quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O QUE ENTENDIA SHAKESPEARE DE ELEFANTES?, de Simon Winchester






O “dicionário inglês”, no sentido em que usamos comumente a expressão hoje em dia — como uma lista alfabeticamente ordenada das palavras inglesas, junto com uma explicação de seus significados —, é uma invenção relativamente nova. Quatrocentos anos atrás não havia nenhuma conveniência desse gênero em qualquer estante inglesa. Não existia nenhum disponível, por exemplo, quando William Shakespeare estava escrevendo suas peças. Sempre que vinha a usar uma palavra incomum, ou encaixar um termo no que lhe parecia ser um contexto invulgar — e suas peças são extraordinariamente ricas de exemplos —, ele quase não tinha modo de verificar a propriedade do que estava prestes a fazer. Não tinha possibilidade de estender a mão para uma de suas estantes e escolher um volume qualquer para ajudá-lo: não seria capaz de encontrar livro algum que pudesse lhe dizer se a palavra escolhida estava grafada com propriedade, se a havia selecionado corretamente ou se a usara da maneira certa no lugar adequado. 

Shakespeare não seria capaz sequer de desempenhar uma função que hoje consideramos tão perfeitamente normal e comum quanto a própria leitura. Ele não poderia, como se diz, “consultar alguma coisa”. Na verdade, a expressão inglesa “look something up” — quando utilizada no sentido de “procurar algo num dicionário, enciclopédia ou outro livro de referência” — simplesmente não existia. Ela só vai aparecer na língua inglesa em 1692, quando um historiador de Oxford chamado Anthony Wood a usou. 

Como não havia a expressão até o final do século XVII, conclui-se também que certamente não existia tal conceito na época em que Shakespeare estava escrevendo — um período em que autores escreviam freneticamente e pensadores pensavam como nunca tinham feito antes. A despeito de toda a atividade intelectual daquele tempo, não existia impresso nenhum guia da língua, nenhum vade mecum linguístico, nem um único livro que Shakespeare ou Martin Frobisher, Francis Drake, Walter Raleigh, Francis Bacon, Edmund Spenser, Christopher Marlowe, Thomas Nash, John Donne, Ben Jonson, Izaak Walton, ou qualquer outro de seus eruditos contemporâneos pudesse consultar. Consideremos, por exemplo, a composição da Noite de Reis, de Shakespeare, que ele concluiu logo no início do século XVII. Pensemos no momento, provavelmente o verão de 1601, em que ele começou a escrever a cena do terceiro ato na qual Sebastian e Antonio, o marinheiro naufragado e seu salvador, tinham acabado de chegar ao porto e estão se perguntando onde poderiam passar a noite. Sebastian reflete sobre a questão por um instante e então, como alguém que tivesse lido e decorado seu guia de hotéis da época, declara com toda simplicidade: “In the south suburbs at the Elephant/ Is best to lodge”.[1] 

E agora — o que William Shakespeare entendia exatamente de elefantes? Além disso, o que conhecia ele de Elephants como hotéis? Inúmeras hospedarias em várias cidades por toda a Europa tinham esse nome. Este determinado Elephant, visto que se tratava da Noite de Reis, por acaso ficava na Ilíria; só que havia muitos outros — dois deles, pelo menos, em Londres. Mas fossem quantos fossem — por que era esse o caso aqui? Por que batizar uma estalagem com o nome deste animal? E, afinal, que animal era este? Todas essas eram perguntas que, pode-se imaginar, um escritor deveria ao menos estar apto a responder. 

Mas eles não estavam. Se Shakespeare não sabia lá muita coisa a respeito de elefantes, o que era provável, e se não tinha conhecimento deste curioso hábito de dar o nome do animal a hotéis — onde poderia pesquisar a questão? E mais — se não se achava rigorosamente certo de estar dando a seu Sebastian a referência adequada para suas falas — por que a estalagem se chamaria realmente elefante, ou quem sabe não fora batizada com o nome de outro animal, um camelo, ou um rinoceronte, um gnu? — onde poderia verificar para se certificar? Onde, na verdade, um dramaturgo da época de Shakespeare consultaria qualquer palavra? 

Seria de se pensar que ele gostaria de pesquisar alguma coisa o tempo todo. “Am not I consanguineous?” [Não sou eu um consanguíneo?], escreve na mesma peça. Algumas falas depois refere-se ao “thy doublet of changeable taffeta” [vosso gibão de tafetá furtacor]. Em seguida declara: “Now is the woodcock near the gin” [Agora está a galinhola perto da armadilha de caça]. O vocabulário de Shakespeare era evidentemente prodigioso: mas como poderia ele ter certeza de que, em todos os casos nos quais empregava palavras incomuns, estava fazendo o uso correto, tanto no sentido gramatical como de fato? O que o impedia, empurrando-o para uns dois séculos depois, de se tornar um eventual Mr. Malaprop? [2] 

Vale a pena propor essas perguntas simplesmente para ilustrar o que acharíamos hoje da profunda inconveniência da impossibilidade de recorrer a um dicionário. Na época em que estava escrevendo, havia uma abundância de atlas, e também de livros de orações, missais, histórias, biografias, romances, assim como volumes de ciência e arte. Acredita-se que Shakespeare extraiu muitas das suas alusões clássicas de um léxico especializado (Thesaurus) que havia sido compilado por um homem chamado Thomas Cooper — os muitos erros do léxico aparecem reproduzidos com excessiva precisão em suas peças para que isso possa ser considerado coincidência — e pensa-se também que tenha bebido na fonte da Arte of rhetorique, de Thomas Wilson. Mas isso era tudo; não existia nenhum outro instrumento de pesquisa disponível, literário, linguístico ou léxico. 

Na Inglaterra do século XVI, dicionários como os que conhecemos hoje simplesmente não existiam. Se a língua que tanto inspirou Shakespeare tinha seus limites, se suas palavras tinham origens, grafias, pronúncias, significados definíveis, não havia um único livro que os tivesse estabelecido, definido e consolidado. Talvez seja difícil imaginar uma mente tão criativa trabalhando sem uma única obra de referência lexicográfica a seu lado, a não ser a “cola” proporcionada pelo léxico do sr. Cooper (que a sra. Cooper certa vez atirou ao fogo, obrigando o grande homem a começar tudo de novo) e o pequeno manual do sr. Wilson, mas essa foi a situação sob a qual seu talento especial viu-se compelido a florescer. A língua inglesa era falada e escrita — mas na época de Shakespeare não estava definida, fixada. Era como o ar — tida como certa, a substância envolvente que continha em si e definia todos os britânicos. Mas quanto ao que ela era exatamente, e quais eram seus componentes — quem sabia? 

Durante o século e meio seguinte deu-se um grande alvoroço de atividade comercial no setor, e dicionário após dicionário saíam com grande estrépito das prensas, cada um maior do que o outro, cada um deles apregoando um valor superior na educação dos deseducados (entre os quais se contavam as mulheres da época, a maioria das quais contava com pouca escolaridade, se comparadas aos homens). 

Ao longo do século XVII esses livros tenderam a se concentrar, como fizera a primeira contribuição de Cawdrey, no que eram as ditas “palavras difíceis” — palavras que não se achavam no uso comum, cotidiano, ou palavras que tivessem sido inventadas especificamente para impressionar os outros, os assim chamados “termos de tinteiro”, com os quais os livros dos séculos XVI e XVII parecem bem adornados. 

O fato de os livros se concentrarem apenas na pequena parte do vocabulário nacional que abrangia tamanha bobagem poderia sugerir hoje que isso lhes conferia um caráter bizarro e incompleto, mas naquela época sua seleção editorial era vista como uma virtude. Falar e escrever dessa maneira constituía a mais alta ambição da grãfinagem inglesa. “Apresentamos-lhes”, trombeteava o editor de uma dessas obras para os futuros membros da alta sociedade, “as palavras de escol.” 


Notas: 

[1] Nos subúrbios do Sul no Elefante / é o melhor lugar para se hospedar (N. E.) 

[2] Referência à personagem Mrs. Malaprop, da peça The rivals (Os rivais), de Richard Brinsley Sheridan, que se destacava pelo emprego errôneo e, especialmente, ridículo de parônimos (malaproprism, do francês "mal-à-propos", ou seja, "inadequado para o propósito") (N. T.) 



(O professor e o louco; tradução de Flavia Villas-Boas) 



(Ilustração: desenho de William Kent e gravação de Pierre Fourdrinier para as fábulas de Gay – 1727)


segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

PER FARE UNA LEGGIADRA SUA VENDETA / PARA DE MIM TOMAR VINGANÇA ESTREITA, de Petrarca







Per fare una leggiadra sua vendetta

e punire in un di ben mille offese,

celatamente Amor l'arco riprese,

come uom ch'a nocer luogo e tempo aspetta.



Era la mia virtute al cor ristretta

per far ivi e ne gli occhi sue difese,

quando ´l colpo mortai là giù discese

ove solea spuntarsi ogni saetta.



Però, turbata nel primiero assalto,

non ebbe tanto né vigor né spazio

che potesse al bisogno prender l'arme,

overo al poggio faticoso ed alto

ritrarmi accortamente da lo strazio

del quale oggi vorrebbe, e non può aitarme.



Tradução de Jamil Almansur Haddad:



Para de mim tomar vingança estreita

e punir num só dia muito pecado,

Amor tomou seu arco, disfarçado,

como quem por matar se põe à espreita.



Defesa pus nos olhos mui benfeita,

usando toda a força com cuidado,

quando o golpe mortal desceu-me ao lado,

que é onde sempre alveja a seta eleita.



Assim turbado no primeiro assalto,

não me sobrou vigor, nem mesmo espaço,

para tomar das armas sem demora,



ou de no topo fatigante e alto,

fugir espertamente do mau passo,

como desejo, já sem força, agora.





(Ilustração: Fernando Botero - pareja con Cupido)


sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

NATAL NO PORTO IGUAÇU, de Mempo Giardinelli







Para Daniel Mordzinski 



É um homem que está só mas não espera. Nota-se que não espera. Tem uma expressão nos lábios que tenta ou pretende ser um sorriso, mas não é. Com as mãos entrelaçadas sobre a mesa, vê a garota de vestido longo azul cantar. Todo o restaurante olha para ela, e também olha para ele. Mas não parece que seja por uma história de amor. 

No "Jardin Iguazu" a fauna dessa noite, 24 de dezembro, é pelo menos chamativa. Os chineses estão na ampla mesa do fundo, contra as colunas, e de lá chega um murmúrio suave de pombos. Sua língua estranha mistura palavras de guarani e de castelhano, particularmente entre os menores, que chamam a atenção pelo comportamento sério, quase adulto. 

O pátio é grande, para umas cinquenta pessoas ou mais. Quase todas estão ocupadas por uma legião de rostos peculiares que tagarelam como pássaros de falar diverso: as garotas que parecem alemãs, ou austríacas, comem discretas como as loiras; os dois franceses de camiseta e short que parecem gêmeos, ou casal gay, bebem como se esta fosse a última ceia antes de subir ao patíbulo; um grupo de cordobeses grita perto dos chineses e solta provocações a toda hora, pedindo que a menina de vestido longo azul cante sucessos de Mona Jimenez. 

O homem que está só terminou de comer. Antes das onze da noite passou duas vezes o guardanapo branco pelos lábios e bebeu um par de taças de sidra gelada que a casa oferece aos comensais. Chun Li, o patrão que vigia para nada escapar a seu controle, ordenou que a sidra seja incluída no preço do buffet livre chino-argentino: vinte pesos, ou dólares, por pessoa e com toda outra bebida por fora. Enquanto Maria Paula, a garçonete que nos atende, serve a sidra e informa sobre os pratos do dia, calculo que há mais de cem pessoas no local: um cálculo redondo sobretudo porque há gente como esses quatro europeus de nacionalidade indefinível que já vão pela oitava garrafa do melhor tinto nacional, ou esse grupo de estudantes norte-americanos com camisetas da NYU e outras universidades que desde as oito da noite estão bebendo cerveja com uma paixão igual a da Quinta Frota cada vez que ataca um país árabe. 

A garota canta agora boleros de Luís Miguel e é difícil dizer se é melhor olhar as pernas que aparecem pelo talho do vestido longo azul, ou acompanhar a conduta tão esquisita de Solari, como batizamos o homem de rictus na boca que parece sorriso mas não é sorriso. Seu comportamento é por demais educado, ou talvez haveria que dizer contido. Como uma encenação discreta, não é tristeza o que define seu estado. É mais um atravessar na contramão de todos, o que, ao fim, se torna patético. 

É um homem de boa aparência, certamente: deve andar pelos quarenta anos, quem sabe cinquenta bem conservados, com alguns fios grisalhos sobre as orelhas, peito malhado em academia, mãos de colono ou operário: amplas, fortes, grandes. Veste-se com simplicidade, como quase todos nesta noite abrasadora de Natal e neste ponto quente da fronteira: jeans e camisa de mangas curtas em tom pálido, nada para destacar. O que se nota é que está só e sua solidão é absoluta, insólita para esta noite e este lugar, uma solidão, diga-se, chamativa como a corcunda do Corcunda de Notre Dame, indiscreta como um comentário do inesquecível Max Ferrarotti de Soriano. 

Impossível não olhar para ele. É quase agressiva sua desolação. Preside uma mesa vazia com restos de peru e um pão doce pela metade. Pediu agora uma garrafa de vinho branco que beberá só, talvez como tenha feito toda sua vida, bebe parcimoniosa e lentamente como se fosse para durar até a meia-noite, quando a garota do vestido longo azul anuncia que é a hora do grande brinde, dos beijos e das felicitações, e explodem as mesas dos argentinos, dos cordobeses e de uns rio-negrinos de longe, e também de uma turma de brasileiros que começam a dançar como sempre fazem os brasileiros para que todo mundo goste deles, e de modo mais contido os europeus, e com frieza asiática os chineses: todos se beijam, se abraçam, se cumprimentam, nos beijamos, brindamos de mesa em mesa, levantamos os cálices, alguns dizem piadas à garota de vestido longo azul que canta algo de Caetano, Chun Li vigia a caixa e que tudo esteja em ordem, e cinco minutos depois eu noto, e acho que todos notamos, que o homem só continua sozinho, impávido, levantando sua taça até a altura dos lábios sem brindar com ninguém. 

De uma mesa vizinha um casal de velhos se aproxima para brindar com ele, quem sabe comovidos pelo seu desamparo; trocam saudações, e outra mulher, de uns quarenta anos, que imagino solteirona, vai e tasca um beijo e um abraço como se dissesse aí, cara, não enche o saco, vem te divertir um pouco que estou aqui e a noite é propícia. Mas o homem, depois de devolver, gentil e educado, os cumprimentos, volta para sua mesa, a sua soberba, a sua patética solidão sem esperanças. 

Até uma da manhã e depois de tangos, cumbias e inclusive chacareras a pedido, a garota do vestido longo azul faz uma pausa com seus músicos, alguns turistas se retiram para descansar, e com Daniel, que manteve suas câmeras penduradas no pescoço como um médico de terapia intensiva com seu estetoscópio, decidimos que é hora de ir dormir pois amanhã será um dia de trabalho. Pagamos Maria Paula e cumprimentamos Chun Li e os seus. Dou um beijo fraternal em Maria Paula, que não deixou de dançar cumbias desde que a ceia terminou, e antes de sair olho pela última vez o homem solitário e pergunto a Maria Paula qual é a dele, que continua ali, sentado, com a expressão que pretende ser sorriso mas não é e que tenta ser agradável sem conseguir. 

"Esse cara?", diz, com desprezo, Maria Paula. "É um policial aposentado que torturou e matou um montão de gente. Há alguns anos era o homem mais temido da fronteira; agora é só isso que estás vendo: menos que um pobre infeliz, um merdinha." 

E me dá um beijo e outro em Daniel, e continua dançando. Vamos para o hotel, pensando no dia seguinte. Sem olhar para trás. 



(Tradução de Carlos Urbim) 



(Ilustração: Edward Hopper, solidão)




terça-feira, 22 de janeiro de 2019

MALDITOS POETAS, de Adolfo Simões Müller






Malditos poetas, que disseram tudo

e tudo tão bem dito!

Malditos poetas, que me deixam mudo,

sem um ai, uma súplica ou um grito!



Raios os partam, cada qual maldito!



Malditos, que roçaram no seu voo,

com asas de veludo

o infinito!



Malditos poetas: Eu os abençoo…






(Ilustração: Kujita Makolli - the poet)







sábado, 19 de janeiro de 2019

DAYS OF WINE AND ROSES, de Silviano Santiago







Tristeza não tem fim, felicidade sim. 

(Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição) 



Você acorda durante a noite. Você não sabe onde se encontra. Que horas são? Não há razões para você viver onde está morando. Você se levanta da cama no escuro. Sente uma corrente fria de ar nas pernas descobertas. Ela sobe pelo corpo até a cabeça. A cabeça se confunde com os pés. Você caminha para a sala rolando em cima dela, como o menino saltimbanco do quadro de Picasso. Você se aproxima da poltrona que dá para a janela e de lá, sem acender a luz do abajur e já sentado, redescobre os próprios olhos, vendo a rua deserta e iluminada às quatro horas da manhã. A poltrona é velha e pouco cômoda. Está encardida pelo uso. Ela não combina com você. Você não combina com ela. Muito grande, não há como escondê-la no armário embutido, onde você escondeu os vários quadros que estavam dependurados nas paredes. O apartamento de quarto e sala foi alugado com os móveis e os quadros. Falta o dedo, falta o gosto. Você fica ao lado dos móveis, dentro do apartamento. Você está vivendo no apartamento como se morasse num quarto de hotel. Você liga o aparelho de televisão. Você e os móveis se entreolham de perfil, como bandido e polícia se estranham um ao outro no filme que está sendo exibido a esta hora da madrugada. 

A vidraça quadricula o lá fora da madrugada de inverno. Você faz de conta que ela está aberta. Neste momento você não quer saber as razões pelas quais você faz de conta que ela esteja aberta. Ou as outras razões pelas quais você gostaria de saltar para a calçada pela janela deste terceiro andar. Você está lá fora gozando o vento da madrugada gelada no corpo aqui dentro. A tempestade de neve que desabou na quinta-feira preencheu o fim de semana de toda a cidade. Você recebeu dois telefonemas, o primeiro desmarcando um encontro e o segundo suspendendo um jantar. O gramado das casas ficou recoberto de branco. Também as calçadas. As árvores nuas são paus secos cinzentos e amedrontadores, menos os pinheiros. Estão verdes e enfeitam a cidade para o Christmas. 

Não foi fácil caminhar de volta para casa na sexta-feira. O céu continuava nublado e pesado. O vento frio que soprou durante toda a noite e pela manhã transformou a neve depositada na calçada num arriscado ringue de patinação e este fez do solado das botas arremedo de patins. Não se ouviam vozes humanas pelo caminho. O silvo cortante do vento rabiscava e apagava nomes próprios nos seus ouvidos, rabiscava e apagava. Você imaginou que não havia casas na cidade. Não há casas. Só ruas. Você imaginou que não havia famílias na cidade. Não há famílias. 

O asfalto se deixou tingir momentaneamente de branco, figurando-se depois como uma comprida e interminável faixa paralela e negra à sua frente. Uma faixa ensopada e suja, transformada em pura lama pelo atrito dos pneus dos carros. A faixa paralela apontou para a fuga, ou para o vazio em perspectiva das lâmpadas dos postes. Você preferiu o vazio de pirilampos elétricos perfilados até o infinito da sua visão. As estrelas são inacessíveis e têm uma organização anárquica. Tapando e destapando os ouvidos para evitar o congelamento das orelhas, você brincou, como se brinca com uma concha, com o marulhar dos motores pouco apressados dos automóveis que trafegavam com farol baixo. 

Ontem não caiu a neve que os boletins meteorológicos fornecidos pela televisão anunciaram nos sucessivos jornais da véspera. Choveu pela manhã. Uma chuva desentranhada do gelo como um bom daiquiri mexicano. O branco foi varrido dos jardins e das calçadas. Você conta as poucas pilhas de neve, nem brancas nem negras, feitas pelo trabalho das pás, e agora ilhadas pela sujeira da lama e enrijecidas pelo vento. Da janela são onze pilhas, sentinelas às saídas de entrada para as garagens, como se fossem as latas não do lixo doméstico, mas do lixo celeste. Os gramados perderam de vez o pouco de verde que ainda ostentavam antes da tempestade e agora estão amarelecidos, deixando a pura cor marrom de terra se salientar. Você se levanta da poltrona nesta madrugada de domingo e procura, com o rosto rente à vidraça, o boneco de neve visto e apreciado ontem. Não consegue vê-lo. Estava desfigurado ontem, terá se derretido com a chuva. Ostentava um petulante chapéu de palha vermelho, resto das férias de verão da família, e um cachecol preto em farrapos. Alguém, só pode ter sido por molecagem, tinha atochado uma espécie de charuto no que tinha sido a boca. Você tirou o charuto e ajeitou o chapéu de palha vermelho na massa branca disforme. Só não trouxe o chapéu para casa porque ainda não tinha a condição de lixo. Neste domingo ele é do lugar para onde o vento o levou. Já em casa, na quinta-feira, com os flocos de neve da tempestade lambendo o vidro da janela, você não sabe por que, por que você chamou Roy ao telefone. Não o via fazia muitos anos. Quinze pelo menos. Nem uma carta, nem uma palavra amiga trocaram durante todo esse tempo. Você partiu sem lhe deixar o endereço. Um dia você não quis revê-lo. Você não tem vontade de revê-lo. Tem vontade de conversar. Os móveis do apartamento alugado são feios, sujos e velhos. Os quadros estão escondidos no armário embutido. Você não está contente com as imagens do cotidiano na tela da televisão. Você já não ouve as diferentes vozes que falam para você, te olhando fixamente nos olhos, informando-o do estado do mundo nesse dia. 

Você já esquentou e comeu a sopa enlatada. Clam chowa’ era o estilo de New England, enriquecida com uma meia colher de missô. O corpo transpira. Você tira a camisa de lãzinha. Fica só de camiseta, cueca e sandália havaiana. A calefação aumenta, a temperatura cai lá fora. Você molha o pano de prato e o estica por cima do radiador para ver se as narinas não reagem à falta de umidade no ambiente. Você abre a geladeira, retira uma pera e o pedaço de queijo suíço envolto em papel celofane. Você come a pera com pedaços de queijo e algumas ameixas secas. Toma depois um gole de uísque. No gargalo. Você pensa agora que o telefone é uma forma de encontrar uma pessoa sem verdadeiramente encontrá-la. Você toma um segundo gole de uísque. No gargalo. Você está adquirindo maus hábitos. Sob o pretexto de necessidade de falar com alguém por ocasião da tempestade de neve - foi por essa razão que você discou o número de Roy. Pelo menos foram estas as suas primeiras palavras ao telefone, depois de se identificar e de ouvir a expressão de espanto e alegria do outro lado. Sem mais nem menos, você tinha desaparecido da vista dele havia quinze anos. Você tinha convivido com ele durante seis anos. Fora amante dele. Não do tipo carrapato, rola rolando dia e noite na mesma cama e sob o mesmo teto. 

Você sempre teve o seu apartamento, embora sempre encontrasse Roy no dele. Houve razões para você estar com ele naquela época. Não há razões para você revê-lo agora. Ficarei eternamente tirando água do poço com os baldes da memória? você inventa a pergunta sentado na poltrona encardida que acolhe e rechaça o inquilino brasileiro de nariz arrebitado. Sorri da pergunta, sorri da poltrona encardida de onde é feita a pergunta, sorri da pessoa que faz a pergunta sentada na poltrona encardida. E volta a contar as pilhas de neve esparramadas pela calçada que aparecem agora como montes de feno em quadro bucólico. O riso fica desbotado quando se descobre em contradição com os dedos que apertam as teclas do telefone. Roy te disse que se lembrava de você. Muito. 

“Lembrar até que você pode, não sou eu quem vai duvidar, mas será que pode me reconhecer?” 

“Só tirando a prova”, disse ele, insinuando um encontro urgente. 

“Sempre querendo tirar uma casquinha?” 

“E que mal há nisso?” 

“Desta vez não estou morando tão perto assim de você.” 

“E é preciso? Para isso existem os meios de transporte. Neste país funcionam, principalmente os transportes públicos”, acelerou a vontade de te ver. 

“E também o telefone. Também ele funciona maravilhosamente. Nunca tive uma conversa interrompida porque a linha tivesse caído”, você cortou de vez a ironia e a conversa mole dum futuro tête-à-tête na cidade dele, no apartamento dele, na cama dele. 

“Estou em desvantagem”, continuou. 

Você não sabia a que ele se referia e ficou em silêncio. Ele retoma a fala: “Você sabe o meu número de telefone, aliás, o de sempre, e eu não sei o seu. Me dê o seu número. Pelo menos o número.” Entre o pedido do seu número de telefone e o pelo menos houve uma pausa. O pelo menos dele serviu para cortar o riso irônico e vitorioso que você tinha ameaçado durante o que agora você reconhece ter sido uma pausa a mais. 

Você negaceia. Não quer ainda lhe dar o número do telefone, muito menos o endereço ou o nome da cidade, tão próxima, onde você veio trabalhar durante uma curta temporada. Não há razões. Pura birra. Você sempre teve prazer em esconder de Roy os seus novos números de telefone. Gostava de aparecer no edifício dele, anunciando-se pelo interfone da portaria. “Você tem a chave do apartamento. Para que tanta cerimônia?”, perguntava ele, dando por encerrado o ritual tolo. Você não gostava de surpreendê-lo. Gostava de não se fazer esperado. 

“Já está de pijama?”, pergunta você. 

“Acertou.” 

“O de seda?” 

“Acertou de novo. Um terceiro, quarto ou quinto, não sei, perdi a conta. Aquele pijama que você me deu de presente no nosso último Natal, o segundo, virou farrapo há muito tempo. Só não digo que foi pro lixo, para não ser indelicado. Mas o padrão do tecido é o mesmo. A loja também, Bloomingdale’s. A qualidade da seda é que não é mais a mesma.” 

“Motivo indiano?” 

“Motivo indiano.” 

“Anos 60?” 

“Anos 60. Motivo indiano, anos 60. Bom observador.” 

“Boa memória”, você o corrige. 

“Guardada a sete chaves. 

“Quando é que você vai perder essa mania?” 

“Qual delas? são tantas!” 

“A de ir pra cama vestido com pijama.” 

“Quando você conseguir me convencer.” 

“Te convenci tantas vezes a dormir nu.” 

“E um dia deixou de convencer. Pensei que você tivesse deixado de lembrança o pijama de seda para que eu não deixasse de vesti-lo antes de ir pra cama. Pensei errado.” 

“Uma boa lição costuma valer pra sempre.” 

“Qual? por exemplo.” 

“Ensinar uma pessoa a descobrir a própria pele enquanto adormece.” 

“Te dou outro exemplo, quer?” 

“Se for de graça...”, você espicaça Roy. 

“Ensinar uma pessoa a descobrir a sensualidade da seda sobre a pele.” 

“Você nunca mais dormiu nu?”, insiste você, com malícia. 

“A ocasião faz o monge.” 

“O hábito...” 

“Você entendeu. Não se faça do que não é.” 

“Tolo?” 

“Não. Ciumento.” 

“E o que é feito do robe de seda que te dei?”, pergunta Roy. 

Você não responde. Muda de assunto. 

Você pergunta pelos velhos amigos. 

Ismael está morto e enterrado na Colômbia. Os familiares vieram buscar o corpo dele. 

“Foi o fígado que pifou de vez?”, você pergunta e ele confirma, ratificando a sua boa memória. Teresa, a sandinista, mudou de ideias políticas e de estilo de vida. Casou e fugiu para o México com um gringo rico e mais os filhos que não eram dela. 

“E Donald? E Tom? E Robert?” Os outros amigos - você descobre que não adianta ir mencionando mais os nomes da velha turma para ir matando as saudades dos bons tempos. Naquela época, Donald quis ser ator ou bailarino na Broadway. Tom trabalhava dia e noite numa companhia de seguros e Robert, filho de papai rico, pintava telas num loft do Village que mereciam ser rasgadas. Os outros amigos - ele não sabe do destino deles. Sabe, você também sabe, mas preferem silenciar. 

“Os tempos já não são os mesmos”, você percebe que a voz dele perde o tom decidido da investida inicial. 

“Os corpos já não são os mesmos”, você ecoa a frase de Roy, sem coragem de dizer que a vasta cabeleira negra, que contrastava na cama com os cabelos louros dele, agora são cabelos brancos raros e ralos. Daquele tempo, só a barba espessa. Cada vez mais espessa. 

“Nem os bares são os mesmos.” 

“Houve um dia em que todos se fecharam.” 

“Você não estava aqui para vê-los irem se fechando.” Você não sabe se, com esse comentário, Roy lamenta o seu desaparecimento da vida dele, ou o sucessivo fechamento dos bares. 

“Posso não ter presenciado o fechamento dos bares de Nova York”, você contra-argumenta, “mas fui vendo eles irem se fechando por muitas outras cidades tão interessantes quanto a sua. 

“Não viajo tanto. Aliás, não viajo nunca, você sabe, a não ser ao redor do meu quarto. Quando muito atravesso a Quinta Avenida e vou ao West Side para ver uma peça de teatro. Não sei se é pior saber que todos os bares se fecham na aldeia, ou saber que se fecham mundo afora.” 

“Você não perde o seu jeito de ser provincianamente nova-iorquino”, você comenta a maneira orgulhosa e sarcástica como Roy define a grande metrópole norte-americana, lembrando-se depois do contraste entre a maneira como programavam as suas vidas enquanto viveram em apartamentos separados e na mesma cama. 

Você dizia, então, que ele levava jeito de dono do império. Um londrino no século XIX às margens do Tâmisa, com a curiosidade satisfeita a cada navio que chegava com as notícias das colônias. Ele replicava, dizendo que você levava jeito de dono de empório. Um exportador paulista de café do início deste século, vistoriando os negócios pelas metrópoles do mundo chamado civilizado. E se divertindo, e como! Você intuía certa mágoa controlada nas palavras dele. 

“Existe alguma coisa de mais universal do que ser provinciano em Nova York?”, continua ele, só para te deixar perturbado. Você diz que ele não perde a oportunidade de ficar calado. 

Aquela era a frase preferida dele quando vinha ver você arrumar as malas para uma nova viagem ao exterior, ou desfazê-las depois de um périplo pela Europa ou pela América Latina, para ele totalmente desnecessário. O capítulo viagem não pertencia ao apartamento dele. Servia para a listagem na caderneta de endereços dos inúmeros apartamentos abandonados por você e dos muitos números diferentes de telefone de que você foi assinante. Roy dizia então que o universalismo provinciano do nova-iorquino não era invenção dele. Tinha chegado à ideia e conseguido formular a frase depois das muitas conversas com correspondentes de jornais brasileiros que você tinha apresentado a ele. “Tão tolinhos”, dizia ele em português estropiado, imitando um amigo comum, Zeca. 

Você encobria a inevitabilidade da viagem ao exterior com somas milagrosas de dinheiro, vantagens na profissão, saudades de amigos, tédio da vida trepidante nova-iorquina, e podia ainda se valer, como o comandante do navio que soçobra se vale de qualquer objeto a bordo para se salvar, da palavra que estivesse à mão. 

Roy sabia por que você viajava. Se todas as viagens são a mesma, basta fazer a primeira para ter a experiência. Roy tinha feito a primeira e única viagem depois de se graduar numa universidade do interior do país. Ele dizia que sabia das razões da sua nova viagem num misto de silêncio e malícia. 

Você tinha medo do estrago moral que a ternura ressentida e silenciosa dele te causava e, por isso, imediatamente lhe dava o troco, perguntando por que é que ele guardava tanto amor pela mesma cidade? pelo mesmo endereço, pelo mesmo número de telefone? É também o que você quer saber agora, quando a antiga frase dele, retomada por acaso na conversa telefônica, tinha acabado de ecoar pela madrugada do apartamento alugado, levando-o a avaliar de novo o lugar onde estaria morando por mais alguns meses. Esses móveis não são tão feios nem estão tão sujos. Não são iguais aos móveis que você tem em casa, mas são em tudo por tudo iguais aos móveis dos diferentes apartamentos alugados por onde o seu corpo transitou. E a sua cabeça e imaginação trabalharam. Eles não têm a marca do dedo, não têm as cores do gosto, não sentiram a acidez corrosiva dos produtos de limpeza. São como são os inquilinos que vão acolhendo um após outro, indistintamente. Cara de um, focinho do outro. Sem essa de desconfiança mútua. Olhe-se no espelho do banheiro. Você não verá a sua cara, verá refletida uma cabeça cubista. 

Depois de alguns segundos de silêncio, você diz a Roy que voltará a chamá-lo qualquer dia destes. Ele não se surpreende com o término abrupto do telefonema. Te deseja boa sorte. 

“Antes, não tive oportunidade de te desejar boa sorte”, acrescentou. 

Você desejou o mesmo para ele e desligou. 

Na madrugada fria de domingo, sentado na velha poltrona encardida pelo uso, você não sabe se algum dia, em algum momento, chegou a amar Roy. Você nunca quis admitir que a convivência esfria a lembrança dos primeiros dias, dos primeiros meses, e que a perspectiva da convivência falseia a intensidade dos sentimentos e das emoções compartilhados. Vocês viveram uma longa relação sexual e amorosa. Durou o que tinha de durar, dadas as características da sua personalidade. Durou menos do que devia ter durado, dadas as características da personalidade de Roy. Para os amigos mais íntimos, lembrando o passado, você disse e repetiu que tivera um caso longo com um gringo em Nova York. Você sabe que não foi um caso. Pode não ter sido paixão, mas classificar o relacionamento de caso é minimizar experiências que te constituíram e te transformaram no que você é hoje. 

Perguntado por esses amigos se sentia saudades dele, daqueles anos em Nova York, respondia que não. “Boas lembranças”, respondia. Lembra-se do gringo como a gente se lembra dum bom amigo da infância que, sem dizer adeus, tinha desaparecido na curva da adolescência. Lembra-se da cidade como a gente se lembra da ponte de onde pela primeira vez se quis pular para a eternidade. 

Sempre que você viajava para os Estados Unidos, ou passava por Nova York, o dedo indicador da mão direita tinha comichões antes de se entregar ao sono. Você contra-atacava a curiosidade despertada pela solicitude do aparelho de telefone no criado-mudo ao lado, inventando programas para o dia seguinte. 

Você não é vulgar. Você não gosta de ser vulgar quando conversa com os amigos. Você é vulgar quando trata de se convencer de que agiu corretamente nas relações amorosas. Você se transforma num voyeur de você e de seu companheiro, como esses casais há muito casados que vão transar no motel porque lá tem espelhos no teto e nas paredes. 

Você traduz as carícias iniciais trocadas com Roy pelos nomes mais grosseiros dos órgãos sexuais envolvidos na batalha do leito e, com a fita métrica da retina, mede tamanho, diâmetro e largura e, com a sensibilidade dos ouvidos, faz a listagem completa dos ruídos malcheirosos e envergonhados e, com a suavidade do tato, apalpa espessura e asperezas, descrevendo em seguida os túneis vulgares lubrificados pela saliva pastosa e as rotas clandestinas perseguidas e finalmente permitidas e devassadas. Você menospreza a ânsia gerada pelos movimentos repetitivos, ridículos e nada monótonos, enxergando nela o prejuízo do suor que se torna pegajoso e nojento, a sujeira das peles lambuzadas que reclamam sabão e o banho de chuveiro e o cansaço dos músculos que teriam optado pelo descanso naquela noite de dia cansativo. Você descreve o gozo sexual enunciando os vários nomes do líquido, quanto mais sórdidos os nomes, e nojentos, mais vantajosos, você descreve o gozo sexual medindo a quantidade expelida do líquido e a frequência, atendo-se a dados complementares como a indolência ou a agressividade do esguicho. A memória das suas experiências amorosas com Roy é como os dois espelhos ovais e reflexivos do guarda-roupa, que a decoração fim-de-século permitia ter ao lado da cama do casal. Recordando, você se vangloria da capacidade que tem de oferecer pele, boca, dentes, órgãos, músculos e líquido que satisfazem. 

Posso imaginar a que conclusão você vai chegar. Você não precisa enunciá-la. Posso enunciá-la para você: 

Você nunca chegou a amar Roy. 

“Eu nunca cheguei a amar Roy.” É isso o que uma vez mais você diz para você neste momento em que as primeiras luzes do dia cinzento tornam um pouco mais nítidos os móveis encardidos, velhos e feios da sala. “Não cheguei a amá-lo.” 

Você é vulgar. 

“Ele serviu para me tirar a porra dos colhões como um fazendeiro ordenha uma vaca leiteira.” Você continua, dizendo que você foi a vaca, e ele, um bezerro que você teve que desmamar à força. Com o dia já claro, você volta para a cama sem planos para o domingo nevado que vem pela frente. 

A noite desce cedo no inverno e parece que vai descendo mais cedo neste domingo em que você acorda tarde e nada faz nas poucas horas do dia, a não ser olhar sem ver as sucessivas transmissões de jogos esportivos na televisão. Antes que a noite desça de vez e mais uma vez, você olha pela janela a neve, que volta a cair recobrindo de branco as redondezas quadriculadas. Os flocos voltam a dançar alegres ao ritmo do vento. Lambem a vidraça. Abraçam-se aos ramos dos pinheiros. Assentam-se aconchegantes no gramado e rarefeitos na calçada. Os automóveis deslizam lentamente, iluminando com os faróis a sujeira da lama na rua. Você aperta as teclas do telefone. Compõe o número de Roy. 

Uma voz gravada do outro lado diz que o número discado se encontra desativado. Você acredita que tenha discado o número errado. Para se certificar, relê o número anotado na velha caderneta de endereços. Aperta de novo as teclas. Você não deixa que a voz gravada termine a mensagem, desliga antes. Você busca na lista telefônica o número da informação. Pede o telefone de Roy. A telefonista informa que o número não pode ser fornecido. Você insiste, dá o endereço do assinante. Ela lamenta e diz que o assinante trocou de número e acrescenta que, por uma módica quantia mensal, ele tem o direito de não ter o seu novo número publicado na lista e de impedir a sua divulgação pela telefonista de plantão. São as regras da companhia, ela termina. 





(Ilustração: Paul Cadmus - Jerry Cadmus)



quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

DE MÃE, de Conceição Evaristo









O cuidado de minha poesia

aprendi foi de mãe,

mulher de pôr reparo nas coisas,

e de assuntar a vida.



A brandura de minha fala

na violência de meus ditos

ganhei de mãe,

mulher prenhe de dizeres,

fecundados na boca do mundo.



Foi de mãe todo o meu tesouro

veio dela todo o meu ganho

mulher sapiência, yabá,

do fogo tirava água

do pranto criava consolo.



Foi de mãe esse meio riso

dado para esconder

alegria inteira

e essa fé desconfiada,

pois, quando se anda descalço

cada dedo olha a estrada.



Foi mãe que me descegou

para os cantos milagreiros da vida

apontando-me o fogo disfarçado

em cinzas e a agulha do

tempo movendo no palheiro.



Foi mãe que me fez sentir

as flores amassadas

debaixo das pedras

os corpos vazios

rente às calçadas

e me ensinou,

insisto, foi ela

a fazer da palavra

artifício

arte e ofício

do meu canto

da minha fala.





(Poemas da recordação e outros movimentos)



(Ilustração: Makiwa Mutomba - Zimbawe - the lost schoolbag)






domingo, 13 de janeiro de 2019

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, de Assembleia Geral das Nações Unidas



Preâmbulo 

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, 

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum, 

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, 

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, 

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, 

Considerando que os Países-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano e a observância desses direitos e liberdades, 

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, 

Agora portanto a Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. 


Artigo 1 

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. 


Artigo 2 

1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 

2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. 


Artigo 3 

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. 



Artigo 4 

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. 



Artigo 5 

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. 



Artigo 6 

Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei. 


Artigo 7 

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. 


Artigo 8 

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. 


Artigo 9 

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. 


Artigo 10 

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. 


Artigo 11 

1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 

2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. 


Artigo 12 

Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. 


Artigo 13 

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 

2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar. 


Artigo 14 

1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 

2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. 


Artigo 15 

1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade. 

2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade. 


Artigo 16 

1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 

2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 

3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. 


Artigo 17 

1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 

2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. 


Artigo 18 

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular. 


Artigo 19 

Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. 


Artigo 20 

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica. 

2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. 


Artigo 21 

1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 

2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 

3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. 


Artigo 22 

Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. 


Artigo 23 

1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 

2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 

3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 

4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. 


Artigo 24 

Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas. 


Artigo 25 

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. 


Artigo 26 

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. 


Artigo 27 

1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 

2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor. 


Artigo 28 

Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados. 


Artigo 29 

1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 

2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 

3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas. 


Artigo 30 

Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos. 




(Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas - resolução 217 A III - em 10 de dezembro 1948) 



(Ilustração: símbolo da declaração universal dos direitos humanos)