segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

UMA VISÃO DO MUNDO, de John Cheever








Isto está sendo escrito em mais uma cabana à beira-mar de mais um litoral. O gim e o uísque morderam anéis na mesa em que estou sentado. A luz é fraca. Na parede, uma litografia colorida de um gatinho usando um chapéu de flores, um vestido de seda e luvas brancas. O ar cheira a mofo, mas é um cheiro agradável para mim — caloroso e lascivo, como o de água estagnada ou o do vento terral. A maré está alta e o mar no fundo do penhasco esmurra seus tabiques e portas e sacode suas correntes com tanta força que o abajur pula em cima da minha mesa. Estou aqui sozinho para me restabelecer de uma série de acontecimentos que tiveram início numa tarde de sábado, quando eu estava cavoucando meu jardim. A cerca de meio metro da superfície, encontrei uma latinha redonda que talvez fosse de graxa para sapatos. Forcei a tampa da lata com uma faca. Dentro havia um pedaço de linóleo, que por sua vez protegia um bilhete escrito em folha pautada. Dizia: “Eu, Nils Jugstrum, prometo a mim mesmo que, se não me tornar membro do clube de campo Gory Brook até os vinte e cinco anos, vou me enforcar”. Eu sabia que, vinte anos antes, o bairro em que eu morava era uma zona rural, e imaginei um filho de fazendeiro contemplando os lisos campos de golfe de Gory Brook, rabiscando esse juramento e enterrando o papel no chão. Sempre me deixo comover por essas linhas de comunicação quebradas por meio das quais expressamos nossos sentimentos mais pungentes. Tive a sensação de que o bilhete, como um impulso de amor romântico, me fez entrar mais fundo no entardecer. 

O céu estava azul. Parecia música. Eu havia acabado de cortar a grama e o cheiro dela impregnava o ar. Isso me fez lembrar das declarações e promessas de amor que conhecemos na juventude. No fim de uma corrida, você se joga na grama ao lado da pista de saibro, quase sem fôlego, e o ardor com que abraça o gramado do colégio é uma promessa que seguirá pelo resto de seus dias. Pensando em coisas opacas, notei que as formigas pretas tinham vencido as formigas vermelhas e estavam retirando os corpos do campo de batalha. Um sabiá passou voando, perseguido por dois gaios. O gato estava espreitando um pardal nos arbustos de groselha. Uma dupla de papa-figos passou se bicando e em seguida, a uns trinta centímetros dos meus pés, me deparei com uma cobra cabeça de cobre descascando o último pedaço da pele escura de inverno. O que senti não foi medo nem pavor; foi o choque da minha falta de preparo diante dessa variedade da morte. De repente surgia esse veneno mortal, tão pertencente à natureza quanto a água límpida correndo no riacho, mas era como se eu não tivesse espaço para ele em minhas considerações. Entrei em casa para buscar a espingarda, mas tive então o azar de topar com o mais velho dos meus dois cães, uma cadela que tem medo de armas de fogo. Assim que viu a arma, ela começou a latir e a ganir, atormentada sem dó por seus instintos e anseios. Seus latidos atraíram o outro cão, um caçador nato, que veio saltando da escada pronto para ir buscar uma lebre ou pássaro, e, seguido pelos dois cães, um latindo de alegria e outro de horror, voltei ao jardim bem a tempo de flagrar a víbora sumindo dentro de um muro de pedra. 

Depois disso, fui de carro à cidade, comprei um pouco de semente de grama e então fui ao supermercado da rota 27 para buscar os pãezinhos que minha mulher tinha encomendado. Acho que hoje em dia é bom ter uma câmera para gravar um supermercado numa tarde de sábado. Nossa linguagem é tradicional, um acúmulo de séculos de diálogo. Tirando o formato dos pães, não havia nada de tradicional à vista no balcão de padaria em que precisei aguardar minha vez. Éramos seis ou sete pessoas sendo retidas por um velhinho com uma lista comprida, um pergaminho de compras. Espiando por cima de seu ombro, consegui ler: 

6 ovos hors-d’oeuvres 

Ele notou que eu estava lendo o seu documento e o protegeu contra o peito, à maneira de um jogador de cartas cuidadoso. De repente, a música encanada mudou de uma canção romântica para um chachachá, e a mulher do meu lado começou a mexer timidamente os ombros e a executar uns passinhos de dança. “Gostaria de dançar, madame?”, perguntei. Ela era bem sem graça, mas, quando estendi meus braços, ela se encaixou neles e dançamos por um ou dois minutos. Dava para ver que ela gostava de dançar, mas com uma cara daquelas não devia ter muitas oportunidades. Em seguida ela ficou muito vermelha, saiu dos meus braços e foi até o balcão de vidro, onde se pôs a analisar as bombas de creme. Senti que tínhamos dado um passo na direção correta e, depois de pegar os pãezinhos, dirigindo para casa, eu estava exultante. Um policial me parou na esquina da Alewives Lane para dar passagem a um desfile. A primeira a chegar foi uma jovem de botas e shorts que enfatizavam a formosura de suas coxas. Tinha um nariz enorme, usava um colbaque na cabeça e agitava um bastão de alumínio. Foi seguida por outra garota, de coxas ainda mais formosas e fornidas, que marchava com a pélvis tão projetada para a frente em relação ao resto do corpo que sua espinha fazia uma curva estranha. Usava óculos bifocais e parecia terrivelmente entediada pela projeção da pélvis. Uma banda de garotos, contendo aqui e ali um impostor grisalho, veio na retaguarda tocando “The caissons go rolling along”. Não carregavam faixas, não possuíam nenhum objetivo ou rumo discernível e tudo me parecia terrivelmente cômico. Fui rindo no caminho todo até em casa. 

Mas minha mulher estava triste. 

“Qual o problema, meu bem?”, perguntei. 

“É só essa sensação horrorosa de que sou um personagem de um seriado cômico de televisão”, ela disse. “Afinal, sou atraente, sei me vestir, tenho filhos bonitos e estou de bem com a vida, mas tenho uma sensação horrorosa de que existo em preto e branco e de que poderia ser desligada por qualquer um. É só essa sensação horrorosa de que podem me desligar.” Minha mulher vive triste porque sua tristeza não é uma tristeza triste, infeliz porque sua infelicidade não é uma infelicidade esmagadora. Ela sofre porque seu sofrimento não é um sofrimento dilacerante e, quando lhe digo que essa infelicidade trazida pela inadequação da infelicidade pode ser um matiz novo no espectro do sofrimento humano, ela não se sente consolada. Oh, às vezes penso em deixá-la. Seria totalmente concebível construir uma vida sem ela nem as crianças, e eu poderia seguir em frente sem o companheirismo de meus amigos, mas não seria capaz de abandonar meus canteiros e jardins, não poderia me separar das portas de tela da varanda, que tanto consertei e pintei, e não posso me divorciar do caminho sinuoso de tijolos que construí ligando a porta lateral da casa às roseiras; e assim, por mais que minhas correntes estejam presas à grama e à tinta da casa, elas me prenderão até que eu morra. Na ocasião, porém, fiquei grato a minha mulher por ter dito o que disse, por haver atestado que as aparências da sua vida tinham o caráter de um sonho. As energias irreprimidas da imaginação haviam criado o supermercado, a víbora e o bilhete dentro da lata de graxa para sapatos. Comparados a isso, meus devaneios tinham a literalidade de um registro contábil de partidas dobradas. Agradava-me pensar que a nossa vida aparente tem o caráter de um sonho e que dentro dos nossos sonhos encontramos as virtudes do conservadorismo. Entrei em casa e encontrei a faxineira fumando um cigarro egípcio roubado e reconstituindo cartas rasgadas que haviam sido jogadas no cesto de lixo. 

Fomos jantar no Gory Brook aquela noite. Chequei a lista de membros à procura de Nils Jugstrum, mas ele não constava, e me perguntei se ele teria se enforcado. E a troco de quê? Era sempre assim. Gracie Masters, a filha única de um agente funerário milionário, estava dançando com Pinky Townsend. Pinky tinha saído da cadeia depois de pagar fiança de cinquenta mil dólares por manipulação da bolsa de valores. Quando a fiança foi definida, ele tirou os cinquenta mil da carteira. Dancei um bloco de músicas com Millie Surcliffe. As músicas foram “Rain”, “Moonlight on the Ganges”, “When the Red Red Robin comes Bob Bob Bobbin’ along”, “Five foot two, eyes of blue”, “Carolina in the morning” e “The sheik of Araby”. Era como se dançássemos em cima do túmulo da coerência social. Mas, apesar de a cena ser simplesmente revolucionária, onde estava o novo dia, o mundo de amanhã? O bloco seguinte foi “Lena from Palesteena”, “I’m forever blowing bubbles”, “Louisville Lou”, “Smiles” e “The Red Red Robin” de novo. Esta última faz todo mundo chacoalhar o esqueleto, mas, quando a banda foi tirar o cuspe dos instrumentos, reparei que os músicos estavam balançando a cabeça numa profunda reprovação moral daquela palhaçada. Millie retornou à sua mesa e eu fiquei parado próximo à porta, tentando entender por que meu coração ficava suspenso ao ver as pessoas abandonarem uma pista de dança no final da música — como fica suspenso quando vejo o povo recolhendo as coisas e indo embora da praia à medida que a sombra das falésias vai cobrindo a água e a areia, como se eu enxergasse nessas despedidas tranquilas as energias e as inconsequências da própria vida. 

O tempo, pensei, é rude ao nos tirar o privilégio de ser um espectador não envolvido, e eis que aquele casal conversando aos gritos em péssimo francês no saguão do Grande Bretagne (Atenas) somos nós. Outras pessoas assumiram nosso posto ao lado dos vasos de palmeiras, nosso canto sossegado do bar, e agora, expostos, somos forçados a olhar ao redor em busca de outras avenidas de observação. O que eu pretendia identificar na ocasião não era uma cadeia de acontecimentos, e sim uma essência — algo como a colisão indecifrável de contingências que podem gerar exaltação e desespero. O que eu pretendia era, num mundo tão incoerente, garantir aos meus sonhos sua legitimidade. Nada disso me tirou o ânimo, e eu dancei, bebi e contei histórias no bar até perto da uma, quando fui para casa. Liguei a televisão e apareceu um comercial que, como tanta coisa que eu tinha visto aquele dia, era terrivelmente engraçado. Uma mulher jovem com sotaque de colégio interno perguntava: “Você se incomoda com o odor de um casaco de pele molhado? Depois de passar pela chuva, uma capa de zibelina que vale cinquenta mil dólares pode cheirar pior que um velho cão de caça que acaba de perseguir uma raposa no pântano. Nada cheira pior que uma pele de marta molhada. Basta uma garoa leve para deixar peles de carneiro, raposa, civeta, doninha e outras peles menos caras e duráveis malcheirosas como um leão numa jaula de zoológico sem ventilação. Proteja-se do constrangimento e da ansiedade aplicando pequenas quantidades de Elixircol antes de vestir suas peles…”. Ela pertencia ao mundo dos sonhos, e foi isso que eu lhe disse logo antes de desligá-la. Adormeci sob a luz da lua e sonhei com uma ilha. 

Eu estava na companhia de outros homens e aparentemente tinha chegado naquele lugar num barco à vela. Lembro de estar queimado de sol e, ao passar a mão no queixo, senti uma barba de três ou quatro dias. A ilha ficava no Pacífico. Havia no ar um odor de óleo de cozinha velho — um indício da costa chinesa. Desembarcamos no meio da tarde e pelo jeito não tínhamos muito que fazer. Ficamos vagando pelas ruas. O lugar tinha sido ocupado pelo exército ou servira de posto de trânsito militar, pois muitos dos avisos nas janelas estavam redigidos em inglês aproximado. “Corts Militaris”, li na placa de uma barbearia oriental. Muitas lojas tinham garrafas de uísque americano falsificado na vitrine. Escreviam uísque como “Whikky”. Como não tínhamos nada melhor para fazer, fomos ao museu local. Havia arcos, anzóis primitivos, máscaras e tambores. Do museu, fomos a um restaurante e pedimos comida. Tive que brigar com o idioma local, mas o surpreendente é que parecia ser uma briga instruída. Era como se eu tivesse estudado o idioma antes de desembarcar. Lembro claramente de ter construído uma frase quando o garçom veio até a mesa. “Porpozec ciebie nie prosze dorzanin albo zyolpocz ciwego”, falei. O garçom sorriu e me elogiou e, quando acordei do sonho, a existência da linguagem fez com que a ilha ensolarada, sua população e seu museu se tornassem reais, vívidos e persistentes. Tive saudade dos nativos calmos e amistosos e do ritmo tranquilo de suas vidas. 

O domingo transcorreu de forma ligeira e prazerosa numa sequência de coquetéis festivos, mas aquela noite tive outro sonho. Sonhei que estava diante da janela do quarto de uma cabana em Nantucket que alugamos de vez em quando. Estava olhando para o sul, acompanhando a curva suave da praia. Já vi praias mais belas, brancas e esplêndidas do que aquela, mas, quando vejo o amarelo da areia e a curvatura, tenho sempre a sensação de que, se eu ficar olhando a enseada por tempo o bastante, ela me trará uma revelação. O céu estava nublado. A água estava cinzenta. Era domingo — embora seja impossível dizer como eu sabia disso. Era tarde, e da pousada vinha aquele barulho tão agradável dos pratos sendo manuseados por famílias que jantavam no domingo à noite, na velha sala de jantar com piso de tábuas. Nesse momento, vi uma figura se aproximando pela praia. Parecia ser um padre ou bispo. Carregava um bastão episcopal e usava a mitra, a veste, a batina, a casula e a alva para a missa votiva cantada. Seus trajes tinham rebuscados enfeites em ouro e de vez em quando eram levantados pela brisa marítima. Seu rosto estava bem barbeado. Não consegui discernir suas feições na luz que se esgotava. Ele me viu na janela, ergueu a mão e gritou: “Porpozec ciebie nie prosze dorzanin albo zyolpocz ciwego”. Então saiu correndo pela areia, batendo o bastão no chão como uma bengala, com os passos dificultados pelo volume de suas vestes. Passou pela janela onde eu estava e desapareceu ali onde a curva da falésia alcança a curva da água. 

Trabalhei na segunda, e na manhã de terça acordei lá pelas quatro da manhã no meio de um sonho em que estava jogando touch football. Meu time estava ganhando. O placar estava 6 a 18. Era um jogo de fundo de quintal, jogado na casa de alguém numa tarde de domingo. Nossas esposas e filhos assistiam à partida na margem da grama, onde havia mesas, cadeiras e coisas para beber. A jogada vencedora foi um lançamento longo para a frente e, quando o touchdown foi marcado, uma loura grandona chamada Helene Farmer levantou e organizou as mulheres numa fileira de animadoras de torcida. “Rá, rá, rá”, elas disseram. “Porpozec ciebie nie prosze dorzanin albo zyolpocz ciwego. Rá, rá, rá.” 

Não achei nada disso perturbador. Era o que eu desejava, de uma certa forma. 

A força irredutível do homem não é o seu amor pela descoberta? A repetição daquela frase me proporcionava a excitação da descoberta. O fato de que eu fazia parte do time vencedor me deixou contente e desci animado para tomar o café, mas nossa cozinha, veja só, faz parte da terra dos sonhos. Com suas paredes rosadas e laváveis, iluminação tenebrosa, televisão embutida (onde orações estavam sendo proferidas) e vasos de plantas artificiais, ela me fez sentir nostalgia pelo meu sonho e, quando minha mulher me entregou a caneta e a Lousa Mágica em que anotamos nossos pedidos para o café da manhã, escrevi: “Porpozec ciebie nie prosze dorzanin albo zyolpocz ciwego”. Ela riu e perguntou o que eu queria dizer. Quando repeti a frase — parecia ser, com efeito, a única coisa que me interessava dizer —, ela começou a chorar, e com a tristeza de suas lágrimas eu percebi que o melhor que tinha a fazer era descansar um pouco. O dr. Howland veio me dar um sedativo e peguei um voo para a Flórida naquela tarde. 

Agora é tarde. Bebo um copo de leite e tomo um comprimido para dormir. Sonho que estou vendo uma bela mulher ajoelhada num campo de trigo. Seus cabelos castanhos são volumosos, como são também as saias de seu vestido. Suas roupas parecem antiquadas — de antes do meu tempo — e me pergunto como posso sentir um carinho tão grande por uma desconhecida que veste roupas que podiam ter pertencido à minha avó. E apesar disso ela parece ser real — mais real que a trilha Tamiami, seis quilômetros ao leste, com suas barracas da Smorgorama e da Giganticburger, mais real que as ruelas internas de Sarasota. Não pergunto quem ela é. Sei o que ela vai dizer. Mas então ela sorri e começa a falar antes que eu tenha a chance de lhe dar as costas. “Porpozec ciebie…”, ela começa a dizer. E nisso acordo em desespero, ou sou acordado pelo som da chuva nas palmeiras. Penso num fazendeiro que escuta o som da chuva, espreguiça os ossos fracos e sorri, sentindo que a chuva está caindo sobre suas alfaces e repolhos, seu feno e sua aveia, sua pastinaca e seu milho. Penso num encanador que, despertado pela chuva, sorri diante de uma visão do mundo em que todos os ralos estão milagrosamente limpos e desobstruídos. Ralos em ângulo reto, ralos tortos, ralos esganados por raízes e ralos enferrujados, todos gorgolejando e despejando suas águas no mar. Penso que a chuva acabará acordando uma velha senhora que tentará lembrar se deixou seu exemplar de Dombey and Son no jardim. E o xale? Será que ela cobriu as cadeiras? E sei que o som da chuva despertará alguns amantes e que esse som parecerá fazer parte da força que os impeliu aos braços um do outro. Então sento na cama e grito bem alto para mim mesmo: “Valor! Amor! Virtude! Compaixão! Esplendor! Bondade! Sabedoria! Beleza!”. É como se as palavras tivessem a cor da terra e, à medida que as recito, sinto a esperança se acumular até o ponto em que fico satisfeito e em paz com a noite. 





(28 contos de John Cheever; “A vision of the world”, tradução de Daniel Galera) 



(Ilustração: Salvador Dali)







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