sexta-feira, 19 de março de 2010
CAFÉ E ARTEMÍSIA, de Cármen Rocha
A mesa estava posta. Pãezinhos, bolos, geleias e ambições. Uma discreta fumacinha do havana era abafada pelo café fumegante.
Artemísia servia eriçada. Aspásia, se acomodando, trincou a broa de fubá que encheu seu paladar e amenizou seu coração de ferro. Hipátia virando a delicada xícara pensava consigo mesma em coisas absurdas, ao relembrar os fatos recentes - o pai, as brigas, a herança... Sorriu sorrateira.
A cortina ao balançar, discordava daquela harmonia aparente. As velas, juntamente com a cortina, estremeciam.
Por trás da alegria, elas se entreolhavam obscuramente. Aguardavam temerosas.
O céu, um breu. O relógio marcou meia-noite e as irmãs estremeceram. Interromperam o duvidoso cafezinho.
Tomada de coragem, Artemísia levantou-se. Trouxe para o centro da mesa o pequenino baú, que representava a “Sua” última vontade. Afastaram as louças e depositaram o cofrinho bem à vista, como exigia o testamento.
Foi cuidadosamente aberto...
Um cheiro de mofo espalhou-se. Foram brotando papéis amarelados, um patacão antigo, cartões, poucas cartas com caligrafia feminina, retrato de soldados com suas armas, medalhas antigas e... só.
Ouviu-se um “Oh!” sonoro, de espanto e desaponto. E as três irmãs murcharam.
Com o tardar das horas resolveram ir dormir, só não entenderam o porquê de ter-se que abrir o pequeno baú àquela hora.
Aspásia gargalhou silenciosamente. Só o infeliz do seu pai, mesmo...
Passado o primeiro impacto, já no quarto, Artemísia analisou o pai: terrível, pesquisador imbatível, bem sucedido, curioso, prepotente, espalhafatoso, teatral, e luxuriosamente mau, muito mau. Deveria estar no além, gargalhando. Riu-se.
A fumacinha, na saleta, intensificou-se.
Artemísia, sentindo a quietude das salas e corredores, levantou-se com precaução, tomou o pequeno baú de metal e ficou apalpando e analisando-o. O pequeno cofre reluzia à luz da lua.
E no silêncio que se fazia, ouviu um pequenino estalo, quase nada. Era da pequena tampa da latinha. E ao tocá-la percebeu a minúscula chave incrustada na alça, do lado interno da caixinha! O gênio do mal se manifestara?! Era coisa do falecido... Era o penúltimo dia para ser requisitada a fortuna. Seria a sua última maldade? Um esgar de ódio perpassou-lhe o senblante.
E agora, o que fazer? O que fazer com uma minúscula chavinha em um grande casarão? As horas corriam. Havia pressa!
Lembrou-se de um único lugar cheio de desenhos, arabescos, gavetinhas e vãos. “Sua” escrivaninha! Seria tão fácil assim? O gênio do mal estaria sendo vencido?
Às apalpadelas, na quase escuridão, dirigiu-se ao escritório do pai e lá perto da janela, incrustada na parede, a escrivaninha rococó reluzia em toda sua beleza.
Arrepiada, chegou-se. Sentou, e seduzida pela imensa fortuna que iria pertencer-lhe estremeceu. Tocou piano naquela madeira nobre.
Seu cérebro estava em brasa.Seus olhos percorriam cada entalhe, todos os vãos. Seus dedos dedilhavam a madeira trabalhada. Então sentiu! Na lateral, uma pequena reentrância. Colocou a chavinha que, num clic perfeito abriu-se. Pequeno painel deslizou e então montes e montes de dinheiro vivo, notas empilhadas, se apresentaram ante um fundo escuro, não muito visível, no desvão da parede. Era um espaço, com enorme fortuna. Deu um “Ah”... que foi seguido de outros dois mais vibrantes. Virou-se espantada, mas sentiu um baque na fronte, e na nuvem que se seguiu, pareceu-lhe ouvir tiros...
Na saleta, a cinza de um havana apagado era depositada na xícara de café frio.
(Ilustração: Caia Koopman – ursidae adoration)
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