sábado, 30 de julho de 2022

EPICURO, de Stephen Greenblat

 



Da natureza [1] é a obra de um discípulo que transmite ideias desenvolvidas um século antes. Epicuro, o messias filosófico de Lucrécio, nasceu perto do fim de 342 a.C. na ilha de Samos, no mar Egeu, onde seu pai, um mestre-escola ateniense de poucos recursos, havia ido parar como colonizador. [2] Muitos filósofos gregos, inclusive Platão e Aristóteles, vinham de famílias ricas e se orgulhavam de seus ancestrais distintos. Epicuro decididamente não tinha como dizer a mesma coisa. Seus inimigos filosóficos, refestelados em sua superioridade social, abusavam da humildade de suas origens. Ele ajudava o pai na escola por uma paga mínima, riam eles, e ia com a mãe de casebre em casebre ler encantamentos. Um de seus irmãos, acrescentavam, era um alcoviteiro que morava com uma prostituta. Não se tratava de um filósofo com que as pessoas de bem devessem se relacionar.

O fato de que Lucrécio e muitos outros fizeram mais do que simplesmente se relacionar com Epicuro — eles o festejavam como alguém de sabedoria e coragem divinas — dependia não de suas credenciais sociais, mas do que consideravam ser o poder de salvação que existia em sua visão. O núcleo dessa visão pode ser reduzido a uma única ideia incandescente: tudo que já existiu e tudo que ainda existirá é montado a partir de partículas indestrutíveis de dimensões diminutas, mas inimaginavelmente numerosas. Os gregos tinham uma palavra para essas partículas invisíveis, coisas que, como eles as concebiam, não podiam ser divididas em elementos menores: átomos.

A noção de átomo, que se originou no século V a.C. com Leucipo de Abdera e seu aluno favorito Demócrito, era somente uma curiosa especulação; não havia como conseguir uma prova empírica, e não haveria como fazê-lo por mais de 2 mil anos. Outros filósofos defendiam teorias contrárias: a matéria central do universo, diziam eles, era o fogo, ou a água, ou o ar, ou a terra, ou alguma combinação desses elementos. Outros sugeriam que, caso fosse possível ver a menor partícula do homem, o que se encontraria seria um homem infinitesimalmente minúsculo; e o mesmo aconteceria com um cavalo, uma gotinha d’água, ou uma folha da relva. Outros ainda propunham que a intricada ordem do universo era prova de uma mente ou um espírito invisível que cuidadosamente montava as peças segundo um plano prévio. A concepção de Demócrito, de um número infinito de átomos que não têm qualidades além de tamanho, figura e peso — partículas que não são versões em miniatura do que vemos, mas formam o que vemos ao se combinarem umas com as outras numa inexaurível multiplicidade de formas —, era uma solução fantasticamente ousada para um problema que desafiava os grandes intelectos de seu mundo.

Foram necessárias muitas gerações para que todas as consequências dessa solução pudessem ser entendidas. (E de maneira alguma nós já as entendemos todas.) Epicuro começou seus esforços para fazer exatamente isso aos doze anos de idade, quando ficou contrariado porque seus professores não sabiam explicar o significado do caos. A antiga ideia dos átomos de Demócrito lhe parecia o caminho mais promissor, e ele se pôs a trabalhar para segui-lo aonde pudesse levá-lo. Aos 32 anos de idade, ele estava pronto para fundar uma escola. Num jardim de Atenas, Epicuro construiu toda uma explicação do universo e uma filosofia da vida humana.

Constantemente em movimento, os átomos colidem uns com os outros, raciocinava Epicuro, e em certas circunstâncias formam corpos cada vez maiores. Os maiores corpos que se podem observar — o Sol e a Lua — são feitos de átomos, assim como os seres humanos e as moscas e os grãos de areia. Não há supercategorias da matéria; não há uma hierarquia dos elementos. Os corpos celestes não são seres divinos que definem nosso destino para o bem ou para o mal, e também não se movem pelo vazio guiados pelos deuses: eles simplesmente fazem parte da ordem natural, são imensas estruturas de átomos sujeitas aos mesmos princípios de criação e destruição que governam tudo que existe. E, se a ordem natural é inconcebivelmente vasta e complexa, continua sendo possível compreender parte de seus constituintes básicos e de suas leis universais. Na verdade, essa compreensão é um dos maiores prazeres humanos.

Talvez esse prazer seja a chave para entender o vigoroso impacto da filosofia de Epicuro; [3] foi como se ele tivesse exposto para seus seguidores uma fonte inesgotável de satisfação, escondida dentro dos átomos de Demócrito. Para nós, é difícil compreender esse impacto. Primeiro, o prazer parece intelectual demais para atingir mais que um número reduzido de especialistas; depois, passamos a associar os átomos muito mais ao medo que à satisfação. Mas, embora a filosofia antiga estivesse longe de ser um movimento de massas, Epicuro oferecia algo além de um manjar para um punhado de físicos de partículas. Ele evitava a linguagem cifrada e especializada de um círculo fechado de adeptos, insistia em usar a língua comum, em se dirigir ao mais amplo círculo de ouvintes, e até em fazer proselitismo. E o esclarecimento que oferecia não necessitava de longas investigações científicas. Não era preciso ter uma compreensão detalhada das efetivas leis do universo físico, apenas compreender que há uma explicação natural oculta para tudo aquilo que causa assombro ou perplexidade. Essa explicação inevitavelmente vai levar você de volta aos átomos. Caso consiga se agarrar ao fato mais simples da existência, e repeti-lo — átomos e vazio e nada mais, átomos e vazio e nada mais —, sua vida vai mudar. Você não vai mais temer a ira de Jove quando ouvir o som do trovão, ou suspeitar que alguém ofendeu Apolo sempre que houver um surto de gripe. E vai se ver livre de uma terrível aflição — aquilo que Hamlet, muitos séculos depois, descreveu como “o pavor de algo após a morte,/ a terra desconhecida de cujas fronteiras/ viajante nenhum retorna”.

A aflição — o medo de algum castigo horroroso num reino além-túmulo — não tem mais efeito sobre a maioria dos homens e mulheres modernos, mas evidentemente tinha seu peso na antiga Atenas de Epicuro e na Roma antiga de Lucrécio, e também no mundo cristão em que vivia Poggio. Com certeza Poggio há de ter visto imagens desses horrores, amorosamente gravadas no tímpano sobre as portas das igrejas ou pintadas em suas paredes internas. E esses horrores, por sua vez, surgiam a partir de relatos da vida após a morte criados pela imaginação pagã. É claro que nem todo mundo em qualquer um desses períodos, pagão ou cristão, acreditava nesses relatos. “Não ficas apavorado de medo, pergunta um dos personagens num diálogo de Cícero, do mundo dos mortos, com seu cão de três cabeças, seu rio negro, seus horrendos castigos?” “Achas que sou louco de acreditar em tais lendas?”, seu amigo responde. [4] O medo da morte não se refere ao destino de Sísifo e Tântalo: “Qual será a velhota tola que tem medo” dessas histórias de terror? Ele se refere ao pavor de sofrer e ao de desaparecer, e é difícil entender, Cícero escreveu, por que os epicuristas imaginam oferecer algum paliativo.[5] Ouvir dizer que nós desaparecemos completamente e para sempre, alma e corpo, está longe de ser um consolo.

Os seguidores de Epicuro reagiam evocando os últimos dias do mestre, morrendo de uma dolorosíssima obstrução da bexiga, mas atingindo a serenidade de espírito ao relembrar todos os prazeres da vida. Não é claro que seu modelo fosse facilmente imitável — “Quem pode segurar nas mãos a chama/ Pensando só no gélido Cáucaso?”, como pergunta um dos personagens de Shakespeare —, mas também não é claro que qualquer uma das alternativas disponíveis, num mundo sem analgésicos opiáceos, tivesse mais sucesso em lidar com as agonias da morte. O que o filósofo grego oferecia não era ajuda para morrer, mas ajuda para viver. Libertado da superstição, Epicuro ensinava, você se veria livre para buscar o prazer.

Os inimigos de Epicuro fizeram um uso malicioso de sua celebração do prazer e inventaram histórias maldosas de devassidão, relatos que ganhavam mais peso por sua incomum inclusão de mulheres junto aos homens que o seguiam. Ele “vomitava duas vezes por dia, por seus excessos”, dizia uma dessas histórias, e gastava uma fortuna com festins. [6] Na realidade, o filósofo parece ter levado uma vida conspicuamente simples e frugal. “Manda-me um pote de queijo”, ele uma vez escreveu a um amigo, “para que, quando quiser, eu possa viver suntuosamente.” E lá se vai a suposta abundância de sua mesa. Além disso, ele incitava seus alunos a uma frugalidade comparável. O lema entalhado sobre a porta que levava ao jardim de Epicuro incentivava o estrangeiro a ficar, pois “aqui nosso bem maior é o prazer”. No entanto, segundo o filósofo Sêneca, que cita essas palavras numa famosa carta que Poggio e seus amigos conheciam e admiravam, o passante que entrasse receberia uma refeição simples de papa de cevada e água. [7] “Quando dizemos, então, que o prazer é a meta”, Epicuro escreveu numa das poucas cartas suas que sobreviveram, “não nos referimos aos prazeres da prodigalidade ou aos prazeres da sensualidade.” [8] A enlouquecida tentativa de satisfazer certos apetites — “uma sucessão ininterrupta de bebedeiras e festejos [...] amor sexual [...] o consumo de peixe e outras iguarias de uma mesa requintada” — não pode levar à paz de espírito que é a chave do prazer duradouro.

“Os homens sofrem os piores males por causa dos desejos que lhes são mais estranhos”, escreveu seu discípulo Filodemo, num dos livros encontrados na biblioteca de Herculano, e “negligenciam os apetites mais necessários como se fossem os mais estranhos a sua natureza.”[9] Quais são esses apetites necessários que levam ao prazer? É impossível viver de maneira prazerosa, Filodemo continuava, “sem viver de maneira prudente e honrada e justa, e também sem viver de maneira corajosa, temperada e magnânima, e sem fazer amigos, e sem ser filantrópico”.

Essa é a voz de um autêntico seguidor de Epicuro, uma voz recuperada em tempos modernos de um rolo de papiro enegrecido por um vulcão. Mas está longe de ser a voz que todos os familiarizados com o termo “epicurismo” esperariam. Numa de suas caricaturas satíricas mais memoráveis, Ben Jonson, contemporâneo de Shakespeare, retratou com perfeição o espírito com que se entendeu por longos séculos a filosofia de Epicuro. “Vou mandar encherem a sopro minhas camas todas,” declara o personagem de Jonson. “Pluma é coisa muito dura.”

Minha carne virá toda em conchas indianas,

Pratos de ágata, ornados de ouro, e cravados

De esmeraldas, safiras, zircões e rubis...

Meu valete comerá faisões, salmões curados,

Pãezinhos, maçaricos e lampreias. Eu hei de ter

Barbinhas de carpas em vez de saladas;

Cogumelos ao óleo; e as gordas tetas túmidas

De uma bela porca prenha, recém-cortadas,

Temperadas com raro molho picante;

Pelos quais direi a meu cozinheiro, “Toma ouro,

Vai e te faz cavaleiro”. [10]



O nome que Jonson deu a esse enlouquecido em busca do prazer é Sir Epicure Mammon.

Uma firmação filosófica de que o objetivo final da vida é o prazer — mesmo que esse prazer seja definido nos termos mais restritos e responsáveis — era escandalosa, tanto para os pagãos como para seus adversários, os judeus e depois os cristãos. O prazer como bem maior? E adorar os deuses e os ancestrais? Servir à família, à cidade, ao estado? Observar escrupulosamente as leis e mandamentos? Buscar a virtude ou uma visão do divino? Essas afirmações opostas inevitavelmente acarretavam formas ascéticas de autonegação, auto sacrifício e até de autodesprezo. Nenhuma delas era compatível com a busca do prazer como bem maior. Dois mil anos depois de Epicuro ter vivido e ensinado, a noção de escândalo ainda era sentida com intensidade suficiente para gerar a energia maníaca dos pastiches como o de Jonson.

Por trás desses pastiches estava um medo mal ocultado de que maximizar o prazer e evitar a dor fossem na verdade objetivos atraentes e pudessem servir de maneira plausível como princípios racionais de organização da vida humana. Caso tivessem sucesso nessa empreitada, todo um conjunto de princípios alternativos tradicionais — sacrifício, ambição, status social, disciplina, fé — seria questionado, junto com as instituições a que esses princípios serviam. Levar a busca epicurista do prazer a um grotesco extremo de autoindulgência sensualista — retratado como uma busca obsessiva de sexo, ou poder, ou dinheiro, ou até (como em Jonson) de comidas extravagantes e absurdamente caras — ajudava a evitar o desafio.

Em seu jardim fechado em Atenas, o verdadeiro Epicuro, ceando queijo, pão e água, levou uma vida tranquila. Na verdade, uma das acusações mais legítimas contra ele era que sua vida era calma demais: ele aconselhava que seus seguidores não se envolvessem nas questões cívicas de maneira plena e vigorosa. “Certos homens buscaram fama e renome”, ele escreveu, “pensando que assim ficariam seguros contra os outros.”[38] Se com a fama e o renome viesse a segurança, então a pessoa que buscava essas situações atingia um “bem natural”. Mas, caso a fama trouxesse uma insegurança ainda maior, como na maioria dos casos, então essa realização não valia a pena. Desse ponto de vista, observavam os críticos de Epicuro, seria difícil justificar a maior parte dos incessantes esforços e riscos assumidos que levam à grandeza de uma cidade.



NOTAS:


[1] De rerum natura (Sobre a natureza das coisas) é um poema didático, dentro do gênero dos periphyseos cultivado por alguns pré-socráticos gregos, escrito no século I a.C. por Tito Lucrécio Caro; dividido em seis livros, proclama a realidade do homem num universo sem deuses e tenta libertá-lo do seu temor à morte. Expõe a física atomista de Demócrito e a filosofia moral de Epicuro. (Wikipedia). Esse poema esteve perdido durante quase toda a Idade Média, sendo encontrado num convento da Alemanha por Poggio Bracciolini, em 1317. Poggio era um humanista fanático por livros antigos que foi secretário de João XIII, o papa destronado e proscrito da história da Igreja. É a personagem central do livro de Stephen Greenblat. Mais adiante ele se refere a frações de livros da biblioteca de Herculano: são pergaminhos conservados em forma de carvão encontrados em escavações dessa cidade destruída pelo fogo do vulcão. (Nota do blog)

[2] Lives of Eminent Philosophers (“V idas de filósofos eminentes”), obra em dois volumes de Diógenes Laércio, vols. 184 e 185 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1925), 2:531-3.

[3] O termo epilogismos, de Epicuro, é usado com frequência para sugerir “o raciocínio com base em dados empíricos”, mas, de acordo com Michael Schofield, ele se refere a “nossos procedimentos cotidianos de observação e avaliação” — extraído de Rationality in Greek Thougth, de Schoefield, edição de Michael Frede e Gisele Striker (Oxford: Clarendon Press, 1996). Schoefield sugere que esses procedimentos remetem a uma famosa passagem de Epicuro: “Não devemos usar novas expressões acreditando que isso será um avanço; devemos simplesmente usar as que já existem”, p. 222. O pensamento que Epicuro transmitia a seus discípulos era “uma atividade absolutamente comum, disponível a todos, não um feito intelectual restrito a, por exemplo, matemáticos ou dialéticos”, p. 235.

[4] Tusculanae disputationes (“Disputas tusculanas”), de Cícero, tradução de J. E. King, vol. 141 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1927), 1.6.10.

[5] Ibid., 1.21.48-89

[6] Acusação feita por “Timócrates, irmão de Metrodoro, que era seu discípulo [de Epicuro] e mais tarde abandonou aescola”, extraído de Lives of Eminent Philosophers, de Diógenes Laércio, tradução de R. D. Hicks, vol. 185 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1925), 2:535.

[7] Ad Lucilium Epistulae Morales, compilação em três volumes de Sêneca, tradução de Richard Gummere (Cambridge: Cambridge University Press, 1917), 1:146.

[8] Lives, de Laércio, 2: 657.

[9] On Choices and Avoidances (“Sobre escolhas e recusas”), de Filodemo, tradução de Giovanni Indeli e V oula TsounaMcKirahan, vol. 15 de La Scuola di Epicuro (Nápoles: Bibliopolis, 1995), pp. 104-6.

[10] The Alchemist, de Ben Jonson, editada em dois volumes por Alvin B. Kerman (New Haven: Y ale University Press, 1974), ii,ii.41-42; 72-87. Jonson segue a tradição de representar Epicuro como padroeiro das tabernas e dos bordéis, tradição que inclui também o bem alimentado proprietário de terras de Chaucer, descrito nos Contos de Canterbury como um epicurista.

[11] Máxima no 7 de Lives of Eminent Philosophers, de Diógenes Laércio, tradução de R. D. Hicks, vol. 185 da Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1925), 1:665.



(A virada – o nascimento do mundo moderno; tradução de Caetano W. Galindo)



(Ilustração: Pierre-Henri de Valenciennes (1750 – 1819) - historical landscape)

Nenhum comentário:

Postar um comentário