domingo, 15 de maio de 2016

A NOVA CALIFÓRNIA, de Lima Barreto






I

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do correio pudera
 apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim
 era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o
 desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...


Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo
 habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.

– Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.


Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar!

E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como
 os da farmácia - um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.


O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante
de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte
 com o tinhoso.


Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do
 homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz 
baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.


Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário
 Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.


Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também,
 porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.


De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se
 aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante
 da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.


Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de
 Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas,
de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.

Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin
 de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se
 dos escravos que os cercavam...


Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e, não o era,
 unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos
 do novo habitante.
 Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão
 local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão
 de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez 
um ladrão fugido do Rio."


A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto
 despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que
 Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém
 escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo
 quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de
 dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de
 resto ...' E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.


Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino,
 que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...


Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes e de ter passado mais uma vez a tintura nos
 cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado
 no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a
 dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino
 avaro de palavras, limitando-se tão somente a ouvir. Quando, porém, dos
 lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e
 emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o 
mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro',
 Senhor Bernardes; em português é 'garanto'.
 E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por
 uma outra.

Por essas e outras, houve muitos palestradores que 
se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava
 o
 seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco
 da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele 
rival, que surgia tão inopinadamente.
 Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel
 pagava em dia as suas contas, como era generoso - pai da pobreza - e o 
farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico
de valor.


II


Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela 
manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico
 foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse, e, certo
 dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.

Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:


– Doutor, seja bem-vindo.

O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de
 respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente
 olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:


– Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.


O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao
 homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão
 acendrado respeito. Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das
 rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob
 o olhar espantado do aprendiz, que, por um momento, deixou a "mão"
 descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.


Por fim, achou aos fundos, bem no fundo, o quartinho que lhe servia
 para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque
 Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:


– Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um
 nome respeitado no mundo sábio...


– Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos
 meus amigos.


– Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...


Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois 
continuou:


– Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao 
mundo sábio, compreende?


– Perfeitamente.


– Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para 
resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos
 imprevistos e...


– Certamente! Não há dúvida!


– Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...


Como? O quê? fez Bastos arregalando os olhos.


– Sim! Ouro! disse com firmeza Flamel.


– Como?


– O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento
 são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?


– Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados,
 porquanto...


– Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas o Senhor
 Bastos fará o favor de indicar-me.


O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus
conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:


– O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?

– Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.


– Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.


– É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque 
temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...


– Qual! É quase ateu...


– Bem! aceito. E o outro?


Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim falou:


– Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?


– Como já lhe disse...

– É verdade. É homem de confiança, sério, mas...

– Que é que tem?


– É maçom.


– Melhor.

– E quando é?


– Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e
 espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.


 Está tratado.


Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígio ou explicação para o seu desaparecimento.


III


Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes,
muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a
 honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As
 portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.


O último crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por
 ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do
 partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou
 os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas
 casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.


Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a
 verificar nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não
 se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma 
família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos
de todas as religiões e consciências; violavam-se as sepulturas do "Sossego",
 do seu cemitério, do seu campo-santo.


Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia
 seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um
 carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis
 mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia 
espalhou-se pela cidade.


A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades.
 A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas
 consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar
 - os bíblias, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensor Nicolau,
 antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major 
Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel
 Abudala, negociante de armarinho, e o céptico Belmiro, antigo estudante,
que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas.

A própria filha do
 engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele
 lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre
 esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la - a linda e
 desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror
que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de
 antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos 
olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles
 perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos
 e do seu busto nas calçadas do Rio?
 Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de
 quem ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua
 linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos
 sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne antro e prazer dos vermes...


O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de
 fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'."

E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... parecia que os mortos pediam vingança...

O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas 
abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir
 em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada,
 já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.

Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.


Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira;
 mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram
 e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada 
nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.


A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã se tratou
 de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população 
inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o coronel Bentes,
 rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro 
e o companheiro que fugira era o farmacêutico.


Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de
 ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!


Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse
 fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!


O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios
 de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado
 conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques,
 que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, passou logo o
 prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...


As necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro, viriam 
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.


A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça à espera do homem, que tinha o segredo de todo
 um Potosí.

Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão
 uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo", gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita,
 indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho longo que só poderia
 ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.

Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada
 qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento:
 arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.


O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro.
 Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda
 sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa
 morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de 
cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora
 aproveitou o caso para rir-se da crueldade daqueles botocudos;
 mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a cousa era possível.
 À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a
 janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas
 nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a
 encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e
 lá foi também.

E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada
 ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas,
 os criados - toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao 
satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor
 Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os
 seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava
 as
 carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu
 regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam
 em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos
 apodrecidos em lama fedorenta...


A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não
 bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações.
 Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias
 questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram
 juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de
 onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai, vamos onde está mamãe; ela era tão gorda..."

De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera 
em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara
 nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.


Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém,
 enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem
 do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito
 de granito - ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, ao que viam,
mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel
 eterno das estrelas.



(Ilustração: Remedios Varo)










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