terça-feira, 12 de julho de 2022

A AVENTURA DE UM POETA, de Italo Calvino


A ilhota tinha a costa alta, de rocha. Em cima crescia a mancha cerrada e baixa da vegetação que resiste junto ao mar. No céu voavam as gaivotas. Era uma pequena ilha junto ao litoral, deserta, inculta: em meia hora se podia dar a volta de barco por ela, ou até num bote de borracha, como o daqueles dois que se aproximavam, o homem remando tranquilo, a mulher deitada tomando sol. Chegando perto o homem aguçou o ouvido.


— O que você escutou? — perguntou ela.

— Silêncio — ele disse. — As ilhas têm um silêncio que se ouve.

De fato, todo silêncio consiste na rede de rumores miúdos que o envolve: o silêncio da ilha se destacava daquele do mar calmo em torno porque era percorrido por um roçar de plantas, por cantos de pássaros ou por um súbito alçar de asas.

Lá abaixo das rochas a água, naqueles dias sem uma onda, era de um azul agudo, límpida, atravessada até o fundo por raios de sol. No penhasco se abriam bocas de caverna, e os dois no bote iam preguiçosamente explorá-las.

Era uma costa meridional, ainda pouco tocada pelo turismo, e aqueles dois eram banhistas que vinham de fora. Ele era um certo Usnelli, poeta bastante conhecido; ela, Delia H., mulher muito bonita.

Delia era uma admiradora do Sul, apaixonada, fanática até, e estendida no bote falava com enlevo contínuo de tudo o que estava vendo, e também talvez levemente provocatória em relação a Usnelli, que, novo naquelas paragens, parecia-lhe participar menos do que devia de seu entusiasmo.

— Espere — dizia Usnelli. — Espere.

— Esperar o quê? — ela falava. — O que é que você quer mais bonito do que isto?

Ele, desconfiado (por natureza e por educação literária) em relação às emoções e às palavras de que outros já se apropriaram, acostumado a descobrir mais as belezas escondidas e espúrias do que as óbvias e indiscutíveis, estava, contudo, com os nervos tensos. A felicidade era para Usnelli um estado suspenso, para ser vivido com a respiração presa. Desde quando amava Delia ele via perigar sua relação cautelosa, avara com o mundo, mas não queria renunciar a nada nem de si mesmo nem da felicidade que se abria para ele. Agora estava alerta, como se cada grau de perfeição que a natureza em volta deles atingia — um decantar-se do azul na água, um desmaiar do verde da costa em cinzento, o salto de uma barbatana de peixe exatamente no ponto em que a extensão do mar era mais lisa — só fizesse preceder outro grau mais alto, e assim por diante, até o ponto em que a linha invisível do horizonte se abriria como uma ostra revelando de súbito um planeta diferente ou uma nova palavra.

Entraram numa gruta. Começava espaçosa, quase um lago interno de um verde-claro, sob uma alta abóbada de pedra. Mais adiante se estrangulava em uma passagem escura. O homem do remo fazia o bote girar sobre si mesmo para desfrutar dos diversos efeitos da luz. A de fora, pela fenda retalhada da abertura, ofuscava com as cores que se tornavam mais vívidas pelo contraste. A água, ali, refulgia, e as lâminas de luz ricocheteavam para o alto, contrastando com as sombras suaves que se alongavam do fundo. Reflexos e raios luminosos comunicavam a instabilidade da água até às pedras das paredes e das curvas.

— Quem entende os deuses — disse a mulher.

— Hum — fez Usnelli. Estava nervoso. Seu pensamento, acostumado a traduzir as sensações em palavras, agora nada, não conseguia formular uma sequer.

Entraram. O bote passou por um baixio: o dorso de uma rocha à flor da água; agora boiava entre raras cintilações que apareciam e desapareciam a cada pancada com o remo: o resto era sombra densa; as pás volta e meia tocavam numa parede. Delia, virada para trás, via o olho azul do céu aberto mudar continuamente de contorno.

— Um caranguejo! Grande! Lá! — gritou se levantando.

— … ejo! … aaa! — ribombou o eco.

— O eco! — ela falou contente, e começou a gritar palavras para aquelas curvas profundas: invocações, versos de poesias. — Você também! Grita você também! Formula um desejo! — disse a Usnelli.

— Ooo… — fez Usnelli. — Eiii… Ecooo…

O bote de vez em quando encalhava. A escuridão era mais densa.

— Estou com medo. Sabe lá quantos bichos tem aí!

— Ainda dá para passar.

Usnelli se deu conta de que estava se dirigindo para a escuridão como um peixe dos abismos, que foge das águas iluminadas.

— Estou com medo, vamos voltar — ela insistiu.

A ele também, no fundo, o gosto pelo horrendo era estranho. Remou para trás. Voltando para onde a gruta se alargava, o mar se tornava de cobalto.

— Será que tem polvos? — disse Delia.

— Daria para ver. É límpido.

— Então vou nadar.

Deixou-se cair fora do bote, separou-se, nadava naquele lago subterrâneo, e seu corpo aparecia ora branco (como se aquela luz lhe retirasse toda a cor própria), ora do azul daquela proteção de água.

Usnelli parara de remar; continuava com a respiração suspensa. Para ele, estar apaixonado por Delia sempre havia sido assim, como no espelho dessa gruta: ter entrado em um mundo para além da palavra. De resto, em toda a sua poesia, nunca escrevera um verso de amor; nem um sequer.

— Chega perto — falou Delia. Nadando, havia tirado o trapinho que lhe cobria o seio; colocou-o na borda da canoa. — Um momento. — Soltou também o outro pedaço de pano amarrado nos quadris e o passou a Usnelli.

Agora estava nua. A pele mais branca no seio e nos quadris quase não se distinguia, porque toda a sua pessoa emitia aquela claridade azulada, de medusa. Nadava de lado, com movimento preguiçoso, a cabeça (uma expressão imóvel e quase irônica, de estátua) quase dentro da água, e às vezes surgindo a curva de um ombro e a linha macia do braço estendido. O outro braço, com movimentos acariciantes, cobria e descobria o seio alto, esticado nas pontas. As pernas mal batiam na água, sustentando o ventre liso, marcado pelo umbigo como que por uma leve pegada na areia, e a estrela como de um fruto do mar. Os raios do sol que reverberava na água roçavam por ela, um pouco servindo-lhe de roupa, um pouco despindo-a inteira.

Do nado passou a um movimento como de dança; suspensa no meio da água, sorrindo para ele, estendia-lhe os braços num giro macio dos ombros e dos pulsos; ou com um impulso do joelho fazia aflorar um pé arqueado como um pequeno peixe.

Usnelli, no bote, era todo olhos. Compreendia que aquilo que naquele momento a vida estava lhe dando era algo diante do qual nem todos podem fixar de olhos abertos, como o coração mais ofuscante do sol. E no coração deste sol era silêncio. Tudo o que estava ali naquele momento não podia ser traduzido em nada mais, talvez nem mesmo numa recordação.

Agora Delia estava nadando de costas, aflorando em direção ao sol, na boca da gruta. Avançava com um leve movimento de braços para o aberto, e embaixo dela a água ia mudando de gradação de azul, cada vez mais clara e luminosa.

— Cuidado, põe a roupa! Estão vindo barcos, lá de fora!

Delia já estava entre as pedras, sob o céu. Escapuliu por baixo da água, estendeu o braço, Usnelli lhe passou aquelas exíguas peças de vestuário, ela as amarrou no corpo nadando, subiu de volta para o bote.

Os barcos que vinham eram de pescadores. Usnelli os reconheceu por alguns do grupo de pobres coitados que passavam a temporada de pesca naquela praia, dormindo ao abrigo de certas pedras. Foi ao encontro deles. O homem ao remo era o moço, fechadão em sua dor de dentes, o bonezinho branco de marinheiro arriado em cima dos olhos miúdos, remando aos arrancos como se cada esforço servisse para sentir menos a dor; pai de cinco filhos; desesperado. O velho estava à popa; o chapéu de palha à mexicana lhe coroava com uma auréola toda desfiada o corpo murcho, os olhos redondos, arregalados antigamente talvez por orgulho fanfarrão, agora por comédia de bêbado, a boca aberta embaixo dos bigodes escorridos ainda negros; limpava com uma faca as tainhas apanhadas.

— Pesca boa? — gritou Delia.

— O pouco que tem — responderam. — É esse ano.

Delia gostava de conversar com os habitantes do lugar. Usnelli, não. (“Diante deles”, dizia, “não me sinto com a consciência no lugar”, dava de ombros e tudo terminava por aí.)

O bote agora estava ao lado do barco, onde o verniz desbotado se manchava de gretas levantando-se em curtos segmentos, e o remo amarrado com um pedaço de corda à cavilha da estaca gemia a cada giro contra a madeira desbeiçada da borda, e uma pequena âncora enferrujada de quatro ganchos se embaraçara embaixo da tábua estreita do banco em uma das nassas de vime barbudas de algas avermelhadas, secas sabe-se lá há quanto tempo, e, em cima do amontoado das redes tingidas de tanino e esparramadas pelas bordas de fatias redondas de cortiça, reluziam nas vestes pungentes das escamas ora cinza esmaecido, ora turquesa resplendente os peixes agonizantes; as guelras ainda agitadas por uma palpitação mostravam, por baixo, um rubro triângulo de sangue.

Usnelli continuava calado, mas esta angústia do mundo humano era o contrário da que lhe comunicava pouco antes a beleza da natureza: assim como lá cada palavra desaparecia, aqui era um atropelo de palavras que se acotovelavam em sua mente — palavras para descrever cada verruga, cada pelo da magra face mal barbeada do pescador velho, cada escama prateada da tainha.

Na margem, outro barco estava em seco, emborcado, seguro por cavaletes, e da sombra embaixo saíam as solas dos pés descalços dos homens adormecidos, aqueles que haviam pescado à noite; perto, uma mulher toda vestida de preto, sem rosto, punha uma panela em cima de um fogo de algas, de onde saía uma fumaça comprida. A borda naquela enseada era de pedregulhos, cinzentos; aquelas manchas de cores desbotadas eram os aventais das crianças que brincavam, os menores vigiados por irmãs crescidinhas e queixosas, os maiores e mais espertos vestindo só calções curtos recortados de velhas calças de adulto, correndo para cima e para baixo entre as pedras e a água. Mais adiante começava a se estender uma praia reta de areia, branca e deserta, que ao lado se perdia num bambuzal ralo e em terras incultas. Um jovem endomingado, todo de preto, até o chapéu, com um bastão no ombro e uma trouxa pendurada, caminhava ao longo do mar por toda aquela praia, marcando com os pregos dos sapatos a crosta friável de areia: com certeza um camponês ou pastor de algum lugarejo do interior que descera à costa para alguma feira e procurava o caminho pelo mar por causa do conforto da brisa. A ferrovia mostrava os fios, o aterro, os postes, a barreira, depois desaparecia no túnel e recomeçava mais adiante, tornava a desaparecer, saía novamente, como os pontos de uma costura desigual. Acima dos marcos pretos e brancos da estrada começavam a subir baixos olivais; mais para o alto os montes eram áridos, de pasto e moitas ou então só de pedras. Uma aldeia encaixada numa fenda entre aquelas alturas se alongava toda para o alto, as casas uma acima da outra, divididas por ruas em escada, calçadas de pedra, feitas com uma valeta no meio para escorrer a sujeira de mula, e nas entradas de todas as casas havia uma quantidade de mulheres, velhas ou envelhecidas, e nas muretas, sentados em fila, uma quantidade de homens, velhos e jovens, todos de camisa branca, e no meio das ruas feitas em escada as crianças pelo chão brincando e alguns garotos maiores estendidos no meio do caminho com a face no degrau, dormindo ali porque era um pouco mais fresco que dentro de casa e cheirava menos, e em toda a parte nuvens de moscas voando e pousadas, e sobre cada muro e cada festão de papel de jornal em volta dos condutos das chaminés o infinito pontilhado dos excrementos de mosca, e a Usnelli ocorriam palavras e palavras, cerradas, embaralhadas umas por sobre as outras, sem espaço entre as linhas, até que pouco a pouco não se distinguiam mais, era um emaranhado de que iam sumindo até as mínimas frestas brancas, e restava só o negro, o negro mais total, impenetrável, desesperado como um berro.



(Os Amores Difíceis; tradução de Raquel Ramalhete)



(Ilustração: Angela Ooghe - nude woman swimming)


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