sábado, 3 de dezembro de 2022

MINHA MÃE, OSAMA, de Âsne Seierstad

 


Tajmir segura o Alcorão, beija-o e lê um verso qualquer. Ele o beija de novo, coloca-o no bolso e olha pela janela. O carro está saindo de Cabul. Vai para o leste, para as zonas turbulentas da divisa entre o Afeganistão e o Paquistão, onde o Talibã e a al-Qaeda ainda têm forte apoio e onde os americanos alegam haver terroristas escondidos na paisagem inacessível da montanha. Eles vasculham a região, interrogam os habitantes locais, explodem cavernas, procuram arsenais de armas, encontram esconderijos, bombardeiam e matam alguns civis na procura de terroristas e do grande troféu com o qual sonham: Osama bin Laden. Foi nesta região que houve a grande ofensiva da primavera contra a al-Qaeda, a "Operação Anaconda", quando forças especiais sob comando americano lutaram duramente contra os discípulos sobreviventes de Osama no Afeganistão. Muitos soldados da al-Qaeda ainda devem estar nestas áreas da divisa, onde os líderes nunca reconheceram uma autoridade central, fazendo imperar as leis tribais. Na área pashtun de ambos os lados da divisa, é muito difícil para os americanos e as autoridades centrais se infiltrarem nos povoados. Os agentes da inteligência acreditam que, se Osama bin Laden e o líder talibã Mulla Ornar ainda estiverem vivos e no Afeganistão, devem estar ali.

São eles que Tajmir tenta encontrar. Ou pelo menos achar alguém que os tenha visto ou alguém que pense ter visto alguém parecido com eles. Ao contrário de seu companheiro de viagem, Tajmir espera que não achem nada nem ninguém. Tajmir não gosta de perigo. Não gosta de viajar para as regiões tribais onde os combates podem começar a qualquer hora. No banco de trás do carro há coletes à prova de balas e capacetes.

— O que você estava lendo, Tajmir?

— O Alcorão sagrado.

— Sim, eu vi, mas algo em especial? Quer dizer, um conselho para viajantes ou algo parecido?

— Não, nunca procuro algo específico, eu o abro aleatoriamente. Agora estou lendo a parte que fala que aquele que obedecer a Deus e seu enviado será levado para os jardins do Paraíso, onde há córregos, enquanto aquele que der as costas sofrerá uma punição dolorosa. Eu sempre leio um pouco do Alcorão quando estou com medo de alguma coisa ou quando estou triste.

— Ah, sim — diz Bob encostando a cabeça na janela. De longe ele vê desaparecer as ruas fuliginosas de Cabul. Estão dirigindo ao encontro do sol da manhã, que brilha tanto que Bob tem que fechar os olhos.

Tajmir está pensando na sua missão. Ele foi contratado como intérprete por uma grande revista americana. Antes, sob o Talibã, ele trabalhava para uma organização de apoio humanitário. Era responsável pela distribuição de farinha e arroz para os pobres.

Quando os estrangeiros da organização deixaram o país depois do 11 de Setembro, ele ficou sozinho com toda a responsabilidade. O Talibã bloqueava todas as suas iniciativas. A distribuição foi interrompida e um dia caiu uma bomba no local onde normalmente era feita. Tajmir agradeceu a Deus. Imagine se o lugar estivesse cheio de mulheres e crianças numa desesperada fila de comida.

Mas para ele parece distante o tempo em que trabalhava com assistência humanitária. Quando os jornalistas chegaram em bandos a Cabul, ele foi procurado pela revista americana, que lhe ofereceu por dia o que ele normalmente ganhava em duas semanas. Ele pensou na família, que estava precisando de dinheiro, largou o trabalho assistencial e começou a trabalhar como intérprete, num inglês imaginativo e cheio de invencionices.

Tajmir é o único provedor da família, pequena segundo os padrões afegãos. Ele mora com a mãe, o pai, a irmã, a esposa e o pequeno Bahar, de um ano, num apartamento no Mikrorayon, não muito longe de Sultan e sua família. Sultan é irmão de sua mãe, tio de Tajmir.

Feroza, sua mãe, é a filha mais velha de Bibi Gul, cinco anos mais velha que Sultan. Ela nunca pôde ir à escola porque a família era pobre e ela foi prometida em casamento para um homem de negócios bem-sucedido. Depois do casamento, Feroza se mudou para a casa do marido vinte anos mais velho.

Os anos se passaram e ela nunca teve filhos. Ela tentava de tudo, escutava todo tipo de conselhos, tomava remédios, pediu a Deus, desesperou-se. Enquanto estava tentando engravidar, a mãe continuava a parir filhos. Teve três, um atrás do outro, e várias filhas depois que Feroza se casou. Uma mulher é valorizada ao se tornar mãe, principalmente se gera filhos homens. Não conseguir ter filhos significa não ser valorizada. Quando Feroza havia tentado durante 15 anos e Bibi Gul estava esperando seu décimo filho, Feroza o pediu para si. Bibi Gul se recusou.

— Não posso dar meu filho.

Feroza continuou pedindo, queixando-se e ameaçando.

— Tenha piedade, você já tem um bando de filhos e eu não tenho nenhum. Dê-me apenas este — ela chorava. — Não posso viver sem um filho.

Por fim, Bibi Gul prometeu seu filho a ela. Quando Tajmir nasceu, Bibi Gul ficou com ele durante sete dias. Ela o amamentou, cuidou dele e chorava por saber que não ficaria com a criança. Bibi Gul tinha se tornado uma mulher importante devido a seus filhos e queria ter o maior número possível. Além deles não tinha nada, sem eles não era nada. Depois dos vinte dias combinados, ela deu o bebê para Feroza, e mesmo com o leite derramando, Feroza se negou a deixá-la continuar amamentando-o. Não era para ele ter laços com a mãe, de agora em diante ela seria sua avó.

Feroza tornou-se uma mãe das mais severas. Desde que Tajmir era pequeno, ele não podia sair para brincar com as outras crianças. Devia brincar quietinho e tranquilamente sob o olhar vigilante de Feroza, e quando cresceu tinha que fazer seus deveres. Sempre tinha que voltar diretamente da escola para casa e nunca pôde visitar amigos ou trazê-los em casa. Tajmir jamais contestava, não havia como contestar Feroza, porque Feroza batia e batia com força.

"Minha mãe é pior que Osama bin Laden", Tajmir explica a Bob, quando tem que se justificar por chegar atrasado ou porque de repente precisa interromper um trabalho.

Ele conta histórias de terror de "Osama" para seus novos amigos americanos. Eles imaginam uma fúria sob a burca. Mas quando conheceram Feroza, numa visita a Tajmir, só viram uma mulher baixinha, sorridente, com olhos indagadores e penetrantes. No peito usava um grande medalhão dourado com a profissão da fé islâmica. Ela o comprara assim que Tajmir voltou para casa com seu primeiro salário americano. Feroza sabe exatamente quanto ele ganha, Tajmir tem que entregar tudo que recebe à mãe, e, quando ele precisa, ela lhe dá dinheiro para pequenos gastos. Tajmir mostra todas as marcas nas paredes, nas quais ela jogava sapatos ou outros objetos na sua direção. Agora ele ri, a tirana Feroza tornou-se uma divertida peça de folclore.

Feroza sempre almejou que Tajmir se tornasse alguém importante, e, todas as vezes que conseguia um dinheiro extra, ela o matriculava em cursos: de inglês, matemática, informática. A analfabeta que foi dada em casamento para trazer dinheiro para a família ia se tornar uma mãe honrada e respeitada. Um filho bem-sucedido era a solução.

Tajmir raramente via o pai. Ele era um homem gentil e um tanto retraído, mas bebia e sumia por longos períodos. Nos seus melhores dias viajava como comerciante para a índia e o Paquistão, às vezes voltava com dinheiro, outras vezes não. Com o passar dos anos ficava a maior parte do tempo bebendo. Mesmo durante o Talibã ele se embebedava, sempre acabava arranjando aquilo por que seu corpo ansiava, de álcool medicinal a lustrador de móveis. Com Feroza por perto, sentindo-se envergonhada e desesperada pelo péssimo marido que Deus lhe havia dado. Ela tinha vontade de surrá-lo, mas nunca bateu no marido, mesmo porque não havia dúvida de quem era o mais forte. Com o passar dos anos Feroza se tornou uma mulher robusta, roliça feito um pão doce, com óculos de vidro grosso balançando no nariz ou pendurados em volta do pescoço. Em contraste, o marido já estava de cabelo branco e era magro, fraco e ressequido como um galho seco.

Feroza foi ocupando o lugar de chefe da família ao passo que o marido murchava.

Quando Bibi Gul ficou grávida de outro filho, Feroza exigiu este também. Bibi Gul recusou.

Feroza insistiu. Bibi Gul negou de novo. Feroza insistiu mais uma vez. "Não é bom para Tajmir ser filho único, por favor, a senhora tem tantos", ela pediu, de novo alternando entre lágrimas e ameaças. Mas desta vez Bibi Gul recusou e ficou com Leila quando ela nasceu.



(O Livreiro de Cabul; tradução de Grete Skevix)



(Ilustração: Anatoly Homutinnikova - Aldeia perto de Cabul)


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