sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

LE BEL ÉTÉ / BELO VERÃO, de Yves Bonnefoy



Le feu hantait nos jours et les accomplissait,

Son fer blessait le temps à chaque aube plus grise,

Le vent heurtait la mort sur le toit de nos chambres,

Le froid ne cessait pas d’environner nos coeurs.



Ce fut un bel été, fade, brisant et sombre,

Tu aimas la douceur de la pluie en été

Et tu aimas la mort qui dominait l’été

Du pavillon tremblant de ses ailes de cendre.



Cette année-là, tu vins à presque distinguer

Um signe toujours noir devant tes yeux porté

Par les pierres, les vents, les eaux et les feuillages.



Ainsi le soc déjà mordait la terre meuble

Et ton orgueil aima cette lumière neuve,

L’ivresse d’avoir peur sur la terre d’été.



Tradução de Mário Laranjeira:



Nossos dias o fogo habitava e cumpria,

Feria ao tempo o ferro a cada alva mais cinza,

O vento golpeava a morte em nossos tetos,

O frio não sustava o cerco em nossos peitos.



Foi um belo verão, insosso, áspero e escuro,

Amaste a maciez da chuva no verão

E amaste a morte assim dominando o verão

Do pavilhão tremente em suas asas de cinza.



Naquele ano vieste quase a decifrar

Um signo sempre negro alçado ao teu olhar

Pelas pedras, e ventos, e águas, e folhagens.



Assim a relha já mordia a terra móvel

E o teu orgulho amou aquela luz tão nova,

A embriaguez de ter medo em terra de verão.



(Obra Poética, 1998)



(Ilustração: Marc Chagall)

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

MÚSICA NA NOITE, de Aldous Huxley

 


Sem lua, esta noite de junho é tanto mais viva com estrelas. Sua escuridão é perfumada com rajadas fracas vindas dos florescentes limoeiros, com o cheiro de terra molhada e com o verdor invisível das videiras. Há silêncio; mas é um silêncio que respira com a respiração tranquila do mar e, no meio do fino e estridente ruído de um grilo, de forma insistente, de forma incessante repisa o fato de sua própria perfeição profunda. Na distância longínqua, a passagem de um trem é como uma longa carícia, movendo-se de maneira suave, com uma suavidade inexorável, ao longo do corpo vivo e quente da noite.

Música, você diz; seria uma boa noite para a música. Mas eu tenho a música aqui numa caixa, trancada como um daqueles gênios engarrafados nas Mil e uma noites e pronta para sair de sua prisão ao menor toque. Eu faço a magia mecânica necessária e, de súbito, por alguma coincidência milagrosamente adequada (porque eu havia selecionado o disco no escuro, sem saber que música a máquina iria tocar), de súbito a introdução do Benedictus na Missa Solemnis de Beethoven começa a traçar os seus padrões no céu sem lua.

O Benedictus. Abençoada e oferecenda bênção, essa música é de alguma forma o equivalente da noite, da escuridão profunda e viva na qual, ora num único jato, ora num refinado entrelaçamento de melodias, ora em pulsantes e quase sólidos coágulos de som harmonioso, ela se derrama, se derrama de maneira inestancável como o tempo, como as trajetórias ascendentes e cadentes, cadentes de uma vida. É o equivalente da noite num outro modo de existência, como uma essência é o equivalente das flores, das quais ela é destilada.

Existe, pelo menos por vezes parece existir, uma certa bem-aventurança depositada no coração das coisas, uma bem-aventurança misteriosa, de cuja existência acidentes ou providências ocasionais (para mim, esta noite é um caso desses) nos fazem obscuramente, ou quem sabe intensamente, mas sempre fugazmente, ai de nós, sempre apenas por poucos e breves momentos conscientes. No Benedictus Beethoven dá expressão a essa consciência de bem-aventurança. A sua música é o equivalente dessa noite mediterrânea, ou melhor, da bem-aventurança no coração da noite, da bem-aventurança que teríamos se ela pudesse ser depurada da irrelevância e do acidente, refinada e isolada na quintessência de sua pureza.

“Benedictus, benedictus…” Uma depois da outra, as vozes assumem o tema proposto pela orquestra e amorosamente meditado por um longo e requintado solo (porque a bem-aventurança se revela de maneira mais frequente ao espírito solitário) de um único violino. “Benedictus, benedictus…” E então, de repente, a música morre; o gênio esvoaçante foi engarrafado de novo. Com estúpida insistência, típica de um inseto, uma ponta de aço raspa e raspa o silêncio.

Na escola, quando nos ensinaram o que era tecnicamente conhecido como inglês, costumavam nos mandar que “expressássemos em nossas próprias palavras” alguma passagem de qualquer peça de Shakespeare que no momento estivesse sendo enfiada, com todas as suas anotações – em particular as anotações – nas nossas relutantes goelas. De modo que ali nós ficávamos sentados, uma fileira de moleques sujos de tinta, laboriosamente traduzindo “sedosos flertes no roupeiro jazem” por “elegantes roupas de seda ficam guardadas no guarda-roupa”, ou “Ser ou não ser” por “Eu me pergunto se eu deveria cometer suicídio ou não”. Quando terminávamos, nós entregávamos os nossos trabalhos e o pedagogo intendente nos dava notas maiores ou menores, de acordo com a precisão com a qual “as nossas próprias palavras” haviam “expressado” o significado do Bardo.

Ele deveria, é claro, ter dado zero para todos nós, com uma extensa reprovação para si mesmo por jamais ter nos passado um exercício tão tolo. Ninguém com suas “próprias palavras”, exceto com as palavras do próprio Shakespeare, poderá de alguma forma “expressar” o que Shakespeare quis dizer. A substância de uma obra de arte é inseparável de sua forma; sua verdade e sua beleza são duas e no entanto, misteriosamente, são uma só. A expressão verbal de até mesmo uma metafísica ou um sistema de ética é quase tanto uma obra de arte quanto um poema de amor. A filosofia de Platão expressa nas “próprias palavras” de Jowett não é a filosofia de Platão; tampouco nas “próprias palavras” de Billy Sunday, digamos, o ensinamento de São Paulo é o ensinamento de São Paulo.

“As nossas próprias palavras” são inadequadas até mesmo para expressar o significado de outras palavras; quão mais inadequadas elas serão, então, quando tratamos de interpretar significados que têm a sua expressão original em termos de música ou de uma das artes visuais!? O que “diz”, por exemplo, a música? Você pode comprar em praticamente qualquer concerto um programa analítico que lhe dará uma resposta exata. Exata demais; esse é o problema. Cada analista tem a sua própria versão. Imagine o sonho do faraó interpretado sucessivamente por José, pelos adivinhos egípcios, por Freud, por Rivers, por Adler, por Jung, por Wohlgemuth: o sonho “diria” inúmeras coisas diferentes. Nem de perto tantas, no entanto, quanto a Quinta Sinfonia foi levada a dizer no palavreado de seus analistas. Nem de perto tantas quanto a Virgem das Rochas e a Madona Sistina já disseram não menos liricamente.

Irritados com o palavreado e com essa multiplicidade absurda de “significados” atribuídos, alguns críticos protestaram que a música e a pintura não significam nada exceto elas mesmas; que as únicas coisas que elas “dizem” são coisas, por exemplo, sobre modulações e fugas, sobre valores de cor e formas tridimensionais. Que elas digam qualquer coisa sobre o destino humano ou sobre o universo em geral é uma noção que esses puristas descartam na condição de meramente despropositadas.

Se os puristas estavam certos, então precisaríamos considerar pintores e músicos como monstros. Porque é rigorosamente impossível que sejamos um ser humano e não tenhamos visões de algum tipo sobre o universo em geral, é muito difícil que sejamos um ser humano e não expressemos essas visões, pelo menos por implicação. Ora, é uma questão de observação a constatação de que os pintores e os músicos não são monstros. Portanto… A conclusão se segue, de forma inescapável.

Não é só na música programática e nos quadros problemáticos que os compositores e os pintores expressam suas visões sobre o universo. As criações artísticas mais puras e mais abstratas podem ser, em seu próprio idioma peculiar, tão eloquentes a esse respeito quanto as mais deliberadamente tendenciosas.

Compare, por exemplo, uma Virgem de Piero della Francesca com uma Virgem de Tura. Duas Madonas – e as atuais convenções simbólicas são observadas por ambos os artistas. A diferença, a enorme diferença entre os dois quadros é uma diferença puramente pictórica, uma diferença nas formas e nos arranjos, na disposição de linhas e planos e massas. Para qualquer pessoa que seja num mínimo grau sensível à eloquência da forma pura, as duas Madonas dizem coisas totalmente diferentes sobre o mundo.


A composição de Piero é uma fusão de elementos sólidos suaves e equilibrados com maestria. Tudo em seu universo é dotado de uma espécie de substancialidade sobrenatural, é muito mais “ali” do que qualquer objeto do mundo real poderia de alguma forma ser. E quão sublimemente racional, na mais nobre, na mais humana aceitação da palavra, quão ordenadamente filosófica é a paisagem e são todos os habitantes desse mundo! É a criação de um deus que “desempenha o papel de geômetra”.

O que ela diz, essa Madona de Sansepolcro? Se eu não tiver traduzido totalmente mal a eloquência das formas de Piero, ela está nos falando sobre a grandeza do espírito humano, sobre o seu poder de se elevar acima da circunstância e de dominar o destino. Se você quisesse perguntar para ela “Como hei de ser salvo?”, ela provavelmente responderia “Pela Razão”. E, antecipando Milton, “Não apenas, não principalmente na cruz”, ela diria, “é o Paraíso recuperado, mas naqueles desertos de máxima solidão onde o homem faz uso da força da sua razão para resistir ao demônio”. Essa particular mãe de Cristo não é, provavelmente, uma cristã.


Agora observe o quadro de Tura. Ele é modelado a partir de uma substância que é como a encarnação viva da chama – uma carne-chama viva e sensível e sofredora. Suas superfícies se contorcem e se afastam dos olhos, como se estivessem se encolhendo, como se estivessem sentindo dor. As linhas fluem com algo da caligrafia intrincadamente inquietante e – você sente – mágica que caracteriza certas pinturas tibetanas. Olhe bem de perto; sinta o seu caminho no interior do quadro, no interior dos pensamentos e das intuições e emoções do pintor. Esse homem estava nu e à mercê do destino. Para ser capaz de proclamar a estoica independência do espírito, você precisa ser capaz de levantar a cabeça acima do fluxo das coisas; esse homem estava afundado no fluxo, subjugado. Ele não poderia introduzir nenhuma ordem em seu mundo; o mundo permanecia sendo para ele um caos misterioso, fantasticamente marmoreado com trechos ora do mais puro céu, ora do mais excruciante inferno. Um mundo belo e terrível é o veredito dessa Madona; um mundo semelhante à encarnação, à projeção material, da loucura de Ofélia. Não há certezas nele além do sofrimento e da felicidade ocasional. E, quanto à salvação, quem saberá qual é o caminho da salvação? Talvez possam existir milagres, e sempre temos a esperança.

Os limites da crítica são alcançados com grande rapidez. Quando disse “em suas próprias palavras” tanto quanto, ou melhor, tão pouco quanto as “próprias palavras” conseguem dizer, o crítico só pode referir seus leitores à obra de arte original: deixemos que eles vejam por si mesmos. Aqueles que ultrapassam o limite ou são pessoas bastante estúpidas, vaidosas, que adoram suas “próprias palavras” e imaginam que conseguem dizer através delas mais do que as “próprias palavras” são capazes de expressar na natureza das coisas, ou então são indivíduos inteligentes que por acaso são filósofos ou artistas literários e que julgam conveniente fazer da crítica ao trabalho de outros homens um ponto de partida para sua própria criatividade.

O que é verdade no caso da pintura é igualmente verdade no caso da música. A música “diz” coisas sobre o mundo, mas em termos especificamente musicais. Qualquer tentativa de reproduzir essas afirmações musicais “em nossas próprias palavras” está necessariamente condenada ao fracasso. Nós não podemos isolar a verdade contida numa obra musical, porque ela é uma verdade-beleza, inseparável de sua parceira. O melhor que podemos fazer é indicar nos termos mais gerais a natureza da verdade-beleza musical sob consideração e referir ao original os curiosos que estejam buscando a verdade. Assim, a introdução do Benedictus na Missa Solemnis é uma declaração sobre a bem-aventurança que existe no coração das coisas. Mas as nossas “próprias palavras” não vão nos levar muito mais longe do que isso. Se nós tivéssemos de começar a descrever nas nossas “próprias palavras” exatamente o que Beethoven sentiu sobre essa bem-aventurança, como ele a concebeu, o que ele considerou ser sua natureza, dentro de bem pouco tempo nos encontraríamos escrevendo disparates líricos no estilo dos criadores analíticos de programas. Somente a música, e somente a música de Beethoven, e somente essa música particular de Beethoven, conseguirá nos dizer com alguma precisão qual era realmente a concepção de Beethoven quanto à bem-aventurança no coração das coisas. Se quisermos saber, precisamos ouvir – de preferência numa serena noite de junho, com a respiração do mar invisível como pano de fundo da música e o aroma dos limoeiros pairando por entre a escuridão como certa requintada e suave harmonia apreendida por outro sentido.



(Música na noite & outros ensaios; tradução de Rodrigo Breunig)


(Ilustrações: 1. Adolph Menzel: flute concert with Frederick the Great in Sanssouci,-1850-1852; 2. Piero della Francesca - Madonna della Misericordia; 3. Tura - Cosimo Tura - Madonna with the Child Enthroned, detail)



sábado, 24 de dezembro de 2022

LÍNGUA, de Ana Martins Marques







1



no princípio

toda língua é estrangeira



acerca-se do seu corpo como de uma cidade

até tomá-lo

fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes

que lhe dá

pé perna barriga dentes

fazer a língua chamar-se língua

chamar-se a si mesma pelo nome dela

língua

acerca-se até domá-la

para ensinar-lhe uma coreografia sua

que ela, língua, por sua vez

ensina ao pensamento

cantando



estar na língua como numa

casa louca

que obriga ao abrigar



ela pensa o seu sexo

ela pensa o seu coração

abrindo-o



ela é música

e combate



ela fala na sua boca

com a boca dos mortos




ela é a eletricidade

dos cadáveres



daqueles cuja boca ela encheu

antes da terra



ela cria raízes no seu corpo

dela não é possível se livrar



você é livro

dela



e se aprende outra

é contra ela

contra sua memória

excessiva

e em viagem

com ela

que te cobra e cobre

como um mar



2



Ou é um dueto

uma dança

muito antiga



dela você também se acerca

toma as palavras emprestadas

e empresta-lhes também

sua energia

sua coragem ou doçura



e talvez seja mesmo possível

descartá-la

dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)

livrar-se dela

trocá-la por outra

mais nova ou versátil



(meus únicos heróis

são os tradutores)



ou pouco importa a língua

mas o dizer as coisas

que ao serem ditas

extinguem-se

mas com que fulgor



(escrever poemas:

não se contentar com as línguas que se sabe

nem mesmo com as línguas que há)



as línguas são meios

de viagem, são meios

de transporte das palavras:

carrega consigo o camelo o arranha-céu

a baleia

não só a baleia

todas as baleias

não só o amor

todo o amor




(Ilustração: Renoir, 1900)


quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

POR QUE O SUCESSO DA MULHER AMEAÇA O HOMEM?, de Chimamanda Ngozi Adichie

 




A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar.

Não faz muito tempo, ao entrar num dos melhores hotéis na Nigéria, um segurança na porta me parou e fez umas perguntas irritantes: Nome? Número do quarto da pessoa que eu visitava? Eu conhecia essa pessoa? Poderia provar que era hóspede do hotel e mostrar a minha chave? Ele automaticamente supôs que uma mulher nigeriana e desacompanhada só podia ser prostituta. Uma nigeriana desacompanhada não pode ser hóspede e pagar por seu quarto. Um homem pode entrar no mesmo hotel sem ser perturbado. Parte-se da premissa de que ele está lá por uma razão legítima — aliás, por que esses hotéis não se preocupam mais com a procura por prostitutas do que com a oferta aparente?

Em Lagos, não posso ir sozinha a muitos bares e casas respeitáveis. Mulher desacompanhada não entra. É preciso estar com um homem. Amigos meus, homens, costumam ir a baladas e acabam entrando de braço dado com mulheres desconhecidas — a uma mulher desacompanhada só resta pedir “ajuda” para entrar no recinto.

Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade onde se aprende que os homens são mais importantes do que as mulheres, e sei que eles não fazem por mal — mas há um abismo entre entender uma coisa racionalmente e entender a mesma coisa emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, eu me sinto invisível. Fico chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem, e digna de ser cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais incomodam.

Não faz muito tempo, escrevi um artigo sobre o que significa ser uma jovem mulher em Lagos. Um conhecido disse que havia muita raiva no texto, que eu não deveria ter me expressado com tanta raiva. Mas eu não via razão para me desculpar. É claro que eu estava com raiva. A questão de gênero, como está estabelecida hoje em dia, é uma grande injustiça. Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. Além da raiva, também tenho esperança, porque acredito profundamente na capacidade de os seres humanos evoluírem.

Percebi cautela no tom do sujeito, e sabia que seu comentário sobre a minha raiva tinha a ver não só com o artigo, mas também com minha personalidade. A raiva, o tom dele dizia, não cai bem em mulheres. Uma mulher não deve expressar raiva, porque a raiva ameaça. Tenho uma amiga americana que substituiu um homem num cargo de gerência. Seu predecessor era considerado um “cara durão”, que conseguia tudo; era grosseiro, agressivo e rigoroso quanto à folha de ponto.

Ela assumiu o cargo, e se imaginava tão dura quanto o chefe anterior, mas talvez um pouco mais generosa — ao contrário dela, ele nem sempre lembrava que as pessoas tinham família. Em poucas semanas no emprego, ela puniu um empregado por ter falsificado a folha de ponto — exatamente como seu predecessor teria feito. O empregado reclamou com o gerente sênior, dizendo que ela era agressiva e difícil. Os outros funcionários concordaram. Um deles, inclusive, disse que tinha achado que ela traria um “toque feminino” ao ambiente de trabalho, mas que isso não acontecera. Não ocorreu a ninguém que ela estava fazendo a mesma coisa pela qual um homem teria recebido elogios.

Outra amiga minha, também americana, trabalha com publicidade e tem um belo salário. Só há duas mulheres em sua equipe: ela e uma outra. Certa vez, numa reunião, ela disse que se sentira menosprezada por sua chefe, que havia ignorado seus comentários e elogiara um dos homens que havia emitido uma opinião parecida com a dela. Ela queria se posicionar e enfrentar a chefe, mas ficou quieta. Depois da reunião, foi chorar no banheiro e me ligou para desabafar. Ela não disse o que pensava para não parecer agressiva. Deixou o ressentimento ferver em banho-maria.

O que me impressiona — em relação a ela e a várias outras amigas americanas — é o quanto essas mulheres investem em ser “queridas”, como foram criadas para acreditar que ser benquista é muito importante. E isso não inclui demostrar raiva ou ser agressiva, tampouco discordar.

Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece. Não ensinamos os meninos a se preocupar em ser “benquistos”. Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, por outro, elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões. Em todos os lugares do mundo, existem milhares de artigos e livros ensinando o que as mulheres devem fazer, como devem ou não devem ser para atrair e agradar os homens. Livros sobre como os homens devem agradar as mulheres são poucos.

Dou uma oficina de escrita em Lagos e uma das jovens que participa do grupo me disse que um amigo lhe havia prevenido de não prestar atenção no meu “discurso feminista” — sob pena de absorver ideias que destruiriam seu casamento. Essa é uma ameaça — a destruição de um casamento, a possibilidade de acabar não se casando — levantada contra as mulheres na nossa sociedade com uma frequência muito maior do que contra os homens.

A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente.

O modo como criamos nossos filhos homens é nocivo: nossa definição de masculinidade é muito estreita. Abafamos a humanidade que existe nos meninos, enclausurando-os numa jaula pequena e resistente. Ensinamos que eles não podem ter medo, não podem ser fracos ou se mostrar vulneráveis, precisam esconder quem realmente são — porque eles têm que ser, como se diz na Nigéria, homens duros.

No ensino médio, quando um garoto e uma garota saem juntos, o único dinheiro de que dispõem é uma pequena mesada. Mesmo assim, espera-se que ele pague a conta, sempre, para provar sua masculinidade. (E depois nos perguntamos por que alguns roubam dinheiro dos pais...) E se tanto os meninos quanto as meninas fossem criados de modo a não mais vincular a masculinidade ao dinheiro? E se, em vez de “o menino tem que pagar,” a postura fosse “quem tem mais paga”? É claro que, por uma questão histórica, em geral é o homem quem tem mais dinheiro. No entanto, se começarmos a criar nossos filhos de outra maneira, daqui a cinquenta, cem anos eles não serão pressionados a provar sua masculinidade por meio de bens materiais.

Mas o pior é que, quando os pressionamos a agir como durões, nós os deixamos com o ego muito frágil. Quanto mais duro um homem acha que deve ser, mais fraco será seu ego. E criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque as ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino. Ensinamos as meninas a se encolher, a se diminuir, dizendo-lhes: “Você pode ter ambição, mas não muita. Deve almejar o sucesso, mas não muito. Senão você ameaça o homem. Se você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão você estará emasculando o homem.” Por que, então, não questionar essa premissa? Por que o sucesso da mulher ameaça o homem?



(Sejamos todos feministas, tradução de Christina Baum)



(Ilustração: Aurélia Durand - Deux Reines - 2018)

domingo, 18 de dezembro de 2022

GEOGRAFIA DO POEMA, Graça Graúna

 

 



I

O dia deu em chuvoso

na geografia do poema.

Um corpo virou cinzas

um sonho foi desfeito

e mil povos proclamaram:

- Não à violência!

A terra está sentida

de tanto sofrimento.



II

Na geografia do poema voam balas

passam na TV os seres nus

o pátio aglomerado

o chão vermelho

onde a regra do jogo

da velha é sentença

marcada na réstia

do sol quadrado.



III

Pelas ruas

a tristeza dos tempos

a impossibilidade do abraço.

Crianças

nos corredores da morte

nos becos da fome

consomem a miséria

matéria prima da sua sobrevivência.



IV

Nos quarteirões

dobrando a esquina

homens e mulheres

idôneos, cansados

a lastimar o destino

de esmolar o direito

dos tempos madrugados.



V

Se o medo se espalha

virá o silêncio

o espectro das horas

e as cores sombrias.

Se o medo se espalha

amargo será sempre o poema



VI

O dia deu em chuvoso

na geografia do poema

um sonho foi desfeito

mil povos pratearam.

A terra está sentida de tanto sofrimento.

Mas...



VII




Haverá manhã

e o sol cobrirá

com os seus raios de luz

a rosa dos ventos



(Tessituras da Terra)



(Ilustração: José Carlos Miranda Brito - Cabo Verde)



quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

CARTA DE GRATIDÃO AO MESTRE, de Albert Camus






19 de novembro de 1957



Caro Monsieur Germain,



Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir-lhe falar-lhe de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno reconhecido. Eu o abraço com todas as minhas forças.



Albert Camus



(O primeiro homem; tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silverira)



(Ilustração: hussardos negros - escola da primeira república - ano 1906 - autor desconhecido)


(Nota do blog: Os professores da Terceira República costumam ser chamados de hussardos negros, referia-se a um esquadrão de cavalaria criado em 1793 para defender a jovem república nascida da Revolução, mas também à elegância da cavalaria do Cadre Noir de Saumur. Era uma metáfora: os professores também tinham sua guerra para travar no início do século 19 , a ignorância era seu inimigo.)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA, de José Saramago

                     


                   

Aqui, na Terra, a fome continua,

A miséria, o luto, e outra vez a fome.



Acendemos cigarros em fogos de napalme

E dizemos amor sem saber o que seja.

Mas fizemos de ti a prova da riqueza,

E também da pobreza, e da fome outra vez.

E pusemos em ti sei lá bem que desejo

De mais alto que nós, e melhor e mais puro.



No jornal, de olhos tensos, soletramos

As vertigens do espaço e maravilhas:

Oceanos salgados que circundam

Ilhas mortas de sede, onde não chove.



Mas o mundo, astronauta, é boa mesa

Onde come, brincando, só a fome,

Só a fome, astronauta, só a fome,

E são brinquedos as bombas de napalme.




(Ilustração: Cândido Portinari – notícia)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

CHARLES BAUDELAIRE E OS PARAÍSOS ARTIFICIAIS, de Luciene Félix

 


Os etéreos “néctar e a ambrosia” eram bebida e alimento dos deuses.

Ao mortal que ousasse os ingerir era destinada a glória dos olímpicos

ou, em desmedida, a bestialidade humana.

O uso frequente de substâncias que alteram a percepção consiste num perigoso exercício que aniquila a liberdade, tão cara à dignidade humana. Traremos as impressões de um espírito refinado e singular, que fez uso dessas emanações vegetais nos legando, numa lúcida experiência, a análise dos efeitos misteriosos e dos inevitáveis riscos que resultam de seu uso prolongado. O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), famoso por sua magnífica Obra “As flores do Mal”, reunindo-se com os amigos no luxuoso Hotel Pimodan, desfrutou do haxixe (cânhamo indiano, cannabis), do ópio e do vinho.

As propriedades excitantes do cânhamo eram bem conhecidas do Antigo Egito e seu uso era muito difundido, sob diferentes nomes, na Índia, na Argélia e na Arábia Felix.

Em “Paraísos Artificiais”, o poeta relatará sua aventura sem, no entanto, deixar de falar sobre os “esforços sobre-humanos de vontade que lhe foi necessário empregar para escapar à danação à qual ele, imprudentemente, se havia devotado”.

Baudelaire considera que é mais importante conhecer a ação do veneno sobre a parte espiritual do homem: “Se naturezas grosseiras e embrutecidas pelo trabalho diário e sem encanto (refere-se a “embriaguez mais repugnante dos suburbanos que, com o cérebro carregado de fogo e glória, rolam ridiculamente nos lixos da rua”) encontram no ópio grande consolo, qual não será então o seu efeito num espírito sutil e letrado, numa imaginação ardente e cultivada?”

A atmosfera que permeia a análise do sensível poeta não tem absolutamente nada em comum com o degradante ambiente ao qual estão expostos nossos jovens abandonados e desorientados, tanto pelas famílias quanto pelo Estado. Só para termos uma ideia da diferença dessas realidades, recomenda o aristocrata: “... submeter-se à sua ação apenas em ambientes ou circunstâncias favoráveis. Sendo toda alegria e todo bem-estar superabundantes, toda dor e toda angústia são imensamente profundas. Não se submeta a uma experiência como esta se tiver qualquer assunto desagradável a tratar, se seu espírito se encontrar entediado, se você tiver uma conta a pagar. Tenha (...) alguns cúmplices cujo talento intelectual se aproxime do seu. Suponho que você teve a precaução de escolher bem o seu momento para esta expedição aventurosa. Você não tem deveres a cumprir que exijam a pontualidade e a exatidão; nenhuma tristeza de família; nenhuma dor de amor. É preciso ter cuidado. Esta infelicidade (...), esta lembrança de um dever que reclama sua vontade, sua atenção a um momento determinado envenenarão seu prazer. A inquietação será transformada em angústia; a tristeza, em tortura. Se observadas todas estas condições preliminares, o tempo estiver bom, se você estiver em um ambiente favorável, como uma paisagem pitoresca ou um apartamento poeticamente decorado e se, além disso, você puder contar com um pouco de música, então tudo é para o melhor”.

Ele descreve minuciosamente os sintomas de todas as fases pelas quais passam os usuários, desde os iniciantes aos veteranos: “As palavras mais simples, as ideias mais triviais tomam uma fisionomia nova e estranha; semelhanças e aproximações incongruentes, impossíveis de serem percebidas, jogos de palavras intermináveis, tentativas de comicidade jorram continuamente de seu cérebro. O demônio o invadiu; é inútil resistir (...). De vez em quando, você ri de si mesmo, de sua ingenuidade e de sua loucura, e seus companheiros, se você os tem, riem igualmente de seu estado e do deles; mas, como eles não têm malícia, você não tem rancores”.

O adepto tem seus nervos abrandados, torna-se apático e é tomado por uma benevolência preguiçosa. O desejo é de imobilidade absoluta. Empreende esforços sobre-humanos para parecer igual aos outros. A percepção do tempo se altera completamente pelas múltiplas sensações corpóreas e de ideias. Quanto a apatia que o invade e paralisa, o poeta atesta: “Horrível situação! Sentir o espírito fervilhar de ideias, e não mais poder atravessar a ponte que separa os campos imaginários do devaneio das colheitas positivas da ação! (...) um bravo guerreiro, insultado no que ele tem de mais caro e fascinado por uma fatalidade que lhe ordena que fique na cama, onde se consome numa raiva imponente!”

Diversas substâncias que hoje enquadraríamos como sendo “psicotrópicas” foram usadas desde os primórdios para fins religiosos ou terapêuticos (fármacos). Diz-se que as pitonisas, sacerdotisas do Templo de Apolo, em Delfos, as inalavam para conectarem-se mais facilmente com o divino. Às parturientes também eram administradas, a fim de aliviar suas dores. O fato é que Dioniso (Bacco) está entre nós há muito tempo. E haja aspas! É Charles Baudelaire quem escreve: “Existe um deus misterioso nas fibras da videira. Como são grandes os espetáculos do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e abrasadora esta segunda juventude que o homem dele retira! Mas como são, também, perigosas suas volúpias fulminantes e seus encantamentos enervantes. E, no entanto, digam, do fundo da alma e da consciência, juízes, legisladores, aristocratas, todos vocês a quem a felicidade torna doces, a quem a fortuna torna a virtude e a saúde fáceis, digam quem de vocês terá a coragem impiedosa de condenar o homem que bebe o gênio?”

Atento, chama a atenção para o fato de que “há bêbados perversos; são pessoas naturalmente perversas. O homem mau torna-se execrável, assim como o bom torna-se excelente.” E indaga: “Não é razoável pensar que as pessoas que nunca bebem vinho, ingênuas ou sistemáticas, são imbecis ou hipócritas; imbecis, isto é, homens que não conhecem nem a humanidade nem a natureza; hipócritas, isto é, comilões reprimidos, impostores da sobriedade, que bebem escondidos e têm algum vício oculto? Um homem que só bebe água tem um segredo a esconder de seus semelhantes”.

A análise de Baudelaire não tangencia o universo do usuário esporádico, daqueles que tornaram sagrado o profano hábito do cálice de vinho, da cerveja ou do whisky após o expediente ou mesmo do socializante e hilariante “baseadinho” ao pôr-do-sol. Estes não se queimam, se bronzeiam. Mas o descontrolado habituée “irá apreciar os frutos apodrecidos de sua escravidão: (...) Todos os hábitos se transformam logo em necessidade. Aquele que puder recorrer a um veneno para pensar, em breve não poderá mais pensar sem veneno. É possível supor o terrível destino de um homem cuja imaginação paralisada não soubesse mais funcionar sem o recurso do haxixe ou do ópio?”

Salienta que o haxixe não produz em todos os homens os efeitos que descreve, mas que se ateve aos espíritos artísticos e filosóficos. Que há temperamentos nos quais se desenvolvem apenas uma loucura tumultuada, danças e gargalhadas. Segundo ele, essas pessoas têm um haxixe “muito material” e essas personalidades provocam escândalo: “Vi uma vez um magistrado respeitável, um homem honrado, como dizem de si próprios os aristocratas, um desses homens cuja gravidade artificial impõe-se sempre, no momento em que o haxixe o invadiu, pôr-se bruscamente a dançar um can-can dos mais indecentes. Revelou-se o monstro interior e verdadeiro. Este homem que julgava a ação de seus semelhantes, este togado havia aprendido can-can em segredo. O desenvolvimento do espírito poético, nunca será encontrado no haxixe destas pessoas”.

Como é a vontade, o órgão mais precioso que é “atacado” (sonhar e não realizar, não é nada), o poeta afirma conhecer bem a natureza humana para saber que um homem que pode, através de um atalho, “alcançar instantaneamente todos os bens do céu e da terra, não ganharia jamais a milésima parte destes bens pelo trabalho”. Hesíodo atesta: “É preciso, antes de tudo, viver e trabalhar”.

Baudelaire alerta que um Estado racional jamais poderia subsistir com o uso do haxixe: “Este não produz nem guerreiros nem cidadãos. Na verdade, o haxixe é proibido ao homem sob pena de degradação e morte intelectual, de transformar as condições primordiais de sua existência e romper o equilíbrio de suas faculdades com o meio. Se existisse um governo interessado em corromper os seus governados, bastaria encorajar o uso do haxixe. É possível imaginar um Estado onde todos os cidadãos se embriagassem de haxixe? Que cidadãos! Que guerreiros! Que legisladores!”. Hipócrita, omisso e perverso, ao se esquivar de discutir os inevitáveis “Paraísos Artificiais”, nosso Estado apresenta-se conivente aos “Infernos Reais”.



Referências:



BAUDELAIRE, Charles. Paraísos Artificiais – O haxixe, o ópio e o vinho. Ed. L&PM Pocket (1998) São Paulo, SP.

RIBEIRO, Renato Janine (Titular de Filosofia Ética e Política da USP). Redução de danos. em: http://www.renatojanine.pro.br/Etica/reducao.html

FELIX, Luciene. "Origens da Religião e Pólis Grega" - Vídeo. www.esdc.com.br em "Conhecimento Sem Fronteiras". São Paulo, 2007.



(Ilustração: Bob Dylan – opium)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

AMO-TE MUITO, MEU AMOR, E TANTO, Jorge de Sena

 




Amo-te muito, meu amor, e tanto

que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda

depois de ter-te, meu amor. Não finda

com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto

sofro a traição dos que, viscosos, prendem,

por uma paz da guerra a que se vendem,

a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,

nesta invenção da humanidade inteira

que a cada instante há que inventar de novo

tão quase é coisa ou sucessão que passa…

Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,

sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.



(As evidências, 1955)


(Ilustração: Toulouse-Lautrec - le lit)

sábado, 3 de dezembro de 2022

MINHA MÃE, OSAMA, de Âsne Seierstad

 


Tajmir segura o Alcorão, beija-o e lê um verso qualquer. Ele o beija de novo, coloca-o no bolso e olha pela janela. O carro está saindo de Cabul. Vai para o leste, para as zonas turbulentas da divisa entre o Afeganistão e o Paquistão, onde o Talibã e a al-Qaeda ainda têm forte apoio e onde os americanos alegam haver terroristas escondidos na paisagem inacessível da montanha. Eles vasculham a região, interrogam os habitantes locais, explodem cavernas, procuram arsenais de armas, encontram esconderijos, bombardeiam e matam alguns civis na procura de terroristas e do grande troféu com o qual sonham: Osama bin Laden. Foi nesta região que houve a grande ofensiva da primavera contra a al-Qaeda, a "Operação Anaconda", quando forças especiais sob comando americano lutaram duramente contra os discípulos sobreviventes de Osama no Afeganistão. Muitos soldados da al-Qaeda ainda devem estar nestas áreas da divisa, onde os líderes nunca reconheceram uma autoridade central, fazendo imperar as leis tribais. Na área pashtun de ambos os lados da divisa, é muito difícil para os americanos e as autoridades centrais se infiltrarem nos povoados. Os agentes da inteligência acreditam que, se Osama bin Laden e o líder talibã Mulla Ornar ainda estiverem vivos e no Afeganistão, devem estar ali.

São eles que Tajmir tenta encontrar. Ou pelo menos achar alguém que os tenha visto ou alguém que pense ter visto alguém parecido com eles. Ao contrário de seu companheiro de viagem, Tajmir espera que não achem nada nem ninguém. Tajmir não gosta de perigo. Não gosta de viajar para as regiões tribais onde os combates podem começar a qualquer hora. No banco de trás do carro há coletes à prova de balas e capacetes.

— O que você estava lendo, Tajmir?

— O Alcorão sagrado.

— Sim, eu vi, mas algo em especial? Quer dizer, um conselho para viajantes ou algo parecido?

— Não, nunca procuro algo específico, eu o abro aleatoriamente. Agora estou lendo a parte que fala que aquele que obedecer a Deus e seu enviado será levado para os jardins do Paraíso, onde há córregos, enquanto aquele que der as costas sofrerá uma punição dolorosa. Eu sempre leio um pouco do Alcorão quando estou com medo de alguma coisa ou quando estou triste.

— Ah, sim — diz Bob encostando a cabeça na janela. De longe ele vê desaparecer as ruas fuliginosas de Cabul. Estão dirigindo ao encontro do sol da manhã, que brilha tanto que Bob tem que fechar os olhos.

Tajmir está pensando na sua missão. Ele foi contratado como intérprete por uma grande revista americana. Antes, sob o Talibã, ele trabalhava para uma organização de apoio humanitário. Era responsável pela distribuição de farinha e arroz para os pobres.

Quando os estrangeiros da organização deixaram o país depois do 11 de Setembro, ele ficou sozinho com toda a responsabilidade. O Talibã bloqueava todas as suas iniciativas. A distribuição foi interrompida e um dia caiu uma bomba no local onde normalmente era feita. Tajmir agradeceu a Deus. Imagine se o lugar estivesse cheio de mulheres e crianças numa desesperada fila de comida.

Mas para ele parece distante o tempo em que trabalhava com assistência humanitária. Quando os jornalistas chegaram em bandos a Cabul, ele foi procurado pela revista americana, que lhe ofereceu por dia o que ele normalmente ganhava em duas semanas. Ele pensou na família, que estava precisando de dinheiro, largou o trabalho assistencial e começou a trabalhar como intérprete, num inglês imaginativo e cheio de invencionices.

Tajmir é o único provedor da família, pequena segundo os padrões afegãos. Ele mora com a mãe, o pai, a irmã, a esposa e o pequeno Bahar, de um ano, num apartamento no Mikrorayon, não muito longe de Sultan e sua família. Sultan é irmão de sua mãe, tio de Tajmir.

Feroza, sua mãe, é a filha mais velha de Bibi Gul, cinco anos mais velha que Sultan. Ela nunca pôde ir à escola porque a família era pobre e ela foi prometida em casamento para um homem de negócios bem-sucedido. Depois do casamento, Feroza se mudou para a casa do marido vinte anos mais velho.

Os anos se passaram e ela nunca teve filhos. Ela tentava de tudo, escutava todo tipo de conselhos, tomava remédios, pediu a Deus, desesperou-se. Enquanto estava tentando engravidar, a mãe continuava a parir filhos. Teve três, um atrás do outro, e várias filhas depois que Feroza se casou. Uma mulher é valorizada ao se tornar mãe, principalmente se gera filhos homens. Não conseguir ter filhos significa não ser valorizada. Quando Feroza havia tentado durante 15 anos e Bibi Gul estava esperando seu décimo filho, Feroza o pediu para si. Bibi Gul se recusou.

— Não posso dar meu filho.

Feroza continuou pedindo, queixando-se e ameaçando.

— Tenha piedade, você já tem um bando de filhos e eu não tenho nenhum. Dê-me apenas este — ela chorava. — Não posso viver sem um filho.

Por fim, Bibi Gul prometeu seu filho a ela. Quando Tajmir nasceu, Bibi Gul ficou com ele durante sete dias. Ela o amamentou, cuidou dele e chorava por saber que não ficaria com a criança. Bibi Gul tinha se tornado uma mulher importante devido a seus filhos e queria ter o maior número possível. Além deles não tinha nada, sem eles não era nada. Depois dos vinte dias combinados, ela deu o bebê para Feroza, e mesmo com o leite derramando, Feroza se negou a deixá-la continuar amamentando-o. Não era para ele ter laços com a mãe, de agora em diante ela seria sua avó.

Feroza tornou-se uma mãe das mais severas. Desde que Tajmir era pequeno, ele não podia sair para brincar com as outras crianças. Devia brincar quietinho e tranquilamente sob o olhar vigilante de Feroza, e quando cresceu tinha que fazer seus deveres. Sempre tinha que voltar diretamente da escola para casa e nunca pôde visitar amigos ou trazê-los em casa. Tajmir jamais contestava, não havia como contestar Feroza, porque Feroza batia e batia com força.

"Minha mãe é pior que Osama bin Laden", Tajmir explica a Bob, quando tem que se justificar por chegar atrasado ou porque de repente precisa interromper um trabalho.

Ele conta histórias de terror de "Osama" para seus novos amigos americanos. Eles imaginam uma fúria sob a burca. Mas quando conheceram Feroza, numa visita a Tajmir, só viram uma mulher baixinha, sorridente, com olhos indagadores e penetrantes. No peito usava um grande medalhão dourado com a profissão da fé islâmica. Ela o comprara assim que Tajmir voltou para casa com seu primeiro salário americano. Feroza sabe exatamente quanto ele ganha, Tajmir tem que entregar tudo que recebe à mãe, e, quando ele precisa, ela lhe dá dinheiro para pequenos gastos. Tajmir mostra todas as marcas nas paredes, nas quais ela jogava sapatos ou outros objetos na sua direção. Agora ele ri, a tirana Feroza tornou-se uma divertida peça de folclore.

Feroza sempre almejou que Tajmir se tornasse alguém importante, e, todas as vezes que conseguia um dinheiro extra, ela o matriculava em cursos: de inglês, matemática, informática. A analfabeta que foi dada em casamento para trazer dinheiro para a família ia se tornar uma mãe honrada e respeitada. Um filho bem-sucedido era a solução.

Tajmir raramente via o pai. Ele era um homem gentil e um tanto retraído, mas bebia e sumia por longos períodos. Nos seus melhores dias viajava como comerciante para a índia e o Paquistão, às vezes voltava com dinheiro, outras vezes não. Com o passar dos anos ficava a maior parte do tempo bebendo. Mesmo durante o Talibã ele se embebedava, sempre acabava arranjando aquilo por que seu corpo ansiava, de álcool medicinal a lustrador de móveis. Com Feroza por perto, sentindo-se envergonhada e desesperada pelo péssimo marido que Deus lhe havia dado. Ela tinha vontade de surrá-lo, mas nunca bateu no marido, mesmo porque não havia dúvida de quem era o mais forte. Com o passar dos anos Feroza se tornou uma mulher robusta, roliça feito um pão doce, com óculos de vidro grosso balançando no nariz ou pendurados em volta do pescoço. Em contraste, o marido já estava de cabelo branco e era magro, fraco e ressequido como um galho seco.

Feroza foi ocupando o lugar de chefe da família ao passo que o marido murchava.

Quando Bibi Gul ficou grávida de outro filho, Feroza exigiu este também. Bibi Gul recusou.

Feroza insistiu. Bibi Gul negou de novo. Feroza insistiu mais uma vez. "Não é bom para Tajmir ser filho único, por favor, a senhora tem tantos", ela pediu, de novo alternando entre lágrimas e ameaças. Mas desta vez Bibi Gul recusou e ficou com Leila quando ela nasceu.



(O Livreiro de Cabul; tradução de Grete Skevix)



(Ilustração: Anatoly Homutinnikova - Aldeia perto de Cabul)


quarta-feira, 30 de novembro de 2022

MODOS DE AMAR , de Maria Tereza Horta

 





Modo de amar – I



Lambe-me os seios

desmancha-me a loucura



usa-me as coxas

devasta-me o umbigo



abre-me as pernas

põe-nas nos teus ombros



e lentamente faz o que te digo:



Modo de amar – II



Por-me-ás de borco,

assim inclinada...



a nuca a descoberto,

o corpo em movimento...



a testa a tocar

a almofada,

que os cabelos afloram,

tempo a tempo...



Por-me-ás de borco;

Digo:

ajoelhada...



as pernas longas

firmadas no lençol...



e não há nada, meu amor,

já nada, que não façamos como quem consome...



(Por-me-ás de borco,

assim inclinada...



os meus seios pendentes

nas tuas mãos fechadas.)



Modo de amar – III



É bom nadar assim

em cima do teu corpo

enquanto tu mergulhas já dentro do meu



Ambos piscinas que a nado atravessamos

de costas tu meu amor

de bruços eu



Modo de amar – IV



Encostada de costas

ao teu peito



em leque as pernas

abertas

o ventre inclinado



ambos de pé

formando lentos gestos



as sombras brandas

tombadas no soalho



Modo de amar – V



Docemente amor

ainda docemente



o tacto é pouco

e curvo sob os lábios



e se um anel no corpo

é saliente

digamos que é da pedra

em que se rasga



Opala enorme

e morna

tão fremente



dália suposta

sob o calor da carne



lábios cedidos

de pétalas dormentes



Louca ametista

com odores de tarde



Avidamente amor

com desespero e calma



as mãos subindo

pela cintura dada

aos dedos puros

numa aridez de praia

que a curvam loucos até ao chão da sala



Ferozmente amor

com torpidez e raiva



as ancas descendo como cabras

tão estreitas e duras

que desarmam

a tepidez das minhas

que se abrem



E logo os ombros

descaem

e os cabelos



desfalecem as coxas que retomam

das tuas

o pecado

e o vencê-lo

em cada movimento em que se domam



Suavemente amor

agora velozmente



os rins suspensos

os pulsos

e as espáduas



o ventre erecto

enquanto vai crescendo

planta viva entre as minhas nádegas



Modo de amar – Vl



Inclina os ombros

e deixa

que as minhas mãos avancem

na branda madeira



Na densa madeixa do teu ventre



Deixa

que te entreabra as pernas

docemente



Modo de amar – VII



Secreto o nó na curva

do meu espasmo



E o cume mais claro

dos joelhos

que desdobrados jorram dos espelhos



ou dos teus ombros os meus:

flancos

na luz de maio



Modo de amar – VIII



Que macias as pernas

na penumbra



e as ancas

subidas

nos dedos que as desviam



Entreabro devagar

a fenda – o fundo

a febre

dos meus lábios



e a tua língua

Vagarosa:



toma – morde

lambe

essa humidade esguia



Modo de amar – IX



Enlaçam as pernas

as pernas

e as ancas



o ar estagnado

que se estende

no quarto



As pernas que se deitam

ao comprido

sob as pernas



E sobre as pernas vencem o gemido



Flor nascida no vagar do quarto



Modo de amar – X



A praia da memória

a sulcos feita

a partir da cintura:



a boca

os ombros



na tua mansa língua que caminha

a abrir-me devagar

a pouco e pouco



Globo onde a sede

se eterniza

Piscina onde o tempo se desmancha

a anca repousada

que inclinas

as pernas retesadas que levantas



E logo

são os dentes que limitam



mas logo

estão os lábios que adormentam

no quente retomar de uma saliva

que me penetra em vácuo

até ao ventre



o vínculo do vento

a vastidão do tempo



o vício dos dedos

no cabelo



E o rigor dos corpos

que já esquece

na mais lenta maneira de vencê-los



Modo de amar – XI



((Teu) Baixo ventre)



Nunca adormece a boca no

teu peito



a minha boca no teu baixo

ventre

a beber devagar o que é

desfeito



Modo de amar – XII

(Os testículos)



Tenho nas mãos

teus testículos

e a boca já tão perto



que deles te sinto

o vício

num gosto de vinho aberto



Modo de amar – XIII



(As pedras – As pernas)



São as pedras

meus seios

São as pernas



pele e brandura

no interior dos

lábios



rosa de leite

que sobe devagar

na doce pedra

do muco dos meus lábios



São as pedras

meus seios

São as pernas



Pêssegos nus corpo

descascados



Saliva acesa

que a língua vai cedendo



o gozo em cima...

na pedra dos meus

lábios



Jogo do corpo

a roçar o tempo

que já passado só se de memória,

a mão dolente

como quem masturba entre os joelhos...

uma longa história...



Estrada ocupada

onde se vislumbra

(joelhos desviados na almofada)



assim aberta o fim de que desfruta

o fruto do odor

o fundo todo

do corpo já fechado.



Modo de amar – XIV

(As rosas nos joelhos)



São grinaldas de rosas

à roda

dos joelhos



O âmbar dos teus dentes

nos sentidos



O templo da boca

no côncavo do espelho

onde o meu corpo espia

os teus gemidos



É o gomo depois...

e em seguida a polpa...



o penetrar do dedo...

O punho do punhal



que na carne enterras

docemente

como quem adormenta

o que é fatal



É a urze debaixo

e o fogo que acalenta

o peixe

que desliza no umbigo



piscina funda

na boca mais sedenta bordada a cuspo

na pele do umbigo



E se desdigo a febre

dos teus olhos

logo me entrego à febre

do teu ventre



que vai vencendo

as rosas – os escolhos

à roda dos joelhos, docemente.



Modo de amar – XV



(A boca – A rosa)



Entreabre-se a boca

na saliva da rosa



no raso da fenda

na fissura das pernas



Entreabre-se a rosa

na boca que descerra

no topo do corpo

a rosa entreaberta



E prolonga-se a haste

a língua na fissura

na boca da rosa

na caverna das pernas



que aí se entre-curva

se afunda

se perde



se entreabre a rosa

entre a boca

das pétalas





(Ilustração: Vincent Desiderio)



domingo, 27 de novembro de 2022

O QUE A MEMÓRIA AMA FICA ETERNO, de Adélia Prado

 


Quando eu era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender.

O tempo passou e hoje me emociono diante das mesmas coisas, tocada por pequenos milagres do cotidiano.

É que a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos. Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é impregnada de eternidade.

Diante do tempo, envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória, ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são crianças, nossos amigos estão perto, nossos pais ainda vivem.

Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús secretos – porque a memória é dada a segredos – estão recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do que doeu além da conta, do que permaneceu além do tempo.

A capacidade de se emocionar vem daí, quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira. Um dia você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de uma fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações; alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, aquela época…

Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da gente. É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos. Encontros de turma são especiais por isso, resgatam as pessoas que fomos, garotos cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debiloides, como éramos há 20, 30 ou 40 anos. Descobrimos que o tempo não passa para a memória. Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos… mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses e rugas.

A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais. Nem eles percebem que crescemos. Seremos sempre “as crianças”, não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos. Pra eles, a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das estórias contadas ao cair da noite… ainda são muito recentes, pois a memória amou, e aquilo se eternizou.

Por isso é tão difícil despedir-se de um amor ou alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas. Dizem que o tempo cura tudo, mas não é simples assim. Ele acalma os sentidos, apara as arestas, coloca um band-aid na dor. Mas aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando. Somos a soma de nossos afetos e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: somos traídos pelo enredo de um filme, uma música antiga, um lugar especial.

Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. E mesmo que o tempo nos leve daqui, seremos eternamente lembrados por aqueles que um dia nos amaram.



(Ilustração: Marc Chagall)