quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DIRGE WITHOUT MUSIC / RÉQUIEM SEM MÚSICA, de Edna St. Vincent Millay







I am not resigned to the shutting away of loving hearts in the hard ground.
So it is, and so it will be, for so it has been, time out of mind:
Into the darkness they go, the wise and the lovely. Crowned
With lilies and with laurel they go; but I am not resigned.

Lovers and thinkers, into the earth with you.
Be one with the dull, the indiscriminate dust.
A fragment of what you felt, of what you knew,
A formula, a phrase remains,—but the best is lost.

The answers quick and keen, the honest look, the laughter, the love,—
They are gone. They are gone to feed the roses. Elegant and curled
Is the blossom. Fragrant is the blossom. I know. But I do not approve.
More precious was the light in your eyes than all the roses in the world.

Down, down, down into the darkness of the grave
Gently they go, the beautiful, the tender, the kind;
Quietly they go, the intelligent, the witty, the brave.
I know. But I do not approve. And I am not resigned.



Tradução de Celso Japiassu:



Não estou resignada em se encerrarem corações amantes no áspero chão.
É assim, e assim será pois sempre foi assim pelos tempos afora: Na escuridão eles partem, os sábios e os gentis.
Coroados de lírios e de louros eles se vão; mas não estou resignada.

Amantes e pensadores estão dentro da terra contigo.
Juntos com a poeira inútil e opaca.
Um pouco do que sentias, do que tu sabias,
Uma fórmula, uma frase permanecem – mas o melhor está perdido.

As respostas rápidas e sábias, o honesto olhar, o riso, o amor, -
Eles se foram. Eles foram alimentar as rosas. Elegante e sinuosa
é a flor. Perfumada é a rosa. Eu sei. Mas não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em teus olhos do que todas as rosas do mundo.

Dentro, dentro, dentro da escuridão da tumba
Suavemente eles se vão, o belo, o terno, o gentil;
Quietamente eles se vão, o inteligente, o sábio, o bravo.
Eu sei. Mas não estou de acordo. E não estou resignada.




Tradução de Carlos Drummond de Andrade:




Não me conformo em ver baixarem à terra dura os corações amorosos,
É assim, assim há de ser, pois assim tem sido desde tempos imemoriais:
Partem para a treva os sábios e os encantadores. Coroados
de louros e de lírios, partem; porém não me conformo com isso.

Amantes, pensadores, misturados com a terra!
Unificados com a triste, indistinta poeira.
Um fragmento do que sentíeis, do que sabíeis,
uma fórmula, uma frase resta — porém o melhor se perdeu.

As réplicas vivas, rápidas, o olhar sincero, o riso, o amor
foram-se embora. Foram-se para alimento das rosas. Elegante, ondulosa
é a flor. Perfumada é a flor. Eu sei. Porém não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em vossos olhos do que todas as rosas do mundo.

Vão baixando, baixando, baixando à escuridão do túmulo
suavemente, os belos, os carinhosos, os bons.
Tranquilamente baixam os espirituosos, os engraçados, os valorosos.
Eu sei. Porém não estou de acordo. E não me conformo.



(A Vida Passada a Limpo)




(Ilustração: Zdzisaw Beksisk)



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

MONÓLOGO, de Barão de Itararé




     

Eu tinha doze garrafas de uísque na minha adega e minha mulher me disse para despejar todas na pia, por que senão...

- Assim seja! Seja feita a vossa vontade - disse eu, humildemente, e comecei a desempenhar, com religiosa obediência, a minha ingrata tarefa.

Tirei a rolha da primeira garrafa e despejei o seu conteúdo na pia, com exceção de um copo que bebi.

Extraí a rolha da segunda garrafa e procedi da mesma maneira, com exceção de um copo que virei.

Arranquei a rolha da terceira garrafa e despejei o uísque na pia, com exceção de um copo que empinei.

Puxei a pia da quarta rolha e despejei o copo na garrafa que bebi.

Apanhei a quinta rolha da pia, despejei o copo no resto e bebi a garrafa, por exceção.

Agarrei o copo da sexta pia, puxei o uísque e bebi a garrafa, com exceção da rolha.

Tirei a rolha seguinte, despejei a pia dentro da garrafa, arrolhei o copo e bebi por exceção.

Quando esvaziei todas as garrafas, menos duas que escondi atrás do banheiro, para lavar a boca amanhã cedo, resolvi conferir o serviço que tinha feito de acordo com as ordens de minha mulher, a quem não gosto de contrariar, pelo mau gênio que tem.

Segurei, então, a casa com uma mão e com a outra contei direitinho as garrafas, rolhas, copos e pias, que eram, ao todo, exatamente 39. Para me certificar de que não havia engano, contei tudo outra vez e, quando terminei, já encontrei um total de 93, o que dá certo, quando as coisas andam de pernas para o ar. Como a casa, nesse momento, passou mais uma vez pela minha frente, aproveitei para controlar as minhas contas e recontei todas as casas, copos, rolhas, pias e garrafas, menos aquelas duas, que escondi no banheiro e que eu acho que não vão chegar até amanhã, porque estou com uma sede louca...


(Almanhaque 1955/1º Semestre)


(Ilustração: Terry Rogers - summy)





sexta-feira, 24 de outubro de 2014

DEMAIN, DÉS L'AUBE / AMANHÃ, NA ALVORADA, de Victor Hugo







Demain, dès l’aube, à l’heure où blanchit la campagne

Je partirais. Vois-tu, je sais que tu m’attends.

J’irais par la forêt, j’irais par la montagne.

Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.



Je marcherais les yeux fixés sur mes pensées,

Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,

Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,

Triste. Et le jour pour moi sera comme la nuit.



Je ne regarderai ni l’or du soir qui tombe,

Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur,

Et quand j’arriverais, je mettrai sur ta tombe

Un boquet de houx vert et de bruyère en fleurs.




Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Amanhã, ao branquear na alvorada a campanha

Eu partirei. Bem sei o quanto esperas por mim.

Irei pela floresta, irei pela montanha.

De ti não posso mais viver distante assim.



Irei, a vista fixada, a mente ensimesmada,

Sem nada ver em volta e sem ruído ouvir,

Desconhecido, só, curvado, mãos cruzadas,

Triste. As noites dos dias não vou distinguir.



Eu não contemplarei o ouro do sol que tomba,

Nem as velas ao longe para Harfleur rumando,

E ao chegar deporei em cima de tua tumba

Um buquê de azevinho e urzes desabrochando.



(Nota do tradutor: Victor Hugo escreveu este poema, de versos alexandrinos, em memória de sua filha Leopoldine Hugo, morta aos 19 anos em um naufrágio no Sena, poucos meses após se casar. Seu marido, que tentou salvá-la, também afogou-se).




(Ilustração: Casper David Friedrich)



terça-feira, 21 de outubro de 2014

A NOTÍCIA DA MORTE DE QUINCAS BERRO D'ÁGUA, de Jorge Amado






Já naquela hora a notícia da inesperada morte de Quincas Berro Dágua circulava pelas ruas da Bahia. É bem verdade que os pequenos comerciantes do Mercado não fecharam suas portas em sinal de luto. Em compensação, imediatamente aumentaram os preços dos balangandãs, das bolsas de palha, das esculturas de barro que vendiam aos turistas, assim homenageavam o morto. Houve nas imediações do Mercado ajuntamentos precipitados, pareciam comícios relâmpagos, gente andando de um lado para outro, a notícia no ar, subindo o Elevador Lacerda, viajando nos bondes para a Calçada, ia de ônibus para a Feira de Santana. Debulhou-se em lágrimas a graciosa negra Paula, ante seu tabuleiro de beijus de tapioca. Não viria Berro Dágua naquela tarde dizer-lhe galanteios torneados, espiar-lhe os seios vastos, propor-lhe indecências, fazendo-a rir.

Nos saveiros de velas arriadas, os homens do reino de Iemanjá, os bronzeados marinheiros, não escondiam sua decepcionada surpresa: como pudera acontecer essa morte num quarto do Tabuão, como fora o velho marinheiro desencarnar numa cama? Não proclamara, peremptório, e tantas vezes, Quincas Berro Dágua, com voz e jeito capazes de convencer ao mais descrente, que jamais morreria em terra, que só um túmulo era digno de sua picardia: o mar banhado de lua, as águas sem fim?

Quando se encontrava, convidado de honra, na popa de um saveiro, ante uma peixada sensacional, as panelas de barro lançando olorosa fumaça, a garrafa de cachaça passando de mão em mão, havia sempre um instante, quando os violões começavam a ser ponteados, em que seus instintos marítimos despertavam. Punha-se de pé, o corpo gingando, dava-lhe a cachaça aquele vacilante equilíbrio dos homens do mar, declarava sua condição de velho marinheiro. Velho marinheiro sem barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua. Porque para o mar nascera, para içar velas e dominar o leme de saveiros, para domar as ondas em noite de temporal. Seu destino fora truncado, ele que poderia ter chegado a capitão de navio, vestido de farda azul, cachimbo na boca. Nem mesmo assim deixava de ser marinheiro, para isso nascera de sua mãe Madalena, neta de comandante de barco, era marítimo desde seu bisavô, e se lhe entregassem aquele saveiro seria capaz de conduzi-lo mar afora, não para Maragogipe ou Cachoeira, ali pertinho, e sim para as distantes costas da África, apesar de jamais ter navegado. Estava no seu sangue, nada precisava aprender sobre navegação, nascera sabendo. Se alguém, na seleta assistência, tinha dúvidas que se apresentasse... Empinava a garrafa, bebia em grandes goles. Os mestres de saveiro não duvidavam, bem podia ser verdade. No cais e nas praias os meninos nasciam sabendo as coisas do mar, não vale a pena buscar explicações para tais mistérios. Então Quincas Berro Dágua fazia seu solene juramento: reservara ao mar a honra de sua hora derradeira, de seu momento final. Não haviam de prendê-lo em sete palmos de terra, ah! isso não! Exigiria, quando a hora chegasse, a liberdade do mar, as viagens que não fizera em vida, as travessias mais ousadas, os feitos sem exemplo. Mestre Manuel, sem nervos e sem idade, o mais valente dos mestres de saveiro, sacudia a cabeça, aprovando. Os demais, a quem a vida ensinara a não duvidar de nada, concordavam também, tomavam mais um trago de pinga. Pinicavam os violões, cantavam a magia das noites no mar, a sedução fatal de Janaína. O velho marinheiro cantava mais alto que todos.

Como fora então morrer de repente num quarto da ladeira do Tabuão? Era coisa de não se acreditar, os mestres de saveiro escutavam a notícia sem conceder-lhe completo crédito. Quincas Berro Dágua era dado a mistificações, mais de uma vez embrulhara meio mundo.

Os jogadores de porrinha, de ronda, de sete-e-meio suspendiam as emocionantes partidas, desinteressados dos lucros, apatetados. Não era Berro Dágua o seu indiscutido chefe? Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.

Não que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de berro dágua incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do Mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado:

– Águuuuua!

Imundo, asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados, alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda riam às gargalhadas. O berro dágua de Quincas logo se espalhou como anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique, da Calçada a Itapoã. Quincas Berro Dágua ficou ele sendo desde então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior ternura, dizia-lhe Berrito por entre os dentes mordedores.

Também naquelas casas pobres das mulheres mais baratas, onde vagabundos e malandros, pequenos contrabandistas e marinheiros desembarcados encontravam um lar, família e o amor nas horas perdidas da noite, após o mercado triste do sexo, quando as fatigadas mulheres ansiavam por um pouco de ternura, a notícia da morte de Quincas Berro Dágua foi a desolação e fez correr as lágrimas mais tristes. As mulheres choravam como se houvessem perdido parente próximo e sentiam-se de súbito desamparadas em sua miséria. Algumas somaram suas economias e resolveram comprar as mais belas flores da Bahia para o morto. Quanto a Quitéria do Olho Arregalado, cercada pela lacrimosa dedicação das companheiras de casa, seus gritos cruzavam a ladeira de São Miguel, morriam no largo do Pelourinho, eram de cortar o coração. Só encontrou consolo na bebida, exaltando, entre goles e soluços, a memória daquele inesquecível amante, o mais terno e louco, o mais alegre e sábio.

Relembraram fatos, detalhes e frases capazes de dar a justa medida de Quincas. Fora ele quem cuidara, durante mais de vinte dias, do filho de três meses de Benedita, quando esta teve de internar-se no hospital. Só faltara dar à criança o seio a amamentar. O mais fizera: trocava fraldas, limpava cocô, banhava o infante, dava-lhe mamadeira.

Não se atirara ele, ainda há poucos dias, velho e bêbedo, como um campeão sem medo, em defesa de Clara Boa, quando dois jovens transviados, filhos da puta das melhores famílias, quiseram surrá-la numa farra no castelo de Viviana? E que hóspede mais agradável na grande mesa na sala de jantar na hora do meio-dia... Quem sabia histórias mais engraçadas, quem melhor consolava das penas de amor, quem era como um pai ou como um irmão mais velho? Pelo meio da tarde, Quitéria do Olho Arregalado rolou da cadeira, foi conduzida ao leito, adormeceu com suas recordações. Várias mulheres decidiram não buscar nem receber nenhum homem naquela noite, estavam de luto. Como se fosse quinta ou sexta-feira santa.



(A morte e a morte de Quincas Berro d'Água)



(Ilustração: Floriano Teixeira - Quincas Berro D'água)







domingo, 19 de outubro de 2014

CONFIANZAS / CONFIANÇAS, de Juan Gelman


     




se sienta a la mesa y escribe

«con este poema no tomarás el poder» dice

«con estos versos no harás la Revolución» dice

«ni con miles de versos harás la Revolución» dice



y más: esos versos no han de servirle para

que peones maestros hacheros vivan mejor

coman mejor o él mismo coma viva mejor

ni para enamorar a una le servirán



no ganará plata con ellos

no entrará al cine gratis con ellos

no le darán ropa por ellos

no conseguirá tabaco o vino por ellos



ni papagayos ni bufandas ni barcos

ni toros ni paraguas conseguirá por ellos

si por ellos fuera la lluvia lo mojará

no alcanzará perdón o gracia por ellos



«con este poema no tomarás el poder» dice

«con estos versos no harás la Revolución» dice

«ni con miles de versos harás la Revolución» dice

se sienta a la mesa y escribe




Tradução de Wagner Mourão Brasil:



senta-se à mesa e escreve

"com estes versos não tomarás o poder" diz

"com estes versos não farás a Revolução" diz

"nem com milhares de versos farás a Revolução" diz



e mais: esses versos não haverão de servir para

que trabalhadores mestres lenhadores vivam melhor

comam melhor ou possam comer viver melhor

nem para conquistar uma mulher lhe servirão



não ganhará dinheiro com eles

não entrará gratuitamente no cinema com eles

não lhe darão roupas por eles

não conseguirá cigarros ou vinho com eles



nem papagaios nem cachecóis nem barcos

nem touros nem guarda-chuvas conseguirás com eles

se deles depender a chuva o molhará

não obterá perdão ou agradecimento por eles



"com este poema não tomarás o poder" diz

"com estes versos não farás a Revolução" diz

"nem com milhares de versos farás a Revolução" diz

senta-se à mesa e escreve




(Relaciones)




(Ilustração: Edward Munch - Ibsen)








quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O RELÓGIO, de Rubem Alves





Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: “Tempus fugit“. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes úmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dinguele-dingue que eu vou para Angola, dingue-ledingue que eu vou para Angola“ de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas – e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tornava num pedido de socorro: “Não quero morrer…“ Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda – (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) – subia numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam. O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. “Tempus fugit“. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do “Tempus fugit“ pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada. 

Tenho saudades dele. Por sua tranquila honestidade, repetindo sempre, incansável, “Tempus fugit“. Ainda comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…“ 

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São Silvestre? 

Correr para chegar, aonde? 

Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão. 

O sol e as estrelas entoam a melodia eterna: “Tempus fugit“. 

E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o terror, e abafamos o ruído tranquilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões… 

Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice: “Estou atrasado, estou atrasado…“ 

Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria: 

Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será… 




(Tempus fugit) 





(Ilustração: Hans Baldung - seven ages woman) 


domingo, 12 de outubro de 2014

BABEL E SIÃO, de Luís de Camões





    
                                              
                                

Sôbolos rios que vão

Por Babilônia, me achei,

Onde sentado chorei

As lembranças de Sião

E quanto nela passei.



Ali, o rio corrente

De meus olhos foi manado;

E, tudo bem comparado,

Babilônia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.



Ali, lembranças contentes

Na alma se representaram;

E minhas cousas ausentes

Se fizeram tão presentes

Como se nunca passaram.



Ali, depois de acordado,

Co rosto banhado em água,

Deste sonho imaginado,

Vi que todo o bem passado

Não é gosto, mas é mágoa.



E vi que todos os danos

Se causavam das mudanças

e as mudanças dos anos;

Onde vi quantos enganos

Faz o tempo às esperanças.



Ali vi o maior bem

Quão pouco espaço que dura;

O mal que depressa vem,

E quão triste estado tem

Quem se fia da ventura.



Vi aquilo que mais vale,

Que então se entende milhor,

Quando mais perdido for;

Vi ao bem suceder mal

E, ao mal, muito pior.




E vi com muito trabalho

Comprar arrependimento;

Vi nenhum contentamento,

E vejo-me a mim, que espalho

Tristes palavras ao vento.



Bem são rios estas águas

Com que banho este papel;

Bem parece ser cruel

Variedade de mágoas

E confusão de Babel.



Como homem que, por exemplo,

Dos transes em que se achou,

Despois que a guerra deixou,

Pelas paredes do templo

Suas armas pendurou:



Assim, depois que assentei

Que tudo o tempo gastava,

Da tristeza que tomei,

Nos salgueiros pendurei

Os órgãos com que cantava.



Aquele instrumento ledo

Deixei da vida passada,

Dizendo: — Música amada,

Deixo-vos neste arvoredo,

À memória consagrada.



Frauta minha que, tangendo,

Os montes fazíeis vir

Pra onde estáveis correndo,

E as águas, que iam descendo,

Tornavam logo a subir,



Jamais vos não ouvirão

Os tigres, que se amansavam;

E as ovelhas que pastavam,

Das ervas se fartarão

Que por vos ouvir deixavam.



Já não fareis docemente

Em rosa tornar abrolhos

Na ribeira florescente;

Nem poreis freio à corrente,

E mais se for dos meus olhos.



Não movereis a espessura,

Nem podereis já trazer

Atrás de vós a fonte pura,

Pois não pudestes mover

Desconcertos da ventura.



Ficareis oferecida

À Fama, que sempre vela,

Frauta de mim tão querida;

Porque, mudando-se a vida,

Se mudam os gostos dela.



Acha a tenra mocidade

Prazeres acomodados,

E logo a maior idade

Já sente por pouquidade

Aqueles gostos passados.



Um gosto que hoje se alcança,

Amanhã já o não vejo:

Assim nos traz a mudança

De esperança em esperança

E de desejo em desejo.



Mas, em vida tão escassa,

Que esperança será forte?

Fraqueza de humana sorte,

Que quanto da vida passa

Está recitando a morte!



Mas deixar nesta espessura

O canto da mocidade!

Não cuide a gente futura

Que será obra da idade

O que é força da ventura.



Que idade, tempo, o espanto

De ver quão ligeiro passe,

Nunca em mim puderam tanto,

Que, posto que deixe o canto,

A causa dele deixasse.



Mas em tristezas e nojos,

Em gosto e contentamento,

Por sol, por neve, por vento,

Tendré presente a los ojos

Por quien muero tan contento.



Órgãos e frauta deixava,

Despojo meu tão querido,

No salgueiro que ali estava,

Que pera troféu ficava

De quem me tinha vencido.



Mas lembranças da afeição

Que ali cativo me tinha,

Me perguntaram então:

Que era da música minha

Que eu cantava em Sião?



Que foi daquele cantar

Das gentes tão celebrado?

Porque o deixava de usar?

Pois sempre ajuda a passar

Qualquer trabalho passado.



Canta o caminhante ledo

No caminho trabalhoso,

Por entre o espesso arvoredo;

E de noite o temeroso,

Cantando, refreia o medo.



Canta o preso docemente,

Os duros grilhões tocando;

Canta o segador contente,

E o trabalhador, cantando,

O trabalho menos sente.



Eu, que estas cousas senti

Na alma, de mágoas tão cheia,

Como dirá, respondi,

Quem alheio está de si

Doce canto em terra alheia?



Como poderá cantar

Quem em choro banha o peito?

Porque, se quem trabalhar

Canta por menos cansar,

Eu só descansos enjeito.



Que não parece razão

Nem parece cousa idônea,

Por abrandar a paixão,

Que cantasse em Babilônia

As cantigas de Sião.



Que, quando a muita graveza

De saudade quebrante

Esta vital fortaleza,

Antes moura de tristeza

Que, por abrandá-la, cante.



Que, se o fino pensamento

Só na tristeza consiste,

Não tenho medo ao tormento:

Que morrer de puro triste,

Que maior contentamento?



Nem na frauta cantarei

O que passo e passei já,

Nem menos o escreverei;

Porque a pena cansará

E eu não descansarei.



Que, se a vida tão pequena

Se acrescenta em terra estranha,

E se Amor assim o ordena,

Razão é que canse a pena

De escrever pena tamanha.



Porém se, pera assentar

O que sente o coração,

A pena já me cansar,

Não canse pera voar

A memória em Sião.



Terra bem-aventurada,

Se, por algum movimento,

Da alma me fores mudada,

Minha pena seja dada

A perpétuo esquecimento.



A pena deste desterro,

Que eu mais desejo esculpida

Em pedra ou em duro ferro,

Essa nunca seja ouvida,

Em castigo do meu erro.



E se eu cantar quiser,

Em Babilônia sujeito,

Hierusalém, sem te ver,

A voz, quando a mover,

Se me congele no peito.



A minha língua se apegue

Às fauces, pois te perdi,

Se, enquanto viver assi,

Houver tempo em que te negue

Ou que me esqueça de ti!



Mas, ó tu, terra de Glória,

Se eu nunca vi tua essência,

Como me lembras na ausência?

Não me lembras na memória,

Senão na reminiscência.



Que a alma é tábua rasa

Que com a escrita doutrina

Celeste tanto imagina,

Que voa da própria casa

E sobe à Pátria divina.



Não é logo a saudade

Das terras onde nasceu

A carne, mas é do Céu,

Daquela santa Cidade

De onde esta alma descendeu.



E aquela humana figura,

Que cá me pôde alterar,

Não é quem se há-de buscar:

É o raio da Fermosura

Que só se deve de amar.



Que os olhos e a luz que ateia

O fogo que cá sujeita,

— Não do sol, mas da candeia —

É sombra daquela idéia

Que em Deus está mais perfeita.



E os que cá me cativaram

São poderosos afeitos

Que os corações têm sujeitos;

Sofistas que me ensinaram

Maus caminhos por direitos.



Destes o mando tirano

Me obriga, com desatino,

A cantar, ao som do dano,

Cantares de amor profano

Por versos de amor divino.



Mas eu, lustrado co santo

Raio, na terra de dor,

De confusão e de espanto,

Como hei-de cantar o canto

Que só se deve ao Senhor?



Tanto pode o benefício

Da Graça, que dá saúde,

Que ordena que a vida mude:

E o que eu tomei por vício

Me faz grau pera a virtude.



E faz que este natural

Amor, que tanto se preza,

Suba da sombra ao real,

Da particular beleza

Pera a Beleza geral.



Fique logo pendurada

A frauta com que tangi,

Ó Hierusalém sagrada,

E tome a lira dourada

Pera só cantar de ti;



Não cativo e ferrolhado

Na Babilônia infernal,

Mas dos vícios desatado

E cá desta a ti levado,

Pátria minha natural.



E se eu mais der a cerviz

A mundanos acidentes,

Duros, tiranos e urgentes,

Risque-se quanto já fiz

Do grão livro dos viventes.



E, tomando já na mão

A lira santa e capaz

Doutra mais alta invenção,

Cale-se esta confusão,

Cante-se a visão da paz!



Ouça-me o pastor e o rei,

Retumbe este acento santo,

Mova-se no mudo espanto;

Que do que já mal cantei

A palinódia já canto.



A vós só me quero ir,

Senhor e grão Capitão

Da alta torre de Sião,

À qual não posso subir,

Se me vós não dais a mão.



No grão dia singular

Que na lira o douto som

Hierusalém celebrar,

Lembrai-vos de castigar

Os ruins filhos de Edom.



Aqueles que tintos vão

No pobre sangue inocente,

Soberbos co poder vão,

Arrasai-os igualmente,

Conheçam que humanos são.



E aquele poder tão duro

Dos afeitos com que venho,

Que incendem a alma e engenho;

Que já me entraram o muro

Do livre alvídrio que tenho;



Estes, que tão furiosos

Gritando vêm a escalar-me,

Maus espíritos danosos,

Que querem como forçosos

Do alicerce derrubar-me,



Derrubai-os, fiquem sós,

De forças fracos, imbeles;

Porque não podemos nós

Nem com eles ir a Vós,

Nem sem Vós tirar-nos deles.



Não basta minha fraqueza

Pera me dar defensão,

Se Vós, santo Capitão,

Nesta minha fortaleza

Não puserdes guarnição.



E tu, ó carne que encantas,

Filha de Babel tão feia,

Toda de misérias cheia,

Que mil vezes te levantas

Contra quem te senhoreia,



Beato só pode ser

Quem com a ajuda celeste

Contra ti prevalecer,

E te vier a fazer

O mal que lhe tu fizeste;



Quem com disciplina crua

Se fere mais que uma vez,

Cuja alma, de vícios nua,

Faz nódoas na carne sua,

Que já a carne na alma fez



E beato quem tomar

Seus pensamentos recentes

E em nascendo os afogar,

Por não virem a parar

Em vícios graves e urgentes;



Quem com eles logo der

Na pedra do furor santo

E, batendo, os desfizer

Na Pedra, que veio a ser

Enfim cabeça do Canto;



Quem logo, quando imagina

Nos vícios da carne má,

Os pensamentos declina

Àquela carne divina

Que na Cruz esteve já;



Quem do vil contentamento

Cá deste mundo visível,

Quanto ao homem for possível,

Passar logo o entendimento

Pera o mundo inteligível,



Ali achará alegria

Em tudo perfeita e cheia

De tão suave harmonia,

Que nem, por pouca, escasseia,

Nem, por sobeja, enfastia.



Ali verá tão profundo

Mistério na suma Alteza,

Que, vencida a Natureza,

Os mores faustos do Mundo

Julgue por maior baixeza.



Ó tu, divino aposento,

Minha Pátria singular,

Se só com te imaginar

Tanto sobe o entendimento,

Que fará, se em ti se achar?



Ditoso de quem se partir

Pera ti, terra excelente,

Tão justo e tão penitente,

Que, despois de a ti subir,

Lá descanse eternamente!



(Ilustração: Zdziaw Beksiski )



quinta-feira, 9 de outubro de 2014

SUICÍDIO NA GRANJA, de Lygia Fagundes Telles





Alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos gestos — avisos que podem ser mascarados pedidos de socorro. Mas há outros que se vão no mais absoluto silêncio. Ele não deixou nem ao menos um bilhete?, fica perguntando a família, a amante, o amigo, o vizinho e principalmente o cachorro que interroga com um olhar ainda mais interrogativo do que o olhar humano, E ele?!

Suicídio por justa causa e sem causa alguma e aí estaria o que podemos chamar de vocação, a simples vontade de atender ao chamado que vem lá das profundezas e se instala e prevalece. Pois não existe a vocação para o piano, para o futebol, para o teatro. Ai!... para a política. Com a mesma força (evitei a palavra paixão) a vocação para a morte. Quando justificada pode virar uma conformação, Tinha os seus motivos! diz o próximo bem informado. Mas e aquele suicídio que (aparentemente) não tem nenhuma explicação? A morte obscura, que segue veredas indevassáveis na sua breve ou longa trajetória.

Pela primeira vez ouvi a palavra suicídio quando ainda morava naquela antiga chácara que tinha um pequeno pomar e um jardim só de roseiras. Ficava perto de um vilarejo cortado por um rio de águas pardacentas, o nome do vilarejo vai ficar no fundo desse rio. Onde também ficou o Coronel Mota, um fazendeiro velho (todos me pareciam velhos) que andava sempre de terno branco, engomado. Botinas pretas, chapéu de abas largas e aquela bengala grossa com a qual matava cobras. Fui correndo dar a notícia ao meu pai, O Coronel encheu o bolso com pedras e se pinchou com roupa e tudo no rio! Meu pai fez parar a cadeira de balanço, acendeu um charuto e ficou me olhando. Quem disse isso? Tomei o fôlego: Me contaram no recreio. Diz que ele desceu do cavalo, amarrou o cavalo na porteira e foi entrando no rio e enchendo o bolso com pedra, tinha lá um pescador que sabia nadar, nadou e não viu mais nem sinal dele.

Meu pai baixou a cabeça e soltou a baforada de fumaça no ladrilho: Que loucura. No ano passado ele já tinha tentado com uma espingarda que falhou, que loucura! Era um cristão e um cristão não se suicida, ele não podia fazer isso, acrescentou com impaciência. Entregou-me o anel vermelho-dourado do charuto. Não podia fazer isso!

Enfiei o anel no dedo, mas era tão largo que precisei fechar a mão para retê-lo. Mimoso veio correndo assustado. Tinha uma coisa escura na boca e espirrava, o focinho sujo de terra. Vai saindo, vai saindo!, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho, a conversa agora era séria. Mas pai, por que ele se matou, por quê?! fiquei perguntando. Meu pai olhou o charuto que tirou da boca. Soprou de leve a brasa: Muitos se matam por amor mesmo. Mas tem outros motivos, tantos motivos, uma doença sem remédio. Ou uma dívida. Ou uma tristeza sem fim, às vezes começa a tristeza lá dentro e a dor na gaiola do peito é maior ainda do que a dor na carne. Se a pessoa é delicada, não aguenta e acaba indo embora! Vai embora, ele repetiu e levantou-se de repente, a cara fechada, era o sinal: quando mudava de posição a gente já sabia que ele queria mudar de assunto. Deu uma larga passada na varanda e apoiou-se na grade de ferro como se quisesse examinar melhor a borboleta voejando em redor de uma rosa. Voltou-se rápido, olhando para os lados. E abriu os braços, o charuto preso entre os dedos: Se matam até sem motivo nenhum, um mistério, nenhum motivo! repetiu e foi saindo da varanda. Entrou na sala. Corri atrás. Quem se mata vai pro inferno, pai? Ele apagou o charuto no cinzeiro e voltou-se para me dar o pirulito que eu tinha esquecido em cima da mesa. O gesto me animou, avancei mais confiante: E bicho, bicho também se mata? Tirando o lenço do bolso ele limpou devagar as pontas dos dedos: Bicho, não, só gente.

Só gente? — eu perguntei a mim mesma muitos e muitos anos depois, quando passava as férias de dezembro numa fazenda. Atrás da casa-grande tinha uma granja e nessa granja encontrei dois amigos inseparáveis, um galo branco e um ganso também branco mas com suaves pinceladas cinzentas nas asas. Uma estranha amizade, pensei ao vê-los por ali, sempre juntos. Uma estranhíssima amizade. Mas não é a minha intenção abordar agora problemas de psicologia animal, queria contar apenas o que vi. E o que vi foi isso, dois amigos tão próximos, tão apaixonados, ah! como conversavam em seus longos passeios, como se entendiam na secreta linguagem de perguntas e respostas, o diálogo. Com os intervalos de reflexão. E alguma polêmica mas com humor, não surpreendi naquela tarde o galo rindo? Pois é, o galo. Esse perguntava com maior frequência, a interrogação acesa nos rápidos movimentos que fazia com a cabeça para baixo, e para os lados, E então? O ganso respondia com certa cautela, parecia mais calmo, mais contido quando abaixava o bico meditativo, quase repetindo os movimentos da cabeça do outro mas numa aura de maior serenidade. Juntos, defendiam-se contra os ataques, não é preciso lembrar que na granja travavam-se as mesmas pequenas guerrilhas da cidade logo adiante, a competição. A intriga. A vaidade e a luta pelo poder, que luta! Essa ânsia voraz que atiçava os grupos, acesa a vontade de ocupar um espaço maior, de excluir o concorrente, época de eleições? E os dois amigos sempre juntos. Atentos. Eu os observava enquanto trocavam pequenos gestos (gestos?) de generosidade nos seus infindáveis passeios pelo terreiro, Hum! olha aqui esta minhoca, sirva-se à vontade, vamos, é sua! — dizia o galo a recuar assim de banda, a crista encrespada quase sangrando no auge da emoção. E o ganso mais tranquilo (um fidalgo) afastando-se todo cerimonioso, pisando nas titicas como se pisasse em flores, Sirva-se você primeiro, agora é a sua vez! E se punham tão hesitantes que algum frango insolente, arvorado a juiz, acabava se metendo no meio e numa corrida desenfreada levava no bico o manjar. Mas nem o ganso com seus olhinhos redondamente superiores nem o galo flamante — nenhum dos dois parecia dar maior atenção ao furto. Alheios aos bens terreirais, desligados das mesquinharias de uma concorrência desleal, prosseguiam o passeio no mesmo ritmo, nem vagaroso nem apressado, mas digno, ora, minhocas!

Grandes amigos, hem?, comentei certa manhã com o granjeiro que concordou tirando o chapéu e rindo, Eles comem aqui na minha mão!

Foi quando achei que ambos mereciam um nome assim de acordo com suas nobres figuras, e ao ganso, com aquele andar de pensador, as brancas mãos de penas cruzadas nas costas, dei o nome de Platão. Ao galo, mais questionador e mais exaltado como todo discípulo, eu dei o nome de Aristóteles.

Até que um dia (também entre os bichos, um dia) houve o grande jantar na fazenda e do qual não participei. Ainda bem. Quando voltei vi apenas o galo Aristóteles a vagar sozinho e completamente desarvorado, os olhinhos suplicantes na interrogação, o bico entreaberto na ansiedade da busca, Onde, onde?!... Aproximei-me e ele me reconheceu. Cravou em mim um olhar desesperado, Mas onde ele está?! Fiz apenas um aceno ou cheguei a dizer-lhe que esperasse um pouco enquanto ia perguntar ao granjeiro: Mas e aquele ganso, o amigo do galo?!

Para que prosseguir, de que valem os detalhes? Chegou um cozinheiro lá de fora, veio ajudar na festa, começou a contar o granjeiro gaguejando de emoção. Eu tinha saído, fui aqui na casa da minha irmã, não demorei muito mas esse tal de cozinheiro ficou apavorado com medo de atrasar o jantar e nem me esperou, escolheu o que quis e na escolha, acabou levando o coitado, cruzes!... Agora esse daí ficou sozinho e procurando o outro feito tonto, só falta falar esse galo, não come nem bebe, só fica andando nessa agonia! Mesmo quando canta de manhãzinha me representa que está rouco de tanto chorar.

Foi o banquete de Platão, pensei meio nauseada com o miserável trocadilho. Deixei de ir à granja, era insuportável ver aquele galo definhando na busca obstinada, a crista murcha, o olhar esvaziado. E o bico, aquele bico tão tagarela agora pálido, cerrado. Mais alguns dias e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro costumava se banhar. No livro do poeta Maiakóvski (matou-se com um tiro) há um verso que serve de epitáfio para o galo branco: Comigo viu-se doida a anatomia / sou todo um coração!


(Invenção e Memória)


(Ilustração: Dürer - melancolia)



segunda-feira, 6 de outubro de 2014

ALL THAT WE HAVE IS LIFE / TUDO QUE TEMOS É A VIDA, de D. H. Lawrence

  







All that we have , while we live is life;

and if you don’t live during your life, you are a piece of dung.

And work is life, and life is lived in work

unless you’re a wage slave.

While a wage-slave works, he leaves life aside

and stands there a piece of dung.

Men should refuse to be lifelessly at work.

Men should refuse to be heaps of wage-earning dung.

Men should refuse to work at all. As wage-slaves.

Men should demand to work for themselves, of themselves,

and put their life in it.

For if a man has no life in his work, he is mostly a heap of dung.



Tradução de Mário Alves Coutinho:




Tudo que temos, enquanto vivemos, é a vida;

se você não vive durante sua vida, você é um pedaço de merda.

E trabalho é vida, e vida é vivida no trabalho

a menos que você seja um escravo do salário.

Enquanto um escravo do salário trabalha, deixa a vida de lado

e fica lá um pedaço de merda.




Os homens deveriam recusar-se a ser sem vida no trabalho.

Os homens deveriam recursar-se a ser montes de assalariados de merda.




Os homens deveriam recusar-se a trabalhar, como escravos assalariados.

Os homens deveriam exigir trabalhar para si mesmos, por si mesmos, e investir sua vida nisso.

Pois se um homem não tem vida no seu trabalho, ele é basicamente um monte de merda.






(Tudo que vive é sagrado / William Blake, D. H. Lawrence)




(Ilustração: Canato - liberdade, igualdade, fraternidade)