segunda-feira, 15 de março de 2010

ANDAR A PÉ, de Henry David Thoureau






Desejo dizer uma palavra em nome da natureza, em nome da liberdade absoluta, em nome da amplidão, que contrastam com a liberdade e a cultura das cidades — no sentido de considerar o homem como um habitante da natureza, ou parte e parcela dela, e não como um elemento da sociedade. Desejo fazer uma exposição vasta e, se puder, a farei enfática, pois existem muitíssimos campeões da civilização. Não só o ministro e as congregações das escolas mas todos vós a tomareis em consideração.



Em todo o decurso da minha vida só encontrei uma ou duas pessoas que compreendiam a arte de andar, isto é, de dar passeios a pé — que tinham o gênio, por assim dizer, do “sauntering”, palavra esplendidamente derivada de “pessoas vadias que erravam pelo país, na Idade Média, e pediam esmola sob o pretexto de irem à la Sainte Terre”, à Terra Santa, até as crianças exclamarem: “Lá vai um Sainte-Terrer“, um “Saunterer”, um da Terra Santa. Os que nunca vão à Terra Santa nas suas peregrinações, como pretendem, são, em verdade, meros vadios e vagabundos; mas os que lá vão ter são “saunterers”, no bom sentido que tenho em vista. É certo que alguns derivariam a palavra de sans terre, sem terra ou pátria, o que, portanto, no bom sentido, significará — não tendo pátria determinada, mas igualmente tendo sua pátria em toda parte. Pois este é o segredo do vitorioso “sauntering”. Os que se deixam permanecer em casa, quietos, sempre e sempre, podem ser os maiores errantes de todos; mas o “saunterer”, no bom sentido, não é mais errante do que o rio sinuoso, cujo propósito contínuo é encontrar o caminho mais curto para o mar.




Prefiro a prim eira com o sendo a derivação mais provável pois toda caminhada é uma espécie de cruzada que nos foí pregada por algum Pedro, o Eremita, para avançarmos e reconquistarmos esta Terra Santa das mãos dos infiéis. É exato que não passamos de cruzados acovardados, inclusive os andarilhos hodiernos, que não perseveram e nunca terminam suas empresas. Nossas expedições não passam de giros e regressam os à noitinha para o pé da velha lareira da qual nos apartáramos. Metade da jornada é para trilhar os cam inhos já percorridos. Devíamos, andando menos, percorrer maior distância, e talvez, no espírito imortal da aventura, nunca mais regressarmos, preparados para devolver os nossos corações embalsamados, com as relíquias, aos nossos desolados domínios. Se estais pronto para deixar pai e mãe, irmão e irmã, esposa e filho, e amigos, e a nunca mais vê-los — se haveis saldado vossas dívidas, feito vosso testamento, deixado em ordem os negócios e se sois um homem livre, então estais pronto para uma caminhada.




Para reportar-me à minha experiência própria, meu companheiro e eu — pois que às vezes tenho companheiro — nos divertimos em nos imaginar dignitários de uma nova, ou melhor, de uma velha ordem — que não é a dos Equestres ou Cavaleiros, nem a dos Ritters, m as a dos Andarilhos, uma classe ainda mais antiga e honorável, espero. O espirito cavaleriano e heróico que outrora pertenceu ao Cavaleiro parece residir agora no Andarilho, ou dele partilhar — não o Cavaleiro, mas o Andarilho Errante. É uma espécie de quarto estado, afora a Igreja, o Estado e o Povo. Sentimos que aqui nas cercanias quase só nós praticamos esta nobre arte, muito embora, para usar de franqueza, a maioria dos citadinos, a julgar pelo que afirmam , gostariam de, como faço, caminhar de vez em quando, mas não podem. Nenhuma fortuna é capaz de comprar os requisitos lazer, liberdade e independência, que são essenciais nesta profissão. Só decorrem da graça de Deus. Para tornar-se andarilho é mister uma dispensa direta dos Céus. É preciso que pertençais à família dos Andarilhos. Ambulatur nascitur, non fit. Vários dos meus citadinos, é certo, podem lembrar-se de algumas cam inhadas que me descrevem e que fizeram há dez anos e nas quais tiveram a felicidade de se perderem na floresta, durante apenas meia hora. Mas sei muito bem que se bitolaram sempre na estrada real, apesar do que possam afetar de desejo de pertencer a esta classe de escol. Não há dúvida de que se entusiasmaram por um momento pelas reminiscências atávicas, quando até eles eram habitantes das florestas e contraventores.


Quando ele entrou na floresta verde
Numa manhã jovial
Aí ouviu o gorjeio suave
Dos felizes pássaros cantando.
De há muito, disse Robin,
Aqui estive pela última vez
Detenho-me um pouco para atirar
Na corça fugitiva.



Acho que não posso conservar a saúde e o espírito sem passar no mínimo quatro horas por dia — e o comum é passar mais do que isso —sauntering pelas matas, colinas e campos, absolutamente isento de todas as obrigações mundanas. Quando às vezes me recordo de que os mecânicos e os caixeiros permanecem em seus postos não apenas toda a manhã, mas toda a tarde também, muitos dos quais de pernas cruzadas — como se as pernas tivessem sido feitas para sobre elas nos sentarm os e não para sobre elas, ficarmos de pé e caminharmos —julgo-os merecedores de louvor por não terem todos, de há muito, praticado o suicídio.




(Andar a pé – tradução de Sarmiento de Beires e José Duarte)



(Ilustração: Brueghel - o camponês e o ninho)




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