quarta-feira, 31 de março de 2010

CHUVA OBLÍQUA, de Fernado Pessoa






I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

III

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço para...,
Para, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..

VI

O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...



(Orpheu, nº 2, abril-maio-junho de 1915)




(Ilustração: foto la pluie : Céline Cassone of Ballet du Grand Théâtre de Genéve (Switzerland) performing La Pluie. Choreography by Annabelle Lopez Ochoa. Photography: GTG / Gregory Batardon)



segunda-feira, 29 de março de 2010

UMA VELA PARA DARIO, Dalton Trevisan







Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.




(Vinte Contos Menores)
(Ilustração: Gustave Courbet – enterro em Onans)


domingo, 28 de março de 2010

MUNDO PEQUENO, de Manoel de Barros





Com 100 anos de escória uma lata aprende a rezar.


Com 100 anos de escombros um sapo vira árvore e cresce


por cima das pedras até dar leite.


Insetos levam mais de 100 anos para uma folha sê-los.


Uma pedra de arroio leva mais de 100 anos para ter murmúrios.


Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.


Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor


as cores tortas.


Com menos de 3 meses mosquitos completam a sua eternidade.


Um ente enfermo de árvore, com menos de 100 anos, perde o contorno das folhas.


Aranha com olho de estame no lodo se despedra.


Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.


Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.


A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.


Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.


O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.


Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele


vagando por escórias...


A 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso.


Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos,


se embutem até o latejo.


Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.


Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.


Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a


fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.


Quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os


olhinhos para Deus.


De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem o rumo das grotas.


Todas estas informações têm uma soberba desimportância


científica - como andar de costas.





(O Livro das Ignorãças)




(Ilustração: Juan Miró – air)



quinta-feira, 25 de março de 2010

LA CASADA INFIEL / A CASADA INFIEL, de Federico Garcia Lorca








Y que yo me la llevé al río

creyendo que era mozuela,

pero tenía marido.

Fue la noche de Santiago

y casi por compromiso.

Se apagaron los faroles

y se encendieron los grillos.

En las últimas esquinas

toqué sus pechos dormidos,

y se me abrieron de pronto

como ramos de jacintos..

El almidón de su enagua

me sonaba en el oído,

como una pieza de seda

rasgada por diez cuchillos.

Sin luz de plata en sus copas

los árboles han crecido,

y un horizonte de perros

ladra muy lejos del río.



Pasadas la zarzamoras,

los juncos y los espinos,

bajo su mata de pelo

hice un hoyo sobre el limo.

Yo me quité la corbata.

Ella se quitó el vestido.

Yo el cinturón de revólver.

Ella sus cuatro corpiños.

Ni nardos ni caracolas

tienen el cutis tan fino,

ni los critales con luna

relumbran con ese brillo.

Sus muslos se me escapaban

como peces sorprendidos,

la mitad llenos de lumbre,

la mitad llenos de frío.

Aquella noche corrí

el mejor de los caminos,

montado en potra de nácar

sin bridas y sin estribos.

No quiero decir, por hombre,

las cosas que ella me dijo.

La luz del entendimiento

me hace ser muy comedido.

Sucia de besos y arena

yo me la llevé al río.

Con el aire se batían

las espadas de los lirios.



Me porté como quien soy.

Como un gitano legítimo.

La regalé un costurero

grande de raso pajizo,

y no quise enamorarme

porque teniendo marido

me dijo que era mozuela

cuando la llevaba al río.




Tradução de Zelia Tellaroli N. Zamora:



Eu que a levei ao rio,


pensando que era donzela,


porém tinha marido.






Foi na noite de Santiago


e quase por compromisso.


Apagaram-se os lampiões


e acenderam-se os grilos.


Nas últimas esquinas


toquei seus peitos dormidos,


e se abriram prontamente


como ramos de jacintos.






A goma de sua anágua


soava em meu ouvido


como uma peça de seda


rasgada por dez punhais.


Sem luz de prata em suas copas


as árvores estão crescidas,


e um horizonte de cães


ladra mui longe do rio.






Passadas as sarçamoras,


os juncos e os espinhos,


debaixo de seus cabelos


fiz uma cova sobre o limo.


Eu tirei a gravata.


Ela tirou o vestido.


Eu, o cinturão com revólver.


Ela, seus quatro corpetes.




Nem nardos nem caracóis


têm uma cútis tão fina,


nem os cristais com lua


reluzem com esse brilho.


Suas coxas me escapavam


como peixes surpreendidos,


a metade cheias de lume,


a metade cheias de frio.




Aquela noite corri


o melhor dos caminhos,


montado em potra de nácar


sem bridas e sem estribos.


Não quero dizer, por homem,


as coisas que ela me disse.




A luz do entendimento


me faz ser mui comedido.




Suja de beijos e areia,


eu a levei do rio.


Com o ar se batiam


as espadas dos lírios.




Portei-me como quem sou.


Como um cigano legítimo.


Dei-lhe um estojo de costura,


grande, de liso palhiço,


e não quis enamorar-me


porque tendo marido


me disse que era donzela


quando a levava ao rio.




Tradução de Wagner Mourão Brasil:




Pois até o rio a levei


pensando que era donzela,


mas possuía um marido.


Foi em noite de São Tiago


e quase por compromisso.


Se apagaram os lampeões


e se acenderam os grilos.


Nas derradeiras esquinas


toquei seus seios dormidos,


e eles se abriram de súbito


como ramos de jacinto.


A goma de sua anágua


ressoava em meu ouvido,


como uma peça de seda


rasgada por dez punhais.


Sem luz de prata nas copas


as árvores mais cresceram,


e um horizonte de cães


ladra distante do rio.


Passadas as amoreiras,


os juncos e os espinheiros,


sob a vasta cabeleira


fiz sobre a terra uma cova.


Retirei minha gravata.


Ela tirou seu vestido.


Eu, o cinturão com revólver.


Ela, seus quatro corpetes.


Nem nardo nem caracol


tem a cútis tão suave,


nem os cristais sob a lua


reluzem com esse brilho.


Suas coxas me escapavam


como peixes surpreendidos,


metade plenas de lume,


metade plenas de frio.


Naquela noite cobri


o melhor de meus caminhos,


montado em potra de nácar


sem bridões e sem estribos.


Não quero dizer, sendo homem,


as coisas que ela me disse.


A luz da compreensão


faz-me ser bem comedido.


Suja de beijos e areia


distanciei-a do rio.


De encontro ao vento as espadas


dos lírios se debatiam.


Portei-me como quem sou.


Como um cigano legítimo.


Dei-lhe estojo de costura


grande, liso e cor de palha,


e não quis enamorar-me


pois mesmo tendo um marido


ela disse ser donzela


quando a levava até o rio.




(Ilustração: Goya - maja vestida)





terça-feira, 23 de março de 2010

A TERCEIRA MARGEM DO RIO, João Guimarães Rosa









Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdia nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns 20 ou 30 anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai enealcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou a olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.


Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos se reuniram, tornaram juntamente conselho. Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda – descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viaja s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais carreto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.


No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se remava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos afora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.


Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.





(Ilustração: Monet - soleil levant)





domingo, 21 de março de 2010

E OS SILÊNCIOS SOBREPUSERAM-SE UNS AOS OUTROS, de Sílvio Augusto Gallucci








E os silêncios sobrepuseram-se uns aos outros, o do homem à pedra,

O da pedra ao cão, o de nossos três personagens

Ao leitor.


Eles sentiam-se um pouco sufocados pelo enorme volume das palavras que não eram ditas;

Havia, porém, nesse procedimento uma força insuspeita. Sim, eles pereceberam que poderiam

Simplesmente calar-se, e que o narrador – um espectador pobre de tantos diferentes eventos –

Acabaria por fartar-se em descrever um homem, uma pedra e um cão entreolhando-se

Numa absoluta ausência de sons, que se aproximava bastante

De uma reverência profunda e mútua.

Sim, surgiu entre eles algo semelhante a um elo, uma aliança, uma simbiose.

Eram três entes: um homem, uma pedra e um cão.


Mas tal silêncio emanava das entranhas desta pedra mesma – entre o silêncio e a pedra

Havia somente a distância de uma metáfora.




(Ilustração: Rafal Olblinski – conversation controle)






sexta-feira, 19 de março de 2010

CAFÉ E ARTEMÍSIA, de Cármen Rocha





A mesa estava posta. Pãezinhos, bolos, geleias e ambições. Uma discreta fumacinha do havana era abafada pelo café fumegante.

Artemísia servia eriçada. Aspásia, se acomodando, trincou a broa de fubá que encheu seu paladar e amenizou seu coração de ferro. Hipátia virando a delicada xícara pensava consigo mesma em coisas absurdas, ao relembrar os fatos recentes - o pai, as brigas, a herança... Sorriu sorrateira.

A cortina ao balançar, discordava daquela harmonia aparente. As velas, juntamente com a cortina, estremeciam.

Por trás da alegria, elas se entreolhavam obscuramente. Aguardavam temerosas.

O céu, um breu. O relógio marcou meia-noite e as irmãs estremeceram. Interromperam o duvidoso cafezinho.

Tomada de coragem, Artemísia levantou-se. Trouxe para o centro da mesa o pequenino baú, que representava a “Sua” última vontade. Afastaram as louças e depositaram o cofrinho bem à vista, como exigia o testamento.

Foi cuidadosamente aberto...

Um cheiro de mofo espalhou-se. Foram brotando papéis amarelados, um patacão antigo, cartões, poucas cartas com caligrafia feminina, retrato de soldados com suas armas, medalhas antigas e... só.

Ouviu-se um “Oh!” sonoro, de espanto e desaponto. E as três irmãs murcharam.

Com o tardar das horas resolveram ir dormir, só não entenderam o porquê de ter-se que abrir o pequeno baú àquela hora.

Aspásia gargalhou silenciosamente. Só o infeliz do seu pai, mesmo...

Passado o primeiro impacto, já no quarto, Artemísia analisou o pai: terrível, pesquisador imbatível, bem sucedido, curioso, prepotente, espalhafatoso, teatral, e luxuriosamente mau, muito mau. Deveria estar no além, gargalhando. Riu-se.

A fumacinha, na saleta, intensificou-se.

Artemísia, sentindo a quietude das salas e corredores, levantou-se com precaução, tomou o pequeno baú de metal e ficou apalpando e analisando-o. O pequeno cofre reluzia à luz da lua.

E no silêncio que se fazia, ouviu um pequenino estalo, quase nada. Era da pequena tampa da latinha. E ao tocá-la percebeu a minúscula chave incrustada na alça, do lado interno da caixinha! O gênio do mal se manifestara?! Era coisa do falecido... Era o penúltimo dia para ser requisitada a fortuna. Seria a sua última maldade? Um esgar de ódio perpassou-lhe o senblante.

E agora, o que fazer? O que fazer com uma minúscula chavinha em um grande casarão? As horas corriam. Havia pressa!

Lembrou-se de um único lugar cheio de desenhos, arabescos, gavetinhas e vãos. “Sua” escrivaninha! Seria tão fácil assim? O gênio do mal estaria sendo vencido?

Às apalpadelas, na quase escuridão, dirigiu-se ao escritório do pai e lá perto da janela, incrustada na parede, a escrivaninha rococó reluzia em toda sua beleza. 

Arrepiada, chegou-se. Sentou, e seduzida pela imensa fortuna que iria pertencer-lhe estremeceu. Tocou piano naquela madeira nobre.

Seu cérebro estava em brasa.Seus olhos percorriam cada entalhe, todos os vãos. Seus dedos dedilhavam a madeira trabalhada. Então sentiu! Na lateral, uma pequena reentrância. Colocou a chavinha que, num clic perfeito abriu-se. Pequeno painel deslizou e então montes e montes de dinheiro vivo, notas empilhadas, se apresentaram ante um fundo escuro, não muito visível, no desvão da parede. Era um espaço, com enorme fortuna. Deu um “Ah”... que foi seguido de outros dois mais vibrantes. Virou-se espantada, mas sentiu um baque na fronte, e na nuvem que se seguiu, pareceu-lhe ouvir tiros...

Na saleta, a cinza de um havana apagado era depositada na xícara de café frio.



(Ilustração: Caia Koopman – ursidae adoration)







quarta-feira, 17 de março de 2010

SERENATA SINTÉTICA, de Cassiano Ricardo






Lua

morta



Rua

torta



Tua

porta







(Um dia depois do outro)



(Ilustração: Marc Chagall - amantes ao luar)


segunda-feira, 15 de março de 2010

ANDAR A PÉ, de Henry David Thoureau






Desejo dizer uma palavra em nome da natureza, em nome da liberdade absoluta, em nome da amplidão, que contrastam com a liberdade e a cultura das cidades — no sentido de considerar o homem como um habitante da natureza, ou parte e parcela dela, e não como um elemento da sociedade. Desejo fazer uma exposição vasta e, se puder, a farei enfática, pois existem muitíssimos campeões da civilização. Não só o ministro e as congregações das escolas mas todos vós a tomareis em consideração.



Em todo o decurso da minha vida só encontrei uma ou duas pessoas que compreendiam a arte de andar, isto é, de dar passeios a pé — que tinham o gênio, por assim dizer, do “sauntering”, palavra esplendidamente derivada de “pessoas vadias que erravam pelo país, na Idade Média, e pediam esmola sob o pretexto de irem à la Sainte Terre”, à Terra Santa, até as crianças exclamarem: “Lá vai um Sainte-Terrer“, um “Saunterer”, um da Terra Santa. Os que nunca vão à Terra Santa nas suas peregrinações, como pretendem, são, em verdade, meros vadios e vagabundos; mas os que lá vão ter são “saunterers”, no bom sentido que tenho em vista. É certo que alguns derivariam a palavra de sans terre, sem terra ou pátria, o que, portanto, no bom sentido, significará — não tendo pátria determinada, mas igualmente tendo sua pátria em toda parte. Pois este é o segredo do vitorioso “sauntering”. Os que se deixam permanecer em casa, quietos, sempre e sempre, podem ser os maiores errantes de todos; mas o “saunterer”, no bom sentido, não é mais errante do que o rio sinuoso, cujo propósito contínuo é encontrar o caminho mais curto para o mar.




Prefiro a prim eira com o sendo a derivação mais provável pois toda caminhada é uma espécie de cruzada que nos foí pregada por algum Pedro, o Eremita, para avançarmos e reconquistarmos esta Terra Santa das mãos dos infiéis. É exato que não passamos de cruzados acovardados, inclusive os andarilhos hodiernos, que não perseveram e nunca terminam suas empresas. Nossas expedições não passam de giros e regressam os à noitinha para o pé da velha lareira da qual nos apartáramos. Metade da jornada é para trilhar os cam inhos já percorridos. Devíamos, andando menos, percorrer maior distância, e talvez, no espírito imortal da aventura, nunca mais regressarmos, preparados para devolver os nossos corações embalsamados, com as relíquias, aos nossos desolados domínios. Se estais pronto para deixar pai e mãe, irmão e irmã, esposa e filho, e amigos, e a nunca mais vê-los — se haveis saldado vossas dívidas, feito vosso testamento, deixado em ordem os negócios e se sois um homem livre, então estais pronto para uma caminhada.




Para reportar-me à minha experiência própria, meu companheiro e eu — pois que às vezes tenho companheiro — nos divertimos em nos imaginar dignitários de uma nova, ou melhor, de uma velha ordem — que não é a dos Equestres ou Cavaleiros, nem a dos Ritters, m as a dos Andarilhos, uma classe ainda mais antiga e honorável, espero. O espirito cavaleriano e heróico que outrora pertenceu ao Cavaleiro parece residir agora no Andarilho, ou dele partilhar — não o Cavaleiro, mas o Andarilho Errante. É uma espécie de quarto estado, afora a Igreja, o Estado e o Povo. Sentimos que aqui nas cercanias quase só nós praticamos esta nobre arte, muito embora, para usar de franqueza, a maioria dos citadinos, a julgar pelo que afirmam , gostariam de, como faço, caminhar de vez em quando, mas não podem. Nenhuma fortuna é capaz de comprar os requisitos lazer, liberdade e independência, que são essenciais nesta profissão. Só decorrem da graça de Deus. Para tornar-se andarilho é mister uma dispensa direta dos Céus. É preciso que pertençais à família dos Andarilhos. Ambulatur nascitur, non fit. Vários dos meus citadinos, é certo, podem lembrar-se de algumas cam inhadas que me descrevem e que fizeram há dez anos e nas quais tiveram a felicidade de se perderem na floresta, durante apenas meia hora. Mas sei muito bem que se bitolaram sempre na estrada real, apesar do que possam afetar de desejo de pertencer a esta classe de escol. Não há dúvida de que se entusiasmaram por um momento pelas reminiscências atávicas, quando até eles eram habitantes das florestas e contraventores.


Quando ele entrou na floresta verde
Numa manhã jovial
Aí ouviu o gorjeio suave
Dos felizes pássaros cantando.
De há muito, disse Robin,
Aqui estive pela última vez
Detenho-me um pouco para atirar
Na corça fugitiva.



Acho que não posso conservar a saúde e o espírito sem passar no mínimo quatro horas por dia — e o comum é passar mais do que isso —sauntering pelas matas, colinas e campos, absolutamente isento de todas as obrigações mundanas. Quando às vezes me recordo de que os mecânicos e os caixeiros permanecem em seus postos não apenas toda a manhã, mas toda a tarde também, muitos dos quais de pernas cruzadas — como se as pernas tivessem sido feitas para sobre elas nos sentarm os e não para sobre elas, ficarmos de pé e caminharmos —julgo-os merecedores de louvor por não terem todos, de há muito, praticado o suicídio.




(Andar a pé – tradução de Sarmiento de Beires e José Duarte)



(Ilustração: Brueghel - o camponês e o ninho)




sábado, 13 de março de 2010

AI DONA FEA!, de João Garcia de Guilhade






Ai dona fea! Fostes-vos queixar

Porque vos nunca louv' en meu trobar

Mais ora quero fazer un cantar

En que vos loarei toda via;

E vedes como vos quero loar:

Dona fea, velha e sandia!





Dona fea! Se Deus me pardon!

E pois avedes tan gran coraçon

Que vos eu loe, en esta razon,

Vos quero ja loar toda via;

E vedes qual será a loaçon:

Dona fea, velha e sandia!






Dona fea, nunca vos eu loei

En meu trobar, pero muito trobei;

Mais ora ja un bon cantar farei

En que vos loarei toda via;

E direi-vos como vos loarei:

Dona fea, velha e sandia!





(CV 1097, CBN 1486)


(Ilustração: Bosch)



quinta-feira, 11 de março de 2010

A ÚLTIMA CRÔNICA, de Fernando Sabino







A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.


Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último oema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.


Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa.

A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.


(A Companheira de Viagem)


(Ilustração: desenho sem crédito)






terça-feira, 9 de março de 2010

SENHORA, PARTEM TÃO TRISTES, de João Roiz de Castelo-Branco





Senhora, partem tão tristes


meus olhos por vós, meu bem,


que nunca tão tristes vistes


outros nenhuns por ninguém.





Tam tristes, tam saudosos,


tam doentes da partida,


tam cansados, tam chorosos,


da morte mais desejosos


cem mil vezes que da vida.


Partem tam tristes os tristes,


tam fora d’esperar bem,


que nunca tam tristes vistes


outros nenhuns por ninguém.



(Cancioneiro Geral)



(Ilustração: Odilon Redon – yeux clos)