo de ca­ça. OK. — Ergueu o polegar para Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa.

1492 . 1776 . 1812 .

Limparam suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo, mudo. Travis olhou para ele por dez minutos.

— Não olhe para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada.

— Quem pode saber?

— Apenas saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer que eu faça? Que me ajoelhe e reze?

— Talvez precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda. Minha arma está engatilhada.

— Estou inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 .

A Máquina parou.

— Saia — ordenou Travis.

A sala lá estava, tal como quando saíram. Mas não exatamente a mesma. O mesmo homem atrás da mesma escrivaninha. Mas o mes­mo homem não parecia estar sentado exatamente atrás da mesma escrivaninha.

Travis olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo perguntando.

— Claro. Bem vindos ao lar!

Travis não relaxou. Parecia estar olhando para os próprios áto­mos do ar, e para o modo pelo qual o sol entrava pela janela alta.

— OK, Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se.

— Ouviu-me, — falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando o ar, e havia algo no ar, uma substância tão tênue, tão sutil, que apenas um fraco aviso de seus sentidos su­bliminares avisavam-lhe que estava ali. As cores, branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela janela, eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou bebendo aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém devia estar soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu cor­po gritava silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede, além deste homem, que não era exatamente o mesmo homem que estava sentado àquela mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e gente. Que espécie de mun­do era agora, não havia como dizer. Ele podia senti-los mover-se ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um vento quen­te...

Mas a coisa mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o mesmo que havia lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado:



SEFARIS NU TENPO, INC.

SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO.

CÊ DIS QUI ANIMAU.

NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ.

CÊOABAT.



Eckels sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em suas botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não uma coisinha assim, não!

Embebida na lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta, muito bela, e muito morta.

Não uma coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels.

Caiu ao chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desman­char equilíbrios e derrubar uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós gigantes, por todos os anos atra­vés do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava. Não podia mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou pode­ria?

Seu rosto estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a eleição presidencial ontem?

O homem atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher, claro! Quem mais? Não aquele maluco pusi­lânime do Keith. Temos um homem de ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de errado?

Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos trêmulos. — Não podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à Máquina. — Não podemos levá-la de vol­ta, não podemos fazê-la viver de novo? Não podemos recomeçar? Não poderíamos...

Não se moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala; ouviu Travis apontar o rifle, destravá-lo.

Houve um som de trovão.



(Contos de dinossauros; tradução de Beatriz Viégas Farias)





(Ilustração: Tuomas Koivurinne - Animaux anciens)