sábado, 22 de outubro de 2022

UM DIA RUIM, de Cristovão Tezza


Um dia ruim desde o começo, ela diria depois ao refazê-lo passo a passo ao policial gentil. Começou com uma falsa boa notícia — alguém lhe deixou na portaria uma dissertação de mestrado para ser revisada, e que ela desse um preço pelo serviço. Uma obra de engenharia, o texto e a correção, Beatriz diria azeda ao relembrar — tudo sobre concreto armado, e as frases eram vigas tortas e intermináveis. Para aproveitar o dia, tomou do lápis e começou a reescrever tudo, quebrando sentenças a golpes de pontos e vírgulas, colocando sujeitos onde não havia, ligando verbos a substantivos, plurais a plurais — ainda bem, lembrou, que aquilo estava impresso em espaço dois, com uma boa faixa de escape, a letra firme e redonda se espiralando miúda em colchetes aqui e ali, encaixes acolá, uma troca de adjetivo, uma concordância adiante, um adendo à margem. Já estava na página 27 quando ergueu o telefone para ouvir a voz do dono, um engenheiro apressado que foi direto ao assunto: Quanto custa? Ela deu o preço, o dobro que o normal, mas o texto exigia, frase a frase — o que talvez o engenheiro não percebesse é que ao fim de tudo ele seria Mestre, autor de um belo trabalho de cálculo sobre pedras, vergalhões, cimento e areia, mais a contrapartida do solo, tudo de modo que seres humanos letrados conseguiriam ler, mas Beatriz ficou inibida, como sempre, para proclamar as próprias qualidades, que afinal ele já devia saber pelos outros ou não teria deixado aquilo com ela. Não, é muito caro. Talvez sentindo que estava sendo rude, um homem tenso esmagado pela pós-graduação, de saco cheio do orientador e em pânico diante da banca que se aproximava, ele refez a frase: Eu não posso pagar esse preço, uma frase subitamente engraçada, como um filme dublado. Mas não quis conversa, aliás nem ela — eu passo aí e pego de volta na portaria.

— Tudo bem — e ela bateu o fone. As pessoas mal-amadas vão se tornando irremediavelmente mesquinhas, Beatriz pensou, rancorosa, entregando-se com algum prazer ao preconceito, sujeitinho pão-duro, idiota, o filho da mãe é engenheiro, essa revisão não tem preço; e restava-lhe agora um problema ético: já havia corrigido por conta própria 27 páginas — não podia cobrar, porque o bilhete do homem deixava claro que ligaria antes para saber do orçamento. Devolver com a parte corrigida para aquele jegue ver o que perdeu? Sentir a diferença entre um texto estropiado e um texto bem escrito, nítido, conciso, luminoso? Ou apagar tudo com a borracha, para que aquilo voltasse ao seu lugar no mundo, a escuridão intocada do texto ruim e de seus sentidos secretos e inescrutáveis, lá no fundo da caverna do que ele quis dizer? — ela escreveu mentalmente, vingativa, gostando da imagem. Chegou a pegar a borracha, mas desistiu, cristã — ele que ficasse com as 27 páginas corrigidas, e as duas horas e meia, de graça, e mais a graça de se ver melhor no próprio texto. Um tapa de luvas.

Mas isso foi só o começo, como o senhor sabe, e o policial sorriu. Mal saiu do banho, outro telefonema, este promissor. Um velho senhor de sotaque carregado (polaco? alemão? holandês?) praticamente a convocava a revisar sua obra — A senhora tenha a certeza de que eu preciso muito!, insistia o homem, arrastando os erres, dramático. Ao fundo, dava para ouvir um cachorro latindo, e ela teve um mau pressentimento, a que não deu atenção, ainda o resíduo do engenheiro na cabeça. O homem respirava mal, ela percebeu, talvez asmático. É um trabalho de sociologia, história — aqui ele acrescentou algo como “etnografia”, “etografia”, não deu para entender — e antropologia. Um sábio, ela pensou, um velho sábio perdido em Curitiba com uma obra monumental que só precisa de uns retoques, como o homem disse, repetindo três vezes, uns retoques, eu não domino bem o vernáculo, ele dizia, e ela matutou se ele saberia exatamente o sentido dessa palavra, no caso de ele ser estrangeiro, mas talvez não — quem sabe filho de estrangeiros. Eu moro longe, mas eu pago o táxi para a senhora. Não estou bom de saúde. Eu pago tudo. Só preciso de uma boa leitura, e o quanto antes. A senhora está livre hoje? Eu pago o táxi, o homem repetia, era um cidadão agitado, doente mas correto, ela avaliou, vou lá antes que ele morra, e ela riu sozinha desligando o telefone e tentando entender o caminho da roça, verdadeiramente o caminho da roça que ela foi anotando, Sabe Almirante Tamandaré?, e assim ela teria de pegar a Mateus Leme e daí em diante havia uma sequência difícil de referências — o motorista de táxi conhece, não é complicado —, tudo terminando no beco da Torta, na verdade uma estradinha de terra, passa um haras, não é bem um haras, tem uns cavalinhos no campo, e a velha nostalgia rural de todo brasileiro (e ela riu da ideia) tocou fundo na sua alma. Embarcou no táxi como quem tira umas férias, o mapa à mão. O motorista não disse nem sim nem não quando ela perguntou se ele sabia o rumo a tomar, apenas foi avançando lacônico e Beatriz enfim se tranquilizou. Passar uma tarde no campo. Aos poucos foi se sentindo como alguém que se transporta a uma outra dimensão do espaço, súbito em uma cidade desconhecida, uma Curitiba que nunca viu e que estava ali ao lado, como eu sou ignorante, ela pensou, meu mundo começa na José de Alencar e termina na pracinha do Batel, e agora estou aqui, o asfalto roto sem calçadas, cheio de curvas, pessoas, burros, carroças, tudo meio que devagar se atravancando, oficinas, barracos, pobreza, aquela sujeira gráfica de placas, postes, fios atravessados, outdoors coloridos com mulheraças gigantescas mostrando pernas maravilhosas, e ali no poste a tabuleta inverossímil vende frango-se, a seta vermelha com a tinta escorrida, e ela olhou o taxímetro com o canto dos olhos, tudo vai bem, eu pago o táxi, ela ainda ouvia a voz metálica do velho asmático, os erres ríspidos, e súbito o motorista para numa esquina, o vidro abrindo-se a uma passante:

— A senhora sabe onde é o beco da Torta?

A mulher se aproximou. Ela tem cara de sortista, Beatriz pensou. Antes de falar, conferiu a passageira no banco de trás, tentando adivinhar uma biografia completa, imaginou Beatriz — quem é, de onde vem, para onde vai.

— É logo adiante. Vocês vão no velho Rodolfo? Cuidado com o cachorro.

Não era exatamente um tom cordial, e a menção ao cachorro deu-lhe um frio na barriga, mas não teve tempo de se preocupar — outras duas ou três curvas e chegavam a um fim de caminho, mato cerrado adiante, e ela se surpreendeu agora ao contrário, como é pequena essa cidade, acaba aqui. O táxi parou diante de uma velha casa de madeira de cor indefinível, lambrequins desdentados numa varanda em ruínas, o telhado agudo, como se nevasse em Curitiba. Ela saiu do carro e no mesmo instante um cachorro enlouquecido jogou-se latindo contra a cerca alta de metal trançado, encimada por uma faixa densa de arame farpado — um cão furioso, insaciável, de uma agressividade limítrofe, um desespero antes da morte (ela pensaria depois, numa ilação absurda). Mas quem abriu o portão?, perguntou o policial gentil, na boa viagem de volta. O latido irritante tinha o poder de uma serra elétrica para suspender a vida — ela pagou o taxista tentando organizar a cabeça, mas os latidos não deixavam; esqueceu do recibo e esqueceu também de pedir que ele esperasse um minuto até ela se certificar de que o homem estaria mesmo em casa, sabe-se lá. Bastou sair do carro e avaliar num segundo aquela casa esquecida no fim do mundo, iluminada por um sol forte de começo de tarde, para o táxi sumir; assim que se voltou, o carro já virava a curva adiante numa nuvem de poeira. Viu-se completamente só diante do portão do que teria sido um espaço de garagem e que agora era uma quadra de mato mal aparado. O cachorro, incansável, latia e pulava diante de Beatriz, arremetendo furioso contra o portão. Paralisada, lembrou súbito que esquecera o celular (ficou na mesa da sala, na hora em que fui pegar a bolsa, que desgraça, ela contou aflita ao policial, como se o detalhe fosse importante), ao surgir a ideia de que deveria telefonar ao homem para lembrá-lo de que ela já estava plantada em frente da casa dele; o velho, quem sabe surdo, estaria tranquilo lendo um tratado de sociologia na cozinha, enquanto ferve água para o café com que vai recepcionar a revisora, completamente distraído, sem saber que ela estava ali suando frio diante daquele Cérbero feio como o pecado. Em torno, nada, e Beatriz irritou-se com o peso de mais uma burrice cometida, o velho que levasse a ela o livro a revisar, e não o contrário, mas, como sempre, agora é tarde. Resolveu bater palmas, o que era ridiculamente inútil, mas atiçou ainda mais a fera que agora uivava de ódio em seus saltos homicidas contra o portão. Beatriz já começava a desistir, antevendo a longa caminhada de volta até achar um táxi ou um ponto de ônibus, quando uma cabeça pequena, uma face descarnada, um halo de cabelos brancos, uma efígie pálida enfim apareceu à janela dos fundos para desaparecer em seguida, como um cuco. Será que ele me viu? O animal parou por alguns segundos, abanando o toco do rabo, à espera talvez de um chamado, que não veio, o que foi o argumento para voltar a latir sempre furioso, e enfim a porta da varanda se abriu — Réss! Réss! — gritava agora o homem magro de bermudas, meias e chinelos, a velha camiseta, os braços brancos e secos, ainda sem olhar para a visitante, ocupado integralmente com o cão, indócil também com ele. Réss! — Será “Réss” mesmo o que ele diz? Ou Rex?, Beatriz especulava, um pouco mais tranquila, não perdi a viagem, sonhou, sem dúvida era o homem do telefonema que agora avançava resoluto para o animal agarrando-lhe a coleira com a mão esquerda e ossuda e suspendendo-o como quem enforca; o cachorro gania, sem se acalmar, debaixo de uma sequência ininteligível de ordens em que só o “Réss” se entendia. Em vez de levá-lo a algum lugar e prendê-lo, como Beatriz queria que ele fizesse, o homem tirou do bolso uma chave e avançou ao portão — a mão direita, trêmula, tentava encaixar a chave no cadeado, enquanto o cachorro, a duras penas controlado pelo outro braço, contorcia-se no esforço demoníaco de livrar-se do velho, e em meio a gritos e latidos o portão enfim se abriu, com o cadeado indo ao chão. Junta para mim, ganiu o homem, arrastando o bicho dois passos para trás, que agora voltava a desejar Beatriz, tão próxima — e ela entrou no terreno e obedeceu, recolocando o cadeado no portão e fechando-o com um clac! Do que se arrependeu no mesmo instante, como explicou ao policial; agora ela estava sem rota de fuga. O homem arrastava o monstro até a porta, seguido por uma Beatriz vacilante que tentava adivinhar o passo seguinte, do homem e de Rex, ou Réss. A mão livre do velho tremia fazendo sinais irritadiços para que ela entrasse em casa enquanto mantinha o bicho seguro ao seu lado, e Beatriz olhava hipnotizada para aquela velha coleira que talvez se rompesse, firme nos dedos brancos do velho, mas o que ele vai fazer, levar o cachorro para dentro de casa? Não, ele abriu um espaço para que ela passasse, enquanto mantinha o sempre indócil Réss, ou Rex, no cabresto, e ela afinal subiu os dois degraus de madeira podre da varanda e praticamente correu para dentro. O homem entrou em seguida — era uma verdadeira operação de guerra, ela relembrava depois, recontando cada detalhe, o coração na boca, quando o policial gentil disse que ela já podia ficar calma, tudo bem, está tudo bem, foi como nos filmes ela disse mais uma vez, agora rindo um riso nervoso — o velho não entrou em casa, ele foi se infiltrando no espaço mínimo que a porta mal aberta lhe dava, ainda bem que ele era magro, o braço estendido para manter o monstro do lado de fora, até que o soltou no mundo, batendo a porta, enfim em segurança, e ambos escutaram o choque do animal arremetendo contra eles, o ganido interminável. Agora seguros do lado de dentro, o homem ainda foi à janela e gritou mais algumas coisas ao Réss, um tipo de código secreto que parecia alemão, mas não era, ela calculou, mas também o Réss não entendia, porque continuava latindo. Enfim o senhor Rodolfo se voltou para Beatriz, ofegante — muito ofegante, ela explicou ao policial, ele tinha a boca aberta, dava para ver um dente de prata logo atrás do canino, mas isso ela não achou necessário dizer, ficou só a imagem fixa na memória, um dente de prata. — Você é muito nova, ele disse, e estendeu a mão ossuda que ela apertou com uma sensação ruim, também ela ofegante, não de cansaço, mas de terror. Tenho problema com cachorros, pânico de infância, eu devia ter avisado antes, e parecia que a sua vida inteira era uma sequência de devias que, se realizados, fariam dela outra pessoa, outro ser, outra existência; o fato é que não disse nada, corpo e alma mudos, e o homem, com uma sombra de desconfiança, perguntou se ela era italiana, ou alemã, o olhar escrutinador, e Beatriz meio que sorriu, eu sou brasileira, mas nem isso disse, porque mais uma vez o senhor Rodolfo não lhe deu tempo, puxando uma velha cadeira de palha e intimando-a a sentar diante daquela mesa surrada por onde teriam passado duas ou três gerações de almoços e jantas, Beatriz imaginou, fantasiando o momento para dele escapar, e olhou em torno, uma casa rústica que em algum momento do passado foi boa, agora à beira da ruína final, mas ainda sustentável, ou consertável, ela pensou, nas paredes algumas fotos antigas de família, uma meia dúzia de livros velhos e sem lombada, uma coleira velha pendurada num prego, uma antiga máquina de costura transformada em mesinha de canto, uma cristaleira de antiquário com taças e copos disparatados, tudo sob o fundo musical de Réss — acho que é Réss mesmo, talvez Hess, ela tentou adivinhar, sabe-se lá, e o velho desapareceu por um batente e de longe veio a voz, vou levar um café e então conversamos, o cão rosnando próximo, atrás da porta talvez, ela pressentiu, mas a voz do homem estava realmente esquisita, ele parece doente, e quando reapareceu segundos depois, sem o café, o rosto estava vermelho como a cabeça de um galo e a mão trêmula depositou um volume diante dela, fique lendo enquanto trago o café, acho que preciso de um comprimido, ele ainda disse. — Você viu ele tomar o comprimido?, o policial perguntou, e ela disse que não, o que era verdade. Apenas abriu a pasta ensebada onde jazia uma pilha de folhas amarradas com barbante nos dois furos da margem esquerda e viu o título de letras falhadas marteladas por uma velha máquina de escrever, ela imaginou, a fita preta e vermelha quase sem tinta: PORQUÊ HITLER PERDEU A GUERRA DA PROPAGANDA, e ela sentiu um frio no estômago enquanto os olhos acompanhavam o enorme subtítulo em espaço um, Estudo cientifico, moral, racial e sociológico dos acontecimentos mundiais da derrocada do “Terceiro Reich” que se seguiu no fim da SEGUNDA GRANDE GUERRA MUNDIAL onde o pôvo germânico perdeu o contrôle.

Beatriz fechou os olhos, o suor brotando no pescoço — é o efeito retardado do estresse do portão, ela interpretou. Só agora estou voltando ao normal. Abriu os olhos e releu: era isso mesmo. Talvez o homem seja apenas analfabeto, ou simplesmente alguém da velha ortografia; não é uma questão de ideias. Abriu a página seguinte. CAPÍTULO PRIMEIRO. Nuremberg: verdades e mentiras. Porquê o julgamento não refléte a verdade. O que aconteceu.

— Eu tenho o Réss — o homem disse de repente lá na entrada do que seria a cozinha e Beatriz fechou instintivamente o livro, como alguém pego em flagrante — por causa da vizinhança. Já me roubaram muito aqui. Não estou bem — ele disse, exatamente no mesmo tom e no mesmo volume de voz, o tempo passado e o tempo presente como partes da mesma frase, e desapareceu.

Ela abriu de novo o volume ao acaso e viu aquela mancha em espaço um, uma datilografia compacta e praticamente sem divisão de parágrafos o dinheiro judeu assossiado ao capital internacional e abriu outra página mais para o fim comandante das “SS” e abriu outra página raças misturadas no Brasil e outra PORQUÊ A VIOLÊNCIA SÓ TÊM SOLUÇÃO VIOLENTA — os motivos etológicos da decadência do Ocidente em dezasseis argumentos e outra O momento da solução — e a voz súbita do velho de novo na porta como que despertou Réss, que latiu furioso e mais uma vez se lançou contra a porta fechada.

— Eu deixo o Réss solto porque se eu prendo ele eles me roubam. Eles pensam que eu sou indefeso, que eu sou um velho gagá, é o que eles dizem, esses vagabundos dizem que eu sou um velho gagá, aquelas crianças vêm ali na cerca, ficam zombando, e o Réss fica nervoso — a voz estava anormalmente alta, e Beatriz de novo fechou o livro, tentando resistir ao terror que começava a escancarar as portas de sua alma. — Mas eu tenho um modo de assustar eles, além do Réss, eu tenho medo que eles envenenem ele, e então eu pego a minha luger, está aqui — e sempre gritando, pela surdez um homem sem noção de volume de voz, ela imaginou, o velho avançou até o armário, abriu uma porta e depois uma gaveta, já de joelhos no chão; o velho inteiro tremia.

Beatriz levantou-se — O senhor não precisa me mostrar, eu... — mas ele se virou, aquela magreza frágil teimando em se manter em pé, o rosto inteiro congestionado agora, e Beatriz sentiu o vazio do pânico, o homem estava tendo algum ataque, não de fúria, embora a impressão fosse exatamente essa.

— Ele se ergueu assim, com o revólver na mão, o braço meio estendido, e o corpo começou a dobrar — e ela imitava o gesto, ela também tremendo e ainda sem controlar totalmente o choro.

— O braço nessa direção? — perguntou o policial gentil, tocando a mão dela, refazendo o gesto, e olhando para a janela com o vidro estilhaçado.

Sim, ela disse, e relembrou o rosto do velho inteiro manchado de vermelho, o pescoço espichando-se para fora da camiseta, a boca aberta buscando um ar inexistente, sentindo o vácuo que haveria de derrubá-lo. Ele ainda estendeu o braço com a luger apontando não exatamente para ela, mas muito próximo, de modo que ela olhou para trás assustada como se um inimigo se aproximasse para matá-los e o velho apenas se defendesse, mas não havia ninguém, e ela ouviu o estampido pavoroso do revólver estilhaçando a vidraça da frente; deu um grito, e ao se voltar o velho já estava no chão, abatido — na verdade, morto, boca e olhos abertos, a luger ainda encaixada nos seus dedos. Pela brutalidade do susto, Beatriz chegou a pensar o contrário, que alguém de fora matara o velho através da janela, mas não: ali estava o homem imóvel, olhando idiotizado para ela. Ela chegou a se agachar para tocá-lo, mas por alguma repugnância instintiva não conseguia; enfim estendeu o braço vacilante e tocou o pescoço com a ponta dos dedos, sentindo a aspereza daquela pele enrugada e inerte; aproximou a cabeça da cabeça do homem, como quem quer ouvir alguma última mensagem antes da morte, um último sopro, mas também isso não havia mais. Um homem morto: o primeiro que ela via morrer, e num átimo se lembrou de seus pais mortos, sim, eles morreram de desastre, ela explicou ao policial gentil, na viagem de volta, já anoitecendo.

E outro pânico sobrevinha ao primeiro — Réss, talvez pressentindo a morte do dono, redobrava a fúria e ela podia vê-lo saltar diante da janela para em seguida raspar a porta como quem sabe exatamente o que quer. Ela ainda pensava no que fazer — massagem torácica, talvez, ressuscitar esse velho, respiração boca a boca, chegou a imaginar, mas a invencível repugnância voltava-lhe, o dente de prata brilhando na boca aberta, aquilo era um cadáver, ela tentava se justificar, temendo que o policial lhe perguntasse o que ela fez para salvá-lo, mas isso ele felizmente não perguntou. Beatriz ainda estendeu as mãos para pressionar o tórax do homem, mas ao tocá-lo como que foi demovida pelo gelo que sentiu, e retirou as mãos, ele já está morto. Pensou ainda em virá-lo, deixá-lo mais confortável, ela pensou sem atinar no absurdo da ideia, um homem desconfortável até na morte, mas ao estender mecanicamente os braços para a tarefa lembrou-se do seriado da televisão e recuou — jamais mexa na cena do crime, não toque em nada, mas que crime?, ela se perguntou, esse homem morreu sozinho, eu estava ali, a cinco passos, Beatriz imaginou-se contando mais tarde, o tom dramático para tornar o fato mais convincente ainda, como se o pressuposto de tudo na sua vida fosse sempre a mentira, e o tempo todo o cachorro latindo, o que criou outra onda de terror: afinal perceber que estava ilhada numa casa, sem celular, com um homem morto no chão, e guardada por um cachorro demoníaco que só deixaria ela sair dali quando morresse de fome; e o vizinho mais próximo estaria a uns quinhentos metros de distância, sendo que o beco da Torta é uma rua sem saída e que só chegará alguém aqui se —

E então Beatriz tateou o caminho de volta à cadeira de palha, onde sentou para pensar, mas não conseguiu — levantou-se em seguida e, enfim, surgiu uma ideia nítida: vou atrás de um telefone, deve haver um aqui, e avançando para os fundos com o maldito cão acompanhando seus passos aos urros e roncos pelo lado de fora, atravessou uma saleta vazia e chegou à cozinha, um degrau abaixo, de piso de pedra; no velho fogão a gás, ao lado de um fogão a lenha desativado que agora servia de balcão, um resto de água ainda fervia na chaleira e ela correu para desligar a boca, dessa vez sem susto, sentindo-se momentaneamente útil, quase como alguém que pelo simples gesto de desligar o fogo voltasse à normalidade cotidiana, vou fazer café; o animal agora rosnava atrás da porta dos fundos, raspando impaciente a pata na madeira, e ela conferiu a maçaneta e o trinco, de uma solidez antiga, com uma chave enorme: estou segura, ela pensou — eu posso sobreviver alguns dias aqui, fantasiou, olhando as prateleiras em torno, café, feijão, arroz, farinha, batatas. Voltou para a saleta e entrou num dos quartos, às escuras, e sentiu o cheiro e a aura da velhice, corpo e alma entranhados nas coisas; procurou inutilmente um interruptor (com medo de abrir a janela, o cão latindo) e pelo tato e pelas sombras foi descobrindo cômoda, cadeira, cama; estendendo o braço, chegou à mesinha do outro lado e enfim ao telefone, daqueles de filme, ela lembraria depois, negro, pesado, clássico, o cordão de tecido grosso em caracol; Beatriz ergueu o fone com dificuldade, derrubando frascos de remédio e um copo vazio que se espatifou. Percebeu agora a fraqueza que sentia, alguém esmagado pelo medo, os dedos tremendo para girar com dificuldade os três números que ela também adivinhava pelo tato, polícia, por favor, polícia!

— Era mesmo necessário matar o cachorro? — ela ainda perguntou ao policial, depois de alguns segundos em que ficaram em silêncio, a viatura parada num sinal vermelho.

— Bem, do modo como nos passaram a ocorrência, era uma questão de vida ou morte, e não tinha nenhum veterinário ali com uma rede para cuidar daquele bicho louco. Imagino o que você sofreu dentro daquela casa.

Ela ouviu dois ou três tiros e foi à janela — portão escancarado, quatro ou cinco homens avançaram em trajes civis, e só então ela viu o animal morto, a cabeça ensanguentada, o corpo inesperadamente pequeno quase oculto no mato. Sentiu a mão do homem tocando-lhe o braço, o mesmo policial que agora lhe dava a carona de volta.

— Você está bem?

— Um ataque fulminante do coração, sem dúvida — decretou um outro homem, talvez médico, agachado diante do antigo senhor Rodolfo.

— Digam pra esse povo ficar longe da casa — alguém ordenou, e Beatriz olhou para a rua onde uma pequena multidão vinda do nada começava a se aglomerar.

Você conhece ele?, alguém lhe perguntava, não, vim aqui fazer um trabalho de revisão, e mais uma camada de medo pousou na sua alma, e se eles imaginam que eu também sou nazista, o calhamaço ali em cima da mesa, eu nunca vi esse homem, ele telefonou, eu acho que ele era meio... assim, meio transtornado, ela evitou a palavra “louco”, que lhe pareceu inadequada. — Mas ele tentou matar você?! — e ela quase disse sim, o que não era exatamente uma mentira, não, não!, ele só quis me mostrar a arma, que tirou daquela gaveta. Alguém acabou fazendo finalmente o café, e uma xícara apareceu diante dela; Beatriz agradeceu. Cochichavam alguma coisa entre eles, ela ainda ouviu palavras avulsas, tiro acidental, uma demonstração, ela teve sorte. Uma outra voz disse Porra, essa luger é da primeira guerra, e está azeitada. Calibre sete meia cinco, cano 120. Conservadinha. Um deles abriu o calhamaço ao acaso e foi soltando as páginas como cartas de baralho, sem se deter em nada — O velho era escritor então, e largou o pacote na mesa sem comentários, um suspiro definitivo. Está cheio de remédio aqui, disse alguém do quarto, anota aí. E tem documento do homem na gaveta.

— Eu levo você em casa — ofereceu enfim o policial gentil, todos os trâmites aparentemente resolvidos. — Você garante que está bem mesmo?! — ele ainda perguntou. — Tome um calmante e durma bem essa noite, que você está precisando. Amanhã você faz o depoimento, se for o caso, não sei ainda, trocando em miúdos foi só um ataque do coração — e ela gostou de ouvir isso. Ao sair da casa, viu-se objeto de reverência da pequena multidão de crianças e adultos desocupados que abriram um caminho respeitoso para ela até a viatura fazendo um súbito silêncio — Mas ela não está algemada?, Beatriz ouviu nitidamente a criança e segurou um riso nervoso. Uma caminhonete do IML chegava naquele instante e dispersava a plateia sem muita paciência, aceleradas potentes, avançando para o portão aberto.

— Então você faz revisão de textos e dá aulas particulares?! — o homem perguntou, como recapitulação, já quase diante do prédio de Beatriz. — Isso é muito interessante — e balançava a cabeça. — Minha filha vai estudar agronomia — ele disse em seguida, como se as duas observações estivessem interligadas.

Belisário, o nome do policial gentil, ela releu no cartão; um nome vagamente conhecido, que por um segundo Beatriz tentou inutilmente lembrar. Se precisar de alguma coisa, é só dizer, ele insistiu, saindo do carro e abrindo a porta para ela. Uma face rústica e um começo de barriga, e o conjunto tinha uma aura de simpatia, ela avaliou. Policiais também podem ser boas pessoas, é claro. Entrou ainda trêmula no prédio; antes de chegar ao elevador, o porteiro lhe estendeu o envelope da manhã, a dissertação que ela deixara para devolver ao engenheiro.

— O homem escreveu um bilhete e disse para lhe entregar de volta.

Elevador subindo, conferiu: Prezada Beatriz, me desculpe por hoje de manhã, eu estava nervozo, pode fazer a revisão sim, obrigado pela comprensão, vamos praticar aquele preço que você falou mesmo, amanhã eu telefono na sua casa, Belisário.

Finalmente conseguiu rir, entrando em casa — um dia não tão ruim assim, calculou.

Coincidências são bons augúrios.



(Beatriz)


(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

Nenhum comentário:

Postar um comentário