quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
OS OLHOS DE CADA UM, de Branquinho da Fonseca
1
Era
uma vez um conde
e ia
atravessar uma ponte...
Queres
que te conte?...
Olha, não há ninguém igual. Cada um tem os
seus olhos e, quando se vê uma coisa, cada qual a vê conforme o tamanho e a cor
dos seus olhos... Tu sabes lá!... Nem eu ... E a vida também nunca é igual,
porque as horas vêm umas atrás das outras. E a terra dá uma volta completa
todos os dias.
— Pois dá...
- Desculpa. . . Já estava a
desviar-me. Não era isto que eu queria dizer-te. Queria só contar-te um conto.
...Ouve: — Um dia saiu duma aldeia da Beira
Alta um rapaz com tanta certeza no futuro que se meteu num paquete e foi para a
África. A África é uma terra desconhecida, com florestas sem fim, cheias de
leões, tigres, elefantes e milhões e milhões de outros animais mais pequenos:
macacos, aves de cores encarnadas e amarelas; e tudo anda por baixo e por cima
das árvores das florestas, como se fosse maravilhoso. Debaixo da terra há minas
de ouro, de diamantes, de esmeraldas... A África, por dentro, é feita de pedras
preciosas. Quando se faz um buraco, a certa hora e com certa inclinação, vê-se
que por baixo é branca e cintilante e por cima os homens são pretos. Ora esse
rapaz, que partiu com tanta certeza e tanta força e que se chamava
Rodrigo, sabia tudo por uma carta que lhe tinha deixado um tio padre
que fora expulso da Igreja, porque acreditava na pedra filosofal e na igualdade
de poderes de Deus e do Diabo. Esse velho vivia sempre fechado num quarto, em
trabalhos misteriosos, e tinha muitos livros, alguns dos quais eram tão grandes
e tão velhos que, quando ele os abria, saíam de dentro deles cobras e pássaros a
voar, muito bonitos, vermelhos, azuis e amarelos...
Aquele velho já recebera uma carta quando
era pequenino. Depois disso passara toda a vida a estudar e agora escrevera ele
uma, quase definitiva. Tinha 100 anos, era magro, alto de olhos brancos, e
barbas como Deus nas pinturas. Costumava passear de noite pelos montes, e
sentava-se em cima das pedras, a pensar. Era considerado um santo e um louco.
Toda a gente tinha medo dele e certeza nas suas palavras, porque nunca tinha
dito nada que não viesse a ser verdade.
Um dia, chamou o sobrinho e disse-lhe:
- Meu filho. Nunca te dei conselhos nem
nunca te disse: segue este caminho ou segue aquele. Porque é melhor que os
conheças todos, e escolhas. Como num dicionário tens todas as palavras, aqui
tens todas as forças. (E mostrava um rolo de manuscritos amarelecidos, que
estava no fundo duma pequena caixa de ferro.) Abre e escolhe. E tens as
explicações. Nada pode falhar; tens a vida que quiseres; tens aqui tudo.
E fechou a caixa com a chave que pôs na mão
do sobrinho.
Rodrigo tinha pelo tio uma espécie de
terror e de fé inexplicáveis. Saiu com o cofre a tremer-lhe nas mãos, foi
fechar-se no quarto e sentiu-se esmagado por uma grande responsabilidade.
Acendeu o candeeiro, sentou-se diante da mesa, abriu o cofre, desembrulhou o
rolo de papéis e começou a ler. Eram duzentas folhas amarelecidas, escritas
numa letra que parecia antiga... Chamava-se: “Carta Verdadeira, como as
tábuas de Moisés verdadeira e quebrável, etc...”.
E começou a ler. Ainda teve uma hesitação.
Mas continuou. Sentia uma angústia serena.
No silêncio da noite só se ouviam os ratos
a roer as arcas, a roer, a rebolarem as batatas pelo sótão da casa. . . De vez
em quando pesava um grande silêncio e então parecia que aquele casebre rangia.
Depois os ratos começavam outra vez a roer, a roer, e as batatas rebolavam pelo
sótão, rebolavam. . . Até que, de repente, Rodrigo levantou-se, e ficou imóvel
diante da mesa, com os olhos ainda presos às últimas palavras da carta. Depois
olhou a janela: Tinha amanhecido! Em volta dos vidros havia uma leve camada de
gelo e sobre o peitoril estava uma pequena ave morta.
Rodrigo foi abrir a vidraça e pegou no
pássaro, que parecia de pedra. Saiu do quarto com ele na palma da mão; e as
penas, derretendo-se, queimavam-no. Foi ao quintal, abriu uma cova na terra e
enterrou-o ali. Voltou para casa, dirigindo-se ao quarto do tio. Abriu a porta
e viu-o sentado na cadeira, com a cabeça deitada sobre a mesa, entre os livros.
Aproximou-se, com um passo seguro, e tocou-lhe no ombro:
- Já amanheceu.
Mas o tio não acordou. Então abanou-o com
mais força e sentiu-lhe o corpo rígido. Estava morto.
2
Arcelo,
arcelo
deita
o teu cabelo
cá
abaixo de repente
quero
subir imediatamente
Rodrigo voltou para o quarto e tornou a ler
a carta. E nesse dia não comeu nem bebeu, nem falou com ninguém, nem ouvia,
quando lhe falavam.
Tinha ordenado as coisas para que o enterro
do tio fosse ainda nessa tarde e quase ao pôr-do-sol saiu o funeral. Como muita
gente devia favores ao sobrinho, levou um grande acompanhamento. Rodrigo voltou
à pressa para casa, meteu a roupa toda na mala, deitou-se sobre a cama, cerrou
os olhos para rever os sonhos e no dia seguinte, logo de manhã, partiu a
caminho da estação. Atrás ia a criada velha com a mala à cabeça e a enxugar as
lágrimas. Rodrigo comprou um bilhete para Lisboa e disse:
- Senhora Marta: todos os bens que meu tio
me deixou, deixo-lhos eu agora a si. Aqui, neste papel, está a minha
declaração, para não ficar com dúvidas. Chame seus filhos e eles que leiam. Eu
vou por esse mundo correr a fortuna. Mande todos os domingos pôr flores brancas
na campa de meu tio. É a única coisa que exijo. Veja bem! Flores brancas.
Querem dizer: — Nada. Todos os domingos. E os seus filhos e os seus netos ficam
com a mesma obrigação. Se não o fizerem acontece-lhes uma desgraça e
eu, se o souber, tiro-lhes as casas e as terras.
A velha ficou pasmada, sem compreender, com
a folha de papel na mão, a olhar para Rodrigo, com uma expressão assustada e
estúpida. Neste momento chegou o comboio. Rodrigo ia para a África ajuntar uma
grande fortuna, porque tinha sido sempre essa a sua ambição e agora sabia como
podia fazê-lo e sabia tudo o mais. Naquela carta, que levava no fundo da
mala, ensinava-se toda a Verdade do Mundo e da Vida, com mapas, números,
pinturas e demonstrações verdadeiras. Ora com toda a Verdade na mão e com toda
a ciência de a adaptar à Vida, cada um a aproveita como só sua — e de mais
ninguém...
Rodrigo foi para a África, fez um buraco no
chão e tirou de lá o que quis. Depois comprou um navio e um palácio em cada
cidade do mundo. Mas como a ida a África tinha sido só para disfarçar, porque a
carta ensinava a triunfar em qualquer sítio, Rodrigo abandonou o tal buraco da
África e começou a viajar como um Imperador, sem ninguém se admirar: porque ele
era o homem mais rico do mundo, o tal que tinha ido a África e encontrara uma
mina de ouro, diamantes, esmeraldas, safiras. Uma mina sem fim!... (Porém,
quando um dia souberam que tinha abandonado a mina, foram muitas pessoas procurá-la;
e quando a encontraram não viram senão um buraco pequeno donde saiu um leão,
que comeu toda a gente menos um, o qual depois ainda foi ver o buraco e viu que
era só de terra e lama do leão fazer xixi. Esse pobre homem não lera a carta
dum tio filósofo. Não tinha a chave... também tinha só idéias atingíveis,
como Rodrigo, mas andava no mundo ao acaso, sem a chave, e com uma verdade
que era de toda a gente.)
3
Sol
forte:
-prá
eira é vida,
- prá
horta é morte.
Um dia, no reino de Inglaterra, Rodrigo viu
a mulher mais bela do mundo. Desejou-a e logo ela se apaixonou por ele e lhe
pertenceu. Rodrigo trouxe-a para Portugal e viveram muito felizes.
Da sua união com a mulher mais bela do
mundo nasceu um filho que se chamou Pedro, e era belo como um príncipe do tempo
em que os animais falavam. Pedro cresceu e era, cada vez mais, a maior vaidade
de seu Pai e de sua Mãe. Passava os dias a cantar e a tocar viola, ou deitado
nos braços de todas as amantes que queria ter. Era um poeta... Quando se cansava
da beleza das amantes, ou da música das cantigas, ia para os montes caçar ou
para a biblioteca ler, e lá passava todo o dia. Até que o pai começou a notar
que ele se dedicava muito ao estudo, que tinha uma inteligência sutil, idéias
como os grandes gênios, enfim, que havia de ser um homem extraordinário. Então,
vendo que já chegara o dia do filho poder triunfar sem parecer sobrenatural,
foi a uma caixa de ferro onde tinha guardado a carta e, chamando-o disse-lhe:
— Pedro. Esta carta te ensinará a Verdade
da Vida, com todas as suas Forças postas ao teu alcance. Tudo bem simples. . .
Podes conseguir tudo e seres tudo o que quiseres.
Pedro ficou a olhar para o pai, com uma
expressão sorridente e irônica.
Ao sair desembrulhou a carta e começou a
ler enquanto caminhava pelo corredor abaixo. E parou. E voltou para trás. Foi
para o quarto de dormir, fechou a porta à chave, e começou, serenamente, a ler
tudo desde o princípio. Pela janela entrava uma noite muito calma, com estrelas
e luar. Ouviam-se as rãs a coaxar e a água a cair no tanque do jardim. Pedro,
imóvel, sentado diante daqueles papéis amarelos, com o olhar parado, lia.
Durante toda a noite leu, e tornou a ler.
E leu ainda mais uma vez...
Por fim deixou cair a cabeça sobre os
papéis. E não quis nada, nem morrer. Morreu.
A
certidão está em Tondela
Quem
quiser vá lá por ela.
(Ilustração: Cézanne - Jeune Homme à
Tete De Mort)
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