quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A NOVA DIMENSÃO DO ESCRITOR JEFFREY CURTAIN, de Marina Colasanti






Quando o coágulo de sangue explodiu na cabeça de Jeffrey Curtain, algo nele foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu pensamento viu-se subitamente decepado do corpo. 

Sem espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de traduzir-se em grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse na boca. Passado isso, nada mais havia a não ser a nova dimensão. 

– O Dr. Jewett acha que não há esperança – repetia a enfermeira em voz baixa, aos eventuais visitantes. – O Sr. Curtain poderá viver indefinidamente, mas não tornará a ver. Nem se mexerá, nem pensará. Apenas respirará. 

De fato, Jeffrey respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à situação do restante do corpo, continuavam exercendo sua tarefa com a mesma fiel regularidade com que durante tantos anos lhe haviam fornecido aquele ar indispensável para que se levantasse a cada manhã, e a cada manhã se barbeasse dando partida para mais um dia, que haveria de catapultá-lo da mesa de refeições para a mesa de trabalho, diante da máquina de escrever e dos contos que produzia para alimentar o próprio corpo, e com ele os próprios pulmões encarregados de fornecer aquele ar indispensável para. 

Jeffrey teria ficado orgulhoso dos seus pulmões, se apenas se desse conta de que funcionavam, ou sequer de que os tinha. Mas, apesar do corpo de Jeffrey continuar possuindo pulmões e outros órgãos em perfeito estado de funcionamento, seu cérebro os desconhecia e comportava-se como se deles não necessitasse. Assim como não necessitava de visão ou da audição. 

Cortadas as ligações que o haviam ancorado ao resto do corpo, o cérebro de Jeffrey Curtain não dava mais ordens. E os médicos, enganados pelo silêncio dessa voz de comando, haviam decretado sua morte, entretanto, emparedado na caixa craniana cujos orifícios a ruptura havia vedado com sangue espesso como chumbo, o cérebro pensava. 

Talvez fosse mais correto dizer que luzia. Pois nada do que havia vivido até então se assemelhava à luz límpida e pura por ele agora gerada na óssea escuridão da sua caverna. Jeffrey Curtain havia-se livrado para sempre da escravidão da coerência. Sua mente, solta, tudo se permitia, tudo realizava. 

Aos poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey entrou em entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo sua obediência a ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente sob as calhas permitia-se escurecer. Começou a descascar. Enormes escamas quebradiças abriam-se feito conchas na velha superfície, entregando a madeira ao tempo, sem que pérola rolasse. 

Crescia a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis que em constante outono desprendiam-se das paredes e caíam volteando, enquanto na imobilidade do corpo de Jeffrey, outro movimento se processava. Vinda dos pés – ou seria da nuca? – a paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava por dentro, buscando alcançar-lhe o coração. 

Na cidadezinha, todos se referiam a ele como se já estivesse morto. 

E todas as manhãs, sua mulher o barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, falando-lhe como se fala a um cão amigo, embora sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que um cão é capaz. Nada lhe vinha daquele corpo, além do hábito. 

Mas Roxanne falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias, evitando perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silencio ou se para preencher com suas palavras o silêncio que dele parecia emanar. 

Sem que ela pudesse ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos, por trás da pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos ossos, um silêncio cheio de sons e palavras tecia sua sinfonia no cérebro de Jeffrey. Nunca mais ele havia precisado se expressar de forma audível ou legível. Nunca mais ele havia pensado para outros. Pensando só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrável dos seus desejos, deixando-se escorrer por ele como em água, sem saltos ou fraturas. A fabulação, que havia sido sua forma de viver, tornava-se sua vida. E ali deitado, imóvel, Jeffrey criava e costurava uma após a outra, as imagens da longa narrativa. 

Um neurologista – fama convocada para validar o que vários outros já haviam afirmado – tentou convencer Roxanne de que era inútil dispensar o tamanho cuidado ao enfermo. “Se Jeffrey tivesse consciência do seu estado”, disse em voz autoritariamente piedosa, “desejaria morrer. Desejaria libertar-se da prisão do próprio corpo.” 

Mas Jeffrey não desejava morrer. Assim como não desejava livrar-se do próprio corpo. Esse corpo que, sem movimentos, atrofiava-se aos poucos sobre a cama, não lhe era prisão. Nem lhe fazia falta. Antes, havia sido necessário ocupar-se dele, vigiar seus alarmas, suas dores, seus sintomas, lutar diariamente para atender sua fome inesgotável, protegê-lo. Antes havia sido imperioso servi-lo, e às suas exigências. Talvez então lhe fosse mais prisão do que agora, quando, impedido o contato entre o pensamento e suas carnes, eram elas que o serviam. 

De alguma forma, poder-se-ia dizer que Jeffrey não tinha consciência do seu estado. Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo. E sim porque, na longa travessia na qual seu pensamento estava empenhado, o fato de não falar ou mover-se parecia tão menor que se via excluído. 

Jamais, olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria Roxanne da intensa movimentação que o habitava. Sem gesto que o cansasse, Jeffrey não dormia, seu estado era um só. E nesse estado, de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de tempo e de país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como nunca havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água, e voava, voava. 

Longas vezes, enfastiado talvez da tanta agitação, o cérebro de Jeffrey deixava-se ficar, girando apenas ao redor de um pensamento, envolvendo-o nos fios prateados das suas ideias, aprumando-lhe as formas e o sentido, até vê-lo crescer, tão intenso como se a vida não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas explodisse naquele momento, carga milenar que desde sempre trazia consigo. Erguiam-se então na pálida atmosfera do quarto as invisíveis torres, e os sinos badalavam ensurdecedores no cérebro de Jeffrey. Sem que seu som cortasse o ar pesado do cheiro de remédios. 

Os anos haviam devorado o seguro de Jeffrey. Roxanne fora obrigada a vender uma parte da terra atrás da casa, depois a abrir mão de uma faixa de jardim à direita. Uma hipoteca tornara-se inevitável. 

E no entanto, como nos primeiros dias, quando a doença se manifestara e ainda parecia possível reverter o destino, ela continuava a amar o marido. 

Amava, em verdade, aquele homem que havia antes, e que ela teimava em sobrepor a esta pálida coisa cada dia menor e mais leve, coisa quase humana que ainda transportava da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, como se carregasse um fardo ou um feto. 

– Que mais posso eu fazer? – perguntava-se puxando de leve as cortinas, não fosse o sol bater sobre o pobre rosto que, único movimento perceptível, parecia voltar-se sempre em direção à luz. 

Uma luz quente derramava-se sobre as imagens dos pensamentos de Jeffrey, naquela tarde em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu que seu corpo o chamava. Desobstruíam-se os ouvidos, sons alheios aos seus lhe chegavam como ruído de cachoeira, ou vento, ou cantoria. As placas ósseas da sua fronte, as maçãs do seu rosto abriam-se como batentes empurrados por dentro e o sol, com intensidade nunca antes alcançada, vinha expulsá-lo da caverna. 

O fio do pensamento de Jeffrey lançou-se para aquela luz. 

Roxanne, que cochilava na cadeira ao pé da cama, acordou sobressaltada. Estendeu a mão para tocar o marido. Não foi preciso. Antes mesmo de olhá-lo, soube que estava sozinha na casa. Recolheu a mão ao colo, segurou-a com a outra, e deixou-se ficar. O sol se pôs. O perfume dos lilases pareceu enlouquecer as cigarras, o coaxar das rãs pairou sobre o peitoril da janela. 

Só então Roxanne levantou-se. 



(Ilustração: Dana Schutz - Coma -2005)



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