sábado, 30 de julho de 2022

EPICURO, de Stephen Greenblat

 



Da natureza [1] é a obra de um discípulo que transmite ideias desenvolvidas um século antes. Epicuro, o messias filosófico de Lucrécio, nasceu perto do fim de 342 a.C. na ilha de Samos, no mar Egeu, onde seu pai, um mestre-escola ateniense de poucos recursos, havia ido parar como colonizador. [2] Muitos filósofos gregos, inclusive Platão e Aristóteles, vinham de famílias ricas e se orgulhavam de seus ancestrais distintos. Epicuro decididamente não tinha como dizer a mesma coisa. Seus inimigos filosóficos, refestelados em sua superioridade social, abusavam da humildade de suas origens. Ele ajudava o pai na escola por uma paga mínima, riam eles, e ia com a mãe de casebre em casebre ler encantamentos. Um de seus irmãos, acrescentavam, era um alcoviteiro que morava com uma prostituta. Não se tratava de um filósofo com que as pessoas de bem devessem se relacionar.

O fato de que Lucrécio e muitos outros fizeram mais do que simplesmente se relacionar com Epicuro — eles o festejavam como alguém de sabedoria e coragem divinas — dependia não de suas credenciais sociais, mas do que consideravam ser o poder de salvação que existia em sua visão. O núcleo dessa visão pode ser reduzido a uma única ideia incandescente: tudo que já existiu e tudo que ainda existirá é montado a partir de partículas indestrutíveis de dimensões diminutas, mas inimaginavelmente numerosas. Os gregos tinham uma palavra para essas partículas invisíveis, coisas que, como eles as concebiam, não podiam ser divididas em elementos menores: átomos.

A noção de átomo, que se originou no século V a.C. com Leucipo de Abdera e seu aluno favorito Demócrito, era somente uma curiosa especulação; não havia como conseguir uma prova empírica, e não haveria como fazê-lo por mais de 2 mil anos. Outros filósofos defendiam teorias contrárias: a matéria central do universo, diziam eles, era o fogo, ou a água, ou o ar, ou a terra, ou alguma combinação desses elementos. Outros sugeriam que, caso fosse possível ver a menor partícula do homem, o que se encontraria seria um homem infinitesimalmente minúsculo; e o mesmo aconteceria com um cavalo, uma gotinha d’água, ou uma folha da relva. Outros ainda propunham que a intricada ordem do universo era prova de uma mente ou um espírito invisível que cuidadosamente montava as peças segundo um plano prévio. A concepção de Demócrito, de um número infinito de átomos que não têm qualidades além de tamanho, figura e peso — partículas que não são versões em miniatura do que vemos, mas formam o que vemos ao se combinarem umas com as outras numa inexaurível multiplicidade de formas —, era uma solução fantasticamente ousada para um problema que desafiava os grandes intelectos de seu mundo.

Foram necessárias muitas gerações para que todas as consequências dessa solução pudessem ser entendidas. (E de maneira alguma nós já as entendemos todas.) Epicuro começou seus esforços para fazer exatamente isso aos doze anos de idade, quando ficou contrariado porque seus professores não sabiam explicar o significado do caos. A antiga ideia dos átomos de Demócrito lhe parecia o caminho mais promissor, e ele se pôs a trabalhar para segui-lo aonde pudesse levá-lo. Aos 32 anos de idade, ele estava pronto para fundar uma escola. Num jardim de Atenas, Epicuro construiu toda uma explicação do universo e uma filosofia da vida humana.

Constantemente em movimento, os átomos colidem uns com os outros, raciocinava Epicuro, e em certas circunstâncias formam corpos cada vez maiores. Os maiores corpos que se podem observar — o Sol e a Lua — são feitos de átomos, assim como os seres humanos e as moscas e os grãos de areia. Não há supercategorias da matéria; não há uma hierarquia dos elementos. Os corpos celestes não são seres divinos que definem nosso destino para o bem ou para o mal, e também não se movem pelo vazio guiados pelos deuses: eles simplesmente fazem parte da ordem natural, são imensas estruturas de átomos sujeitas aos mesmos princípios de criação e destruição que governam tudo que existe. E, se a ordem natural é inconcebivelmente vasta e complexa, continua sendo possível compreender parte de seus constituintes básicos e de suas leis universais. Na verdade, essa compreensão é um dos maiores prazeres humanos.

Talvez esse prazer seja a chave para entender o vigoroso impacto da filosofia de Epicuro; [3] foi como se ele tivesse exposto para seus seguidores uma fonte inesgotável de satisfação, escondida dentro dos átomos de Demócrito. Para nós, é difícil compreender esse impacto. Primeiro, o prazer parece intelectual demais para atingir mais que um número reduzido de especialistas; depois, passamos a associar os átomos muito mais ao medo que à satisfação. Mas, embora a filosofia antiga estivesse longe de ser um movimento de massas, Epicuro oferecia algo além de um manjar para um punhado de físicos de partículas. Ele evitava a linguagem cifrada e especializada de um círculo fechado de adeptos, insistia em usar a língua comum, em se dirigir ao mais amplo círculo de ouvintes, e até em fazer proselitismo. E o esclarecimento que oferecia não necessitava de longas investigações científicas. Não era preciso ter uma compreensão detalhada das efetivas leis do universo físico, apenas compreender que há uma explicação natural oculta para tudo aquilo que causa assombro ou perplexidade. Essa explicação inevitavelmente vai levar você de volta aos átomos. Caso consiga se agarrar ao fato mais simples da existência, e repeti-lo — átomos e vazio e nada mais, átomos e vazio e nada mais —, sua vida vai mudar. Você não vai mais temer a ira de Jove quando ouvir o som do trovão, ou suspeitar que alguém ofendeu Apolo sempre que houver um surto de gripe. E vai se ver livre de uma terrível aflição — aquilo que Hamlet, muitos séculos depois, descreveu como “o pavor de algo após a morte,/ a terra desconhecida de cujas fronteiras/ viajante nenhum retorna”.

A aflição — o medo de algum castigo horroroso num reino além-túmulo — não tem mais efeito sobre a maioria dos homens e mulheres modernos, mas evidentemente tinha seu peso na antiga Atenas de Epicuro e na Roma antiga de Lucrécio, e também no mundo cristão em que vivia Poggio. Com certeza Poggio há de ter visto imagens desses horrores, amorosamente gravadas no tímpano sobre as portas das igrejas ou pintadas em suas paredes internas. E esses horrores, por sua vez, surgiam a partir de relatos da vida após a morte criados pela imaginação pagã. É claro que nem todo mundo em qualquer um desses períodos, pagão ou cristão, acreditava nesses relatos. “Não ficas apavorado de medo, pergunta um dos personagens num diálogo de Cícero, do mundo dos mortos, com seu cão de três cabeças, seu rio negro, seus horrendos castigos?” “Achas que sou louco de acreditar em tais lendas?”, seu amigo responde. [4] O medo da morte não se refere ao destino de Sísifo e Tântalo: “Qual será a velhota tola que tem medo” dessas histórias de terror? Ele se refere ao pavor de sofrer e ao de desaparecer, e é difícil entender, Cícero escreveu, por que os epicuristas imaginam oferecer algum paliativo.[5] Ouvir dizer que nós desaparecemos completamente e para sempre, alma e corpo, está longe de ser um consolo.

Os seguidores de Epicuro reagiam evocando os últimos dias do mestre, morrendo de uma dolorosíssima obstrução da bexiga, mas atingindo a serenidade de espírito ao relembrar todos os prazeres da vida. Não é claro que seu modelo fosse facilmente imitável — “Quem pode segurar nas mãos a chama/ Pensando só no gélido Cáucaso?”, como pergunta um dos personagens de Shakespeare —, mas também não é claro que qualquer uma das alternativas disponíveis, num mundo sem analgésicos opiáceos, tivesse mais sucesso em lidar com as agonias da morte. O que o filósofo grego oferecia não era ajuda para morrer, mas ajuda para viver. Libertado da superstição, Epicuro ensinava, você se veria livre para buscar o prazer.

Os inimigos de Epicuro fizeram um uso malicioso de sua celebração do prazer e inventaram histórias maldosas de devassidão, relatos que ganhavam mais peso por sua incomum inclusão de mulheres junto aos homens que o seguiam. Ele “vomitava duas vezes por dia, por seus excessos”, dizia uma dessas histórias, e gastava uma fortuna com festins. [6] Na realidade, o filósofo parece ter levado uma vida conspicuamente simples e frugal. “Manda-me um pote de queijo”, ele uma vez escreveu a um amigo, “para que, quando quiser, eu possa viver suntuosamente.” E lá se vai a suposta abundância de sua mesa. Além disso, ele incitava seus alunos a uma frugalidade comparável. O lema entalhado sobre a porta que levava ao jardim de Epicuro incentivava o estrangeiro a ficar, pois “aqui nosso bem maior é o prazer”. No entanto, segundo o filósofo Sêneca, que cita essas palavras numa famosa carta que Poggio e seus amigos conheciam e admiravam, o passante que entrasse receberia uma refeição simples de papa de cevada e água. [7] “Quando dizemos, então, que o prazer é a meta”, Epicuro escreveu numa das poucas cartas suas que sobreviveram, “não nos referimos aos prazeres da prodigalidade ou aos prazeres da sensualidade.” [8] A enlouquecida tentativa de satisfazer certos apetites — “uma sucessão ininterrupta de bebedeiras e festejos [...] amor sexual [...] o consumo de peixe e outras iguarias de uma mesa requintada” — não pode levar à paz de espírito que é a chave do prazer duradouro.

“Os homens sofrem os piores males por causa dos desejos que lhes são mais estranhos”, escreveu seu discípulo Filodemo, num dos livros encontrados na biblioteca de Herculano, e “negligenciam os apetites mais necessários como se fossem os mais estranhos a sua natureza.”[9] Quais são esses apetites necessários que levam ao prazer? É impossível viver de maneira prazerosa, Filodemo continuava, “sem viver de maneira prudente e honrada e justa, e também sem viver de maneira corajosa, temperada e magnânima, e sem fazer amigos, e sem ser filantrópico”.

Essa é a voz de um autêntico seguidor de Epicuro, uma voz recuperada em tempos modernos de um rolo de papiro enegrecido por um vulcão. Mas está longe de ser a voz que todos os familiarizados com o termo “epicurismo” esperariam. Numa de suas caricaturas satíricas mais memoráveis, Ben Jonson, contemporâneo de Shakespeare, retratou com perfeição o espírito com que se entendeu por longos séculos a filosofia de Epicuro. “Vou mandar encherem a sopro minhas camas todas,” declara o personagem de Jonson. “Pluma é coisa muito dura.”

Minha carne virá toda em conchas indianas,

Pratos de ágata, ornados de ouro, e cravados

De esmeraldas, safiras, zircões e rubis...

Meu valete comerá faisões, salmões curados,

Pãezinhos, maçaricos e lampreias. Eu hei de ter

Barbinhas de carpas em vez de saladas;

Cogumelos ao óleo; e as gordas tetas túmidas

De uma bela porca prenha, recém-cortadas,

Temperadas com raro molho picante;

Pelos quais direi a meu cozinheiro, “Toma ouro,

Vai e te faz cavaleiro”. [10]



O nome que Jonson deu a esse enlouquecido em busca do prazer é Sir Epicure Mammon.

Uma firmação filosófica de que o objetivo final da vida é o prazer — mesmo que esse prazer seja definido nos termos mais restritos e responsáveis — era escandalosa, tanto para os pagãos como para seus adversários, os judeus e depois os cristãos. O prazer como bem maior? E adorar os deuses e os ancestrais? Servir à família, à cidade, ao estado? Observar escrupulosamente as leis e mandamentos? Buscar a virtude ou uma visão do divino? Essas afirmações opostas inevitavelmente acarretavam formas ascéticas de autonegação, auto sacrifício e até de autodesprezo. Nenhuma delas era compatível com a busca do prazer como bem maior. Dois mil anos depois de Epicuro ter vivido e ensinado, a noção de escândalo ainda era sentida com intensidade suficiente para gerar a energia maníaca dos pastiches como o de Jonson.

Por trás desses pastiches estava um medo mal ocultado de que maximizar o prazer e evitar a dor fossem na verdade objetivos atraentes e pudessem servir de maneira plausível como princípios racionais de organização da vida humana. Caso tivessem sucesso nessa empreitada, todo um conjunto de princípios alternativos tradicionais — sacrifício, ambição, status social, disciplina, fé — seria questionado, junto com as instituições a que esses princípios serviam. Levar a busca epicurista do prazer a um grotesco extremo de autoindulgência sensualista — retratado como uma busca obsessiva de sexo, ou poder, ou dinheiro, ou até (como em Jonson) de comidas extravagantes e absurdamente caras — ajudava a evitar o desafio.

Em seu jardim fechado em Atenas, o verdadeiro Epicuro, ceando queijo, pão e água, levou uma vida tranquila. Na verdade, uma das acusações mais legítimas contra ele era que sua vida era calma demais: ele aconselhava que seus seguidores não se envolvessem nas questões cívicas de maneira plena e vigorosa. “Certos homens buscaram fama e renome”, ele escreveu, “pensando que assim ficariam seguros contra os outros.”[38] Se com a fama e o renome viesse a segurança, então a pessoa que buscava essas situações atingia um “bem natural”. Mas, caso a fama trouxesse uma insegurança ainda maior, como na maioria dos casos, então essa realização não valia a pena. Desse ponto de vista, observavam os críticos de Epicuro, seria difícil justificar a maior parte dos incessantes esforços e riscos assumidos que levam à grandeza de uma cidade.



NOTAS:


[1] De rerum natura (Sobre a natureza das coisas) é um poema didático, dentro do gênero dos periphyseos cultivado por alguns pré-socráticos gregos, escrito no século I a.C. por Tito Lucrécio Caro; dividido em seis livros, proclama a realidade do homem num universo sem deuses e tenta libertá-lo do seu temor à morte. Expõe a física atomista de Demócrito e a filosofia moral de Epicuro. (Wikipedia). Esse poema esteve perdido durante quase toda a Idade Média, sendo encontrado num convento da Alemanha por Poggio Bracciolini, em 1317. Poggio era um humanista fanático por livros antigos que foi secretário de João XIII, o papa destronado e proscrito da história da Igreja. É a personagem central do livro de Stephen Greenblat. Mais adiante ele se refere a frações de livros da biblioteca de Herculano: são pergaminhos conservados em forma de carvão encontrados em escavações dessa cidade destruída pelo fogo do vulcão. (Nota do blog)

[2] Lives of Eminent Philosophers (“V idas de filósofos eminentes”), obra em dois volumes de Diógenes Laércio, vols. 184 e 185 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1925), 2:531-3.

[3] O termo epilogismos, de Epicuro, é usado com frequência para sugerir “o raciocínio com base em dados empíricos”, mas, de acordo com Michael Schofield, ele se refere a “nossos procedimentos cotidianos de observação e avaliação” — extraído de Rationality in Greek Thougth, de Schoefield, edição de Michael Frede e Gisele Striker (Oxford: Clarendon Press, 1996). Schoefield sugere que esses procedimentos remetem a uma famosa passagem de Epicuro: “Não devemos usar novas expressões acreditando que isso será um avanço; devemos simplesmente usar as que já existem”, p. 222. O pensamento que Epicuro transmitia a seus discípulos era “uma atividade absolutamente comum, disponível a todos, não um feito intelectual restrito a, por exemplo, matemáticos ou dialéticos”, p. 235.

[4] Tusculanae disputationes (“Disputas tusculanas”), de Cícero, tradução de J. E. King, vol. 141 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1927), 1.6.10.

[5] Ibid., 1.21.48-89

[6] Acusação feita por “Timócrates, irmão de Metrodoro, que era seu discípulo [de Epicuro] e mais tarde abandonou aescola”, extraído de Lives of Eminent Philosophers, de Diógenes Laércio, tradução de R. D. Hicks, vol. 185 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1925), 2:535.

[7] Ad Lucilium Epistulae Morales, compilação em três volumes de Sêneca, tradução de Richard Gummere (Cambridge: Cambridge University Press, 1917), 1:146.

[8] Lives, de Laércio, 2: 657.

[9] On Choices and Avoidances (“Sobre escolhas e recusas”), de Filodemo, tradução de Giovanni Indeli e V oula TsounaMcKirahan, vol. 15 de La Scuola di Epicuro (Nápoles: Bibliopolis, 1995), pp. 104-6.

[10] The Alchemist, de Ben Jonson, editada em dois volumes por Alvin B. Kerman (New Haven: Y ale University Press, 1974), ii,ii.41-42; 72-87. Jonson segue a tradição de representar Epicuro como padroeiro das tabernas e dos bordéis, tradição que inclui também o bem alimentado proprietário de terras de Chaucer, descrito nos Contos de Canterbury como um epicurista.

[11] Máxima no 7 de Lives of Eminent Philosophers, de Diógenes Laércio, tradução de R. D. Hicks, vol. 185 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1925), 1:665.



(A virada – o nascimento do mundo moderno; tradução de Caetano W. Galindo)



(Ilustração: Pierre-Henri de Valenciennes (1750 – 1819) - historical landscape)

quarta-feira, 27 de julho de 2022

DANSE RUSSE / DANÇA RUSSA, de William Carlos Williams

 



If I when my wife is sleeping

and the baby and Kathleen

are sleeping

and the sun is a flame-white disc

in silken mists

above shining trees,—

if I in my north room

dance naked, grotesquely

before my mirror

waving my shirt round my head

and singing softly to myself:

“I am lonely, lonely.

I was born to be lonely,

I am best so!”

If I admire my arms, my face,

my shoulders, flanks, buttocks

against the yellow drawn shades,—



Who shall say I am not

the happy genius of my household?



Tradução de Dalcin Lima:



Se quando minha esposa,

o bebê e Kathleen

dormem

e o sol é um disco de chama branca

nas brumas de seda

sobre as árvores que brilham –

se eu, no quarto norte,

danço grotescamente nu

diante do espelho

agitando a camisa em volta da minha cabeça

e cantando suavemente para mim mesmo:

“Estou só, só.

Nasci para ser só,

estou melhor assim!”

Se admire meus braços, rosto,

ombros, flancos e nádegas

contra as desenhadas sombras amarelas, –



Quem há de dizer que não sou

o gênio feliz de minha família?



Tradução de Adriano Nunes:




Se quando minha esposa está dormin

do e o bebê e Kathleen

estão dormin

do e o sol é um disco vistoso

no nevoeiro sedoso

sobre árvores reluzentes, -

se eu em meu quarto ao norte

danço nu, grotescamente

Ao meu espelho de frente

sobre a cabeça a camisa agitando

E pra mim mesmo suave cantando:

"Eu sou solitário, solitário,

eu nasci pra ser solitário,

melhor assim eu sou!"

Se eu admiro minha face, meus braços,

meus ombros, nádegas, flancos,

contra as cerradas amarelas vidraças, -

Quem poderá dizer que eu não sou

o alegre gênio do meu lar?



(The collected poems of William Carlos Williams)


(Ilustração: Pierre Subleyras - Caronte transportando las almas)


segunda-feira, 25 de julho de 2022

A QUESTÃO DAS MULHERES NEGRAS PRECISA SER CENTRAL, de Djamila Ribeiro




Sueli Carneiro já nos ensinou em “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”, que quando falamos de mulheres, é necessário se fazer a pergunta: de quais mulheres estamos falando? Mulheres não pode ser uma categoria única e universal.

Se pararmos para olhar a história hegemônica do feminismo, percebemos certo apagamento das vozes das mulheres negras nessa história. Há compêndios e livros sobre a história das mulheres no Brasil nos quais não há capítulos sequer falando sobre feminismo negro ou mulheres negras.

A teoria feminista surge como forma de criticar e refutar uma epistemologia masculinista, estudos e pesquisas formulados tendo como base o homem e relegando a mulher o lugar de outro. A inserção do gênero [1] como categoria de análise científica, além de ser importante para a construção de novos pensamentos, foi um ato político. Há uma dimensão política nessas teorias porque são pensadas a entender e enfrentar a opressão histórica das mulheres, além de confrontar os saberes oficiais e as totalizações universalistas. Visa, nas palavras de Sandra Harding, “estender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a tornar as atividades e relações sociais das mulheres analiticamente visíveis no âmbito das diferentes tradições intelectuais” (HARDING, 1993: 7). As teorias feministas já nascem com o compromisso social de emancipação das mulheres, porém possuem enfoques diversos e seguem diferentes perspectivas. Sendo assim, há as teóricas que seguem um viés liberal, outras, marxista, radical, socialista, anarquista, cada qual seguindo seus respectivos quadros analíticos e perspectivas políticas.[2] (BUBECK, 2000: 186).

O que observamos é que, a teoria feminista, nasce no sentido de questionar o discurso hegemônico, mas também, de certa forma, acaba incorporando esse discurso ao ser brancoêntrico, heterossexual. Sim, estamos falando de mulheres, mas mulheres negras possuem situações diferentes de mulheres brancas. Assim como mulheres lésbicas possuem situações diferentes de mulheres heterossexuais. Então querer atribuir uma identidade comum a categorias diferentes poderia ser considerado um erro de categoria. E se trabalharmos com essa hipótese, a partir desse erro tentou-se mobilizar ações do ponto de vista político para emancipação das mulheres. O que faz com que questionemos: como buscar emancipação para mulheres negras tendo como base a categoria de mulheres brancas? Teorias feministas brancocêntricas, mas que se pretendem universais, por mais que possuam uma posição política de emancipação, na ação, não realizam seu objetivo, pois negam as especificidades de outras mulheres, representando assim somente mulheres em situações de algum privilégio social.

“É essencial para o prosseguimento da luta feminista que as mulheres negras reconheçam a vantagem especial que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e fazer uso dessa perspectiva para criticar a dominação racista, classista e a hegemonia sexista, bem como de refutar e criar uma contra hegemonia. Eu estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é único e valioso”.(Bell Hooks, Feminist theory: from margin to center. p. 15).

E, nesse sentido, a mulher negra ao passar a falar de si poderia contribuir através de sua perspectiva com a teoria feminista por oferecer novas possibilidades de enfrentamento e ações políticas. Por descentrar uma visão que era brancocêntrica, mas tida como universal.

Lélia Gonzalez também nos oferece uma perspectiva interessante sobre isso criticando a ciência moderna como padrão exclusivo para a produção do conhecimento. A autora vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco. Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação” (Gonzalez, 1988). E, dentro dessa lógica, a teoria feminista também acaba incorporando esse discurso e estruturando o discurso das mulheres brancas como dominante.

Portanto faz-se necessário colocar em xeque essas representações concebidas a partir de um local de privilégio. Seriam necessárias molduras conceituais que nos possibilitem tratar plenamente a questão de que os processos de formação da subjetividade são ao mesmo tempo sociais e subjetivos; que podem nos ajudar a entender os investimentos psíquicos que fazemos ao assumir posições específicas de sujeito que são socialmente produzidas (BRAH, 2006, p. 369).

Nesse sentido, acredito que Audre Lorde e Judith Butler nos tragam perspectivas interessantes. Tanto Lorde como Butler propõem que se repense a ação política do feminismo. Ao dizer que “as ferramentas do mestre não desmantelarão a casa grande” e que “o processo de constituição do sujeito implica necessariamente sua sujeição”, ambas apontam para o fato de que o modelo de representação utilizado pelo feminismo até então, é insuficiente. As autoras evidenciam o fato de que outras vozes precisam ser ouvidas e que a universalização deixa de fora muitas identidades contidas nesse ser mulher. Há uma demanda reprimida, não se pode negar. Mulheres negras, por exemplo, necessitam de mais representatividade e políticas públicas direcionadas. Assim como mulheres trans e mulheres lésbicas. Lorde diz: “Se a teoria de feministas americanas brancas não precisa lidar com as diferenças entre nós e a diferença resultante em nossas opressões, então como você lida com o fato de que mulheres que limpam suas casas e tomam conta de suas crianças enquanto você vai a conferências sobre teoria feminista são, na maior parte, mulheres pobres e mulheres negras? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?” Nesta intervenção intitulada “As ferramentas do mestre não vão desmantelar a casa grande” e datada de 1979, a autora já apontava para a necessidade de um olhar interseccional das opressões.

O problema, então, não seria somente a universalização da categoria mulher com vistas à representação dessa categoria, mas também a questão da subordinação universal, ignorando assim as diversas situações econômicas, sociais e políticas de mulheres em diferentes sociedades, assim como a perspectiva etnocêntrica. Essa perspectiva que tanto universaliza o sujeito e a característica do dominado, vem sendo utilizada como ferramenta de ação política. Porém, Simone de Beauvoir nos indica um caminho muito interessante. Ao dizer que o drama da mulher é se colocar e querer como essencial numa situação que a quer e a vê como não-essencial, a autora nos dá a possibilidade de atualizar essa afirmação para a situação das mulheres não contempladas pelo sujeito universal do próprio feminismo. De certa forma, ao eleger o sujeito que irá contemplar, o feminismo institui a essencialidade desse sujeito, fazendo com que os outros sujeitos enfrentem o drama de quererem-se essenciais dentro de um modelo político que os nega e os coloca como não-essenciais.

Se as ferramentas do mestre não desmantelarão a casa grande, quais ferramentas seriam necessárias para contemplar as múltiplas identidades? Como pudemos observar, tanto Lorde como Butler acreditam que é necessário romper com as estruturas para que seja possível uma real emancipação. As duas autoras apontam os limites da política de representação, do modo pelo qual o movimento opera, não somente pela universalização da categoria “mulher” – o que é um erro e também apagamento de múltiplas identidades –, mas também porque o movimento ainda busca a emancipação dentro dos moldes pré-estabelecidos.




REFERÊNCIAS:



BAIRROS,L. “Mulher negra: o reforço da subordinação”. In. LOVELL, P. (org). Desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 1991.

BAIRROS, Luíza. “Nossos Feminismos Revisitados”. In: Dossiê Mulheres Negras – Matilde Ribeiro (org). Revista Estudos Feministas, Florianópolis/SC, CFH/CCE/UFSC, v.3 n. 3, 1995.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu (26), janeiro-junho de 2006: pg. 329-376.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo – fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.

_____ . O segundo sexo – a experiência vivida; tradução de Sérgio Millet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.

BUBECK, Diemut. In: Cambridge Companion to Feminism in Philosophy. Cambridge University Press, 2000

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.

CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”.

COLLINS, P.H. Black Feminist Thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. Nova York: Routledge, 2000.

CRENSHAW, K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory, and Antiracist Politics. Universityof Chicago Legal Forum, 14, 1989

HARDING, Sandra. “A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista”, in: Revista de Estudos Feminista v.1, n. 1, 1993

HOOKS, Bell. Feminism is for everybody: Passionate politics. Pluto Express, 2000.

_____. Feminist theory: from margin to center. South End Press, 2000.

LORDE, Audre. Textos escolhidos. Disponível em: <difusionfeminista@riseup.net> Acesos em 10 de janeiro de 2012.

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras.Sociedade e cultura, Vol. 11, Núm. 2, julio-diciembre, 2008, pp. 263- 274. Universidade Federal de Goiás.

SCOTT, Joan. “O enigma da igualdade”. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005.

SIMONS, Margareth A. Beauvoir and the second sex: feminism, race, and the origins of the existentialism. Boston (EUA): Rowman& Littlefield Publishers, 1999.



NOTAS



[1] Na década de 70 a antropóloga Gayle Rubin desenvolveu a sistematização sexo/gênero que foi um marco para os estudos de gênero. Em seu ensaio O Tráfico de Mulheres: Notas sobre a “Economia Política do Sexo”, publicado originalmente em 1975, sem tradução para o português, Rubin expôs uma conceituação que sistematizou ideias já existentes, embora difusas, sobre os usos de gênero na questão das mulheres (PISCITELLI, 2002). O sistema sexo/gênero é um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas (RUBIN, 1975).

[2] Ver mais sobre em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” (1989) de Joan Scott.



(Ilustração: Tim Okamura - The White Dress)

quinta-feira, 21 de julho de 2022

ACORDO COM A BOCA ILUMINADA, de Luiza Nilo Nunes

 




Acordo com a boca iluminada pelas pérolas da morte

e o meu sorriso é uma sinistra floração,

impetuosa gargalhada a atravessar a eternidade



Acordo inteira para o luto das manhãs

como um fresquíssimo cadáver,

com este corpo de mulher a rodear-se de corais

e esta cabeça baptismal que se levanta finalmente das águas



Quando as ervas amanhecem sobre a casa

e os galos sangram sobre as fúnebres artérias do meu sopro

Quando as larvas adoecem a roseira do outono

e a luz estala por mistério sob a língua

Ou quando range bruscamente este infecundo coração

eu quero apenas sucumbir sobre o teu rosto de

rapaz evaporado entre flores,

alvorecer em tuas mãos como um junquilho

e atravessar sobre um cavalo muito negro as regiões

bombardeadas do teu sono

onde despontam as amoras dos defuntos



Por vezes tenho aves esmagadas sob as plantas dos pés

Por vezes sofro e apodreço como um anjo

vascular,

um animal renunciando sobre a neve

e só levanto quando o sol é um batimento de chicotes,

uma lâmpada enfiada nos pulmões,

um flash branco a impregnar-se nos meandros dolorosos

dos ossos



Por vezes posso ouvir-te do outro lado da parede tumular

Posso escutar-te quando as águas estremecem

Quando à sombra já fraqueja o veio amargo do sorriso

ou quando à boca desaguam sangradouros,

bandos lívidos de pombos que debicam os nossos

sexos por baixo

e nos descarnam os espíritos

— Os peitos que inauguram o amor dessas crianças

em exílio, que aceleram o bater de uma

cardíaca necrose



Mas à hora em que as cortinas esvoaçam

e os quartos ardem como altíssimas fogueiras em seus

haustos menstruados

e um ar velado purifica as nossas carnes de penumbra

e em minha pele há um registro de perfume,

tu és o homem que fervilha para sempre sob a luz dos girassóis,

o gémeo morto que acendeu os olhos

bíblicos dos pássaros



E é de lacre esta pulseira que nos cola e ossifica os tornozelos

Esta corrente em vibração subcutânea

Este cordão umbilical que nos uniu pelos canais

apodrecidos das gargantas

e costurou eternamente as nossas línguas,

uma à outra,

até que ardêssemos à sombra de abajures fascinados

como um monstro a quem chamaram

bicéfalo



(Ilustração: Catherine Abel - cubist nude orange and purple)

domingo, 17 de julho de 2022

MONTE ALBÁN, OAXACA, MÉXICO, de Oliver Sacks

 



Hoje vamos às grandiosas ruínas de Monte Albán, e para me preparar tratei de ler um pouco sobre elas em meu guia de viagem. O lugar foi fundado no tempo dos olmecas, por volta de 600 a.C. — mais ou menos na mesma época de Roma; logo se tornou uma base da cultura zapoteca, o eixo político e comercial da região, e seu poder estendia-se em todas as direções num raio de duzentos quilômetros, tendo como centro o mirante de seu inigualável platô nas montanhas. A nivelação de um topo de montanha para criar esse platô foi, em si, uma espantosa façanha de engenharia, sem falar no fornecimento de irrigação, alimento e saneamento para uma população estimada em mais de quarenta mil pessoas. A cidade abrigava escravos e artesãos, vendedores ambulantes e mercadores, guerreiros e atletas, mestres de obra e sacerdotes astrônomos, e foi o núcleo de uma rede de relações comerciais disseminadas por toda a Mesoamérica — um grande mercado de obsidiana, jade, penas de quetzal, peles de jaguar e conchas das costas do Atlântico e do Pacífico. Sem que se saiba por quê, ainda ao que parece no auge de sua influência e poder, o lugar foi abandonado por volta de 800 d.C., após mil e quinhentos anos de existência. Monte Albán, embora muito mais antiga do que Mitla ou Yagul, era considerada sagrada pelos zapotecas, e acredita-se que eles tenham conseguido escondê-la dos conquistadores. Graças a isso, boa parte da cidade ainda permanece em pé, quase como no dia em que foi construída.

Na periferia de Monte Albán vemos montículos piramidais, tumbas e pequenos terraços pontilhando as encostas. Essas colinas antigas são ricas em história humana, uma história muito anterior à da própria cidade de Oaxaca, que tem apenas sete séculos. Minha primeira impressão sobre Monte Albán é de assombro, surpresa. A cidade em si é espaçosa e imensa, uma dimensão magnificada, talvez, por seu vazio sobrenatural. Do elevado platô, tem-se uma visão aérea de Oaxaca, uma colcha de retalhos espraiada no vale abaixo. Aqui há ruínas em uma escala tão monumental quanto em Roma e Atenas — templos, mercados, átrios, palácios —, porém nas alturas, num topo de montanha, contra o vivo céu azul mesoamericano, e de um caráter totalmente distinto. Ainda paira sobre a cidade uma ideia de divindade, pois ela já foi uma cidade de Deus, como Jerusalém, só que agora está desolada, deserta. Os deuses fugiram, junto com o povo, mas dá para sentir que um dia estiveram aqui.

O próprio Luis está numa espécie de transe, o que confere uma qualidade hipnótica à sua voz enquanto fala, explicando que as imensas plataformas e átrios da cidade ecoam os contornos dos montes e vales ao redor, a cidade toda sendo um modelo do cenário natural onde está inserida. Harmoniosa, mas não apenas internamente; em harmonia também com a paisagem ao redor.

Surpreendo-me com uma das construções, disposta em um ângulo violento em relação a todo o resto, revoltada contra a simetria imperante. Tem uma estranha forma pentagonal que me faz pensar em uma nave espacial gigantesca que despencou neste topo com jeito de pista de pouso do monte Albán — ou, talvez, que está prestes a ser lançada às estrelas. Seu nome oficial é Construção J, porém é chamada por todos de Observatório, pois seu ângulo destoante parece ter sido concebido para oferecer a melhor vista possível dos deslocamentos de Vênus e seus ocasionais alinhamentos com outros planetas.

Os sacerdotes astrônomos de Monte Albán, Luis estava dizendo, elaboraram um intricado calendário duplo, que logo se tornaria universal na Mesoamérica. Havia um calendário secular terrestre de 365 dias (mais tarde os astecas calcularam que o ano solar durava 365,2420 dias) e um calendário sagrado de duzentos e sessenta dias, no qual cada dia possuía uma importância simbólica única. Os dois calendários coincidiam a cada 18980 dias, aproximadamente cinquenta e dois anos solares, assinalando o fim de uma era — e esse era um tempo de imenso terror e desalento, marcado pelo temor de que o Sol nunca mais aparecesse. Para evitar o temido evento, a última noite desse ciclo era preenchida com cerimônias religiosas solenes, penitências e (mais tarde, com os astecas) sacrifícios humanos, tudo ao mesmo tempo em que ocorria uma frenética observação do céu para ver que caminhos seguiriam as estrelas, os deuses.

Anthony F. Aveni, especialista em astronomia e arqueoastronomia mesoamericana, escreveu que os astecas

[… ] viam no céu o sustento da vida — os deuses a quem eles procuravam retribuir, com o sangue do sacrifício, por mandar chuvas favoráveis, por impedir que a terra tremesse, por incentivá-los nas batalhas. Um dos deuses era o Tezcatlipoca Negro, que com sua roda (Ursa Maior) governava a noite em sua morada no norte. Ele presidia a arena de esportes cósmica (Gêmeos) onde os deuses se divertiam num jogo para determinar o destino da humanidade. Ele acendia as varetas de fogo (cinturão de Orion) que traziam calor ao lar. E no fim de cada ciclo do calendário de 52 anos, o Tezcatlipoca Negro ajustava o ritmo do rabo da cascavel (as Plêiades) para que ela passasse no mais alto do céu à meia-noite — garantia de que o mundo não se acabaria e de que à humanidade seria concedida mais uma temporada de vida.

Os sacerdotes astecas, em seu templo de observação do céu em Tenochtitlán, estavam fazendo o que os sacerdotes astrônomos zapotecas haviam feito em Monte Albán mil anos antes.

Os astecas eram mais supersticiosos, mais dominados por uma espécie de fatalismo cósmico que os zapotecas. É fácil deduzir, de observações contidas em um raro códice asteca preservado até nossos dias, que os astecas viram um eclipse solar parcial na tarde de 8 de agosto de 1496, e isso, talvez combinado a estrelas cadentes e conjunções malignas ou equívocas dos planetas, deixou-os tremendamente apreensivos. Foram esses temores apocalípticos, supõe L uis, e não só as divisões políticas entre eles e a sua incapacidade de se contrapor às armaduras de aço e às armas dos espanhóis, o que levou ao seu colapso quase fatalista antes da chegada de Cortés e seu pequeno bando de conquistadores.

Todos esses pensamentos se amontoam em minha mente enquanto fito o Observatório e me pego refletindo sobre as estranhas interpenetrações da superstição e da ciência, a mistura do inacreditável avanço e das ingênuas crenças animistas acalentadas pelos mesoamericanos. E sobre quanto de tudo isso ainda temos em nós mesmos. Toda a vida mesoamericana há de ter sido impregnada e dominada pela noção do sobrenatural tanto quanto foi pela noção de natureza — dos deuses que governavam do céu e do mundo dos mortos, aos deuses do milho, do terremoto e da guerra.

Andando por Monte Albán, vendo os templos, as plataformas elevadas, as imensas bases de pirâmides, toda a imponente arquitetura voltada para o exterior e os espaços abertos, vem o tempo todo ao meu pensamento o antigo Egito. L uis discorre sobre a influência, neste local, da ideia do sagrado sobre a estética — uma religião de forças e formas naturais que molda os espaços e as estruturas da cidade. Parece ter sido uma religião branda, reverente, praticada a céu aberto (embora vinculada, por elaboradas sincronicidades, aos planetas, às estrelas, a todo o cosmos) —, uma religião que dispensava a violência, os sacrifícios humanos, os horrores dos astecas. Pelo menos é o que L uis afirma.

Os ancestrais eram venerados aqui em Monte Albán, como no antigo Egito, com majestosas tumbas, ou mausoléus, dispostos ao redor da cidade; é uma cidade dos mortos, uma necrópole tanto quanto uma metrópole. Também há sepulturas mais humildes: os túmulos exíguos de pais e avós enterrados em suas próprias casas, para que seus espíritos pudessem permanecer com seus descendentes. Uma dessas sepulturas está exposta, aberta sob uma placa de vidro, no Museu de Monte Albán. Mostra uma mulher de setenta e cinco anos, mirrada, com os dentes descalcificados, osteoporose e joelhos osteoartríticos de toda uma vida de trabalho árduo, talvez ajoelhada, triturando milho. Parece uma indignidade ser exposto dessa maneira — no entanto, dá a este lugar uma realidade humana. Como terá sido, pensamos, a vida dessa mulher, sua vida interior?

É fácil fechar os olhos e imaginar a vasta praça central de Monte Albán apinhada — vinte mil pessoas caberiam aqui —, talvez por ser o dia semanal do mercado, um mercado como o que Bernal Díaz viu em Tenochtitlán. Milhares a disputar espaço na praça, comerciantes e ambulantes de todas as partes apregoando suas mercadorias.

Minha memória dá um salto, volta inopinadamente ao mercado em Oaxaca, não aos ambulantes e lojistas, mas aos mendigos no entorno, indigentes, prostrados. Assim como eles, o homem que vende laranja aos turistas na entrada de Monte Albán poderia ser descendente dos que construíram este lugar — ou dos conquistadores, ou talvez de ambos.

A enormidade de nosso crime, a tragédia, me esmaga. Percebe-se por que alguns execram Colombo e Cortés como vilões.

É possível reconstruir uma identidade que foi solapada e destruída tão impiedosamente e de maneira tão sistemática? E se alguém tentasse fazer isso, o que significaria? As antigas línguas pré-colombianas ainda existem e são faladas por boa parcela, talvez um quinto, da população. Os alimentos básicos continuam os mesmos: milho, abóbora, pimentas, feijões de cinco mil anos atrás. Muitos elementos da cultura ainda sobrevivem. O cristianismo, temos a impressão, apesar de toda a sua longa história, ainda é em certos aspectos apenas um tênue verniz. A arte e a arquitetura do passado são visíveis por toda parte.

Em pé num dos imensos espaços centrais abertos de Monte Albán, imagino a enchente da multidão, vozes falando em uma dezena de línguas, templos abarrotados de fiéis, suas preces subindo ao céu, enquanto os astrônomos trabalham em silêncio no edifício em forma de espaçonave. Imagino a atroada da massa, talvez toda a população de Monte Albán espremida no estádio para assistir a um jogo sagrado.

É isso, o estádio para jogos de bola, e a importância dessa atividade, que parece ser uma exclusividade da Mesoamérica, pois não havia campos para jogar bola no Velho Mundo, seja nas cidades, seja nos céus. Não havia jogo de bola, nem bolas — e como é que se vai jogar bola sem uma bola decente? Mas essa não foi uma associação que fiz logo de início.

O estádio é belíssimo, está agora restaurado de acordo com seu estado original, um imenso gramado oblongo com enormes “arquibancadas” de granito erguendo-se em forma de pirâmide dos dois lados. Sabemos pouquíssimo a respeito das regras ou da importância dos jogos que se realizavam aqui. A versão zapoteca do jogo de bola, L uis explica (em contraste com a versão posterior, “degenerada” dos astecas — mas talvez L uis, por ser zapoteca, esteja sendo parcial) não era bem uma disputa, e sim algo mais parecido com um balé, um interminável, nunca resolvido movimento de luz e sombra, vida e morte, sol e lua, macho e fêmea — a interminável luta, a dinâmica, do cosmos. Não havia vencedores, nem perdedores, nem objetivos nesse jogo.

O jogo de bola, ainda que sublime em seu simbolismo, também era intensamente físico. Equipes de cinco ou seis jogadores usavam todas as partes do corpo exceto pés e mãos. Usavam os ombros, os cotovelos e especialmente os quadris, cingidos por uma armação em forma de cesto que ajudava a proteger e conduzir a bola. Esta, maior do que uma bola de basquete, era de borracha sólida, uma contundente pelota de quase cinco quilos. A versão asteca, pelo menos, em contraste com a interpretação de L uis para a forma zapoteca, era um jogo competitivo — e letal, pois o capitão perdedor (ou às vezes o vencedor) era ritualmente sacrificado e comido.

Mas a discussão em nosso grupo botânico transfere-se para a bola e para o fato de os indígenas da Mesoamérica terem descoberto um modo de extrair o látex de árvores nativas, séculos ou mesmo milênios antes da chegada dos espanhóis. Estes, aliás, ficaram perplexos com as bolas de borracha: “Quando batem no chão, saltam no ar com grande rapidez”, escreveu um assombrado explorador no século X V I. “Como pode acontecer isso?” Alguns exploradores pensavam que a bola devia estar viva; nunca se vira no Velho Mundo nada tão elástico, que ricocheteasse dessa maneira. Conheciam a elasticidade de uma mola comprimida, de um arco esticado, mas sequer sonhavam com uma substância que fosse, em si, elástica.

Muitas plantas têm uma seiva leitosa e viscosa, ou látex. Sem intervenção, ela secará, ficará sólida, quebradiça e frágil. É preciso tratá-la para coagular os microscópicos glóbulos de borracha ali contidos, produzindo uma massa que, ao secar, transforma-se no material sólido e elástico que conhecemos como borracha. Não existe uma única árvore de borracha. Várias famílias de árvores fornecem um látex adequado, e muitas delas foram descobertas por mesoamericanos. Os maias perceberam que podiam cortar a árvore Castilloa elastica, coletar o látex numa gamela e tratá-lo com a seiva ácida de glória da manhã (o que era muito conveniente, pois era comum a Castilloa ser rodeada por trepadeiras dessa planta). A borracha que eles produziam era usada não só nas enormes bolas de jogar, mas também em bolinhas que serviam de brinquedo para as crianças e na feitura de imagens e estatuetas religiosas, sandálias de sola emborrachada e na amarração da cabeça dos machados aos cabos.

Ao contrário do chocolate e do tabaco, que foram levados para a Espanha pelos primeiros exploradores e logo adotados, a borracha demorou a emplacar na Europa. Quando isso enfim aconteceu, foi com a borracha da árvore amazônica Hevea, e é por isso que hoje essa espécie é tão cultivada. As primeiras folhas de borracha enrolada só foram levadas para a França nos anos 1770, e ali despertaram grande interesse. Charles Mackintosh, na Escócia, viu que a borracha podia ser usada para fabricar tecidos impermeáveis, e passou a fabricar a capa de chuva que se tornou conhecida como “mackintosh”. Joseph Priestley, o descobridor do oxigênio, percebeu que o material podia ser usado como apagador de marcas de lápis (só então a palavra “rubber”, que serve para designar a substância e o objeto de apagar, entrou para a língua inglesa — mas acho que prefiro a estrambótica palavra francesa “caoutchouc”, que ecoa o termo quíchua original).

Só no século XIX Charles Goodyear veio a descobrir que, se a goma bruta fosse tratada com enxofre e aquecida, era possível obter uma forma altamente maleável e elástica de borracha. Nesse sentido, Goodyear “inventou” a borracha — só que os maias já a haviam inventado milênios antes. (Apenas há pouco tempo se descobriu que a glória da manhã contém compostos de enxofre que, como no processo de Goodyear, são capazes de interligar os polímeros do látex e introduzir segmentos rígidos em suas cadeias — cadeias que se enleiam umas nas outras e interagem, produzindo a elasticidade da borracha.)

Meio ouvindo, meio sonhando, imagino o estádio como ele deve ter sido há mil e quinhentos anos, no apogeu de Monte Albán, os jogadores aos empurrões usando os quadris e nádegas com uma energia graciosa mas encarniçada, tocando a bola pesada, quase viva, sentindo que reproduziam o jogo de bola do céu e que seus movimentos, seus padrões, as constelações que traçavam, estavam equilibrando as ações do cosmos, dos senhores da vida e da morte.



(Diário de Oaxaca)



(Ilustração: Monte Albán - Oaxaca)



sexta-feira, 15 de julho de 2022

NUVENS DE ALGODÃO (haiku), de Abbas Kiarostami

 


         

 

 

1.



شبدریازمستان.



A noite o

mar o

inverno.

 

2.


تابش اولین مهتاب پاییزیبر روی پنجرهشیشهها را لرزاند.

 



O clarão da primeira lua outonal

na janela estremece os vidros.

 

3.



در غیاب توگفتگو دارمبا تو،در حضورتگفتگو با خویش.



Na tua ausência

converso contigo,

na tua presença

converso comigo.

 

4.



از بودن با تودر رنجم،از بودن با خوددر هراس،

کجاست بیخودی؟

 



Se estou contigo

sofro, se estou

comigo temo


por onde vai a ausência do ser?

 

 

5.

 



از شدت

عشقبیزارم.

 

 

Pela fúria do amor eu

me enfado.

 

 

6.

 



مردد

ایستادهام بر سر دو راهی،تنها راهی که میشناسمراه باز گشت است.

 

 

Hesitante estou numa

encruzilhada, o único caminho

que conheço é o caminho de

volta.

 

 

7.

 



گم کردمچیزی که یافته

بودم،چیزی یافتم گم

شده.

 

 

Perdi algo que havia encontrado

encontrei algo que havia sido perdido.



8.

 

 



از دست غیبآبی نوشیدم

به چندان

گوارا.

 

 


Das mãos da ventura

bebi água pouco

agradável.

 

 

9.

 

 



درخت بهشکوفه کرده

استدر خانهای

متروک.

 




A árvore de marmelo

floresceu numa casa

abandonada.

 

10.




در روشنایی روزکسی به جا

نمیآوردکرم شب تاب

را.




Na claridade do dia

ninguém distingue o

vaga-lume.


 


 

  بدریازم

 ستان.

 



(Nuvens de algodão; tradução de Pedro Fonseca)

 

(Ilustração: Cícero Dias - composição 1928)



terça-feira, 12 de julho de 2022

A AVENTURA DE UM POETA, de Italo Calvino


A ilhota tinha a costa alta, de rocha. Em cima crescia a mancha cerrada e baixa da vegetação que resiste junto ao mar. No céu voavam as gaivotas. Era uma pequena ilha junto ao litoral, deserta, inculta: em meia hora se podia dar a volta de barco por ela, ou até num bote de borracha, como o daqueles dois que se aproximavam, o homem remando tranquilo, a mulher deitada tomando sol. Chegando perto o homem aguçou o ouvido.


— O que você escutou? — perguntou ela.

— Silêncio — ele disse. — As ilhas têm um silêncio que se ouve.

De fato, todo silêncio consiste na rede de rumores miúdos que o envolve: o silêncio da ilha se destacava daquele do mar calmo em torno porque era percorrido por um roçar de plantas, por cantos de pássaros ou por um súbito alçar de asas.

Lá abaixo das rochas a água, naqueles dias sem uma onda, era de um azul agudo, límpida, atravessada até o fundo por raios de sol. No penhasco se abriam bocas de caverna, e os dois no bote iam preguiçosamente explorá-las.

Era uma costa meridional, ainda pouco tocada pelo turismo, e aqueles dois eram banhistas que vinham de fora. Ele era um certo Usnelli, poeta bastante conhecido; ela, Delia H., mulher muito bonita.

Delia era uma admiradora do Sul, apaixonada, fanática até, e estendida no bote falava com enlevo contínuo de tudo o que estava vendo, e também talvez levemente provocatória em relação a Usnelli, que, novo naquelas paragens, parecia-lhe participar menos do que devia de seu entusiasmo.

— Espere — dizia Usnelli. — Espere.

— Esperar o quê? — ela falava. — O que é que você quer mais bonito do que isto?

Ele, desconfiado (por natureza e por educação literária) em relação às emoções e às palavras de que outros já se apropriaram, acostumado a descobrir mais as belezas escondidas e espúrias do que as óbvias e indiscutíveis, estava, contudo, com os nervos tensos. A felicidade era para Usnelli um estado suspenso, para ser vivido com a respiração presa. Desde quando amava Delia ele via perigar sua relação cautelosa, avara com o mundo, mas não queria renunciar a nada nem de si mesmo nem da felicidade que se abria para ele. Agora estava alerta, como se cada grau de perfeição que a natureza em volta deles atingia — um decantar-se do azul na água, um desmaiar do verde da costa em cinzento, o salto de uma barbatana de peixe exatamente no ponto em que a extensão do mar era mais lisa — só fizesse preceder outro grau mais alto, e assim por diante, até o ponto em que a linha invisível do horizonte se abriria como uma ostra revelando de súbito um planeta diferente ou uma nova palavra.

Entraram numa gruta. Começava espaçosa, quase um lago interno de um verde-claro, sob uma alta abóbada de pedra. Mais adiante se estrangulava em uma passagem escura. O homem do remo fazia o bote girar sobre si mesmo para desfrutar dos diversos efeitos da luz. A de fora, pela fenda retalhada da abertura, ofuscava com as cores que se tornavam mais vívidas pelo contraste. A água, ali, refulgia, e as lâminas de luz ricocheteavam para o alto, contrastando com as sombras suaves que se alongavam do fundo. Reflexos e raios luminosos comunicavam a instabilidade da água até às pedras das paredes e das curvas.

— Quem entende os deuses — disse a mulher.

— Hum — fez Usnelli. Estava nervoso. Seu pensamento, acostumado a traduzir as sensações em palavras, agora nada, não conseguia formular uma sequer.

Entraram. O bote passou por um baixio: o dorso de uma rocha à flor da água; agora boiava entre raras cintilações que apareciam e desapareciam a cada pancada com o remo: o resto era sombra densa; as pás volta e meia tocavam numa parede. Delia, virada para trás, via o olho azul do céu aberto mudar continuamente de contorno.

— Um caranguejo! Grande! Lá! — gritou se levantando.

— … ejo! … aaa! — ribombou o eco.

— O eco! — ela falou contente, e começou a gritar palavras para aquelas curvas profundas: invocações, versos de poesias. — Você também! Grita você também! Formula um desejo! — disse a Usnelli.

— Ooo… — fez Usnelli. — Eiii… Ecooo…

O bote de vez em quando encalhava. A escuridão era mais densa.

— Estou com medo. Sabe lá quantos bichos tem aí!

— Ainda dá para passar.

Usnelli se deu conta de que estava se dirigindo para a escuridão como um peixe dos abismos, que foge das águas iluminadas.

— Estou com medo, vamos voltar — ela insistiu.

A ele também, no fundo, o gosto pelo horrendo era estranho. Remou para trás. Voltando para onde a gruta se alargava, o mar se tornava de cobalto.

— Será que tem polvos? — disse Delia.

— Daria para ver. É límpido.

— Então vou nadar.

Deixou-se cair fora do bote, separou-se, nadava naquele lago subterrâneo, e seu corpo aparecia ora branco (como se aquela luz lhe retirasse toda a cor própria), ora do azul daquela proteção de água.

Usnelli parara de remar; continuava com a respiração suspensa. Para ele, estar apaixonado por Delia sempre havia sido assim, como no espelho dessa gruta: ter entrado em um mundo para além da palavra. De resto, em toda a sua poesia, nunca escrevera um verso de amor; nem um sequer.

— Chega perto — falou Delia. Nadando, havia tirado o trapinho que lhe cobria o seio; colocou-o na borda da canoa. — Um momento. — Soltou também o outro pedaço de pano amarrado nos quadris e o passou a Usnelli.

Agora estava nua. A pele mais branca no seio e nos quadris quase não se distinguia, porque toda a sua pessoa emitia aquela claridade azulada, de medusa. Nadava de lado, com movimento preguiçoso, a cabeça (uma expressão imóvel e quase irônica, de estátua) quase dentro da água, e às vezes surgindo a curva de um ombro e a linha macia do braço estendido. O outro braço, com movimentos acariciantes, cobria e descobria o seio alto, esticado nas pontas. As pernas mal batiam na água, sustentando o ventre liso, marcado pelo umbigo como que por uma leve pegada na areia, e a estrela como de um fruto do mar. Os raios do sol que reverberava na água roçavam por ela, um pouco servindo-lhe de roupa, um pouco despindo-a inteira.

Do nado passou a um movimento como de dança; suspensa no meio da água, sorrindo para ele, estendia-lhe os braços num giro macio dos ombros e dos pulsos; ou com um impulso do joelho fazia aflorar um pé arqueado como um pequeno peixe.

Usnelli, no bote, era todo olhos. Compreendia que aquilo que naquele momento a vida estava lhe dando era algo diante do qual nem todos podem fixar de olhos abertos, como o coração mais ofuscante do sol. E no coração deste sol era silêncio. Tudo o que estava ali naquele momento não podia ser traduzido em nada mais, talvez nem mesmo numa recordação.

Agora Delia estava nadando de costas, aflorando em direção ao sol, na boca da gruta. Avançava com um leve movimento de braços para o aberto, e embaixo dela a água ia mudando de gradação de azul, cada vez mais clara e luminosa.

— Cuidado, põe a roupa! Estão vindo barcos, lá de fora!

Delia já estava entre as pedras, sob o céu. Escapuliu por baixo da água, estendeu o braço, Usnelli lhe passou aquelas exíguas peças de vestuário, ela as amarrou no corpo nadando, subiu de volta para o bote.

Os barcos que vinham eram de pescadores. Usnelli os reconheceu por alguns do grupo de pobres coitados que passavam a temporada de pesca naquela praia, dormindo ao abrigo de certas pedras. Foi ao encontro deles. O homem ao remo era o moço, fechadão em sua dor de dentes, o bonezinho branco de marinheiro arriado em cima dos olhos miúdos, remando aos arrancos como se cada esforço servisse para sentir menos a dor; pai de cinco filhos; desesperado. O velho estava à popa; o chapéu de palha à mexicana lhe coroava com uma auréola toda desfiada o corpo murcho, os olhos redondos, arregalados antigamente talvez por orgulho fanfarrão, agora por comédia de bêbado, a boca aberta embaixo dos bigodes escorridos ainda negros; limpava com uma faca as tainhas apanhadas.

— Pesca boa? — gritou Delia.

— O pouco que tem — responderam. — É esse ano.

Delia gostava de conversar com os habitantes do lugar. Usnelli, não. (“Diante deles”, dizia, “não me sinto com a consciência no lugar”, dava de ombros e tudo terminava por aí.)

O bote agora estava ao lado do barco, onde o verniz desbotado se manchava de gretas levantando-se em curtos segmentos, e o remo amarrado com um pedaço de corda à cavilha da estaca gemia a cada giro contra a madeira desbeiçada da borda, e uma pequena âncora enferrujada de quatro ganchos se embaraçara embaixo da tábua estreita do banco em uma das nassas de vime barbudas de algas avermelhadas, secas sabe-se lá há quanto tempo, e, em cima do amontoado das redes tingidas de tanino e esparramadas pelas bordas de fatias redondas de cortiça, reluziam nas vestes pungentes das escamas ora cinza esmaecido, ora turquesa resplendente os peixes agonizantes; as guelras ainda agitadas por uma palpitação mostravam, por baixo, um rubro triângulo de sangue.

Usnelli continuava calado, mas esta angústia do mundo humano era o contrário da que lhe comunicava pouco antes a beleza da natureza: assim como lá cada palavra desaparecia, aqui era um atropelo de palavras que se acotovelavam em sua mente — palavras para descrever cada verruga, cada pelo da magra face mal barbeada do pescador velho, cada escama prateada da tainha.

Na margem, outro barco estava em seco, emborcado, seguro por cavaletes, e da sombra embaixo saíam as solas dos pés descalços dos homens adormecidos, aqueles que haviam pescado à noite; perto, uma mulher toda vestida de preto, sem rosto, punha uma panela em cima de um fogo de algas, de onde saía uma fumaça comprida. A borda naquela enseada era de pedregulhos, cinzentos; aquelas manchas de cores desbotadas eram os aventais das crianças que brincavam, os menores vigiados por irmãs crescidinhas e queixosas, os maiores e mais espertos vestindo só calções curtos recortados de velhas calças de adulto, correndo para cima e para baixo entre as pedras e a água. Mais adiante começava a se estender uma praia reta de areia, branca e deserta, que ao lado se perdia num bambuzal ralo e em terras incultas. Um jovem endomingado, todo de preto, até o chapéu, com um bastão no ombro e uma trouxa pendurada, caminhava ao longo do mar por toda aquela praia, marcando com os pregos dos sapatos a crosta friável de areia: com certeza um camponês ou pastor de algum lugarejo do interior que descera à costa para alguma feira e procurava o caminho pelo mar por causa do conforto da brisa. A ferrovia mostrava os fios, o aterro, os postes, a barreira, depois desaparecia no túnel e recomeçava mais adiante, tornava a desaparecer, saía novamente, como os pontos de uma costura desigual. Acima dos marcos pretos e brancos da estrada começavam a subir baixos olivais; mais para o alto os montes eram áridos, de pasto e moitas ou então só de pedras. Uma aldeia encaixada numa fenda entre aquelas alturas se alongava toda para o alto, as casas uma acima da outra, divididas por ruas em escada, calçadas de pedra, feitas com uma valeta no meio para escorrer a sujeira de mula, e nas entradas de todas as casas havia uma quantidade de mulheres, velhas ou envelhecidas, e nas muretas, sentados em fila, uma quantidade de homens, velhos e jovens, todos de camisa branca, e no meio das ruas feitas em escada as crianças pelo chão brincando e alguns garotos maiores estendidos no meio do caminho com a face no degrau, dormindo ali porque era um pouco mais fresco que dentro de casa e cheirava menos, e em toda a parte nuvens de moscas voando e pousadas, e sobre cada muro e cada festão de papel de jornal em volta dos condutos das chaminés o infinito pontilhado dos excrementos de mosca, e a Usnelli ocorriam palavras e palavras, cerradas, embaralhadas umas por sobre as outras, sem espaço entre as linhas, até que pouco a pouco não se distinguiam mais, era um emaranhado de que iam sumindo até as mínimas frestas brancas, e restava só o negro, o negro mais total, impenetrável, desesperado como um berro.



(Os Amores Difíceis; tradução de Raquel Ramalhete)



(Ilustração: Angela Ooghe - nude woman swimming)